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Ribamar Oliveira: A saída é o Supremo, e não as ruas
No Brasil o Congresso Nacional está adotando uma variante que é impossível defender, o Orçamento com proprietários individuais
Os países mais desenvolvidos do mundo adotam, com algumas diferenças entre eles, o Orçamento impositivo. Ou seja, o Executivo é obrigado a executar as programações orçamentárias que foram aprovadas pelo Parlamento. No Brasil, infelizmente, o Congresso Nacional está adotando uma variante que é impossível defender: o Orçamento com proprietários individuais.
Até há pouco tempo, o entendimento predominante no Brasil era de um Orçamento apenas autorizativo, ou seja, que o Executivo não tinha a obrigação de executá-lo. Não podia era gastar mais do que estava autorizado. Depois de promulgada a Constituição de 1988, os parlamentares começaram a pressionar o Executivo para abrir um espaço dentro do Orçamento da União para as suas emendas.
Adotaram uma prática deletéria, que foi a de superestimar as receitas orçamentárias para arrumar recursos para financiar suas emendas. A prática tornou o Orçamento da União uma peça de ficção, pois, além de o Executivo não ter a obrigação de executá-lo, as receitas não tinham relação com a realidade.
A demanda dos parlamentares sempre foi por recursos para construir pequenas obras em suas bases eleitorais. Todos os governos, independentemente de suas ideologias, aceitaram o jogo, pois condicionavam a liberação dos recursos das emendas às votações dos parlamentares favoráveis aos projetos que lhes interessavam. Esse mecanismo sustentou o chamado “presidencialismo de coalizão”, ao longo das últimas décadas.
No fim da década de 1990, no entanto, teve início um movimento de rebeldia contra essa situação e vários parlamentares começaram a lutar pela obrigatoriedade de execução de todas programações orçamentárias. O então senador Iris Resende, do PMDB goiano, apresentou a PEC 77/1999, nesse sentido. O então poderoso senador Antônio Carlos Magalhães, do PFL baiano, empunhou a mesma bandeira.
Em 2015, as resistências do governo foram quebradas e o Congresso aprovou a emenda constitucional 86, que tornou obrigatória a execução das emendas individuais até o limite de 1,2% da receita corrente líquida (RCL) da União, sendo que metade do percentual seria destinado a ações e serviços públicos de saúde.
Há uma particularidade na execução das emendas individuais de parlamentares ao Orçamento, no caso do Brasil. Aqui, a emenda é, normalmente, genérica, ou seja, ela acresce recursos a uma programação existente ou cria outra. Durante a execução do Orçamento, no entanto, cabe ao parlamentar, autor da emenda, indicar o CNPJ do beneficiário. Ou seja, é ele quem diz em que município o dinheiro será aplicado. Com isso, ele se transforma em proprietário de uma parte do Orçamento.
Em junho do ano passado, o Congresso aprovou a emenda constitucional 100, que tornou de execução obrigatória as emendas de bancadas estaduais ao Orçamento, até o limite de 1% da RCL. Com isso, os integrantes das bancadas estaduais também são proprietários de uma parte do Orçamento.
A EC 100 determinou também que “a administração tem o dever de executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”. Desta forma, todo o Orçamento se tornou de execução obrigatória.
Em dezembro do ano passado, o Congresso aprovou ainda a emenda constitucional 105, que criou a “transferência especial”. Por meio de suas emendas, os parlamentares podem transferir recursos diretamente ao caixa do Estados ou do município que escolher, sem necessidade de assinatura de convênio ou instrumento congênere. Os recursos serão usados pelos Executivos estaduais e municipais da forma que melhor lhes aprouver, sem que haja qualquer fiscalização do Tribunal de Contas da União (TCU). Neste caso, os parlamentares se tornaram proprietários de parte dos recursos do Orçamento.
Para completar, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), válida para 2020, tornou obrigatória a execução das emendas de relator-geral e de Comissões do Senado e da Câmara. Depois de aprovado o Orçamento, descobriu-se que o relator-geral tinha feito emendas no montante de R$ 30 bilhões. Ele teria, portanto, o direito de indicar os CNPJ dos beneficiários dessa montanha de recursos. Teria também o direito de definir a prioridade de execução dessas programações.
Quando o Orçamento deste ano foi aprovado, as emendas parlamentares impositivas somavam R$ 48,5 bilhões. Este foi o espaço de execução orçamentária que foi subtraído do Executivo. Um veto do presidente Jair Bolsonaro à LDO fez o Executivo recuperar a gestão de R$ 30,8 bilhões (inclui as emendas de comissões). Mas, agora, o Congresso discute o PLN 4/2020, que, se aprovado, dará ao relator-geral o poder de direcionar R$ 16,3 bilhões do Orçamento.
É preciso observar que as emendas parlamentares não passam por uma discussão técnica na Comissão de Orçamento do Congresso, não precisam provar que são compatíveis com as políticas públicas setoriais ou que levam em conta critérios de distribuição que beneficiem os mais necessitados ou as áreas mais carentes.
Ao propor o veto à LDO, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que o dispositivo que permite ao parlamentar indicar o beneficiário dos recursos “investe contra o princípio da impessoalidade que orienta a administração pública, ao fomentar cunho personalístico nas indicações e priorizações das programações decorrentes de emendas”. Dito de uma forma mais direta, o dispositivo que está inscrito no PLN 4 é inconstitucional e deveria ser objeto de ação no Supremo Tribunal Federal (STF), se for aprovado. Esta é a saída correta, e não ir às ruas.
Vale lembrar o exemplo do Supremo Tribunal das Filipinas, que, em 2013, considerou inconstitucionais todas as disposições legais que autorizavam os parlamentares - individualmente ou coletivamente - a intervir, assumir ou participar de qualquer um dos vários estágios da execução do Orçamento, pois essa é uma atribuição do Executivo.
Cristiano Romero: Faria Lima tem dívida com a democracia
Muitos ainda creem que o Brasil precisa de um regime autoritário
Ao discursar na Câmara dos Comuns, em 11 de novembro de 1947, Winston Churchill proferiu a mais curta e célebre definição de democracia: “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”. Uma variante dessa definição seria a seguinte: “A democracia é o mais imperfeito dos regimes políticos. Viva a democracia”.
A pedra basilar da democracia é a liberdade de expressão. Todo cidadão tem o direito sagrado de discordar do governante de seu país e de manifestar publicamente o seu desagrado. Num regime democrático, não deve existir crime de opinião, do contrário, não se trata de democracia.
Quando uma ditadura irrompe, o primeiro direito suprimido é a liberdade de expressão, que se traduz na censura às empresas de mídia. Jornais são fechados, jornalistas são vigiados, presos e calados. Isso ocorre antes mesmo de políticos da oposição serem cassados.
No Brasil, durante a segunda metade da ditadura militar, que nos suprimiu, de 1964 a 1985, o direito de escolher pelo voto direto o presidente da República, forças antagônicas se juntaram para resistir ao regime autoritário. Em 1984, no palanque do movimento “Diretas Já”, pontuaram representantes do centro à esquerda no espectro político. Olhando o grupo mais de perto, era possível ver vultos da centro-direita e da extrema esquerda.
Derrotada a emenda Dante de Oliveira, que instituiria a eleição direta naquele ano, antecipando em cinco anos o retorno do sufrágio universal para a escolha do presidente, próceres da ditadura - José Sarney, da Arena, partido do governo durante o regime militar - e da chamada “resistência democrática” - Tancredo Neves, do então MDB, além de Ulisses Guimarães, maior liderança da oposição à ditadura - se uniram para impedir que outro prócer do regime - Paulo Maluf, ex-governador biônico de São Paulo - ganhasse o pleito indireto que o Congresso Nacional realizou para eleger o sucessor de João Figueiredo, o último general a presidir o país (de 1979 a 1985).
Terminada a ditadura, cada grupo político reunido em torno das “Diretas Já”, todos subscritores dos valores capitais de um regime democrático, foi para um lado. Os que chegaram ao poder não tardaram em reclamar da imprensa, esquecendo-se que restaurar a democracia não era outra coisa a não ser restabelecer a liberdade de expressão. A Constituição de 1988, ao estabelecer entre os direitos fundamentais do cidadão brasileiro o fim de qualquer forma de censura - numa versão popular, “é proibido proibir” -, refletiu a opinião de uma sociedade que amargou um regime ditatorial pela segunda vez no espaço de apenas 27 anos. Ainda assim, nenhum governo, repita-se, absolutamente nenhum, conviveu bem com a imprensa em 30 anos de presidentes eleitos.
