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Maria Cristina Fernandes: Quem segura a explosão das favelas
Campanha bolsonarista contra quarentena ecoa em comunidades pobres até que a covid-19 atinja as avós, pilar de coesão social de famílias que têm, em suas filhas, o principal arrimo
Quando Júlio Ludemir começou a tossir, percebeu que, na verdade, se tornara parte de uma sinfonia. Assim como em outras favelas do país, na Babilônia, zona sul carioca, não é preciso encontrar o vizinho para descobrir que ele tosse. Produtor cultural de iniciativas como a Festa Literária das Periferias, Ludemir mora na Babilônia há sete anos. Já viu a favela mudar de cara muitas vezes.
Cenário de “Orfeu Negro” (1958) a “Tropa de Elite” (2008), a Babilônia já foi do PT de Benedita da Silva, do Comando Vermelho, da UPP, do Terceiro Comando, de Marcelo Crivella, dos turistas estrangeiros que se hospedam em seus “hostels”, da chuva que arrasou seus barracos, da falta d’água que perdura em tempos de pandemia e, finalmente, de Jair Bolsonaro, que arrebanhou a franca maioria de seus eleitores em 2018 e hoje é poupado pelas panelas de seus moradores. Ludemir só não viu ainda a favela se transformar pelo coronavírus.
Os mototáxis continuam pra cima e pra baixo deixando o comandante da Unidade de Polícia Pacificadora numa saia justa. A restrição privaria a comunidade de importante fonte de renda e de comunicação. Por outro lado, seu tráfego, sem capacete para o passageiro, incorreria em infração de trânsito. Por ora, permanecem em operação, com álcool gel no assento e no lado de fora do capacete, como fonte de contágio.
Assim como o mototaxista, o barraqueiro de praia, a manicure e o flanelinha de carro para alugar não têm outra fonte de renda que não seja aquela trazida por sua exposição diária na rua. Por isso, continuam a sair do barraco, ainda que a vida no asfalto, de onde muitos tiram seu sustento, esteja parada.
Julio Ludemir é o primeiro a assumir a irresponsabilidade de não ter feito o confinamento. Além da idade (60 anos), a doença já se espraiava na cidade. No primeiro dia dos sintomas, precisou usar o banheiro de uma birosca e, sem perceber que faltava água, acabou por quebrar a torneira. A dificuldade de manter a higiene necessária à prevenção não impede que as pessoas continuem nos bares, as crianças, nos becos, e muitos, no culto pentecostal à noite.
Ludemir já vê vizinhos se queixarem de pastores que, sem interromper os cultos, fazem deles vítimas de discriminação por parte de outros moradores. O chefe da Igreja Universal, Edir Macedo, chegou a gravar um vídeo em que diz que o debate sobre a doença “é mais uma tática de satanás, que trabalha com o medo, o pavor e a dúvida.”
O produtor cultural diz, no entanto, que a vida na favela só vai mudar quando as avós começarem a ser contaminadas. Se a mulher que trabalha por conta própria é o arrimo de famílias à margem do tráfico e do crime, é a avó que, encarregada dos netos e da gestão familiar, se transforma no pilar da vida nas comunidades. A sobrevivência delas vai moldar, em grande parte, a reação das favelas ao avanço da covid-19.
É a avó do andar de baixo a maior preocupação de Bárbara Nascimento, professora de escola pública de 42 anos. Moradora do Vidigal, favela que se espraia entre o Leblon e a Barra da Tijuca, na zona sul do Rio, Bárbara foi uma das primeiras moradoras a se envolver com a campanha de conscientização pela quarentena. A sua se transformou em casa de ferreiro com espeto de pau.
A despeito da militância de Bárbara, o marido, Marcelo, que trabalha como autônomo no conserto de eletrodomésticos, não parou. Continuou a trabalhar até o sábado, 14 de março, quando o Brasil já tinha centenas de casos mas nenhuma morte confirmada. Na segunda, começou a tossir.
Respondeu a questionários virtuais e constatou que estava com a doença. Apesar de hipertenso, Marcelo, aos 45 anos, preferiu não procurar um serviço de saúde. Como os dois cômodos da casa ficam em andares separados, Bárbara ficou no de cima, que tem acesso à laje onde o filho do casal, de oito anos, pode brincar, e Marcelo, no de baixo. Alternam-se para usar a cozinha.
