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Fernando Exman: A quarentena da política externa

Relações com a China enfrentaram momento crítico

À negação sobre a gravidade da pandemia causada pelo novo coronavírus, somou-se a resistência do presidente Jair Bolsonaro em reconhecer a fase crítica em que se encontravam as relações entre o Brasil e a China. No meio diplomático, contudo, não houve autoengano. Até Bolsonaro finalmente conseguir completar a ligação telefônica para Pequim, enfrentávamos um dos pontos mais baixos das relações bilaterais desde que elas foram estabelecidas, em 1974. Isso não é pouco e ambos os lados tinham a perder com um eventual distanciamento.

A China, como se sabe, é o principal parceiro comercial brasileiro, mas há semanas poderia ter ampliado sua atuação para uma área hoje fundamental no enfrentamento da covid-19: a venda de equipamentos e suprimentos médico-hospitalares ao Brasil. Não fosse, claro, a crise provocada por uma publicação nas redes sociais pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) responsabilizando a China pelo avanço do coronavírus.

A mensagem foi rebatida de forma desproporcional pelo embaixador chinês, Yang Wanming, e seguida por uma réplica do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Bolsonaristas reagiram rápido nas redes sociais, alimentando as teorias conspiratórias emanadas pela família presidencial. Felizmente o pragmatismo retornou à mesa, mas ainda é incerto o resultado prático da retomada do diálogo em alto nível.

A insatisfação da chancelaria chinesa com o governo Bolsonaro já havia sido transmitida ao Ministério da Saúde muito antes desse episódio. O objeto do ruído inicial foi o fornecimento de imunoglobulina, substância fundamental para o tratamento de pacientes com deficiência no sistema imunológico. O problema se deu porque autoridades sanitárias estavam pretendendo barrar a exportação desse produto para o Brasil por uma empresa chinesa.

Segundo relato de uma autoridade que esteve no epicentro da crise, o governo começou a enfrentar problemas com seu único fornecedor de imunoglobulina, uma empresa nacional, justamente no momento em que o Ministério da Saúde já começava a tentar se preparar para a chegada e para o avanço da covid-19 no Brasil.

Em seus contatos com os principais infectologistas do país, autoridades do Executivo passaram a receber pedidos para que se aumentassem os estoques de imunoglobulina. Afinal, além da previsão de usá-la no combate aos danos provocados pelo coronavírus, a imunoglobulina também precisaria estar sempre à mão para o tratamento de pacientes que desenvolvessem a síndrome de Guillain-Barré por causa da chikungunya.

Os estoques de imunoglobulina já estavam baixos, o mosquito Aedes Aegypti não oferece trégua e o coronavírus a cada dia se tornava uma ameaça maior. Não bastasse, a empresa vencedora da licitação para a venda de imunoglobulina informou o Ministério da Saúde que não conseguiria mais entregar o produto ao preço habilitado na concorrência.

Como não poderia ser diferente, os órgãos de controle proibiram o governo de pagar mais do que o preço previsto no contrato. A reposição dos estoques passou a ser feita a conta gotas e, depois de ver seu fornecedor inabilitado, o Ministério da Saúde começou então um esforço para encontrar alternativas.

“Faz-se licitação e deu vazia ou ganha um cara que não tinha capacidade de entregar o quanto o Brasil queria. O único que conseguia quantidade não queria colocar preço”, relatou uma autoridade, lembrando que há poucos fabricantes desse hemoderivado no mundo.

Foi feita, então, uma provocação formal pedindo a realização de uma compra internacional à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que não comenta oficialmente o caso e o trata como um assunto sigiloso.

Diante do fato de que algumas dessas empresas estrangeiras não têm registro no Brasil, foi exigido ao governo que as companhias participantes da concorrência internacional possuíssem uma certificação específica. E foi aí que o primeiro embate entre os dois países ocorreu: uma empresa chinesa venceu, mas as autoridades sanitárias tentaram impedir a compra alegando que a procedência do material seria duvidosa.

Esse posicionamento enfureceu a chancelaria chinesa. “A embaixada chinesa reclamou. Disse que o necessário era ter a certificação e ela tinha. Virou um impasse”, contou a fonte, recordando que, enquanto isso, os estoques continuavam a ser consumidos. Integrantes do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União foram acionados pelo Executivo para que o impasse pudesse ser resolvido e a compra, liberada.

A área da saúde ainda não é um tema central na agenda sino-brasileira, mas ambos os lados têm a ganhar se houver uma evolução nesse status, mesmo que ela se torne objeto da disputa comercial entre a China e os Estados Unidos.

Nos últimos meses, o governo Bolsonaro se indispôs com aliados históricos europeus ou sul-americanos. Muitas vezes reproduziu ao Sul do Equador a retórica agressiva do presidente americano, Donald Trump. Mas, diferentemente de Trump, Bolsonaro ainda não está formalmente disputando a reeleição. Precisa ter como prioridade governar e, sempre que tiver dúvidas, recordar do slogan que levou o aliado ao poder: a América virá primeiro.

Os doentes brasileiros e seus familiares seguramente agradecerão se tiverem acesso a respiradores ou outros produtos de saúde “made in China”, feitos por empresas americanas ou de qualquer outro país, desde que esses fabricantes respeitem os padrões internacionais do setor.

A pandemia impõe um novo comportamento ao brasileiro, que está isolamento para tentar conter o avanço do vírus. Fronteiras foram fechadas. A exportação de produtos considerados essenciais foi proibida, num movimento pontual correto para garantir o abastecimento nacional. Mas isso não deve ser usado como subterfúgio por quem pretende, no futuro, continuar adiando a abertura da economia. O Brasil não poderá ficar eternamente em quarentena.


Bruno Carazza: VUL-nerabilidades

O mundo ainda não sabe de que forma será a recessão

A covid-19 impõe um desafio sem precedentes na história econômica mundial. A emergência da pandemia, que requer como profilaxia para se evitar um caos na saúde pública a indução de uma recessão global, pode deixar feridas que demorarão a cicatrizar. De uma só vez, estamos submetidos a um ataque infeccioso que combina choque de oferta (com o rompimento das cadeias internacionais de produção), redução drástica da demanda e a incerteza de não saber por quanto tempo estaremos em quarentena.

O diagnóstico de uma nova doença, com alto potencial de contaminação e níveis relativamente elevados de letalidade, levou epidemiologistas e profissionais da saúde a prescreverem remédios amargos de distanciamento social para conter a evolução do número de infectados e, assim, pelo menos postergar o colapso do sistema de saúde. A determinação dos governos de reduzir a movimentação de pessoas e fechar temporariamente negócios não essenciais, porém, tem um grave efeito colateral: a prostração econômica.

A cada dia fica mais claro que a necessidade de achatar a curva epidemiológica de contágio levará ao aprofundamento do gráfico de evolução do PIB. Como afirmou Catherine Mann, economista-chefe do Citibank, numa excelente publicação organizada recentemente por Richard Baldwin e Beatrice di Mauro para a VoxEU sobre a “economia do coronavírus”, só não sabemos ainda qual será o formato desta recessão.

No início, economistas diagnosticavam que teríamos uma queda em “V” - uma forte queda na produção e no consumo neste trimestre, em que tivemos que dar um tratamento de choque na circulação econômica para conter a disseminação do vírus, mas que seria rapidamente superada no período subsequente.

Mas acontece que, assim como alguns pacientes estão mais suscetíveis aos efeitos da covid-19 do que outros, os setores da economia também reagirão de modo diverso ao isolamento imposto pelo coronavírus. Especialmente no setor de serviços não haverá postergação de consumo para o futuro e sim uma perda definitiva de receita - viagens rotineiras a negócio, consultas em psicólogos, jantares em restaurantes e cortes de cabelo, por exemplo, não serão realizados em dobro ou em triplo nos meses seguintes para compensarmos o período em que não realizamos essas atividades porque estamos presos em casa. A recomendação médica de evitar contato com o mundo exterior pode significar, portanto, um retrocesso muito mais profundo e de lenta recuperação, caracterizando uma curva que teria o formato não de um “V” agudo, mas sim o de um “U” talvez bastante aberto.

Mas existem prognósticos ainda mais sombrios. O novo coronavírus pegou a economia mundial num momento de baixa imunidade. A expectativa de crescimento para 2020 já era baixa, as taxas de juros se encontram no chão e as condições fiscais da maioria dos países ainda não se recuperaram da injeção em doses cavalares de recursos públicos para tirar o capitalismo da UTI a partir de 2008. Ainda não sabemos como o organismo reagirá a um ataque tríplice-viral de um choque de demanda, de oferta e de expectativas. A depender da contaminação dos mercados financeiro, cambial e de dívidas públicas, analistas mais pessimistas começam a traçar cenários em que a economia entra numa trajetória em “L”, com uma queda acentuada sem recuperação relevante no médio prazo.