Democracia e economia de mercado são quase sinônimos. Não existe democracia com economia planificada. Porque a liberdade de empreender é fundamental para o bom funcionamento de uma economia de mercado. Logo, o oposto também não faz sentido: não há liberalismo em regimes autoritários. Mas, por aqui, governos flertam com o autoritarismo e setores econômicos torcem, à boca pequena, para que isso aconteça. Trata-se de um enorme equívoco.
Muitos no mercado financeiro acreditam na tese de que, para avançar na economia, o Brasil precisa de um regime autoritário. A democracia, pensam, atrasa o país. O exemplo citado é o do Chile, que, sob a ditadura comandada pelo general Augusto Pinochet entre 1973 e 1990, quando milhares de pessoas foram vítimas do regime, entre executadas, desaparecidas e torturadas, economistas formados pela prestigiosa Escola de Chicago - a mesma do ministro Paulo Guedes - implantaram sólida economia de mercado ao sul da Linha do Equador.
Outro exemplo mencionado é o da China, que, dominada por um regime comunista fechado, conseguiu forjar experimento capitalista que a transformou, em pouco mais de quatro décadas, na segunda maior economia do planeta. O que se diz é que, sem democracia, governos fortes conseguem impor agendas liberalizantes que aceleram o crescimento do PIB, criando as condições para eliminar a pobreza.
No caso da China, poucos analistas identificam as chances de as coisas desandarem adiante. Cerca de 400 milhões de chineses, de uma população de 1,39 bilhão, vivem no mundo do capitalismo ocidental. Trata-se de uma imensa classe média, mais numerosa que a de qualquer outra nação. Mas um detalhe é inescapável: mesmo com dinheiro no bolso, esses milhões de cidadãos não têm liberdade para se expressar e seus direitos, inclusive o de ir e vir, são restritos. A China é uma ditadura. Ponto.
Imagine-se o seguinte: se a China não fosse uma ditadura, a maioria dos que vivem no grupo do 1 bilhão, entre gente que mora no campo e nas cidades, sendo que a população urbana já superou a rural, migraria para o “Sul maravilha”, onde ficam as províncias capitalistas.
Num regime fechado, o Estado escolhe quem salta da Idade Média para o século XXI. Se a escolha fosse livre, as cidades chinesas já teriam favelas mais povoadas que as do Brasil. Mas não se iludam os defensores do modelo político chinês: nenhum, dos 400 milhões de viventes da China capitalista, está feliz com a falta de liberdade.
Chineses, como brasileiros e indianos, buscam o progresso, o que significa procurar, sempre, o lugar onde possam viver melhor. A urbanização acelerada do Brasil desde a década de 1950 provocou o crescimento desordenado das principais capitais do país. O subproduto desse processo foi o surgimento de favelas gigantescas no Rio, São Paulo, Recife, Salvador etc.
É razoável esperar que, à medida que a China caminhe para se tornar uma economia avançada, o clamor por mais liberdade e direitos aumente de forma acelerada. O povo pedirá democracia porque isso é intrínseco ao ser humano. A pressão por mudança de regime será crescente e isso, claro, terá efeito negativo sobre a expansão da economia.
Fernando Exman: Confiança, matéria escassa em Brasília
Governo deve repensar modelo de articulação política
O momento impõe ao governo uma reflexão sobre seus métodos de articulação política.
Não há mais quem defenda, na Esplanada dos Ministérios ou no Congresso, o modelo de relacionamento adotado pela administração Jair Bolsonaro com o Legislativo. O problema do presidente, contudo, é que esse debate interno ocorre em um momento em que a confiança talvez seja a matéria mais escassa na Praça dos Três Poderes. Uma mudança de rota, se o governo surpreender e por um outro caminho optar, não será fácil.
Isso não quer dizer que serão substituídos, a curto prazo, os atuais articuladores políticos do governo.
Como diz um frequentador dos principais gabinetes do Palácio do Planalto, é inquestionável que Bolsonaro mantém plenos poderes para trocar quem quiser de sua equipe. Para essa autoridade, porém, Bolsonaro enfrentaria dificuldades práticas para demitir alguns dos ocupantes dos principais cargos da máquina federal sem correr o risco de criar turbulências.
O presidente se cercou de amigos pessoais e quadros oriundos das Forças Armadas, diz essa mesma autoridade: “Não se pode nomear quem não se pode demitir”.
Foi nessa conjuntura que, em vez de dispensar, o presidente acabou transferindo o ministro Onyx Lorenzoni da Casa Civil para o Ministério da Cidadania. Aliado de primeira hora de Bolsonaro, Onyx pegou na mão do antigo colega da Câmara dos Deputados e o ajudou a percorrer o país, participar de eventos políticos e de encontros com empresários.
Onyx integrou o núcleo de coordenação da campanha que saiu vitoriosa das eleições de 2018, o que lhe deu gabarito para ocupar um lugar de destaque no governo. Já na transição desempenhou papel importante no embate com a oposição e como porta-voz de uma administração de ruptura.
No entanto, equivocou-se ao imaginar que teria facilidades em manter sob seu controle tanto a gestão do governo quanto a articulação política.
Outro erro, este coletivo, foi acreditar que negociações com as bancadas setoriais seriam suficientes para garantir a aprovação da agenda legislativa de interesse do governo. Essa decisão foi tomada depois de longas discussões entre os formuladores da estratégia da campanha e do programa de governo de Bolsonaro.
Um participante desses debates cita a visão histórica que fundamentou a formatação do atual modelo de interação entre Congresso e Executivo. Na avaliação de aliados do presidente, o senador Fernando Collor sofreu um impeachment por não possuir uma “modelagem” de articulação e ter acreditado que contaria com o eterno suporte de determinados partidos, principalmente do PFL. O fracasso de seu plano econômico teria selado seu destino político, sentenciam.
Já o ex-presidente Itamar Franco seguiu seu “instinto mineiro”. Incorporou no governo o PSDB em lugar de destaque e, sinalizando que não disputaria as eleições, conseguiu entregar a faixa presidencial para seu sucessor sem sofrer grandes danos pessoais.
A abordagem de Fernando Henrique Cardoso foi “sociológica”, segundo essa avaliação, destacando um feito do tucano: ele conseguiu um ponto de equilíbrio com menos partidos. Isso teria se devido, em parte, ao “caciquismo” que vigorava no PFL.
Na narrativa governista, o ex-deputado Luís Eduardo Magalhães garantia praticamente a plenitude dos votos de seu partido. O PSDB tinha menos votos no Parlamento, mas também ajudava a sustentar vitória nas votações. “Na PEC da reeleição, tiveram que usar o vale-tudo. O PT ficou olhando e disse: ‘Ah, quando eles precisam é assim que eles fazem, né?’”, prossegue um aliado do presidente.
A mesma fonte desenha a sistemática aplicada pelo PT, citando o escândalo do mensalão: “A proposta política dos petistas era a Esplanada toda para o PT e o resto dos partidos ia para o Banco Rural”.
Tal prática, porém, precisou ser substituída após as denúncias. “Descobriram nossa modelagem. Vamos ficar só com determinados ministérios e vamos entregar outros com porteira fechada. Os aliados pilotam o orçamento e a gente não olha, finge que não vê e eles fingem que a gente não sabe também. Mas os votos a gente vai ter”, emenda a fonte, simulando o que, na sua visão, seria o pensamento dos petistas naquela época. “Deu na Lava-Jato”, constatou em seguida.
Essa é a abordagem histórica que explica o discurso adotado por Bolsonaro meses antes da campanha eleitoral. O então deputado percebera que grande parte do eleitorado votaria em quem prometesse acabar com a promiscuidade na política.
Seguindo esse roteiro, Bolsonaro e integrantes da equipe econômica ofereceram os instrumentos para que o Legislativo pudesse ter, enfim, mais poder sobre o Orçamento. “Mas a imaturidade não traz harmonia, e independência sem harmonia resulta em crise”,
sentencia a fonte.
É justamente neste cenário de crise que o Executivo e o Congresso discutem o formato do Orçamento impositivo. Os dois Poderes poderiam aproveitar o ensejo para reformatar essa relação.
Uma solução mencionada por integrantes da base governista e do Executivo seria a intensificação do diálogo entre o governo e as bancadas estaduais. O problema é que, depois de demonizar os partidos políticos, o presidente Jair Bolsonaro rompeu com diversos governadores e não mantém um bom diálogo com vários outros.
Mesmo assim, ainda há espaço para uma trégua, tendo grandes obras de infraestrutura no centro de uma agenda comum. Com ela, o Executivo teria condições de fazer avançar projetos prioritários. Os congressistas poderiam ser transformados em protagonistas de solenidades de inauguração nos seus redutos eleitorais. Ambos os lados sairiam ganhando, e o governo federal ainda conseguiria evitar que um montante gigantesco de verbas públicas fosse mal alocado ou transformado em custeio.