No primeiro pavimento moram três mulheres. A avó que cuida da neta para a filha, que vive de bico, poder trabalhar. Tem cesta básica entregue pela associação dos moradores, mas está exposta porque a filha continua na rua. Na laje ao lado, várias famílias ainda se reúnem para fazer churrasco.
Se a Babilônia voltou às ordens da UPP, o Vidigal continua sob o Comando Vermelho. E lá, a boca de fumo não parou nem decretou toque de recolher. Blogs como o “Portal Favelas” convocam para a quarentena. É uma das tantas iniciativas comunitárias que receberam rasgado elogio do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Para quem não tem acesso à internet, porém, a única fonte de alerta é o carro de som do supermercado da região, que passa apenas nas vias principais e uma sirene da associação de moradores. Nem um nem o outro são ouvidos por quem mora na parte mais elevada do morro.
Lideranças da favela têm encomendado faixas e pedido para o carro rodar mais vezes, mas é tudo pago e o cobertor, curto. A solidariedade, cimento de coesão social na favela, tem limites.
“Ninguém tá fazendo nada por amor”, queixa-se Bárbara. Nos fóruns de que participa, a professora recomenda que as pessoas deixem de pagar contas de água, luz, telefone ou dívidas. E guardem o dinheiro para comer e comprar remédio. A começar por sua mãe, que mora em Guaratiba, na zona oeste, aos 67 anos, hipertensa e diabética, gasta metade de sua renda em remédios.
A dificuldade de amplificar a recomendação de quarentena na comunidade se reflete em crianças - e suas avós - que permanecem nas vielas e becos, cuja largura não ultrapassa dois metros, e homens que lotam os bares. Dos motoristas de ônibus, auxiliares de enfermagem, trabalhadores das companhias de eletricidade, água e limpeza que lá moram, Bárbara ouve que se eles saem de casa para trabalhar, podem também fazê-lo para se divertir.
Mesmo no Vidigal, favela que, ao contrário da Babilônia, não votou em Bolsonaro, a pregação do presidente pelo fim da quarentena ecoa. Lá, o panelaço, mais forte do que em muitos bairros de classe média, convive com entregadores como aquele que leva remédio para o marido de Bárbara. Seu comentário - “Todo mundo um dia vai morrer mesmo, então é melhor trabalhar” - foi um copia e cola da fala de Bolsonaro no domingo, 29, em que, pela enésima vez, passeou pela rua contrariando as autoridades sanitárias.
Em Sapopemba, bairro do extremo Leste de São Paulo, zona mais populosa da cidade, o discurso bolsonarista também ecoou. Nas favelas da região, monopolizadas pelo PCC, houve toque de recolher e suspensão dos bailes funk nos dois primeiros fins de semana da quarentena, mas a pressão presidencial contra a quarentena já surtiu efeito para levar mais movimento para a rua e incutir conflito na comunidade.
Em Carapicuíba, cidade-dormitório no oeste da Região Metropolitana de São Paulo, os conjuntos habitacionais construídos pelo programa Minha Casa Minha Vida estão sendo geridos com toque de recolher e regras como a de que apenas um integrante por família sai de casa para abastecê-la no supermercado. A maior parte dos conjuntos habitacionais para a população de baixa renda da cidade é gerida por empresas dominadas por ex-policiais militares.
Psicóloga de 48 anos, nascida e criada em Sapopemba, onde trabalha num centro de reabilitação do hospital do bairro, um dos maiores da capital, Cláudia Diroli prevê um atendimento congestionado em seu serviço na volta ao trabalho, a começar pelos próprios profissionais de saúde que estão na frente de batalha. Diz que a associação entre privação e medo vai afetar a saúde mental das pessoas e provocar toda sorte de transtornos pós-traumáticos.
À frente de uma campanha de mobilização para doações a entidades de moradores de rua e associações de moradores de Heliópolis, favela da zona sul de São Paulo, a socióloga Luna Zarattini arregimentou 450 voluntários e R$ 80 mil, além de doações de alimentos e produtos de limpeza, na primeira semana de atuação. Viu, no entanto, a demanda crescer muito mais que a oferta.