Diante da pandemia, o Brasil é um paciente que inspira cuidados especiais. Nossa resistência está baixa em função da grave crise fiscal em todos os níveis de governo, das elevadas taxas de desemprego e de informalidade no mercado de trabalho e da grande capacidade ociosa das empresas desde a grave recessão de 2015 e 2016 e a lenta convalescença desde então. Preocupa principalmente o ciclo de transmissão dos efeitos do lockdown das empresas paralisadas para o imenso contingente de miseráveis, sub-empregados e aqueles que, mesmo tendo emprego fixo e carteira assinada, não possuem reservas financeiras para suportar muito tempo sem receber.

A demora do presidente e do ministro da Economia em admitirem a gravidade da infecção econômica e social causada pelo novo vírus contrasta com a seriedade e a presteza com que bancos centrais e governos dos demais países têm agido para combater seus males. Na última semana foram anunciadas ações radicais por parte de todas as nações do G7 para evitar a mortalidade econômica de empresas, e sobretudo de pessoas.

Se por um lado as economias já desenvolveram uma resistência ao uso das taxas de juros como antibiótico (pois já se encontravam em patamares historicamente baixos), os bancos centrais têm recorrido ao afrouxamento da regulação prudencial e ao provimento de liquidez para que instituições financeiras continuem irrigando o mercado de crédito. Outro remédio tem sido aportar valores bilionários do Tesouro em garantias e empréstimos em condições especiais para garantir capital de giro para as empresas atravessarem o período de paralisação de atividades e queda de receitas, ministrado em conjunto com a postergação do recolhimento de impostos.

Autoridades fiscais e monetárias de todo o mundo estão especialmente atentas ao grupo de risco das micro e pequenas empresas (especialmente dos setores de varejo, gastronomia, turismo, serviços pessoais e lazer), dos trabalhadores informais e da população mais vulnerável. Para evitar o comprometimento do tecido social e uma alta taxa de letalidade nessa população menos imune a crises, os governos europeus e até mesmo dos Estados Unidos têm apelado para o fortalecimento de programas sociais e transferências diretas de recursos para conter a hemorrogia e afastar a possibilidade de uma convulsão social.

Por aqui, enquanto o ministro Mandetta aplica um coquetel de drogas para evitar que o sistema de saúde vá a óbito, Bolsonaro e Paulo Guedes parecem acreditar no poder da homeopatia e de fitoterápicos para tratar os efeitos da epidemia sobre um órgão vital do corpo humano - o bolso. Com o número de infectados em franca ascensão e boa parte das indústrias e serviços parados, o país aguarda o anúncio de vacinas econômicas eficazes para se evitar uma grande mortandade de brasileiros.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Claudia Safatle: A recessão é inevitável

Preocupação é salvar vidas e preservar o maior número possível de empresas

A grande preocupação do governo, nesse momento em que a disseminação da covid-19 assume proporções dramáticas, é preservar vidas e salvar o maior número de empresas possível para que haja uma estrutura na economia capaz de reagir quando o coronavírus for se enfraquecendo. Recessão se mostra inevitável, sobretudo a partir do segundo trimestre, mas também ainda neste primeiro trimestre o Produto Interno Bruto já poderá vir negativo.

O tamanho do tombo na economia vai depender da duração, do tempo em que o coronavírus estiver se multiplicando. Segundo os gráficos abaixo, na China a situação se estabilizou em um tempo relativamente rápido. A curva da pandemia é côncava.

Para a atividade econômica, a situação é terrível. “É um fosso sem piso”, diz Silvia Matos, economista coordenadora do Boletim Macro do Ibre/FGV, cuja missão, agora, é recalcular todos os indicadores macroeconômicos para este ano. Ela está trabalhando em casa, assim como toda a sua equipe. “É uma situação de guerra mesmo! Não tem como pensar em economia funcionando. A economia real não é no home office!”

Nesse ambiente, o que vai acontecer com a política fiscal, com a inflação ou com o endividamento do setor público, parece questões fúteis. Ao Estado cabe cuidar das pessoas, dar-lhes alimentação e acesso à saúde.

O voucher de R$ 200 por mês para os trabalhadores informais é pouco para enfrentar os próximos dois a três meses, mas o principal, agora, é fazê-lo chegar ao destinatário.

Para isso, o Cadastro Único, que reúne praticamente 30 milhões de famílias, é o ponto de partida. O governo vai utilizar casas lotéricas e caixas eletrônicos para dar acesso a esses recursos.

Diante da inevitabilidade de aumento do desemprego, o governo edita medida provisória para regulamentar a suspensão temporária do contrato de trabalho (“lay off”). O empregado receberá pelo seguro-desemprego, e a MP deverá retirar a intermediação dos sindicatos para que haja uma negociação direta entre patrões e empregados. Lá na frente, quando a situação se normalizar, a lei determina que o trabalhador volte ao seu emprego.

O governo federal diferiu por 180 dias o recebimento do Simples, mas poucos Estados e municípios estão acompanhando essa medida, adiando também o pagamento dos tributos estaduais e municipais do sistema.

Até agora somente a prefeitura de Belo Horizonte e o Estado de Alagoas aderiram. Os demais estão exigindo contrapartidas do governo federal, segundo alta fonte da área econômica. Essa mesma fonte diz: “Estamos fazendo o que estamos vendo. O que vamos ver mais adiante, faremos também”.

Outro passo dado pela área econômica refere-se ao capital de giro das empresas, mas sabe-se bem que o sistema financeiro doméstico não gosta de operar com pequenas e médias empresas. Eles emprestam, na melhor das hipóteses, para as maiores do grupo das pequenas.

Essa vai ser a terceira área de atuação do governo, disse uma outra fonte, sem especificar exatamente em que direção. Se, por exemplo, se usaria dos bancos públicos federais, como o BNDES, para prover essas empresas de capital de giro.

Estamos em guerra e não é hora de seguir dogmas nem de politizar o coronavírus. É hora, sim, de tentar minimizar o que já é, por si, uma catástrofe social e econômica.

*Claudia Safatle é diretora adjunta de Redação


Maria Cristina Fernandes: Bolsonarismo testa positivo

Presidente fica isolado na República e tolhido dentro do próprio governo

“Quero agradecer em nome da saúde do Brasil”. Foi com essas oito palavras que Luiz Henrique Mandetta transformou a puxada de tapete do presidente da República numa escada. Na guerra de sobrevivência política em que se transformou o combate à pandemia, o ministro da Saúde convocou o “partido sanitarista”, comunidade de profissionais da saúde que, 50 anos atrás, se uniu para montar o SUS e hoje o mantém acima das rixas partidárias. Apesar dos agrados sucessivos ao presidente, o ministro o colocou na condição de quem presta serviços a este partido.

Em contrapartida, o ministro prestou-se ao papel de médico avalista de uma encenação destinada a mostrar que o presidente não está isolado. Com máscaras sob a coreografia de tira-e-bota-deixa-ficar e sentados a centímetros de distâncias uns dos outros, parecia um trupe de sobreviventes depois de anunciada a segunda baixa, do ministro Bento Albuquerque (Minas e Energia), um dia depois de noticiado contágio de Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional).

O presidente convocou a encenação dois dias depois de Mandetta reunir-se com os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal, numa tentativa de mostrar que não é a criança irresponsável que desce a rampa para brincar com manifestantes enquanto os adultos adotam medidas para evitar que o país sucumba à pandemia.

O capitão montou o palco horas antes do panelaço contra seu mandato. Estava disposto a ofuscar Mandetta e se mostrar no comando desta nau doente e desgovernada. Só que não. Bolsonaro abriu a entrevista justificando-se pelos cumprimentos aos manifestantes do domingo dizendo que, em todo o Brasil, não excederam 1 milhão de pessoas - “equivalente a 20% da população que usa o transporte coletivo em São Paulo diariamente”. Esqueceu de explicar que se ainda há muitos se expondo ao risco de entrar no metrô é porque não têm alternativa. Disse saber dos riscos que corria mas havia optado por descer a rampa porque, pela “índole militar”, ele “nunca abandonaria o povo brasileiro”.

Disposto a provar que não convocou manifestações a seu favor, na contramão dos fatos, fez a propaganda de outra, o panelaço a seu favor. Uma tentativa de se apropriar de uma expressão que, até aqui, serviu para demonstrar rechaço político, a começar pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, de onde partiu em sua marcha para Brasília. Errático, entre as estocadas na imprensa e a busca de uma autoridade perdida, Bolsonaro mostrou-se incapaz de desmontar a imagem de presidente que fez pouco caso da saúde dos brasileiros com a ideia de que o coronavírus não passa de fantasia ou guerra de panelas.

Coube a Mandetta cruzar os braços e olhar para o outro lado quando o almirante Antonio Barra Torres, diretor da Agência de Vigilância Sanitária, que falou imediatamente depois do ministro da Economia, Paulo Guedes, começou a enumerar as portarias que havia assinado. Em seguida, vieram os ministros da Justiça (Sergio Moro), da Defesa (Fernando Azevedo), da Infraestrutura (Tarcísio Freitas), do Desenvolvimento Regional (Rogério Marinho) e da Casa Civil (Braga Netto) para só então o titular da Saúde ter vez.