Qualquer saída a ser construída exigiria a renovação da confiança entre os partícipes das negociações, algo difícil de se vislumbrar quando um dos lados abomina a política e transforma “acordo” em um verbete maldito.
Andrea Jubé: ”O que faremos com esse povo na rua?”
Bolsonaro perde “dominância narrativa nas redes”
“O que mete medo em político é o povo na rua”, ensinava o Doutor Ulysses há três décadas. Líder da campanha pelas Diretas Já e ator relevante no impeachment de Fernando Collor em 1992, ele falava com propriedade: assistiu às multidões lotarem o Vale do Anhangabaú em São Paulo e a Candelária, no Rio de Janeiro, nos comícios de 1984, e aos caras-pintadas ocuparem o gramado do Congresso ao som de “Alegria, Alegria”.
A emenda Dante de Oliveira foi rejeitada, mas o ex-senador Heráclito Fortes, um dos mais próximos de Ulysses, pondera que sem a pressão popular a eleição indireta da chapa Tancredo-Sarney não se viabilizaria e a transição democrática seria adiada.
Sem a pressão popular talvez não prosperassem os processos de impeachment de Fernando Collor e Dilma Rousseff, admitiu à coluna um cacique do MDB que acompanhou os bastidores de ambos.
No sábado, o presidente Jair Bolsonaro resgatou a máxima de Ulysses para desafiar o Congresso. Dobrou a aposta em sua popularidade, mesmo em meio à crise econômica aguda, e conclamou a população a sair às ruas no dia 15 para defender o governo.
“Político que tem medo de movimento de rua não serve pra ser político”, discursou, em indireta aos parlamentares.
No primeiro momento, a aposta surtiu efeito e os dirigentes do Legislativo e Judiciário fecharam-se em Copas, em um gesto de cautela pelo temor da reação das redes e das ruas. Pesou, igualmente, uma dose de pragmatismo: uma reação enérgica colocaria em xeque o acordo que lhes garantiu R$ 20,5 bilhões em emendas ao Legislativo.
Trata-se da fatia pactuada dos R$ 30,1 bilhões que originalmente seriam retirados do Executivo na execução do Orçamento, o que levou o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, a falar em “chantagem” do Congresso.
Surpreende, entretanto, que o chamamento de Bolsonaro para os atos não tenha chacoalhado as redes. Ao contrário, o monitoramento das redes indica que, naquele sábado, aumentaram as menções negativas ao governo e às manifestações do dia 15.
“Bolsonaro vem perdendo a dominância narrativa nas redes”, assegura Sergio Denicoli, pós-doutor em comunicação digital e sócio-diretor de Big Data da AP Exata, agência de inteligência em comunicação digital.
Ele monitora o sentimento que Bolsonaro desperta nas redes há cerca de três anos, desde a pré-campanha eleitoral, com base em um sistema desenvolvido na Universidade do Minho, em Portugal.
A ferramenta, que acompanha Twitter, Instagram e YouTube, antecipou o resultado do pleito de 2018 antes da divulgação da boca de urna. A constatação neste momento é de que Bolsonaro perdeu a influência nas redes fora da bolha bolsonarista.
Por isso, Denicoli prevê ruas cheias no dia 15, mas com volume menor do que as manifestações anteriores. Ele não vê brasileiros que não sejam bolsonaristas radicais dispostos a sair de casa em apoio ao governo.
Após um início de mandato conturbado, com a denúncia sobre Fabrício Queiroz e o post do “golden shower”, houve um período de estabilidade do presidente nas redes de março até dezembro. Em maio, o protesto a favor da reforma da Previdência e do pacote anticrime do ministro Sergio Moro levou multidões às ruas nos 26 Estados e no Distrito Federal.
Há dois meses, entretanto, o monitoramento de Denicoli detectou um viés de baixa de Bolsonaro nas redes, que o pesquisador atribui ao PIB de 1,1%, à persistência do desemprego alto, à explosão do dólar, à gasolina cara, entre outros resultados negativos da economia. Essa avaliação contabiliza os chamados “perfis de interferência”, como robôs, fakes e apoiadores.
Denicoli acredita que os simpatizantes não radicais do governo começam a cobrar outra atitude do presidente e atribui a perda de influência à estagnação econômica. “A economia é o equalizador, se estiver ruim, acredito que a questão ideológica passa ao segundo plano”.
Denicoli confirma o medo que os políticos têm da população em massa nas ruas, mas ele vê um clima de apreensão dos dois lados: do Congresso, mas também do próprio Bolsonaro.
Ressalta que o presidente rompeu um padrão ao se expor convocando pessoalmente a população para os atos. “Isso mostra que ele não está seguro da dimensão dos atos”.
Vale relembrar que quando Collor pediu aos brasileiros que saíssem às ruas de verde e amarelo em uma demonstração de apoio, a população vestiu preto em resposta ao apelo. Mas Bolsonaro não é Collor: não tem base parlamentar, assim como o alagoano, mas ainda conta com o respaldo de parte expressiva da população.
Essa parcela de apoio pode não lotar o Anhangabaú, mas fará vista na Avenida Paulista e na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, a ponto de assombrar os políticos.
Um líder de uma das maiores bancadas do Senado admitiu à coluna que os senadores recuaram da intenção de convocar o general Augusto Heleno para não acirrar a crise institucional. Reclama que a “criminalização da política” recaiu sobre o colo do Legislativo.
“Poderíamos inflamar mais as ruas, e a gente precisa ter responsabilidade”, argumenta esta liderança. “Não podemos ser raivosos e imaturos como esse governo”, desabafou.
Quando rompeu o silêncio dos chefes dos Poderes, um dia depois da convocação de Bolsonaro, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, pronunciou-se em tom de serenidade. Cobrou “seriedade e diálogo” e exortou os poderes a agir “em harmonia e com espírito democrático”.
Em 1984, a presença de 300 mil pessoas em um comício pelas Diretas Já em Belo Horizonte assustou Tancredo Neves, contou Plínio Fraga na biografia do ex-presidente. Apreensivo, ele questionou o então líder sindicalista e fundador do PT Luiz Inácio Lula da Silva: “o que faremos com esse povo todo na rua?” Lula respondeu: “tudo o que a gente quer é povo na rua, não tem de ter medo. Coloca na rua e deixa ver o que vai acontecer”. É a fórmula e Bolsonaro: medir o volume das ruas e esperar o que virá depois.
Sergio Lamucci: Incertezas crescentes nublam cenário de 2020
Com a grande incerteza no cenário externo, é fundamental que o governo e a equipe econômica deixem de produzir ruídos, evitando criar mais instabilidade
As perspectivas para a economia brasileira se turvaram no fim deste primeiro trimestre, devido às incertezas no cenário global e no quadro doméstico. A epidemia de coronavírus, ao que parece, terá um efeito mais forte e um pouco mais longo sobre a economia mundial, o que tem provocado grande volatilidade e aversão ao risco nos mercados internacionais. No front interno, a atividade mostra fraqueza maior do que se esperava e o clima político segue conturbado, com o governo Jair Bolsonaro causando conflitos frequentes, desnecessários e preocupantes com os outros Poderes, em especial o Congresso. Há dúvidas sobre o andamento das reformas, num momento em que o ministro da Economia, Paulo Guedes, contribui para elevar as incertezas, ao demorar para definir a sua proposta de mudança do sistema tributário e ao dar declarações confusas sobre o câmbio, por exemplo.
Nesse ambiente, murcharam as expectativas de que o Brasil poderia ter um crescimento um pouco mais forte neste ano, na casa de 2% a 2,5%. Muitas estimativas já caíram para a casa de 1,5%, apesar dos juros baixos, do aumento do crédito e da retomada gradual do mercado de trabalho, embora ainda haja quem aposte numa expansão perto de 2%.
A incerteza elevada atrapalha em especial as decisões de investimento. Num quadro indefinido, marcado ainda por grande ociosidade, muitas empresas preferem esperar para investir em projetos de modernização e ampliação da capacidade produtiva. Além disso, o capital externo fica mais arredio.
O quadro internacional ficou muito mais incerto depois da eclosão da epidemia de coronavírus. Para os economistas do Barclays, “o cenário para a economia global se deteriorou significativamente”, à medida que a doença se espalha rapidamente pelo mundo. A ideia inicial era de que o fenômeno seria principalmente um problema chinês e asiático, restrito em grande parte ao primeiro trimestre. Agora, a avaliação é que haverá uma desaceleração mais longa e mais profunda, escrevem os economistas Christian Keller e Fabrice Montagné. Com a disseminação do vírus, especialmente na Europa e nos EUA, a economia global enfrenta um choque duplo de oferta e de demanda mais demorado e mais intenso.