Apesar disso, ainda não se registra, a não ser na ação dos robôs bolsonaristas, um risco iminente de saques desenfreados nas comunidades mais pobres do país. À frente de uma equipe que analisa a origem e a propagação de mensagens em redes sociais, Manoel Fernandes foi despertado pela postagem de saques em duas cidades, Curupira, município de 24 mil habitantes, no interior de Pernambuco, e São Vicente, no litoral paulista. A notícia vinha acompanhada de fotos e vídeos de saques ocorridos num supermercado na Guatemala.
Não estivesse o país em meio a uma pandemia sob o comando de Jair Bolsonaro, a notícia teria se perdido. Não foi o que aconteceu. Em um único dia, a equipe de Fernandes identificou 6.667 tuítes sobre saques. A propagação desta notícia falsa foi associada ao caos a ser provocado pela quarentena da covid-19, com desabastecimento e violência.
As Forças Armadas chegaram a ser colocadas de prontidão para a eventualidade de caos generalizado no país provocado pelo crime organizado. O sinal de alerta foi dado pela rebelião, com fuga, em cinco presídios paulistas antes de o confinamento se espraiar pelo país. A associação entre o PCC e as fugas acabou não se comprovando. Tampouco a associação entre crime organizado e saques nas comunidades carentes. É na saúde das avós que o termômetro social hoje parece estar sintonizado. No início da semana, a Rocinha, na zona sul do Rio, registrou a primeira morte de um morador de favela. Maria Luiza do Nascimento, de 70 anos, morava com filha e neta na parte alta da comunidade.
César Felício: A simulação presidencial
Inépcia do governo em temas sociais é perturbadora
Os trabalhadores autônomos e informais que anseiam pela ajuda de R$ 600 precisam respirar fundo. O histórico de inépcia do governo Bolsonaro em relação a temas sociais é perturbador.
Parece que faz muito tempo, mas foi há poucas semanas, em janeiro, que se constatou que os brasileiros que cumpriam as exigências da nova reforma da Previdência para se aposentar não conseguiam fazê-lo, porque o INSS não havia se preparado para alterar seus parâmetros na concessão dos benefícios. O gargalo era a falta de mão de obra, porque a autarquia não repôs o quadro de funcionários que tinha se aposentado nos últimos anos. O principal sistema de seguridade social travou.
No ano anterior, o Ministério da Cidadania anunciou a concessão do décimo-terceiro salário para os beneficiários do Bolsa Família, mas não havia uma previsão clara de receita para garantir este pagamento. A solução encontrada foi o enxugamento de mais de 1 milhão dos beneficiários, alvos de uma operação pente-fino.
Durante um ano inteiro, o governo federal tergiversou sobre como atender a faixa um do programa Minha Casa Minha Vida. Pensou em voucher, pensou em restringir o benefício, pensou muito. Nada foi posto de pé.
Na balbúrdia do coronavírus, o presidente da Câmara cobra medidas urgentes do governo para preservar a economia e o governo se exime: para Bolsonaro e tecnocratas como o presidente do Banco do Brasil, a solução é soltar as amarras do isolamento, bater de frente contra orientações sanitárias mundiais e cada um que vá cuidar de seu sustento, porque a hora é de trabalhar. Nas curiosas palavras do presidente do Banco do Brasil, o isolamento social não é um tema para ser decidido no âmbito da medicina.
O livre-pensar das autoridades do governo não implanta um isolamento vertical que é desaconselhado por especialistas e que ninguém sabe como poderia funcionar. Serve apenas como areia nos olhos para distrair o público da inação.
O governo Bolsonaro será aquele lembrado por sugerir a privatização da Eletrobras como uma das medidas emergenciais para se combater uma pandemia mundial. Ou pela iniciativa de tentar restringir a Lei de Acesso à Informação. Ou ainda por ser a administração em que o presidente e sua família passam o dia divulgando notícias de procedência duvidosa e batendo boca com adversários políticos. Também pode ser recordado pelo filho deputado que criou uma querela inútil com a China no meio do pânico.
É vasta a sequência de pseudofatos, de crises artificiais, de cavaleiros riscando os cavalos, tinindo as esporas, saindo dos pagos em louca galopada para nada, como dizia o poeta Ascenso Ferreira. Bolsonaro ganha uma aparência de proatividade, quando na realidade é apenas reativo. Traveste-se de vítima do sistema, para justificar a própria inação.