Mandetta, em compensação, falou mais do que todos os seus anteriores juntos. Sentiu-se tão seguro na abertura que derrapou na respostas aos jornalistas. Avançou destemido, porém, contra o escanteio para o qual o presidente tentou jogá-lo porque parece convencido de que tomou o lugar de Guedes como âncora deste governo. O ministro da Economia agiu como um condenado a rasgar todos os dogmas do estado mínimo pelos quais sempre rezou ao anunciar o socorro aos ‘uberizados’.

O ministro da Saúde entrou na guerra com as armas da propaganda: o SUS está em todas as cidades, quilombos e aldeias indígenas do país e “estará ao lado dos 215 milhões de brasileiros”. Foi destemido na comparação com outros países que, na sua contabilidade, começaram a perder pacientes com 80 casos, enquanto o Brasil registrou o primeiro óbito quando já contava 290 doentes, e propagou, como quem é capaz de encher um balde para apagar um incêndio, o lançamento de serviços de telemedicina para a orientação de pacientes à distância.

Não é o gerente do comitê de crise, hoje nas mãos do ministro da Casa Civil, mas agiu como tal ao recomendar cautela nas decisões dos Estados de fechar estradas, que poderiam vir a prejudicar a logística no trânsito de alimentos e medicamentos. E, finalmente, tratou como parte do campo de batalha o stress, a notícia enviesada, as opiniões de especialistas e até a ansiedade daqueles que não percebem que o momento é de calma. Só faltou dizer que faz parte lidar com um presidente como Bolsonaro, mas limitou-se a dizer que ele é o grande timoneiro. A saudação, àquela altura, quando o presidente havia se ocupado a falar mais da imprensa do que do futuro do Brasil, mostrava que o menino levado continuava no quintal enquanto os adultos se ocupavam com as decisões.

Mandetta retribuiu a menção feita por Fernando Azevedo e Silva. O discurso do ministro da Defesa - “Isso é uma guerra contra um inimigo invisível, feroz e dedicado” - coincidiu mais com o tom do titular da Saúde do que com aquele usado pelo comandante-em-chefe.

Aparentemente deslumbrado com seu próprio desempenho, o ministro da Saúde derrapou ao descredenciar a recomendação da Organização Mundial de Saúde de que todos sejam testados.

Mencionou o que imaginava ser a população da Coreia do Sul - “Uma coisa é vacinar 4 milhões de pessoas” - país que tem 51 milhões de habitantes, para dizer que não dava para fazer o mesmo num país de 215 milhões. Também se atrapalhou ao justificar o atrapalhado uso de máscaras.

O panelaço que se seguiu mostrou que o esforço de Bolsonaro não convenceu. Aquele convocado pelo próprio presidente não teve volume de desagravo. O placar das redes sociais dava 7 x 1, mas no balanço do dia parecia mais apropriado falar em 529 infectados e quatro mortes. Isolado na República, ontem Bolsonaro se mostrou tolhido em seu próprio governo. O vírus ainda não o derrubou, mas já feriu de morte o bolsonarismo.


Ribamar Oliveira: Não há como salvar o crescimento deste ano

Autoridade da área econômica diz que quem espera PIB zero para este ano está otimista

Não existem políticas monetária e fiscal que salvem o crescimento da economia neste ano, segundo disse ao Valor uma importante fonte da área econômica. “Quem está falando em crescimento zero do PIB [Produto Interno Bruto] em 2020 está sendo otimista”, acrescentou. O entendimento predominante no comando do Ministério da Economia é que medidas fiscais e monetárias serão adotadas para preservar vidas e empresas, principalmente, e para evitar que a crise se prolongue por tempo excessivo.

Esta fonte lembrou que, há 15 dias, o mercado ainda acreditava que era possível o Brasil crescer 1,7% neste ano. “Hoje, vários analistas estão projetando recessão”, disse. A mudança de cenário está ocorrendo muito rapidamente, o que mostra que os efeitos da crise do novo coronavírus na economia estão se disseminando em velocidade exponencial, da mesma forma que a contaminação das pessoas, apesar das medidas de política monetária que o Banco Central vem adotando.

Qual será o custo para os cofres públicos das medidas fiscais que serão adotadas pelo governo? Ninguém sabe. Tudo dependerá das ações adotadas para dar sustentabilidade ao combalido sistema de saúde do país, garantir uma renda mínima aos trabalhadores que serão diretamente atingidos pela desaceleração da economia e estímulos fiscais que permitam às empresas, não apenas as pequenas, manterem seus negócios, evitando uma recessão ainda mais profunda. Tudo isso representará custos adicionais aos cofres públicos.

Também não é possível projetar o resultado fiscal deste ano. Tudo vai depender do montante da despesa adicional e da redução das receitas, em decorrência da desaceleração da economia. Neste momento, os técnicos do Ministério da Economia estão fazendo projeções com vários cenários para o crescimento do PIB, para os juros, a inflação e o preço do petróleo. Em uma estimativa preliminar, que não considera a recessão e a não aprovação do projeto que permitirá a privatização da Eletrobras, a receita da União vai cair pelo menos R$ 70 bilhões em relação ao que está projetado no Orçamento deste ano.

Há ao menos duas certezas neste momento. As medidas que serão adotadas para minorar os efeitos causados pela epidemia do coronavírus vão aumentar substancialmente o déficit primário deste ano e também a dívida pública bruta, pois as despesas adicionais serão feitas com aumento do endividamento. Qual será a nova estimativa para o déficit público neste ano? Ninguém sabe. Poderá superar R$ 250 bilhões, dependendo das medidas que o governo será obrigado a adotar para salvar vidas e empresas. “O resultado primário das contas públicas passou a ser secundário”, disse ao Valor uma importante fonte da área econômica.

Há um custo adicional para o Tesouro a ser considerado, pois, da mesma forma como ocorreu durante a crise financeira internacional de 2008, o governo federal terá, necessariamente, de ajudar financeiramente os governos estaduais e as prefeituras. Os Estados e municípios também terão forte queda de receita em virtude do desaquecimento da economia. Como os brasileiros moram nos municípios, é lá em que os maiores problemas sanitários irão ocorrer e a ajuda federal será indispensável, mesmo porque, ao contrário da União, governadores e prefeitos têm limites rígidos de endividamento.

A fim de abrir espaço para fazer os gastos necessários ao combate do novo coronavírus, a ideia inicial do Ministério da Economia era simplesmente aumentar a meta de déficit primário deste ano, que está atualmente fixado em R$ 124 bilhões. Isso seria feito com o envio de uma proposta ao Congresso Nacional, alterando a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).

No dia 22 de março, o governo terá que divulgar o relatório de avaliação de receitas e despesas da União. Neste momento, a equipe econômica mostraria o tamanho do rombo nas contas e o montante do contingenciamento das dotações orçamentárias que deveria ser feito. Nesta estratégia, o governo anunciaria os cortes. Depois que a mudança da LDO fosse aprovada pelo Congresso, o que poderia ocorrer em duas semanas, o governo anunciaria um descontingenciamento das dotações.

O problema desta estratégia, que foi discutida na reunião da Junta Orçamentária realizada no Palácio do Planalto na terça-feira, é que o cenário da economia está muito volátil e ninguém sabe onde vai parar. Não é possível para a equipe econômica também dimensionar o valor das despesas adicionais que o Tesouro terá que bancar durante a crise do novo coronavírus. Assim, havia o risco, ao adotar essa linha de atuação, de definir uma nova meta de déficit que poderia ser superada meses depois, forçando o governo a pedir nova mudança de meta ao Congresso, com grande desgaste político.

A opção foi por acionar o artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), como o Valor tinha antecipado no dia anterior. Este artigo da LRF permite que o governo decrete situação de calamidade pública e, com isso, deixe de cumprir a meta fiscal do ano, entre outras vantagens. Também são dispensadas licitações ou concorrência pública para compras e obras emergenciais. A calamidade, no entanto, precisa ser reconhecida pelo Congresso.

Na situação de calamidade, o governo deverá adotar um receituário parecido com aquele utilizado pelo governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na crise financeira internacional de 2008. Ou seja, será necessário garantir liquidez às empresas, fazer desonerações que reduzam custos de produção e conceder estímulos fiscais, além de programas de ajuda financeira às pessoas. “Mas o essencial é não fazer igual ao que o PT fez”, advertiu um integrante do governo. “O PT tornou permanente medidas que deveriam ser apenas emergenciais”, explicou. E esta teria sido uma das principais causas da crise que resultou na maior recessão da história do país.

A maior preocupação da atual equipe econômica é justamente esta, não passar a ideia ao mercado que está adotando uma política semelhante àquela que teria levado o país à bancarrota. “A partir do próximo ano, quando a crise do coronavírus passar, teremos que ter uma trajetória de redução do déficit e de reequilíbrio das contas públicas”, previu a fonte. A estratégia, portanto, é evitar aumento de despesa obrigatória permanente, pois, do contrário, não será possível manter o teto de gastos quando a crise do novo coronavírus for superada.