Para eles, considerando que a doença siga os padrões históricos de outras epidemias, a expectativa é de uma recuperação relativamente forte da atividade ao redor do mundo na segunda metade de 2020, apoiada por respostas de política econômica, tanto monetárias quanto fiscais. Essas medidas podem atenuar o choque de demanda e, principalmente, evitar o contágio financeiro generalizado. Ainda assim, o crescimento global neste ano ficaria em 2,7%, abaixo dos 3,2% do ano passado e próximo aos 2,5% que o Fundo Monetário Internacional (FMI) considera como recessão, dizem Keller e Montagné.
Projeções econômicas num cenário como esse têm obviamente um grau de incerteza muito elevado. É extremamente difícil avaliar como a epidemia vai evoluir, qual será o impacto sobre a economia global e como será o efeito sobre os mercados internacionais. Apesar disso, ganha força a avaliação de que a atividade global tende a sofrer mais e por mais tempo. Para piorar, a semana começa com o tombo das cotações do petróleo, devido à guerra de preços promovida pela Arábia Saudita.
Esse ambiente externo adverso e incerto tem levado os economistas a reduzirem as estimativas de crescimento para a economia brasileira em 2020, aliado ao desempenho mais fraco da atividade por aqui nos últimos meses. O Safra, por exemplo, cortou na sexta-feira a projeção para 2,1% para 1,6%, atualizando a “perspectiva para incorporar o novo cenário global e também os dados mais recentes” sobre a economia brasileira, como os do PIB do quarto trimestre de 2019. Na visão do banco, esses números sugerem “uma recuperação frágil” do Brasil.
Para complicar o cenário, existem as incertezas no quadro doméstico. Há os conflitos do governo com os outros poderes, por exemplo. No sábado, Bolsonaro pediu que a população participe dos protestos marcados para o dia 15. Em várias convocações para o ato feitas nas redes sociais, há um tom de forte hostilidade ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Esses conflitos ocorrem quando há grande expectativa em relação ao andamento da agenda de reformas. Depois da aprovação da reformada da Previdência, o governo enviou três Propostas de Emenda à Constituição (PEC) ao parlamento - a emergencial, a do pacto federativo e a dos fundos. Entre outros pontos, há medidas para enfrentar a rigidez das despesas obrigatórias, como os salários do funcionalismo, um ponto importante para consolidar o ajuste das contas públicas, mas os projetos são muito amplos e têm pontos controversos, dificultando a sua aprovação.
Além disso, a equipe econômica demora a definir a sua proposta para a reforma tributária, num ambiente em que parece haver um clima mais favorável à mudança do sistema de impostos. Um dos pontos que atrapalham é o desejo de Guedes de criar um tributo sobre transações financeiras, nos moldes da extinta CPMF, para compensar a desoneração da folha de salários das empresas. A medida conta com a oposição de figuras importantes do Congresso, como o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o próprio Bolsonaro já mostrou diversas vezes antipatia à ideia.
Na quinta-feira passada Guedes afirmou a empresários na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) que deve enviar a proposta de reforma tributária ao Congresso nesta semana. A ver, já que o envio da proposta foi prometido para a semana seguinte várias vezes, o que também ocorreu com a reforma administrativa.
Guedes também colabora para aumentar a incerteza ao falar de modo confuso sobre o câmbio. Na quinta-feira, o ministro disse que o câmbio é flutuante, que o dólar pode ir a R$ 5 se ele fizer muita besteira e que quem quiser remeter recursos para fora do país, que os remeta. Ao se manifestar de modo desencontrado sobre um assunto da alçada do Banco Central (BC), o ministro contribui para criar mais volatilidade.
Num momento de grande incerteza no cenário externo, é fundamental que o governo e a equipe econômica deixem de produzir ruídos e conflitos, evitando criar mais instabilidade.
Se isso não ocorrer, a recuperação vai continuar a passos lentos, com o risco de mais um ano de crescimento pífio, próximo ao pouco mais de 1% dos últimos três anos.
*Sergio Lamucci é editor de Brasil
Bruno Carazza: O que querem as mulheres?
Bancada feminina tem uma boa agenda no Congresso
Em outubro de 2019, Melinda Gates publicou na revista Time uma carta aberta prometendo investir US$ 1 bilhão na próxima década em projetos para expandir o poder e a influência das mulheres nos Estados Unidos. A data desse anúncio foi cuidadosamente escolhida: naquele mês completavam-se dois anos do surgimento das primeiras denúncias contra o então todo-poderoso produtor de cinema Harvey Weinstein, desencadeando um amplo movimento a favor da quebra do silêncio em casos de assédio e agressão sexual.
A hashtag #MeToo viralizou e foi fundamental para a condenação de Weinstein - num primeiro momento pública, e depois judicial - e para a promoção do debate sobre a condição feminina no mercado de trabalho. Depois de se alastrar das redes sociais para a sociedade, o #MeToo está enfrentando uma crise típica dos grandes movimentos populares surgidos nos últimos anos: como vencer a improvisação, a organização difusa e a ausência de lideranças e construir uma agenda de prioridades para obter resultados concretos na melhoria das condições de vida das mulheres?
Melinda Gates entende que a repercussão em torno do #MeToo representa uma janela de oportunidade para alavancar o “ativismo de sofá” numa ação coletiva em prol da igualdade de gêneros. Para isso, pretende usar sua fortuna para fomentar iniciativas voltadas a três prioridades: i) redução das barreiras ao desenvolvimento profissional feminino; ii) estimular a ascensão de mulheres nos setores de tecnologia, mídia e governo, que têm um grande impacto na sociedade e iii) mobilizar acionistas, consumidores e trabalhadores para pressionarem as empresas a se tornarem mais diversas, tanto em termos de gênero quanto de cor.
De acordo com Melinda Gates, há mais CEOs chamados James do que mulheres liderando as 500 maiores empresas nos Estados Unidos. E apesar de representarem 51% da população, apenas 24% das cadeiras no Congresso americano são ocupadas por parlamentares do sexo feminino. No Brasil, a situação é ainda pior: embora tenham melhorado de forma expressiva seu desempenho nas últimas eleições, as mulheres representam apenas 15% da Câmara e do Senado.
Para ter uma ideia de como a bancada feminina no Congresso brasileiro tem pautado as discussões sobre proteção às mulheres e promoção de igualdade de gênero em nosso país, realizei um levantamento de todos os projetos de lei e propostas de emenda à Constituição sobre esse tema apresentados por deputadas e senadoras na atual legislatura.
De 162 proposições analisadas, mais da metade (86) trata de prevenção e combate à violência contra as mulheres. Nossas parlamentares partem do diagnóstico de que os avanços obtidos com a aprovação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) ainda são insuficientes. A contar pelo número de propostas, preocupa principalmente a ineficiência das medidas protetivas previstas na legislação atual.
Para combater a recorrência de situações em que o agressor descumpre as determinações judiciais de se manter longe da vítima, deputadas e senadoras sugerem, entre outras ações, monitoramento com tornozeleiras eletrônicas, concessão facilitada de prisão preventiva, majoração do valor da fiança, busca e apreensão de armas de fogo e notificação compulsória às autoridades policiais e judiciais por parte de profissionais da saúde que tenham identificado sinais de violência em suas pacientes.
Um outro grupo de projetos promete atacar o problema da efetividade da Lei Maria da Penha em duas frentes diferentes: de um lado, procurando facilitar o acesso à Justiça das vítimas, com a ampliação dos mecanismos de proteção às autoras e testemunhas nos processos; de outro, elevando as sanções aos agressores, como a imposição do dever de ressarcir despesas do SUS e do INSS com o atendimento aos alvos de sua violência e a vedação de ser nomeado para cargos públicos. Também faz parte da agenda das parlamentares a concessão de benefícios para as mulheres agredidas, como licenças e a possibilidade de movimentar suas contas no FGTS para o custeio de tratamento médico, a fim de se recuperarem dos traumas físicos e psicológicos.
A segunda dimensão com mais projetos na agenda das parlamentares brasileiras diz respeito à maternidade. Tramitam no Poder Legislativo federal propostas para humanizar o acolhimento das gestantes desde o pré-natal, incluindo o direito à opção quanto ao tipo de parto, a prioridade de atendimento e transferência em caso de falta de vagas nos hospitais e a criação de espaços públicos para a amamentação. Também é objeto de sugestão a alteração da legislação para aumentar o período de estabilidade de emprego para as gestantes e a extensão da duração da licença-maternidade para 180 dias para todas as trabalhadoras, abrindo inclusive a possibilidade para que esse prazo seja compartilhado com os pais.