Por último, parte o presidente em entrevista para a Rádio Jovem Pan para a inacreditável tarefa de fritar o seu ministro da Saúde no olho do furacão. Ameaça ordenar a abertura do comércio agora, sendo que o pico da epidemia está sendo projetado para o fim do mês. É de se apostar que o Congresso ou Judiciário irá impedir o tresloucado gesto.
Lições do passado
Observar o passado ajuda a projetar algumas linhas para o futuro. A história da saúde pública no Brasil é uma história de combate a epidemias e pandemias. A cada devastação produzida por um patógeno, houve uma elevação da saúde pública para outro patamar e a subordinação de políticas de Estado a objetivos sanitários.
A trajetória começou com a proclamação da República. Avanços na ciência fizeram com que a medicina se voltasse para a epidemiologia. Não por acaso o serviço sanitário paulista foi criado em 1892, o Instituto Soroterápico de Manguinhos em 1899 e o Instituto Pasteur chegou em 1903.
O cenário estava montado para que o governo implantasse uma política higienista de erradicação de cortiços, aterramento de pântanos, remoções de populações inteiras e vacinação compulsória.
Direitos e garantias individuais que contrariavam a saúde pública não foram levados em conta pelos governos que deram amparo a cientistas como Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Adolfo Lutz, Vital Brasil e Carlos Chagas, que estavam na linha de frente do combate às doenças infecciosas. A revolta da vacina de 1904 é um emblema de uma política de estado que, em nome do interesse da coletividade, se sobrepôs de modo violento à individualidade.
Rompeu-se com a inviolabilidade dos lares e com a garantia do livre arbítrio sobre a própria saúde, em um país em que a emancipação de escravos ainda era uma adolescente de 16 anos. A resistência popular ao higienismo foi combatida com fogo de artilharia de navios de guerra ancorados no Rio.
O saldo imediato, como ficou evidenciado nos anos seguintes, foi a queda drástica nos grandes centros urbanos dos casos de febre amarela, peste bubônica, varíola, malária, cólera e outros flagelos. No caso da varíola, foram 3.566 mortes de cariocas em 1904. Em 1910, apenas uma.
A ação brutal do governo de então, contudo, não debelou a gripe, que continuou matando cerca de 500 pessoas por ano na capital federal, em média. Rodrigues Alves, o presidente higienista da Revolta da Vacina em 1904 terminaria por ser vítima do H1N1, vírus da pandemia de influenza eternizada como gripe espanhola.
A moléstia chegou ao Brasil em 16 de setembro de 1918, a bordo do navio Demerara. Ela se caracterizava por uma evolução lancinante. Entre os primeiros sintomas e o óbito podiam se passar apenas 12 horas. Sem nenhum tratamento conhecido, o isolamento radical era a única maneira de contê-lo e coube a Carlos Chagas comandar o enfrentamento na capital, com carta branca do presidente Venceslau Brás, em fim de mandato. A doença matou 35 mil pessoas no Brasil.
Com 70 anos, Rodrigues Alves seria reconduzido ao poder. Teria sido o segundo presidente mais velho a exercer o cargo, depois de Getúlio e Fernando Henrique. Era conhecido por ser uma pessoa adoentada e não resistiu. Não chegou a tomar posse.
Diferentemente do Brasil da República Velha, o atual é uma democracia. Na evolução desta pandemia, é bastante provável que as autoridades médicas que estão na linha de frente do combate ao vírus ganhem projeção eleitoral relevante no futuro.
Ribamar Oliveira: O teto de gastos está por um fio
Governo precisa da PEC do “Orçamento de Guerra”
A sobrevivência do teto de gastos da União está na dependência de uma decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que anteontem se incorporou ao movimento do “#pagalogo”, no Twitter. Caberá a Gilmar conceder ou não, de forma monocrática, liminar ao pedido feito pela Advocacia-Geral da União (AGU) em ação contra a lei que ampliou, de um quarto do salário mínimo para meio salário mínimo, a renda familiar per capita das pessoas que terão direito a reivindicar o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Se Gilmar conceder a liminar, o governo ainda manterá a esperança de que, ao fim desse turbilhão de gastos para o combate aos efeitos do novo coronavírus na população e nas empresas, poderá sustentar o limite constitucional para o crescimento das despesas, previstos na emenda constitucional 95/2016. Se o ministro do STF negar a liminar, já será necessário começar a discutir uma alternativa para o teto de gastos, pois ele não conseguirá absorver a despesa adicional de cerca de R$ 21 bilhões por ano com a mudança do BPC.