Cristiano Romero: Jamais diga “isso não vai acontecer”

Riscos em 2008 foram negados até a chegada do Leviatã

No jornalismo, os mais experientes recomendam aos mais jovens que jamais pronunciem a frase “não vai acontecer nada”. Dita por jornalistas, essa sentença é uma espécie de maldição. Tudo acontece quando um repórter, encarregado de cobrir um determinado assunto, ousa duvidar do destino, este trapaceiro.

A crise mundial de 2008, cujo epicentro foram os Estados Unidos, vinha sendo antecipada por alguns poucos economistas havia alguns anos, mas as autoridades americanas fizeram ouvido de mouco. Não era necessário ser um especialista para desconfiar de que havia algo muito errado no mercado imobiliário da maior economia do planeta - um problema que depois contaminou o sistema financeiro europeu e provocou a crise mais severa desde a Grande Depressão, em 1929.

Desde o início dos tempos, diziam americanos orgulhosos, os preços dos imóveis nos EUA só têm uma direção: subir. Isso foi um fato até 2008, mas o que acontecia no fim do século XX e nos primeiros anos do atual não podia ser normal.

Grosso modo, dava-se o seguinte: o sujeito ia a um banco e, sem muita dificuldade, conseguia crédito para comprar um imóvel, às vezes, mais de um. Na época, os bancos não se preocuparam muito com a capacidade do devedor de honrar a hipoteca. Por quê? Porque o valor dos imóveis escalava a um ritmo extraordinário. A depender do local, o preço dobrava no espaço de apenas quatro anos.

Consumidores ávidos, os americanos também tiravam proveito da “pirâmide” da seguinte forma: como os preços dos imóveis não paravam de aumentar, o valor das hipotecas - dos financiamentos imobiliários que os cidadãos tomavam em instituições financeiras - se tornava ao longo do tempo proporcionalmente menor, quando comparado ao preço de mercado; isso permitia aos mutuários ir aos bancos e pedir a renegociação da dívida com base no preço mais alto do imóvel; como a dívida contratada era a mesma, o novo empréstimo, garantido pelo valor do bem cujo preço não parava de subir, assegurava que os “santos” devedores voltassem para casa com os bolsos cheios de dólares. E o que eles faziam com o dinheiro? Compravam carros maiores que os dos vizinhos, viajavam ao exterior, enfim, gastavam.

Ora, enquanto os preços dos imóveis continuassem subindo, estava tudo certo. Naturalmente, os preços permaneceriam em alta se a economia seguisse crescendo, com a taxa de desemprego estacionando perto do pleno emprego, mas sem pressionar a inflação. Ocorre que, desde a idade da pedra lascada, ciclos econômicos têm fim.

Os bancos americanos há muito têm uma maneira de passar adiante seus créditos imobiliários. Empacotam as hipotecas, atribuem-lhe uma classificação de risco e levam-nas a mercado. Trata-se de uma forma de fazer com que a roda do crédito continue funcionando. As hipotecas saem do balanço dos bancos e estes passam a ter condições de emprestar novamente. Isso é normal.

O que não é normal foi o que grandes e renomados bancos americanos começaram a fazer. Como o ciclo econômico começou a dar sinais de fadiga, trabalhadores logo passaram a perder seus empregos e, portanto, a capacidade de pagar dívidas. A qualidade das hipotecas (o “rating”) entrou em rota de queda porque os devedores não tinham mais como honrar o pagamento.

Os imóveis super valorizados não conseguiram salvar os devedores. Porque, lembram-se, eles aproveitaram a valorização de suas casas para renegociar a hipoteca e botar a mão num punhado de dólares, por meio de dívida nova. Agora, desempregados, tinham que pagar a hipoteca, a dívida nova, o cartão de crédito...

No período de bonança, a farra foi tão grande que as famílias americanas se endividaram de maneira jamais vista. Brasileiros, igualmente cobiçosos, mas sem instrumento (crédito farto e barato) para fazer isso, achavam muito estranho ver na casa de americanos utensílios domésticos e equipamentos eletrônicos chegados das lojas fazia tempo e jamais desembrulhados. Ninguém compra algo nos EUA por acreditar que o preço vá subir. Compra-se por prazer, porque, como diz Paulinho da Viola, “dinheiro na mão é vendaval”.

Em 2005, Raguran Rajan, então economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), foi ao convescote de Jackson Hole, promovido anualmente pelo Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, para uma troca de ideias com dirigentes de bancos centrais das maiores economias. Rajan, um economista discreto e sem o apelo marqueteiro de Nouriel Roubini, que diz ter sido o primeiro a prever o desastre da economia americana que levou o mundo à Grande Recessão, apresentou estudo que causou enorme frisson entre os convivas de Jackson Hole naquele ano.

Intitulado “O Desenvolvimento Financeiro Tornou o Mundo mais Arriscado?”, Rajan enxergou, antes de Roubini, que a sofisticação dos instrumentos financeiros desenvolvidos nas três décadas anteriores, motivada pela desregulamentação do sistema financeiro americano na década de 1990 e pelo avanço da tecnologia computacional, disseminou o risco financeiro por toda a economia. Ele fez um alerta aos presidentes de bancos centrais ali presentes.

Como sempre tem alguém no mundo que, sim, presta atenção a tudo, investidores, antevendo o desequilíbrio gigantesco que se criava no mercado imobiliário sem que o Fed fizesse nada para contê-lo, propuseram a bancos de investimento a criação de um novo instrumento financeiro. Este tinha três letras - CDS, sigla em inglês de Credit Default Swap - e foi para a prateleira. Quem quisesse apostar na quebra do sagrado mercado imobiliário americano passou a ter o CDS para fazer isso.

No início, investir nesse papel foi um mau negócio. Mas, quem perseverou venceu, ganhando muito dinheiro porque, em 15 de setembro de 2008, o centenário Lehman Brothers quebrou, acordando o Leviatã. Este destruiu trilhões de dólares em riqueza não apenas nos EUA, mas em todo o mundo. Para superar aquela crise, o Fed rasgou o livro-texto de Economia, salvou bancos, financiou governo e empresas do setor produtivo, enfim, jogou dinheiro do helicóptero. Ainda assim, os americanos amargaram cinco anos para reduzir a dívida e voltar a crescer.

A crise atual parece menor que a de 2008 porque não se origina de um problema econômico. Leviatã está à espreita porque um vírus chamado covid-19, de baixa letalidade, pôs a humanidade de joelhos.


Fernando Exman: O comportamento do líder diante do caos

Há risco de banalização do choque entre Poderes

Um país polarizado é o habitat perfeito para um governante que considera todo assunto que chega aos escaninhos do Palácio do Planalto um risco ao seu mandato ou um lance de disputa de poder.

Esse hoje é o retrato do Brasil, onde o presidente da República tem em sua base eleitoral quem ainda discute o formato da Terra, ignora o aquecimento global e, agora, faz pouco caso de uma pandemia que avança no Brasil em progressão geométrica. Um país em que os demais Poderes republicanos tentam continuar trabalhando em harmonia, enquanto se esforçam para evitar que um eventual grito de independência seja interpretado como um grito de guerra.

Consolida-se, assim, um ambiente árido para que autoridades do Executivo, do Legislativo e do Judiciário tentem construir saídas para uma crise ainda sem um ponto final perceptível no horizonte. É real o risco de banalização dos choques entre as instituições.

Ironicamente, a tíbia articulação política do governo, até recentemente sob severas críticas dos parlamentares, terá uma trégua.

Todos os sinais vindos do Congresso apontam que os deputados e os senadores não criarão obstáculos à aprovação de medidas emergenciais para o enfrentamento dos efeitos da crise. O Legislativo está decidido a mostrar para a sociedade que não deixará de trabalhar, mesmo em meio aos ataques do presidente Jair Bolsonaro e de seus aliados.

É por isso que tanto o Congresso quanto o Supremo Tribunal Federal (STF) fazem questão de permanecer com as portas abertas. O Palácio do Planalto também está.

No entanto, a despeito do clima de disputa política que vem do gabinete presidencial, o ministro da Saúde já comprovou sua capacidade de interlocução direta com o Parlamento. A habilidade pode ser crucial.

Antes de assumir o Ministério da Saúde, Luiz Henrique Mandetta foi deputado federal por dois mandatos e é filiado ao DEM. O mesmo partido do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (RJ), e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (AP).

Em relação ao presidente do Senado, inclusive, o ministro da Saúde manteve grande proximidade quando eles estavam na Câmara. Ambos faziam parte de um grupo pequeno de deputados do DEM, que, por serem representantes únicos de seus Estados, precisavam somar votos para ter força nas reuniões internas da bancada do partido.

Ademais, o desempenho de Mandetta tem sido bem avaliado pela cúpula do Congresso, com quem tem um bom diálogo. A sinalização que tem recebido de seus antigos colegas é de que não haverá restrição de recursos para sua pasta durante essa situação de emergência nacional.