Para promover uma maior igualdade de gêneros no mercado de trabalho, deputadas e senadoras recorrem às cotas para reverter a predominância de homens nos cargos mais altos do setor público e privado, estabelecendo percentuais mínimos para mulheres nos postos de gerência e direção de empresas, entidades da sociedade civil e órgãos públicos. Há ainda iniciativas de desenvolvimento de políticas públicas para apoiar o imenso contingente da população feminina dedicada às atividades de cuidado com familiares que necessitam de atenção especial em função de suas condições de saúde, deficiências ou idade.
Por fim, um número expressivo de proposições procura atacar justamente o fato de possuirmos tão poucas mulheres na política brasileira. Medidas nesse sentido envolvem desde a ampliação do percentual mínimo de candidatas em cada partido (atualmente o patamar é de 30%) ao estabelecimento de critérios mais efetivos para a distribuição dos recursos do fundo partidário, chegando até mesmo à imposição de paridade no número de vagas a serem preenchidas por mulheres e homens nos Legislativos de todo o país.
Há no Congresso Nacional uma pauta extensa de propostas voltadas para a melhoria das condições das mulheres que merece receber mais atenção da sociedade. Estimular uma maior igualdade entre os gêneros deveria mobilizar nossa atenção não apenas em torno do 08 de março. Fica o alerta (for #MeToo).
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”
Valor: Alvo de ataques de apoiadores de Bolsonaro, Maia sobe o tom contra o governo
O presidente da Câmara afirmou que há uma estrutura ligada ao Executivo que é responsável por viralizar "ódio e fake news"
Por Cristiane Agostine, Valor Econômico
SÃO PAULO - Alvo de fortes ataques de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e de protestos marcados para o dia 15 deste mês, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), subiu o tom contra o governo e disse que há uma estrutura ligada ao Executivo que é responsável por viralizar "ódio e fake news".
Ao defender investigações para descobrir quem financia essa rede, Maia afirmou que a gestão Bolsonaro aposta em uma estratégia para atacar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) e transformá-los em inimigas da sociedade, fortalecendo o presidente.
"Infelizmente a gente não tem os recursos e a estrutura que o entorno do governo tem para viralizar tantas fake news como tem sido feito nas últimas semanas", afirmou Maia, em evento promovido pela Fundação FHC, em São Paulo. "Desde o início do governo tem uma estratégia nas redes sociais, o entorno do governo, as redes que o governo influencia têm operado de forma a criar as instituições como inimigas da sociedade, o que não é verdade."
Ao falar sobre os protestos marcados para o dia 15, contra o Congresso e o Supremo, Maia reforçou as críticas ao governo por "viralizar o ódio" e a ideia de que pretende criar o "parlamentarismo branco". "Essas teses são criadas para arranjar alvos para que o Congresso, o presidente da Câmara, do Senado, do próprio Supremo sejam atacados, para que o ódio seja viralizado."
O presidente da Câmara disse que o governo Bolsonaro tem demonstrado que os ataques feitos contra o Legislativo e ao Judiciário não são por "desconfiança" em relação aos dois Poderes, mas sim um "método". "Vivemos um momento difícil", afirmou Maia.
Maia classificou o responsável do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, como um ministro do desequilíbrio, depois que ele fomentou a discórdia contra o Legislativo e chamou o Congresso de chantagista — declaração que serviu como estopim para os atos do dia 15.
O parlamentar também reclamou da falta de interesse do presidente em relação às pautas econômicas, sobretudo para organizar as contas públicas e retomar o crescimento econômico, e disse que o Parlamento tem assumido o protagonismo para superar a crise econômica enfrentada pelo país.
Maia afirmou ter conversado hoje com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para o Legislativo buscar soluções para a crise econômica e o mau desempenho do PIB junto à equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, que tem "cabeça racional" no governo Bolsonaro. "É homem de diálogo, tem nos ajudado, tem espírito público enorme", afirmou.
"Falei com Davi e ele vai propor uma reunião da equipe econômica com o Congresso para ver o tamanho da crise e o que, em conjunto, aqueles que têm cabeça racional no governo podem falar com a Câmara e o Senado", disse Maia. O parlamentar criticou ainda o governo por criar novas despesas onde não há fontes de receita, como o 13º salário permanente para o Bolsa Família e o BPC.
O presidente da Câmara também cobrou empenho do governo para enfrentar a crise econômica e disse que o Parlamento tem cumprido seu papel. "Não queremos um milímetro do que é de responsabilidade do Executivo, mas também queremos que o espaço e a prerrogativas parlamentares do Congresso Nacional também sejam respeitadas", disse.
"Temos que ter muito equilíbrio, muita paciência, compreender que o governo está pressionado porque prometeu muito e não entregou, tinha previsão de crescimento [do PIB] de 2,5% e cresceu 1,1%, entendemos a aflição", afirmou Maia.
Orçamento impositivo
Maia disse que o Orçamento deve ser resolvido na próxima semana e que nunca quis mexer na proposta original do governo. O parlamentar disse que "há um conflito que não é verdadeiro com o governo" sobre o Orçamento e afirmou que, com isso, "perde-se tempo" em vez de avançar em pautas prontas para votar, como a autonomia do Banco Central.
"O que estava em discussão, como em todos os anos, é a parte que o Parlamento adiciona. Nós dobramos os investimentos públicos, mais recursos para prefeitos e governadores, em momento de economia fraca", afirmou.
Maia disse que está em discussão R$ 20 bilhões - R$ 4 bilhões que foram pedidos dos ministros. "Aprovamos tudo na emenda do relator. Quer dizer que isso pode, mas agregar mais R$ 15 bilhões para prefeitos, nos municípios e Estados nas bases dos deputados e senadores não pode?"
Maia também voltou a falar que é contra o parlamentarismo no Brasil neste momento. "O Parlamento tem que dar muitos passos para recuperar a credibilidade para daqui a cinco, seis, sete anos a gente discutir se o sistema presidencialista é o melhor ou o parlamentarista. Neste momento não agrega em nada e gera desgaste", afirmou.
Ribamar Oliveira: Regulamentação chegou muito tarde
Agilidade do governo teria evitado os problemas ocorridos no início deste ano envolvendo o Orçamento impositivo
Por mais incrível que possa parecer, somente nesta semana o governo tomou a iniciativa de encaminhar ao Congresso Nacional um projeto de lei alterando a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), válida para 2020, estabelecendo normas para aplicação, com segurança jurídica, do chamado Orçamento impositivo. Ou seja, os pneus estão sendo trocados com o carro em movimento.
Na exposição de motivos que acompanha o projeto de lei, o ministro da Economia, Paulo Guedes, comete uma impropriedade. Ele diz ao presidente Jair Bolsonaro que a regulamentação está sendo feita agora porque, quando as emendas constitucionais 100 e 102, que instituíram o Orçamento impositivo, foram promulgadas, o projeto da LDO válido para 2020 já tinha sido aprovado pelo plenário da Comissão Mista de Orçamento do Congresso (CMO).
Na verdade, a emenda constitucional 100 foi promulgada no dia 26 de junho de 2019, quando o relator do projeto da LDO, deputado Cacá Leão (PP-BA), nem sequer tinha apresentado o seu relatório, o que só foi feito no dia 7 de julho do ano passado. Foi a EC 100 que determinou ser dever da administração “executar as programações orçamentárias, adotando os meios e as medidas necessários, com o propósito de garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade”.
Na época, a EC 100 causou grande preocupação dentro da área técnica do governo, pois não estava explícito no texto constitucional que as programações orçamentárias poderiam ser contingenciadas para o cumprimento das metas fiscais ou do teto de gastos. Nem mesmo que elas não poderiam ser executadas em caso de impedimento de ordem técnica.
Em negociação direta com os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a área econômica do governo acertou um texto a ser incluído em outra proposta de emenda constitucional para deixar todas essas questões explícitas.
A EC 102, aprovada no dia 26 de setembro de 2019, simplesmente determinou que a execução orçamentária se subordina ao cumprimento de dispositivos constitucionais e legais que estabeleçam metas fiscais ou limites de despesas. Ela explicitou também que a obrigatoriedade da execução não impede o cancelamento necessário à abertura de créditos adicionais e não se aplica nos casos de impedimentos de ordem técnica devidamente justificados.
O Orçamento impositivo foi instituído, portanto, pela EC 100, de junho. O projeto da LDO foi aprovado pela Comissão Mista de Orçamento do Congresso no dia 8 de agosto de 2019. Havia portanto, tempo suficiente para que o governo pedisse ao relator que paralisasse a tramitação do projeto, enquanto a EC 102 não fosse aprovada. Mesmo porque o Congresso Nacional só aprovou a LDO válida para 2020 no dia 9 de outubro do ano passado.