No dia 23 de março, a AGU ingressou no Supremo com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra o projeto de lei 55 do Senado, que, depois de aprovado, foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. O veto foi derrubado, mas Bolsonaro negou-se a promulgá-lo, o que terminou sendo feito pelo vice-presidente do Senado, Antonio Anastasia.
O fato é que a mudança feita no BPC está em vigor (lei 13.981), as pessoas podem requerer os benefícios e o governo terá que atender, a menos que o ministro Gilmar Mendes conceda a liminar. Na ADPF 662, a AGU argumenta que o projeto infringiu uma série de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), mas, principalmente, dois artigos da Constituição: o 195, parágrafo 5, e o 113 do ADCT. Em síntese, a AGU pede que o STF considere a mudança inconstitucional.
O projeto que criou a renda emergencial de R$ 600 dá nova redação à mudança no BPC. Mas, pela ótica dos argumentos apresentados pela ADPF da AGU, o governo continua achando que a alteração no BPC é inconstitucional. Por isso, existe uma grande expectativa para saber se o presidente Bolsonaro vai vetar os artigos que tratam do BPC, ao sancionar a lei da renda emergencial.
O governo se apega ao teto de gastos porque espera manter o controle das despesas obrigatórias, depois que a situação se normalizar, Mas o teto está por um fio.
Estratégia
Alguém da burocracia do Ministério da Economia alertou o ministro Paulo Guedes que, para pagar os R$ 600 aos trabalhadores informais, seria necessário alterar a Constituição. Como o governo trabalha com déficit primário em suas contas, a despesa com o auxílio emergencial terá que ser coberta com a emissão de títulos, ou seja, com o aumento da dívida pública.
A explicação apresentada ao ministro mostrou que o texto constitucional só permite que o governo faça operações de crédito em montante superior à despesa de capital (investimentos e amortizações da dívida) se elas forem autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais, com finalidade precisa, aprovados pelo Legislativo por maioria absoluta. Este princípio é conhecido como “regra de ouro” das finanças públicas.
O problema é que a despesa adicional para pagar os R$ 600 não pode ser aberta no Orçamento nem por crédito suplementar, nem por crédito especial, pois isso iria estourar o teto de gastos da União. Por isso, a estratégia do governo era abrir um crédito extraordinário ao Orçamento, que não entra no cálculo do limite de despesa.
Mas um crédito extraordinário não permite, no entanto, ao governo fazer as operações de crédito necessárias para pagar as despesas com os R$ 600. Seria necessário, explicou o burocrata, aprovar a PEC do chamado “Orçamento de Guerra”, que, entre outras medidas, suspenderá a obrigatoriedade de o governo cumprir a “regra de ouro” durante o estado de calamidade pública.
Argumentou-se, inclusive, que a infração a este dispositivo constitucional poderia ser motivo para um pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro. A área orçamentária e financeira do Ministério da Economia ainda é constituída, em grande medida, por técnicos que trabalhavam no governo na época do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, que caiu pela inobservância de regras legais e constitucionais na área fiscal.
Depois que o próprio ministro Paulo Guedes tomou a iniciativa de fazer consultas, que envolveu inclusive ouvir ministros do STF, de acordo com fontes, ficou claro que havia um certo preciosismo na avaliação do burocrata. O impedimento constitucional era aquele mesmo apontado, mas ele poderia ser contornado por uma “engenharia orçamentária e financeira”, que não seria, propriamente, uma novidade.
O custo do programa da renda emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais é estimado, em princípio, em R$ 50 bilhões. A solução encontrada para pagar de forma mais rápida foi a edição de uma medida provisória abrindo um crédito extraordinário de R$ 33 bilhões no Orçamento, que será custeado pelo superávit financeiro do Tesouro. Este é o montante de recursos livres que ainda resta na conta única do Tesouro. O restante do superávit financeiro é de recursos vinculados. Os R$ 17 bilhões que faltam serão obtidos com cancelamentos de outras despesas orçamentárias.