No ano passado, o ministro foi ao Congresso com a missão de desmobilizar uma obstrução e aprovar a criação do Médicos pelo Brasil. O programa foi aprovado pouco antes de caducar a medida provisória que o instituiu e a obstrução, retomada. Projetos de interesse de outros ministérios não tiveram o mesmo destino.

Como as medidas anunciadas pelo governo não são apenas voltadas à área da saúde, seria prudente que o Executivo trabalhasse para evitar que suas relações com o Congresso continuem se deteriorando. Isso ainda é possível, apesar da disputa pelo controle do Orçamento e o recente estranhamento entre a equipe econômica e a cúpula do Congresso.

Nos últimos dias, congressistas se queixaram que o ofício com 19 propostas do Ministério da Economia para combater os efeitos da crise foi protocolado no Parlamento sem aviso prévio.

Quando o ministro e seus auxiliares se dirigiram na semana passada ao Parlamento, líderes partidários ficaram atônitos com a falta de pelo menos um rascunho, um menu básico com medidas anticrise à disposição do ministro da Economia, Paulo Guedes. Afinal, diversas autoridades estrangeiras já tratavam o avanço do coronavírus com a seriedade necessária e desfilavam com um arsenal diversificado de ações.

Entre a reunião de emergência e o anúncio do primeiro conjunto de iniciativas do governo, também não houve a articulação esperada pela cúpula do Congresso. O humor dos parlamentares piorou.

Para deputados e senadores, o que veio do Executivo até agora é apenas um alento, uma etapa inicial de um processo que consumirá pelo menos três meses. Justamente o que resta deste semestre, até que vigore o recesso parlamentar e as campanhas eleitorais dominem o calendário.

Pressionados pelos governadores e prefeitos, os congressistas continuam pedindo uma maior proatividade da equipe econômica. Demandam uma injeção de recursos na economia, mesmo que isso represente um maior endividamento do setor público. Sabem que Bolsonaro tem um instinto político privilegiado, mas não querem correr o risco de também serem acusados de omissão.

Antes de a crise provocada pelo coronavírus se agravar, integrantes do Centrão haviam captado sinais de deterioração da popularidade do presidente da República. Até então, esses sinais decorriam da frustração em relação ao crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Mas os efeitos negativos adicionais da pandemia na economia são mais evidentes a cada dia que passa.

Será no sistema de saúde, contudo, que eles ganharão contornos dramáticos - caso as medidas de contenção do vírus preconizadas pelos técnicos continuem sendo desprezadas.

Em dezembro do ano passado, uma pesquisa do Datafolha mostrou que a área da saúde era apontada espontaneamente por 19% dos entrevistados como a mais problemática do país. A saúde sempre foi um desafio para os governantes, mas, antes de Bolsonaro assumir, um levantamento realizado pelo mesmo instituto um ano antes mostrava a saúde com 22% das citações.

Os números que virão durante e depois da crise ainda são uma incógnita. Mesmo assim, é possível apostar que eles pautarão o comportamento do presidente e em que tom se dará sua interação com os demais Poderes.


Andrea Jubé: “Povo na rua é democracia saudável”

Bolsonaro falha na essência da politica: “diálogo e acordos”

Embora repudie os gestos do presidente Jair Bolsonaro de estimular diretamente os atos de rua e incitar a população contra o Congresso, a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), senadora Simone Tebet (MDB-MS) - que comanda as reformas econômicas no colegiado - sua avaliação contrasta com a de outros parlamentares porque ela considera as manifestações do último domingo legítimas e alerta que o Congresso deve estar atento aos recados dos participantes.

Em conversa com a coluna, Tebet faz uma ressalva e propõe uma leitura equilibrada dos últimos protestos, que foram criticados pela maioria dos parlamentares pelo viés de afronta às instituições, especialmente o Legislativo e o Supremo Tribunal Federal. Entre os mais radicais, alguns cobravam o fechamento da Corte Constitucional e pediam: “deixem os militares trabalharem”.

Tebet faz ponderações: em primeiro lugar, não deveriam ter ocorrido por desafiarem a orientação do Ministério da Saúde para se evitar aglomerações, em meio à pandemia do coronavírus. A outra observação é que não foram expressivos, mas porque uma parcela significativa da população agiu com racionalidade e evitou as multidões.

Mesmo assim, avalia que os parlamentares precisam compreender que existe uma rejeição da população ao Legislativo e, por isso, mesmo relativizando os atos do último domingo, eles devem ser enxergados com lupa. “Os protestos de domingo foram do tamanho do apoio do presidente, mas não foram do tamanho da rejeição ao Congresso, acho que ela é maior e nós precisamos entender isso e rever nossos conceitos”, sugere. “Povo na rua é sinônimo de democracia saudável”.

Por isso, ela se preocupa em preservar a postura ética que a colocou em lugar privilegiado na cena política, entre os senadores classificados como independentes, e que são influentes nas articulações. As posições da senadora a projetam como um player disputado por empresários, investidores e outras lideranças da sociedade civil que querem ouvir suas análises sobre a conjuntura e um futuro para o país.

É nesse contexto que ela adiantou à coluna que se o presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), mantiver a sessão do Congresso convocada para esta semana, e constar da pauta o famigerado PLN 4/20, não marcará presença. “Me recuso”.

O projeto é fruto do acordo entre governo e Legislativo, que destina R$ 20,5 bilhões aos parlamentares e R$ 9,6 bilhões ao Executivo, e chegou às ruas com a pecha de “espúrio” e um dos motivos das convocações. Mas Bolsonaro avalizou o entendimento com os ministros Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Paulo Guedes (Economia), para depois renegá-lo, dizendo em tom dramático que levou outra facada, esta “no pescoço”, e dentro do próprio gabinete.

A presidente da CCJ vê no mínimo dois problemas nessa articulação. Primeiro, a conduta de Bolsonaro, que fez um compromisso com o Legislativo, e depois o negou em público. Essa atitude, diz a senadora, contraria os princípios mais comezinhos da boa política. “Isso extrapola qualquer limite do que eu já vivenciei aqui [no Congresso] desde a época do PT, porque extrapola o que é da essência da politica: diálogo e cumprimento de acordos”.
Mas agora, com o avanço da pandemia no Brasil, Tebet diz que o momento é de engavetar os projetos controversos e votar as matérias relativas ao combate do vírus e que amenizem os impactos na economia. “Isso [a disputa pelas emendas] virou acessório, o principal agora é uma palavra firme do presidente de que a prioridade é o combate ao coronavírus”.

O senão, entretanto, é que Bolsonaro continua alardeando que a pandemia é uma “histeria” e agindo com irresponsabilidade, ao sair às ruas para apertar as mãos dos apoiadores, sob o risco de contaminação coletiva. Mantendo essa atitude, Tebet diz que o presidente que trabalha diariamente pela reeleição, mas sem a percepção de que “não existe presidente reeleito com uma economia em decadência”.

Ela acrescenta que o Congresso é cobrado pela população, mas tem feito o dever de casa. Sob sua presidência, a CCJ aprovou no começo do mês a emenda constitucional (PEC) que extinguiu os fundos públicos, devolvendo para amortização da dívida pública ou investimentos cerca de R$ 30 bilhões. A matéria se tornou consensual, porque Tebet articulou acordos na CCJ que agradaram gregos e troianos, e pode ser aprovada sem sustos no plenário do Senado.

Tebet diz que a PEC dos fundos é mais prioritária que a Emergencial, porque é pacífica, fácil de ser votada, pode até viabilizar recursos para obras de infraestrutura. Em contrapartida, aponta percalços na PEC Emergencial. Ela considera escandalosa a previsão do relator do Orçamento de que obterá R$ 6 bilhões com a aprovação da matéria, a partir da redução de 25% do salário dos servidores públicos.

“Tem sentido eu tirar 25% do salário do servidor para eu gastar com emendas?!”, questiona. Tebet diz que a proposta ainda é muito controversa e está longe de propiciar um acordo. O relator, senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), já colocou um teto de três salários mínimos para não penalizar uma fatia do funcionalismo, mas há pressão para que ele eleve o teto para cinco salários.

Nem assim Tebet vê como encaminhar a votação da PEC Emergencial num curto prazo. Ela argumenta que num cenário de desaceleração da economia e crise aguda com a pandemia do coronavírus, retirar 25% do salário dos servidores compromete o consumo, prejudicando ainda mais a conjuntura. “Dessa forma, eu tiro a capacidade desse servidor de gastar no comercio, ele vai é pagar juro pra banco”.

Em meio aos rumores de que desistiu da candidatura à Presidência, Luciano Huck cancelou a aguardada palestra que daria ontem na Associação Comercial de São Paulo (ACSP). Embora seja prematura qualquer afirmação sobre a sucessão presidencial, o gesto foi interpretado como um sinal de que os rumores podem ser confirmados.