Seria possível, portanto, fazer as alterações no projeto da LDO, estabelecendo normas para a aplicação do Orçamento impositivo, com segurança jurídica. O que teria evitado os problemas ocorridos no início deste ano, quando as dúvidas sobre a aplicação da EC 100 dificultaram enormemente a execução orçamentária.
Em meio a todas as incertezas sobre a execução do Orçamento impositivo, o veto do presidente Bolsonaro ao artigo 64 da LDO adicionou um elemento politicamente explosivo. O presidente considerou contrário ao interesse público que os parlamentares indicassem os beneficiários de suas emendas e a prioridade de execução.
Em reação, os senadores e deputados aprovaram a Lei 13.957, explicitando a obrigatoriedade de execução das emendas do relator-geral do Orçamento e das comissões do Senado e da Câmara e reinstituindo os mesmos critérios de indicação e de prioridade que tinham sido vetados anteriormente. O presidente vetou novamente.
Quando o Orçamento para 2020 foi aprovado, descobriu-se que o relator-geral tinha feito emendas no valor de R$ 30 bilhões. Nunca antes um relator-geral tinha feito emendas nesse montante. Elas eram diferentes, pois ele cortou algumas programações propostas pelo governo e, ao mesmo tempo, as incluiu no Orçamento como emendas suas, com acréscimo de valor. Na área técnica do Executivo, esse procedimento é chamado de “emenda cachorro”, pois lembra um cachorro mordendo o próprio rabo.
Com esse mecanismo, o relator retirou do governo a gestão sobre uma montanha de investimentos e passou a ser a pessoa a indicar o nome dos beneficiários dos recursos e a prioridade de execução. Uma das emendas do relator-geral, por exemplo, destinou R$ 351,7 milhões para a ação de policiamento, fiscalização, combate à criminalidade e corrupção. Parece não haver dúvidas de que cabe ao ministro da Justiça e da Segurança Pública definir os beneficiários dessa ação e a prioridade de execução, e não ao relator-geral do Orçamento.
Finalmente, a proposta de regulamentação das ECs 100 e 102 chegou nesta semana ao Congresso. Junto com ela, um projeto que acaba com a possibilidade de o relator-geral apresentar a chamada “emenda cachorro”. Se o projeto for aprovado, ele só poderá indicar os beneficiários dos acréscimos que ele fez nas programações originais do Executivo.
Os projetos foram encaminhados após um acordo, feito pelo governo com as lideranças políticas, para a manutenção do veto do presidente ao artigo 64 da LDO. Ontem, o veto de Bolsonaro foi mantido e os parlamentares poderiam votar, à noite, as propostas de mudanças na LDO.
No caso da regulamentação do Orçamento impositivo, propriamente dito, o projeto define que o contingenciamento das emendas parlamentares será feito na mesma proporção aplicável às demais despesas do Executivo, que os restos a pagar de exercícios anteriores estarão dentro do limite financeiro anual de cada órgão e que o Executivo poderá remanejar os recursos de despesas que não estão sendo executadas para pagar outras.
Assinatura
A exposição de motivos de um dos dois projetos que alteram a LDO, justamente aquele que trata das emendas do relator-geral, não é assinado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Mas pelo ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos.
Maria Cristina Fernandes: A guarda pretoriana do comediante
Se estava difícil de entender, o coronel Aginaldo desenhou com o estímulo à insubordinação policial
Como estivesse difícil entender, o coronel Aginaldo de Oliveira resolveu desenhar. Ao celebrar a coragem dos policiais militares na assembleia que deliberou pelo fim do motim policial no Ceará, o coronel, que é diretor da Força Nacional de Segurança, mostrou que o presidente Jair Bolsonaro hoje dispõe de meios para arregimentar uma guarda pretoriana. Não é um feito solitário. Tem a decisiva ajuda do ministro da Justiça, Sergio Moro, cuja autoridade se mostrou incapaz de repreender amotinados.
A guerra de facções do crime organizado no Ceará, Estado que se tornou corredor de exportação do narcotráfico andino, foi a primeira crise enfrentada pelo presidente da República. Na semana da sua posse, Bolsonaro optou pelo envio da Força Nacional de Segurança para o Estado que havia acabado de reeleger um governador do PT.
Um ano depois, nova crise eclodiria sob a forma de motim policial. Como a força especial composta por policiais militares já não desse conta de reprimir seus próprios colegas, o presidente foi pressionado a decretar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), conduzida por militares do Exército. Entre uma e outra crise, deterioraram-se as bases da hierarquia e da disciplina das tropas locais e a capacidade de operação da força nacional. O governador é o mesmo, Camilo Santana, reeleito pelo PT. Quem mudou foi o presidente, ocupado, desde a posse, em incutir, nas bases policiais, o vírus da insubordinação que marcou sua carreira militar.
É uma barafunda bolsonarista por excelência. Desde sua criação, em 2000, a Secretaria Nacional de Segurança Pública, chapéu, no MJ, para a Força Nacional de Segurança, foi ocupada por policiais e especialistas. No governo Michel Temer, assumiu o primeiro general, Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro do governo Bolsonaro e um dos poucos militares da reserva a expor publicamente sua crítica à insubordinação policial.
Com a posse de Bolsonaro, o cargo seria ocupado por um segundo general. Secretário de segurança do governo Tasso Jereissati nos anos 1990, o general Guilherme Theophilo viria a ser o candidato tucano ao governo do Estado em 2018. Seu programa de segurança foi elaborado pelo coronel Aginaldo Ribeiro. Derrotado pela reeleição de Camilo Santana, Theophilo assumiria a secretaria nacional de segurança e, em retribuição aos serviços prestados na campanha, colocaria o coronel para dirigir a força nacional.
O casamento, amplamente coberto pelas redes sociais, com a deputada Carla Zambelli, entusiasta de primeira hora dos protestos de 15 de março, já havia tirado Aginaldo Ribeiro da obscuridade. Mas foi o discurso na assembleia dos amotinados cearenses que o tornou um ícone da era bolsonarista.
Nota do ministério de Sergio Moro limitou-se a informar que o coronel fez um discurso interno para os policiais. Foi outro “discurso interno”, de 30 de março de 1964, no salão do Automóvel Clube do Brasil no Rio de Janeiro que precipitou o golpe contra João Goulart. Ao contrário do coronel, Jango se dirigiu aos sargentos presentes com um apelo pelos valores militares da hierarquia e da disciplina, mas sua presença na posse da Associação dos Sargentos foi capaz de dobrar o último general que resistia ao golpe, Castelo Branco.
O coronel não é presidente da República mas é por ele mantido no cargo a despeito de estimular a sublevação de policiais num Estado em que o governador resiste à anistia de PMs com apoio do general Freire Gomes, comandante militar do Nordeste.
Chefe de uma força de segurança formada por homens recrutados na elite das polícias militares de todo país, Aginaldo não deixou dúvidas de que é capaz de colocá-la a soldo de interesses da conjuntura. Os policiais militares obedecem a tantos poderes que não surpreende se deixarem de se curvar a algum deles. Em “Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos” (Boitempo, 2019), Luiz Eduardo Soares, secretário de segurança nacional no governo Luiz Inácio Lula da Silva, lista as cadeias de comando cruzadas.
A Constituição trata as PMs como forças auxiliares e reserva do Exército, que também aprova o nome indicado pelo governador para seu comando. Ou seja, se o presidente da República é o comandante-em-chefe das Forças Armadas, o governador não o é de suas polícias. Sua orientação está a cargo das secretarias estaduais de segurança, mas o controle é repartido entre o governador e o Exército ou, em última instância, seu comandante, Bolsonaro.
A consternação dos meios militares com a insubordinação consentida dos policiais é lastreada nessa baderna legal. Ao fraquejar na imposição de sua autoridade, o ministro Sergio Moro já perdeu o prestígio de que desfrutava no generalato. Não é entrando no presídio da Papuda, hoje sob GLO, num tanque de guerra, que o ministro o recuperará.
Nenhuma autoridade preocupa mais os generais hoje, no entanto, do que o presidente da República. A inquietação foi ampliada com a convocação para a manifestação do dia 15. O último artigo de Fernando Henrique Cardoso em “O Estado de S.Paulo” sugere que o ex-presidente foi porta-voz dessa preocupação: “Não é para ‘dar um golpe’ que os militares aceitam participar do atual governo. Sentem sinceramente que cumprem uma missão... O risco para a democracia e para as próprias Forças Armadas é que se borre a fronteira entre os quartéis e a polícia”.