Posteriormente, o governo enviará um projeto de lei (PLN) pedindo autorização ao Congresso para fazer operações de crédito no montante de R$ 17 bilhões para recompor, por meio de crédito suplementar, as despesas que foram canceladas. Com o PLN, o governo estaria cumprindo a “regra de ouro”.
O PLN será aprovado com grande facilidade e de forma rápida, pelo que o Valor apurou em conversas com algumas lideranças políticas. O Congresso terá, no entanto, que aprovar a PEC do “Orçamento de Guerra”, pois será necessário suspender a obrigatoriedade de cumprir a “regra de ouro” durante o estado de calamidade social, uma vez que o governo ainda vai precisar gastar muito mais no combate ao novo coronavírus.
Maria Cristina Fernandes: Contra o isolamento, o vírus da desconfiança
Bolsonaro reage provocando discórdia entre as instituições
Durou menos de 24 horas a aposta de ministros civis e militares de que o insurgente capitão fora domado. Depois do brando pronunciamento da noite de terça-feira, o presidente da República mostrou que sua maior missão é ocupar a tribuna da provocação. Em tuíte, compartilhou depoimento (falso) de um feirante que exalta Bolsonaro e culpa os governadores pelo pouco movimento. No fim, comentou: “Depois da destruição, não interessa mostrar culpados”.
Como bedéis de um adolescente indisciplinado, os ministros do Palácio do Planalto apagaram o tuíte, fizeram o rapaz pedir desculpas e deram instruções para que a segurança impedisse a claque bolsonarista, sob o comando diuturno do presidente da República, de vaiar os jornalistas que cobrem sua saída do Palácio do Alvorada.
Comportado em rede nacional e debochado na rede social, o presidente cumpre a bipolaridade com a qual inaugurou seu mandato. Faz passar por doença o que é método. Se os ministros militares insistem na tutela, é menos pela aposta na disciplina do capitão e mais pela ausência de alternativas a uma situação que se agravou pelo isolamento institucional do presidente e pelo avanço do coronavírus.
O Comando Militar da Amazônia confirmou casos da covid-19 no Centro de Instrução de Guerra na Selva, em Manaus, reduto da elite do Exército e referência mundial de treinamento. Some-se à preocupação com a preservação da capacidade operacional das Forças Armadas, o avanço inaudito da covid-19 no Distrito Federal, que combina a maior incidência de casos da Federação com uma frágil rede de hospitais públicos. É no entorno do presidente passeador que ameaça se concretizar mais rapidamente a tragédia italiana prevista pelo ministro da Saúde: caminhões do Exército transportando pilhas de vítimas do coronavírus.
O imperativo de manter a ordem pública sob o comando de um desordeiro cobrou um preço alto das instituições. A ordem do dia do Ministério da Defesa, em 31 de março, retroagiu, em pelo menos três décadas, a publicidade da visão das Forças Armadas sobre o golpe de 1964.
Depois de passar em branco durante os governos do PSDB e do PT, a ordem do dia voltou a registrar a efeméride no primeiro ano do governo Bolsonaro. A necessidade de fazer o contraponto com um governo militarizado produziu um texto ponderado, beirando a auto-crítica: “Enxergar o Brasil daquela época em perspectiva histórica nos oferece a oportunidade de constatar a verdade e, principalmente, de exercitar o maior ativo humano - a capacidade de aprender”.
Bem distinto daquele que, este ano, abriu e fechou pela declaração de que 1964 é um “marco para a democracia”. Na pressa, rejeitou a igualdade como utopia: “Os países que cederam às promessas de sonhos utópicos ainda lutam para recuperar a liberdade, a prosperidade, as desigualdades e a civilidade que regem as nações livres”.
O pacto pela preservação de Bolsonaro esgarçou ao limite as relações institucionais. O tuíte do vice-presidente, enaltecendo o golpe militar, é apenas sua evidência mais exposta. Destinava-se a sua própria corporação, mas acabou servindo, aos que o acalentam como opção, de tira-teima para a declaração de Bolsonaro: “Mourão é mais tosco do que eu”.
Em nenhuma instância, o consciente exercício da bipolaridade presidencial se refletiu de maneira mais desgastante do que na redação da proposta de emenda constitucional do orçamento da crise. Exigência do ministro da Economia, Paulo Guedes, que alega receio de infringir normas fiscais ao atender à demanda pela liberação de recursos, a PEC chegou a ser esvaziada por liminar, nessa direção, do ministro Alexandre de Moraes.