Luiz Carlos Mendonça de Barros: A volta do momento Minsky

Desta vez não houve Cisne Negro externo a pôr fim ao otimismo dos mercados, e sim a difusão do coronavírus

A teoria econômica no início do desenvolvimento do capitalismo, no final do século 19 e começo do 20, era mais um tratado religioso escrito pelos chamados economistas clássicos do que uma avaliação dos problemas reais que a incipiente economia à época apresentava. O homem que vivia a dinâmica das economias de mercado era justo, racional e religioso. John Maynard Keynes foi o primeiro pensador sobre as questões econômicas que desmitificou a forma de dogma religioso que prevalecia até então. Ele delineou os valores do verdadeiro Homem Econômico que existe nos mercados e não a imagem criada pelo dogmatismo do chamado homem racional.

A terrível crise da depressão econômica dos anos 30 desmoralizou o arcabouço teórico e prático do capitalismo puro e validou as observações mais importantes de Keynes e de um pequeno número de economistas ao seu redor. Mas o boom econômico no pós-guerra nos Estados Unidos permitiu que uma nova leitura mais realista dos ideólogos religiosos do capitalismo fosse desenvolvida, principalmente nas universidades americanas. Chicago passou a ser a nova Roma na defesa dos princípios reescritos e chamados de neoclássicos. Pouco a pouco uma série de mecanismos criados nos anos da depressão foram sendo desmontados ou reescritos com menor capacidade de intervenção dos governos nos mercados.

Com a ascensão de Ronald Reagan, uma nova geração de políticos do Partido Republicano retomou a “cruzada santa” dos clássicos de negar ao Estado o direito de restringir a liberdade individual de investidores e empresários. O sucesso econômico dos anos Reagan trouxe de volta a ilusão da racionalidade do sistema e que havia sido perdida nos anos terríveis da depressão.

Mas mesmo marginalizados pela dominância do pensamento neoclássico alguns economistas continuaram a atualizar os principais conceitos desenvolvidos por Keynes em relação à instabilidade estrutural das economias de mercado. Um deles foi Hyman Minsky que, apesar de formado em matemática pela Universidade de Chicago, acabou se dedicando profissionalmente ao estudo de economia a partir do trabalho teórico desenvolvido por Keynes. Em 1986 publicou um livro - “Stabilizing an Unstable Economy” - no qual fazia uma releitura da fragilidade das economias de mercado quando, no fim de um ciclo de expansão econômica, a euforia e a ambição acabam dominando as decisões dos agentes econômicos.

O livro de Minsky foi adotado por membros importantes do universo de Wall Street, como Paul McCulley da Pimco, quando ocorreu a crise financeira de 1998. McCulley chamou de momento Minsky o ponto do ciclo econômico em que os especuladores endividados são obrigados a vender em massa os seus ativos, para fazer frente às suas necessidades de liquidez. Nesse ponto, começa a liquidação de posições, mas nenhum comprador pode ser encontrado a preços tão elevados, o que leva a uma queda abrupta nos preços dos ativos e a uma acentuada redução da liquidez no mercado.

O momento Minsky normalmente ocorre depois de um longo período de prosperidade e de investimentos crescentes, o que incentiva o aumento da especulação usando dinheiro emprestado. Alguns, como McCulley, consideram o início da crise financeira de 2007-2010 como um momento Minsky. McCulley estabelece este momento em agosto de 2007, enquanto outros consideram que tenha sido um pouco antes, em junho de 2007, com a quebra da Bear Stearns.

Agora, dez anos depois da crise de 2008 que fez de Minsky um economista respeitado até pela comunidade financeira de Wall Street, voltamos a viver uma crise financeira que vai jogar o mundo novamente em uma possível depressão econômica. Mas, como sempre acontece quando se utiliza eventos históricos como referência para melhor conhecer o presente, é preciso analisar as condições de contorno atuais em relação às do passado. As economias de mercado são organismos que evoluem com o tempo e mudanças importantes podem ocorrer em um período de 10 anos. Quando olhamos a crise que estamos vivendo e a comparamos com o que ocorreu em 1997 e 1998 duas mudanças me chamam a atenção.

A primeira é que tanto em 1998 como em 2008 foram tensões típicas da super excitação de otimismo dos mercados que provocaram abrupta ruptura das cotações dos principais ativos e o mergulho na recessão. Não houve nenhum Cisne Negro externo para interromper o otimismo de todos. Desta vez, em 2020, apesar de já existirem as condições de excesso de otimismo nos Estados Unidos, foi o evento na saúde mundial provocado pelo coronavírus que provocou a crise de confiança e o pânico nos investidores.

A segunda é que pela primeira vez experimentamos um período de pânico de extensão mundial com o funcionamento pleno das chamadas mídias digitais e das redes sociais. Nesta nova configuração das relações entre habitantes do mundo todo, a disseminação de notícias verdadeiras e falsas se faz a uma velocidade incrível e sem o controle da verdade que sempre foi responsabilidade da mídia institucional.

Mas o fim desta crise está longe de ocorrer e muita água - ou melhor sangue - vai correr debaixo da ponte.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


Valor: 'Precisamos que o presidente assuma a cadeira de piloto do avião', diz Rodrigo Maia

Deputado diz que Câmara poderá mudar meta fiscal, mas teto de gastos será mantido

Por Marcelo Ribeiro e Fernando Exman, Valor Econômico

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), recebeu o Valor na residência oficial já alertando: “De longe”.

O avanço do coronavírus não impôs apenas uma nova dinâmica para a entrevista, mas também para a atividade parlamentar, num momento em que o Congresso terá que combater os efeitos dessa crise, e na relação entre os Poderes.

Maia se disse “perplexo” com a participação do presidente Jair Bolsonaro nas manifestações contra o Legislativo e o Judiciário. Fora da entrevista, na rede social Twitter, bateu sem piedade. Mirou na questão da saúde, e não nas críticas que os manifestantes fazem às instituições.

“ O presidente da República ignora e desautoriza o seu ministro da Saúde e os técnicos do ministério, fazendo pouco caso da pandemia e encorajando as pessoas a sair às ruas. Isso é um atentado à saúde pública, que contraria as orientações do próprio governo”, escreveu.

Na entrevista, Maia cobrou que o presidente da República assuma a “cadeira de piloto” para a qual foi eleito, e demonstrou como a Câmara pode ajudar.

“A PEC do Teto de Gastos limita os gastos e é importante que a gente dê clareza aos investidores que ela não será cancelada”, destacou. “Mas ela tem uma previsão que em caso de catástrofe o governo pode editar projetos ou medidas de créditos extraordinários.”

Ele sinalizou, por outro lado, que uma alteração da meta fiscal que garanta recursos para o enfrentamento da crise não terá dificuldades no Congresso: “Este é um caso de catástrofe e precisa ficar claro. O orçamento do Ministério da Saúde não pode estar limitado por nada”.

Perguntado se o comportamento do presidente é incompatível com o cargo, o que em tese pode embasar um pedido de impeachment, o presidente da Câmara afirmou que o Congresso não agravará a crise. “Às vezes, me dá a impressão que o governo quer isso. Nós não seremos responsáveis por isso”, disse.

Valor: Antes das manifestações, o senhor estava com um discurso pacificador. O que muda a partir do que ocorreu no domingo?

Rodrigo Maia: Pacificador pelo tema [coronavírus], não pela relação com o governo. Eu sempre deixei claro que uma coisa são esses próximos três meses e outra coisa é depois dos três meses. Por mais que o que ocorreu hoje [domingo] seja gravíssimo, nós temos que ter paciência para dizer o seguinte: nós precisamos do piloto do avião no lugar correto. Nós não podemos repetir o filme “Apertem os cintos que o piloto sumiu”. Nós precisamos do presidente da República na cadeira de piloto. Essa é a cadeira para a qual ele foi eleito. Comandar o Brasil na crise, esse é o papel do presidente e só ele pode comandar o país nesta crise.

Valor: Como o senhor avalia a reação do governo em relação à pandemia e aos impactos econômicos dela decorrentes? Como o Congresso deve interagir com essa agenda do poder Executivo?

Maia: A agenda de hoje é muito diferente da de quatro ou cinco semanas atrás. Se a reação não for bem organizada pelo governo, nós teremos aumento do desemprego e da pobreza. Não podemos esquecer que o Brasil tem uma informalidade enorme. Muitos vão precisar entrar em quarentena, mas não têm outra renda. O que a gente espera é que o governo possa se organizar não apenas na saúde, mas tomar decisões para que o impacto em alguns setores seja minimizado. O que vai acontecer no setor de serviços, entretenimento? O setor de aviação, o de turismo? Alguns setores já estão dando férias coletivas ou demitindo.

Valor: A participação do presidente na manifestação não prejudica essa reação contra a pandemia?

Maia: Em um momento como este, cabe a todos os Poderes trabalhar em conjunto, unidos, para que os impactos desta crise sejam reduzidos. Infelizmente, não é o que a gente vem acompanhando nos últimos dias. Primeiro minimizou demais, depois chegou perto do coronavírus e no dia de domingo deu uma demonstração de total irresponsabilidade em relação a milhões de brasileiros. Mais do que isso: mandou um sinal desautorizando o seu próprio ministro da Saúde e sua equipe, quando recebeu uma orientação dela. Fez uma gravação junto com o ministro dizendo que não pode haver aglomerações e dois dias depois desautoriza a própria equipe da pasta.