Essa fronteira estará tanto mais em risco quanto maior for a dificuldade de a economia brasileira reagir. O comediante da porta do Alvorada não representa o desdém do presidente apenas pela pauta do crescimento. Se não for capaz de fazer o país crescer, como sugere o PIB de 2019, o presidente pode se valer da imprudência de sua guarda pretoriana para fazer graça com a Constituição.
Daí porque o ministro Paulo Guedes, que já havia perdido apoio no Congresso, no empresariado e nas finanças, está sem lastro no generalato palaciano. Seu preferido é o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, coringa de técnico com formação militar e trânsito legislativo. É uma tentativa de garantir que o governo Bolsonaro possa acabar como começou, pelo voto. Ou não.
Cristiano Romero: Conselhos, onde estão as mulheres?
Entidade criada por um grupo de mulheres busca corrigir a ‘discriminação’ de gênero no conselho de empresas no país
Num país onde a escravidão perdurou por quase 400 anos, a discriminação do outro é regra e não exceção. É o que mais nos distancia da possibilidade de sermos uma nação. Tanto tempo vivendo sob um regime escravagista nos condenou a jamais enxergar o outro como um de nós. Na Ilha de Vera Cruz, mas não só aqui, floresceram todas as formas de discriminação: étnica, social, de gênero, origem, opção sexual...
A escravidão, previu o abolicionista Joaquim Nabuco, “permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. A história ensina que decorria do domínio de um povo sobre outro. Na colonização das Américas, de um cálculo econômico: a acumulação de capital, uma vez que escravos eram mercadoria, não recebiam salário e isso dava às colônias do Novo Mundo, dominado pelos europeus, vantagem competitiva em relação à Asia.
O Brasil foi o derradeiro país do continente americano a abolir a escravidão, em maio de 1888. O contexto em que isso se deu evidencia a dificuldade que sempre teremos para superar o vergonhoso legado. Contrários ao fim da escravidão, barões do café ajudaram a derrubar a monarquia pouco mais de um ano após a abolição da escravatura. O regime monárquico esticou a desonra escravagista, mas a nossa República não nasceu para modernizar o país. Fruto de um golpe militar, esteve a serviço dos produtores rurais de São Paulo e Minas Gerais por mais de 30 anos, condenando os habitantes de 48% do continente sul-americano a um atraso extraordinário.
Barões do café, senhores de engenho e correlatos não só odiavam os negros; eles os desprezavam. Por isso, em represália ao fim da mão de obra escrava, forçaram o primeiro governo republicano a abrir a imigração para japoneses e europeus, especialmente das nações que viviam momentos de dificuldade. Muitos imigrantes foram tratados como escravos porque, para os capitalistas nacionais, eles eram custo.
E os escravos? Rejeitados, foram jogados à própria sorte em Estados como Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Não tinham acesso à educação, saúde, nada. Seus descendentes nasciam condenados pela cor da pele. Para sobreviver, voltaram à escravidão, disfarçada de emprego, principalmente, o doméstico.
A ignomínia nos acompanhou por tanto tempo que transbordou para outros aspectos da vida nacional. Discriminar tornou-se a principal forma de organização social. E é. As relações pessoais e profissionais, as distinções entre regiões, Estados, capitais, cidades e bairros, entre sotaques, para ficar nestes exemplos, são mediadas sempre por uma hierarquia. Esta é estabelecida por critérios como cor da pele, naturalidade, gênero, renda...
Neste imenso território, as mulheres só começaram a votar na década de 1930. Observe-se portanto o caráter da República instaurada no início do século passado. A boa nova por aqui é que, depois de superar por duas ditaduras no espaço de apenas três décadas, e de viver acelerado processo de industrialização e crescimento econômico entre as décadas de 1950 e 1980, a sociedade civil começou a andar mais rapidamente que o Estado e suas instituições anacrônicas. Esse caminhar resultou na adoção, pela Constituição de 1988, de aspectos civilizadores, como a penalização de toda e qualquer forma de discriminação.
Jair Bolsonaro chegou à Presidência da República com uma agenda recheada de ideias que contrariam avanços da sociedade no que diz respeito a direitos consagrados não só pela Constituição de 1988, mas também por jurisprudências firmadas por decisões do Supremo Tribunal Federal. Num país marcado pela distinção das minorias, soa muito fora de lugar qualquer iniciativa para reduzir direitos de cidadãos livres.
Até o momento, apesar do alarido, Bolsonaro não logrou sucesso na agenda de sua base social, de seus eleitores naturais. Mas a ameaça de retrocesso tem feito florescer uma série de iniciativas de fortalecimento da diversidade. O curioso é que, embora motivadas pelo temor ao bolsonarismo, as ações combatem a falta de diversidade perpetrada por vários setores da sociedade.
É nesse contexto que um grupo de mulheres criou, no ano passado, a WOB (podia ser no idioma pátrio, mas é a sigla de “Women on Board”, isto é, “Mulheres no Conselho”). Chris Aché, Carol Conway, Carolina Niemeyer e Patrícia Marins constataram que há pouquíssimas mulheres nos Conselhos de Administração das empresas de capital aberto e nos Conselhos Consultivos das companhias familiares, de capital fechado.
Com a ajuda de um software desenvolvido pelo Fundo Teva, a WOB mapeou, a partir dos formulários de referência, os conselhos de todas as empresas de capital aberto. Os critérios são rigorosos. Foram consideradas somente as empresas listadas e negociadas na bolsa. Ficaram de fora as companhias em recuperação judicial ou extra judicial; além daquelas negociadas em mercado de balcão. Não entraram, também, as firmas sem negociação no mês de referência da pesquisa (31 de dezembro de 2019). Empresas que não tenham enviado formulários de composição do conselho nos últimos 12 meses também foram excluídas.
As conclusões são chocantes e mostram a falta de diversidade de gênero no Brasil num segmento da vida nacional (os conselhos de empresas de capital aberto) do qual se espera mais e não menos civilidade: das 272 empresas de capital aberto, mulheres têm assento no CA de apenas 137. Apenas 46 possuem duas ou mais mulheres nos conselhos.
Com o apoio da ONU-Mulher, o WOB criou um selo de certificação para as companhias que tiverem duas ou mais conselheiras, critério que, comprovadamente, mostra força nos conselhos Quando o WOB publicou a lista das que se enquadram nesse critério, as concorrentes correram à sua porta para se comprometer a fazer o mesmo. É um bom começo.
Fernando Exman: A nova realidade do Orçamento e o lobby
Adesão à OCDE pode demandar regulação da atividade
O desfecho do impasse entre o Congresso e o governo em relação à manutenção do veto presidencial que trata da extensão do Orçamento Impositivo às emendas de relator não muda a realidade: o Legislativo passou a ter um poder enorme na definição do destino dos recursos públicos. Autoridades do Palácio do Planalto podem até ter demorado a notar que o Executivo estava deixando de ser o centro de gravidade da gestão orçamentária, dando cada vez mais espaço para o Parlamento ocupar essa posição. Os lobistas, contudo, há meses se adaptaram e transformaram o Congresso em habitat prioritário. É nesse contexto que cresce a importância da aprovação de um marco regulatório do lobby.
O Brasil chega tarde. Apesar de ter apoio de deputados e senadores de diversos partidos - tanto à esquerda, como ao centro e à direita -, as discussões sobre o tema ocorrem muito lentamente no Congresso. Não é de se surpreender que ele tenha se tornado um tabu, depois de o Brasil enfrentar sucessivos escândalos de corrupção. Nos autos da Operação Lava-Jato, por exemplo, não faltam histórias escabrosas sobre o relacionamento indevido entre empresas e homens públicos. Mas elas não deveriam servir de justificativa para travar ainda mais a tramitação dessa agenda no Congresso.
Não é a ausência de regulação que faz com que a prática do lobby deixe de acontecer. Pelo contrário: ele acabará ocorrendo de qualquer forma, com ou sem regras.
Nos últimos meses, o assunto novamente entrou em evidência e a expectativa é que um projeto de lei já em estágio avançado de tramitação ganhe novo impulso. Apresentado em 2007 pelo deputado Carlos Zarattini (PT-SP), a relatoria foi da ex-deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ) e pode passar por algumas mudanças de redação feitas pelas mãos do líder da maioria na Câmara, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB).
O deputado também é relator da reforma tributária e deve ser recebido na semana que vem pela Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig).
Assunto para a prosa não faltará. Diante da morosidade do Congresso em regulamentar a atuação dos profissionais do segmento, a Abrig decidiu discutir alternativas. Uma delas é uma proposta de autorregulação que está sendo preparada em conjunto com a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
O texto não está pronto e tampouco terá a força de uma lei. No entanto, pelo menos poderá ajudar a diferenciar quem quer trabalhar com o lobby de modo transparente dos que preferem atuar nas sombras.