Não satisfeito com a liminar, Guedes condicionou a liberação do auxílio de R$ 600 reais aos informais à aprovação da PEC que, àquela altura, já contava com quatro minutas. Na primeira delas, o comitê gestor da crise seria presidido pelo ministro da Saúde, Henrique Mandetta, que comandaria uma equipe de ministros, nenhum deles militares. O presidente da República, que passeava em Ceilândia, foi ignorado.
Veio do Supremo o aviso de que não cabia ao Congresso interferir na maneira como o Executivo se organizaria para tomar decisões. No mesmo fim de semana, o ministro Gilmar Mendes foi chamado ao Planalto para encontrar Bolsonaro. No dia seguinte, os redatores da PEC colocaram o presidente na cabeça do comitê e lhe atribuíram sua composição.
Parlamentares reagiram. E se Bolsonaro montasse um escrete de ouro, com Weintraub, Damares e Araújo? Nova redação definiu as Pastas que integrariam o comitê, nenhuma delas comandadas pelos generais do Palácio. Até mesmo o ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, comandante do atual comitê de crise, foi deixado de fora.
“Não queremos generais nisso”, justificou um dos envolvidos na costura política. “Eles já foram avisados de que isso é um golpe?”, perguntou um general, alertando para a possibilidade de que, aprovada a PEC, nada impediria que Bolsonaro demitisse todos os ministros cujas Pastas lá estavam listadas e nomeasse militares para seu lugar.
Na quarta-feira, dia para o qual sua votação foi pautada, o texto amanheceu com Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos, devidamente incluídos. Ao Congresso, que terá oito assentos no Comitê, sem direito a voto, caberá vetar decisões que “afrontem o interesse público”, redação que também desagradou militares resistentes à prerrogativa do Legislativo.
No fim, o Congresso havia feito mais concessões do que pretendia, mas esperava ter evitado que a gestão da crise se resumisse a um dueto entre governo e Supremo. Para encorpar a PEC, os parlamentares acabaram puxando para o texto as mudanças pretendidas pelo Banco Central para dar mais liquidez ao mercado.
No meio desse vaivém, Bolsonaro sancionou a ajuda de R$ 600 aos informais. Com a PEC, cairá um dos obstáculos para que o dinheiro chegue na ponta do desespero. Se Bolsonaro pretendia inocular nas instituições que o isolam o vírus da desconfiança mútua, foi bem sucedido. Não passaria de um festival de discórdia se o ingresso não fosse cobrado em vidas.
Cristiano Romero: E assim caminha a humanidade
Civilização vive pendor para o totalitarismo que parecia adormecido
Cientistas nunca chegaram a um acordo para definir se um vírus é ou não um ser vivo. Eles carregam material genético, mas não têm célula como as bactérias, por isso, dependem das células de um ser vivo para se reproduzir e, dessa forma, viver. Viver? Mas, como, se não são seres vivos? Parasitas obrigatórios, sua missão é odiosa. Eles infiltram seu código genético em células dos hospedeiros, mudam a programação original, fazendo com que as células produzam vírus até explodir. O plano é diabólico: a explosão não é um ato suicida; ela libera milhões, bilhões de partículas, prontas para infectar outros corpos.
Volta e meia brotam da natureza vírus com grande capacidade de assombrar a humanidade. Nossos avós fizeram relatos terríveis sobre a gripe “espanhola” teria infectado, entre 1918 e 1920, um quarto da população mundial na época (2 bilhões) e matado pelo menos 17 milhões de pessoas - os números da tragédia são muito díspares; há dados sustentando a morte de 50 milhões e até de 100 milhões de pessoas.
Os vírus são específicos para cada hospedeiro. O novo coronavírus covid-19 apareceu para infectar seres humanos. Chama-se covid-19 porque foi descoberto pelos chineses em 2019, aliás, no derradeiro dia do ano. Isso é assustador porque, em menos de três meses, o novo coronavírus chegou aos quatro cantos do planeta, a todos os Estados de três (China, Estados Unidos e Brasil) dos cinco maiores países.