Valor: É possível trabalhar em harmonia, um mandamento constitucional, tendo um chefe do Poder Executivo atuando contra os outros Poderes?

Maia: É difícil imaginar, em uma crise que pode ser até mais parecida com a depressão de 1929, um chefe do Poder Executivo desrespeitando seu próprio ministro da Saúde, sinalizando para a sociedade algo que é completamente equivocado em relação a tudo que todos os especialistas estão falando. Quando no início do crescimento mais forte dessa pandemia no Brasil a gente não vê o presidente comandando as ações e dando o exemplo, certamente é um momento de perplexidade para todos nós que queremos e vamos ajudar.

Valor: Deve-se esperar alguma reação por parte do Congresso?

Maia: Não vamos olhar para essas coisas, apesar de gravíssimas. Nós temos vidas em jogo e, neste momento, vamos cuidar dessas vidas. A pauta política, do debate, ficará para momento onde essa situação da pandemia esteja estabilizada, quando a gente tenha garantido a passagem por essa fase. Vamos tratar da política depois. Tenho certeza que o Senado e a Câmara dos Deputados não serão instrumento para nenhuma crise institucional, mas nós queremos e chegamos ao ponto de exigir que o governo comande o Brasil de forma definitiva e coordene os trabalhos em harmonia com os outros Poderes, para que todos nós possamos dar a nossa contribuição.

Valor: O governo federal também deve enfrentar desafios para cumprir a meta fiscal. Com qual horizonte o senhor trabalha?

Maia: O governo federal certamente vai ter queda da arrecadação. Certamente vai precisar mudar a meta para garantir o Orçamento funcionando até o final do ano. Vai precisar de recursos extras, acredito que para saúde. Temos que estar com o Orçamento aberto. A PEC do Teto de Gastos limita de forma correta os gastos, mas há nela uma previsão de crédito extraordinário, de gastos extras em caso de catástrofe. Este é um caso de catástrofe e precisa ficar claro. O orçamento da Saúde não pode estar limitado por nada.

Valor: Do ponto de vista prático o governo está demorando o anúncio de mais medidas?

Maia: Na área da saúde está caminhando. Na área econômica, é claro que os impactos acontecerão. Mas ninguém tem a projeção correta. A Nova Zelândia reduziu mais uma vez a taxa de juros [a entrevista foi dada antes da decisão do Fed]. Esse é o caminho? Quais outras decisões? Se a arrecadação cair, vai ter que mudar a meta. É esse o caminho? Numa hora como esta, não adianta trabalhar com as regras que nós estávamos trabalhando até o final do ano passado.

Valor: Há uma pressão de alguns partidos para que se reveja o teto de gastos.

Maia: A PEC do Teto de Gastos limita os gastos e é importante que a gente dê clareza aos investidores que ela não será cancelada. Não. Não vamos cancelar a PEC do Teto, mas ela tem uma previsão que em caso de catástrofe o governo pode editar projetos ou medidas de créditos extraordinários. Tenho certeza que nenhum brasileiro vai achar que o governo desorganizou a suas contas porque amanhã o ministro Mandetta pode precisar de mais R$ 10 bilhões ou R$ 15 bilhões. Não estou dizendo que precisará, mas esta hipótese tem que estar garantida.

Valor: Podemos interpretar que a agenda pós-coronavírus vai impor dificuldades ao governo?

Maia: A dificuldade do governo é que a sua agenda, do meu ponto de vista, muitas vezes não está conectada com os problemas da vida real dos brasileiros. O governo focou numa agenda correta, mas não é a única agenda.

Valor: A decisão do presidente de ir às manifestações pode dificultar a aprovação de projetos que teriam consenso?

Maia: Acho que não. Acho que essa semana tudo que for relacionado ao coronavírus será aprovado, porque tudo terá consenso. Parlamentares estarão prontos para votar e construir acordo sobre projetos que venham do governo para proteção da vida das pessoas e dos empregos. Com votação por acordo, a gente não precisa de aglomeração no plenário.

Valor: Há um número crescente de pessoas dizendo que o comportamento pessoal do presidente da República está sendo incompatível com o cargo. Diante do fato de que o presidente da Câmara dos Deputados é o responsável pelo acolhimento ou não de pedidos de impeachment, qual é a opinião do senhor a respeito dessa visão?

Maia: Por esse motivo minha resposta tem que ser cuidadosa. Nós já temos muitos problemas no Brasil para a Câmara ou o Senado serem responsáveis pelo aprofundamento da crise. Nós não seremos responsáveis por isso. Às vezes, me dá a impressão que o governo quer isso. Nós não seremos responsáveis por isso. Todos nós fomos eleitos. O presidente teve 57 milhões de votos, os deputados tiveram 100 milhões de votos. Todos nós fomos eleitos de forma legítima. A legitimidade de cada um precisa ser respeitada, como a legitimidade dos ministros do Supremo, dos governadores, dos prefeitos, dos deputados estaduais e vereadores. Todos precisam ser respeitados. Num momento de crise que a gente está vivendo, não será da Câmara que vai sair nenhum instrumento para ampliar ainda mais a crise. Nós precisamos que o presidente sente na cadeira de presidente da República. O piloto do avião precisa sentar na cadeira e assumir o controle. Não pode transferir isso para o ministro da Economia nem para o ministro da Saúde nem para o ministro da Infraestrutura. A responsabilidade é dele. Não há delegação de poder no sistema presidencialista. O poder é dele, ele precisa exercê-lo e é isso que nós estamos aguardando.

Valor: Bolsonaro disse aos eleitores que aqueles que o colocaram na Presidência precisam ajudá-lo a permanecer. O senhor avalia que o recente comportamento de Bolsonaro representa um risco às instituições e à democracia?

Maia: Eu não sei, porque não vejo ninguém trabalhando para tirá-lo da cadeira. O que nós queremos é que ele comande o Brasil. São coisas diferentes. Talvez ele faça uma distorção na relação política entre Parlamento, Supremo e Poder Executivo, mas o que nós queremos, ele pode ter certeza, é avançar com a agenda de superar a crise de saúde pública, social e econômica do coronavírus. Essa agenda de “me ajudem a ficar aqui” é uma agenda diversionista. Queremos que ele sente na cadeira do piloto e comande esse grande avião que é o nosso país, que tem problemas e precisa de um presidente que assuma suas responsabilidades em harmonia com os outros Poderes.

Valor: Caso o Congresso ganhe novamente o protagonismo nesse processo, novamente setores irão dizer que está tentando se implementar, na prática, um parlamentarismo.

Maia: Os apoiadores do presidente reclamam nas redes que o Parlamento quer assumir um parlamentarismo branco. O que a gente grita agora, em nome de todos os brasileiros, é que precisamos de uma Presidência atuando, comandando esse processo.


Claudia Safatle: Uma visão crítica da inteligência nacional

Para Delfim, governo deveria focar na PEC Emergencial

Delfim Netto, 92 anos, ficou em frente à TV por três horas, assistindo a votação no Congresso que derrubou o veto do presidente Jair Bolsonaro à ampliação do Benefício de Prestação Continuada (BPC), e concluiu: “Acabou a inteligência no Brasil”.

A reação dos parlamentares ao impor uma grave derrota ao governo de Bolsonaro foi um ato impensado, irresponsável mesmo. “Explodiram o teto do gasto!”, reagiu o ex-ministro e ex-deputado Delfim Netto.

Ao derrubar o veto presidencial, o Congresso criou uma despesa permanente da ordem de R$ 20 bilhões por ano sem indicar a devida receita para financiar a nova despesa.

O BPC, instituído pela Constituição de 1988, equivale a um salário mínimo por mês e destina-se às pessoas deficientes e idosos a partir de 65 anos cuja renda familiar per capita seja menor do que um quarto do salário mínimo. Com a derrubada do veto, ele passa a cobrir, também, idosos e deficientes com renda familiar per capita equivalente à metade de um salário mínimo.

O governo, por seu turno, não tem feito nada para melhorar o ambiente entre o Executivo e o Legislativo. Ao contrário, cada vez que o presidente da República fala é para insuflar o mal-estar das relações políticas.

“O problema ideológico atingiu tal dimensão que a coisa mais pecaminosa é ter lógica”, desabafou Delfim.

Por mais meritório que possa parecer, o Congresso criou um gasto no pior momento possível, em meio à hecatombe do coronavírus, que está causando destruição por onde passa e já se instalou por aqui.

“Foram ver se tinha gasolina no carro e acenderam um fósforo”, continuou o ex-ministro. “A maior burrice é repetir medidas que já não deram certo no passado na pretensão de que agora elas darão certo”, completou ele, referindo-se à votação de quarta-feira no Congresso.