Em 2018, o extinto Ministério do Trabalho reconheceu o lobby como uma ocupação. Mesmo assim, nada de se ter definição de regras sobre a identificação dos profissionais, como eles devem se movimentar pelos corredores e gabinetes de autoridades ou até mesmo apresentar suas propostas legislativas. Os registros das agendas de autoridades de todos os Poderes também deveriam conter os nomes dos participantes, o tempo de duração de audiências e os tópicos discutidos.
Seria positivo, por exemplo, saber quem circula em Brasília representando esta ou aquela empresa, associação setorial ou entidade de classe. Isso sem falar na autoria de emendas ou minutas de projetos de lei. Se no Congresso Nacional existe dificuldade para o credenciamento desses profissionais, deve-se refletir o quão obscuro pode ser esse procedimento em assembleias legislativas e câmaras de vereadores.
Mesmo assim, a cúpula da Abrig acredita na construção de um ambiente favorável à aprovação do projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados. Além de um novo impulso das principais lideranças políticas, a iniciativa pode receber um incentivo externo. Isso porque a regulamentação do lobby é alvo de tentativa de padronização na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Sonho de consumo do governo Jair Bolsonaro, a entrada do Brasil na organização pode acabar passando pela discussão dessa agenda. Em seus documentos e relatórios, a OCDE explicita o objetivo de garantir que a atividade de lobby seja exercida com transparência e retidão.
Uma das preocupações da organização é que os países assegurem acesso igualitário para a atuação dos diversos atores interessados na construção de propostas legislativas ou políticas públicas. Outro aspecto levantado é a necessidade de se oferecer um grau adequado de transparência, para que autoridades, cidadãos e empresas possam obter informações suficientes sobre as atividades de lobby em andamento. A implementação de tais regras precisam contar com a adesão dos lobistas, os quais devem cumprir padrões de profissionalismo e transparência. Para a OCDE, os países devem revisar periodicamente o arranjo legal que regula o setor.
Essa última recomendação demonstra como o Brasil está numa etapa anterior desse processo. Esse cenário, contudo, pode mudar.
O projeto de lei que regulamenta o lobby está pronto para ser votado. É um dos temas que pode ser incluído em pauta a qualquer momento pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
Na mensagem que enviou ao Congresso em fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro também elenca a regulamentação do lobby como uma das prioridades do Executivo. “Algumas proposições legislativas poderão conduzir para o estabelecimento de um cenário mais positivo na atuação da Controladoria-Geral da União (CGU), considerando a evolução nas discussões relativas às normas gerais de licitação e o disciplinamento da atividade de ‘lobby’, por exemplo”, destaca o texto presidencial.
Esse é um aprimoramento essencial para dar mais robustez à democracia brasileira. Por outro lado, há que se evitar a construção de um arcabouço que acabe afastando desse processo grupos menos influentes e poderosos.
Andrea Jubé: O gol de Tarcísio no jogo das emendas
Ministério executou 97% das emendas no ano passado
O embate entre parlamentares e Executivo pela liberação de emendas tornou-se um clássico da política nacional, tão tradicional quanto um Fla x Flu ou um Corinthians e Palmeiras, que vem sendo reeditado há pelo menos 13 anos, quando uma resolução do Congresso regulamentou a matéria.
Desta vez, entretanto, num cenário de polarização política que não dá sinais de retração, em meio à convocação de protestos contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, endossada pelo presidente Jair Bolsonaro, a análise do veto presidencial a uma fatia vultosa das emendas impositivas promete lances dramáticos.
Confiante de que o Senado atuará para preservar a medida, Bolsonaro até ontem tinha suspendido o acordo costurado pelo ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. Entretanto, a eventual vitória do Planalto nesta rodada será como marcar um gol contra, porque corre o risco de provocar um maior esgarçamento das relações entre os dois Poderes, atrasando mais as reformas econômicas.
Até aqui, surpreende que as jogadas que fizeram a rede balançar para o governo tenham vindo de um jogador a quem no campo da política caberia disputar a bola na retranca.
A bola rola em campo pelo destino dos R$ 30,8 bilhões, relativos às emendas setoriais das comissões permanentes (R$ 800 milhões) e àquelas definidas pelo relator da lei orçamentária, no valor de R$ 30,1 bilhões. Ainda estão assegurados aos deputados e senadores mais R$ 15,3 bilhões - R$ 9,4 bilhões em emendas individuais e R$ 5,9 bilhões das bancadas estaduais.
No meio do campeonato, quem combinou com os russos e articulou uma fatia dos recursos para a sua pasta, sem se indispor com nenhum dos lados, foi o ministro Tarcísio de Freitas, considerado um “quadro técnico”.
Do quinhão dos R$ 15,3 bilhões, ele já assegurou pelo menos R$ 2,3 bilhões ao Ministério de Infraestrutura neste ano - verba 32% superior ao destinado pelos parlamentares à infraestrutura no ano passado, quando a pasta executou 97% das emendas - uma proeza.
Tarcísio pilota uma pasta prestigiada, que ganhou credibilidade após exibir resultados concretos, como o recorde de leilões no ano passado. Um desempenho, contudo, que não a livrou do déficit orçamentário que assombra a Esplanada.
Foi para driblar esse revés que Tarcísio saiu em campo para captar recursos das emendas junto aos parlamentares. O alvo foram os recursos das bancadas estaduais.
Já no ano passado, Tarcísio buscou uma maior interação com os parlamentares. A ideia era mostrar que era possível otimizar os recursos, mesmo escassos. Um exemplo citado pela assessoria do ministro foi a solução dada para a reivindicação da bancada de Goiás que reclamava da deterioração da malha rodoviária federal.
O ministério não tinha recursos para a recuperação das rodovias, mas a equipe do ministro identificou um desequilíbrio na alocação de recursos. Havia R$ 40 milhões para uma obra no interior, que não tinha sequer projeto. O destino desse dinheiro seria o contingenciamento.
Ao demonstrar com números e cronograma que esses recursos seriam perdidos, o ministro conseguiu o aval da bancada para remanejá-los para a manutenção das rodovias. A principal interlocutora era um quadro da oposição: a deputada Flávia Morais (GO), do PDT, coordenadora da bancada goiana.
A articulação é considerada singular porque os parlamentares resistem a destinar recursos para a reparação de rodovias porque o retorno político é quase nulo. A visibilidade e o apelo eleitoral do anúncio da duplicação de uma rodovia ou da ampliação de um aeroporto são muito maiores.
O mantra de Tarcísio junto aos parlamentares é para que tentem ao máximo otimizar os recursos das emendas, aplicando-as em obras que já têm projeto pronto, aprovado e com cronograma de execução.
Ao longo do ano, Tarcísio promoveu cafés da manhã com as bancadas estaduais no ministério. Para facilitar as discussões, a pasta organizou cartilhas com um cardápio das obras aptas a receberem emendas e com a maior garantia de execução.
Um líder de bancada afirma que Tarcísio é tão articulado que parlamentares deixam seu gabinete de sorriso largo mesmo depois de ouvir um “não”. O ministro seria tão objetivo e direto ao explicar a inviabilidade de um projeto, com argumentos tão cristalinos, que o deputado ou senador sairia satisfeito apenas com a certeza de não estar sendo ludibriado.
Anunciado como ministro de perfil técnico e disciplina militar (com diplomas da Academia Militar das Agulhas Negras e do Instituto Militar de Engenharia), a desenvoltura política de Tarcísio era inesperada.
Um contrassenso, na verdade, porque o ministro é um quadro forjado na política: egresso da carreira consultor legislativo da Câmara, onde conviveu de perto com os parlamentares, ele depois serviu a dois governos antes de ascender a ministro. Foi diretor-geral do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) no governo Dilma Rousseff e coordenador do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) na gestão Michel Temer.
Determinado a alçar o Brasil ao patamar de logística competitiva, o ministro pretende contratar R$ 230 bilhões em investimentos a partir das concessões até o fim de 2022. Há 44 leilões previstos para este ano, 22 de aeroportos.
Estamos no começo de março, e um primeiro leilão foi realizado há 12 dias - a concessão de trecho da BR-101, ligando Florianópolis ao sul de Santa Catarina, gerando investimentos de R$ 7 bilhões.
Em março, está prevista a renovação da malha ferroviária paulista com uma cerimônia em São José dos Campos. O ministro quer dobrar a matriz de ferrovias para que em 2025, 30% das cargas sejam transportadas por trens.
A pasta de Tarcísio parece se desenvolver em campo livre das caneladas dos aliados ou dos adversários. Mas nem a infraestrutura, tão estratégica para o país, estará imune ao porvir. A disposição dos congressistas nos bastidores é para um jogo de faltas e cartões vermelhos se o Planalto não transigir.