Acostumado a assistir o Estado regando a economia com dinheiro barato do Tesouro, o país se vê perplexo diante da falta de ação do governo federal. Afinal, o BNDES dispõe de R$ 140 bilhões em caixa. “Para emprestar para quem? Para a JBS?”, pergunta o ministro da Economia, Paulo Guedes, quando confrontado com esses recursos no caixa do banco. A rigor, ainda está em discussão o quanto o BNDES terá que devolver à União neste ano a título de antecipação do pagamento de empréstimos feitos pelo Tesouro Nacional à instituição financeira. Será algo inferior, mas não muito, a R$ 100 bilhões, segundo fontes oficiais.

Para agir, o governo tem que, primeiro, identificar onde estão os problemas mais graves gerados pela disseminação do coronavírus. Já deveria, por exemplo, estar liberando recursos para o Ministério da Saúde para que ele estruture um programa de ajuda aos Estados e municípios, municiando as unidades da federação de mais leitos hospitalares e de equipes treinadas para lidar com a nova doença, a covid-19.

Medidas emergenciais não são barradas pela lei do teto do gasto público. A própria lei contempla a possibilidade de o governo abrir crédito extraordinário para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, tais como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, como está previsto no artigo 167, parágrafo 3º da Constituição.

Portanto, não há a necessidade de se flexibilizar o teto para enfrentar a pandemia. O que é preciso é ter agilidade para tomar as medidas corretas.

Essa é uma crise diferente de todas que o país já viveu. Não se trata de um problema geral de liquidez, como ocorreu no auge da grande crise financeira mundial, em 2008/2009.

Também não tem nada a ver com a crise da dívida externa que resultou na década perdida dos anos de 1980.

Essa crise se notabiliza por um choque de oferta seguido de um choque de demanda - porque as cadeias produtivas globais estão se rompendo e isso prejudica a produção de bens e serviços e, sem produção, a demanda das empresas também cai.
Alguns setores, como o aéreo, já começaram a sentir dificuldades na obtenção de crédito por parte do sistema financeiro. Nesses casos, caberá ao Banco Central agir para garantir um mínimo de funcionalidade aos mercados.

Ontem o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, se antecipou e anunciou a disponibilidade de novos R$ 50 bilhões para capital de giro das empresas. Ele disse, também, que o banco poderá comprar carteira de crédito de instituições menores em caso de aperto.

O pânico se instalou nos mercados, onde a pandemia está provocando uma verdadeira devastação. As instituições, ontem, começaram a tomar medidas de proteção, restringindo o acesso das pessoas aos seus prédios. Portaria assinada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, prevê que apenas as partes dos processos e os seus advogados poderão participar das sessões de julgamento.

O presidente do Congresso Nacional, senador Davi Alcolumbre, estaria cogitando, segundo fontes ouvidas pelo Valor, decretar recesso parlamentar. Um fato que contribuiria para essa decisão seria a confirmação de casos de parlamentares que teriam contraído a doença.

Dois senadores e dois deputados participaram da comitiva presidencial que visitou os Estados Unidos recentemente. Eles tiveram contato com o secretário de Comunicação da Presidência, Fábio Wajngarten, que estava na comitiva e cujo teste para o coronavírus, feito ontem, deu positivo.

Por todo o avanço que o Congresso tem feito sobre o dinheiro do Orçamento, sobretudo as últimas negociações entre o Parlamento e o Palácio do Planalto em torno do Orçamento impositivo, Delfim constata, também, que “essa gente está tirando a possibilidade de o Brasil crescer”.

Sobre Paulo Guedes, o ex-ministro disse que quem tem 20 prioridades não tem nenhuma. Essa é uma crítica ao ofício que o ministro da Economia enviou ao Congresso Nacional, listando praticamente duas dezenas de projetos que lá tramitam e que são de interesse do Executivo sobretudo agora, quando se exige do governo respostas à altura da pandemia. Para Delfim, Guedes deveria estar focado na PEC Emergencial.


César Felício: Bolsonaro na encruzilhada

Coronavírus muda dinâmica entre governo e Congresso

Não faltaram tiros de advertência antes de o Congresso detonar a pauta-bomba contra o governo Bolsonaro. A derrubada do veto presidencial ao projeto que amplia a base populacional a receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC) está longe de ser um ato inaugural.

E nem teria como ser, afinal se tratava de uma tréplica do Congresso, depois do presidente ter decidido barrar a proposta votada pela Câmara e Senado.

O projeto que aumentou o limite de renda per capita para receber o benefício de 25% do salário para a metade era bastante antigo, do ex-senador catarinense Casildo Maldaner. Tramitou no Legislativo por nada menos que 23 anos. Passou no Senado no fim de novembro, sem que o governo esboçasse reação. Bolsonaro vetou a proposta no dia 20 de dezembro.

A relação entre Executivo e Legislativo no Brasil é péssima desde o início do governo, mas a crise envolvendo o Orçamento impositivo - estopim para a derrubada do veto - estava delineada com perfeição desde o fim de 2019.

Ainda falta no governo Bolsonaro, onde pululam militares no Palácio do Planalto, uma figura como Golbery do Couto e Silva, o ministro da Casa Civil de Geisel e do início do governo Figueiredo. A ele é atribuída uma frase, que teria sido dita a líderes da oposição:

“Segurem seus radicais que nós seguramos os nossos.”

Todo este ambiente de impasse fez diminuir o otimismo em relação à manutenção de ambiente para aprovar no Congresso a agenda pró-mercado, como vinha sendo feito. Chegamos aos idos de março, com as eleições se aproximando e o coronavírus tracionando a escalada do pânico.

O cronograma de 15 semanas que seriam as disponíveis este ano para o ministro da Economia, Paulo Guedes, para aprovar sua agenda este ano - conforme o próprio ministro disse em encontro com parlamentares - corre, célere, sem que fique claro sequer quem é o interlocutor do Planalto com o Legislativo. Quem era no começo do governo? Onyx Lorenzoni? Bebianno? Santos Cruz? e quem é agora? Braga Netto? Ramos? Jorge Oliveira? Rogério Marinho?

“O governo não tem o diálogo necessário com o Congresso”, constatou há alguns dias o deputado Vinicius Poit (Novo-SP), que está a uma distância abissal da oposição. “Houve uma destruição da confiança entre o Executivo e o Legislativo”, disse o cientista político, Carlos Melo, do Insper.

Para Melo, que conversou com a coluna antes de ser revelado que o próprio presidente aguarda o resultado do teste sobre o coronavírus, a entrada em cena da pandemia no cenário político pode ter um desdobramento ironicamente positivo para Bolsonaro, válido obviamente se ele não tiver problemas maiores de saúde.

A crise provocada pela covid-19 pode se tornar um bom álibi para justificar um resultado econômico ruim e um saldo político pobre no ano atual. “A covid-19 pode se tornar um bodex-2020”, ironizou Melo, fazendo um gracejo com a eventual sigla que teria as duas primeiras sílabas da expressão “bode expiatório”.

Em termos concretos, isto significaria que uma questão conjuntural ajudaria a mascarar os sintomas de um problema real, que é a deficiência de articulação entre Bolsonaro e o Congresso.

Outro efeito, não mencionado por Melo, é que a pandemia produza um cenário mais positivo para aplainar a relação entre Legislativo e Executivo. A reunião de anteontem entre ministros e lideranças parlamentares para falar sobre o coronavírus mostra que esta é uma possibilidade concreta. A atitude de Bolsonaro de pedir que as manifestações sejam suspensas ou adiadas a reforça.

Ao tirar o dedo do gatilho em relação aos atos convocados para o dia 15, o presidente dá o primeiro passo para se tornar o Golbery de si mesmo.

Ele segurou seus radicais, os que pedem o fechamento do Congresso, do Supremo, dos partidos oposicionistas, da imprensa e sabe-se lá mais o quê. É possível que o Legislativo também segure os seus, aqueles que impulsionaram a imposição de um parlamentarismo torto, engessando o Orçamento.

Como não está claro se Bolsonaro desestimulou a manifestação do dia 15 porque quer apostar no diálogo ou por motivo de força maior, não dá para cravar que esta visão benigna de que o coronavírus produzirá uma espécie de união nacional irá prevalecer.

O pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV do presidente na noite de ontem não permite se chegar a uma conclusão. Ao mesmo tempo em que afirmou que “o momento é de união, serenidade e bom senso”, ressalvou que “o Brasil mudou” e que “as motivações da vontade popular continuam vivas e inabaladas”. Fica a porta entreaberta para ser batida de forma estrepitosa ou cruzada em sinal de boa vontade.

Caberá ao presidente esclarecer o mistério, nos próximos dias. Para citar outra frase atribuída a Golbery, no jogo de xadrez do poder, o governo joga com as brancas.

A longo prazo, o crescimento econômico fraco em 2020 cobrará seu preço eleitoral. Bolsonaro perderá força, sem que se divise no horizonte ninguém que possa recolher as esperanças dos desiludidos. A palidez da economia torna menos nítido o panorama de 2022.

*César Felício é editor de Política