Cientistas sustentam que os vírus, principalmente os mais letais, aparecem porque estamos destruindo a natureza e libertando partículas infecciosas que costumam hospedar-se em animais, fungos e bactérias. Por esse raciocínio, o homem tem sido vítima do progresso sem medida, que se traduz na destruição do meio ambiente em que vivemos.
Debates sobre temas que dependem de conhecimento científico devem evitar o “achismo” tolo de alguns e a irresponsabilidade de outros, que, diante de tragédia sem paralelo na história recente da raça humana (ou desde sempre), estão fazendo cálculo político pensando nas eleições agendada para daqui a três anos. Seria o equivalente ao capitão do Titanic, crente na hipótese de seu navio não afundar, apenas adernar, pedir aos passageiros, contra a opinião de toda a tripulação, para ficarem na embarcação porque o casco atingido pelo iceberg seria consertado por bravos marinheiros antes do amanhecer.
Esse mesmo debate, ainda que instruído, deve tomar cuidado redobrado para não ser manipulado por moralismos de qualquer espécie. Muitos surtos e epidemias de vírus não se tornam pandemias, como a do coronavírus covid-19. Atingem grupos expostos ao vírus em alguns locais do planeta. O HIV, o vírus da AIDS, suscitou debate temerário e descabido sobre a opção sexual. E a doença foi apontada pateticamente como um recado de Deus contra o sexo livre da década anterior (1970).
A humanidade vive, talvez, seu Grande Teste. O covid-19 emergiu num momento particularmente difícil. Ao mesmo tempo em que, nos últimos 30 anos, o mundo ficou pequeno graças ao desenvolvimento acelerado da tecnologia da informação, conectando bilhões de viventes em tempo real e relativizando fronteiras histórico-culturais, a civilização vive pendor para o totalitarismo que se julgava adormecido (inexistente, nunca).
Justamente quando materializamos o acesso amplo dos cidadãos à informação, a liberdade, característica que nos define como humanos, corre risco. E o epicentro desse tenebroso movimento está nas nações ricas, onde figuram as democracias mais antigas e consolidadas. Diz-se que a História é pendular e que, no seu caminhar, uma nova onda se opõe obrigatoriamente à anterior e assim caminha a humanidade. Ora, o covid-19 não tem nada com isso. Vivemos uma fragmentação política sem precedentes desde o pós-Guerra.
Na França, o partido que conteve o avanço da extrema-direita fora criado há apenas um ano da eleição. Nos EUA, um bilionário outsider, novato na política, xenófobo, só chegou à presidência porque venceu a eleição em estados que votam tradicionalmente em candidatos democratas. Na Alemanha, nunca desde a ruína do nazismo os extremistas da direita tiveram tantos votos quanto na última eleição.
Na Inglaterra, um referendo tirou o país da União Europeia, enfraquecendo-o econômica e politicamente, confirmou a decisão e reelegeu o Partido Conservador, levando seu líder, Boris Johnson, ao posto de Primeiro-Ministro. Johnson é abertamente racista e islamofóbico.
Aparentemente, a revolução tecnológica foi crucial para fragmentar a política. Por quê? Porque desestabilizou o financiamento da mídia tradicional, afetando a produção e a distribuição de notícias, provocando o fechamento em massa de jornais em todo o planeta. Do lado da liberdade de expressão, a democracia perdeu curadoria.
Nota do redator: o capitão, registre-se, não tem o apoio da tripulação, mas ainda goza de grande prestígio junto aos passageiros mais afortunados. Estes estão preocupados apenas com o prejuízo que aquele acidente já estava causando a seus bolos, afinal, investiram pesadamente no projeto ambicioso do capitão. Além disso, já tinham reservados, em local estratégico do barco, botes para transportá-los, às suas famílias e às joias que levavam, com segurança à terra firme.
Negócios são negócios - não se sabe ainda com que grau de intensidade o Leviatã, o monstro que vem na cola do novo coronavírus, na hora oportuna, atingirá a nossa já enfraquecida economia; mas no caso do Titanic, lembrem-se, o navio afundou junto com as joias dos ricaços; o capitão, pelo menos, foi o último a abandonar o grande navio naufragado.
*Cristiano Romero é editor-executivo
Maria Cristina Fernandes: Discurso dá guinada contra isolamento
Presidente dá guinada de 180 graus e abandona o discurso da “histeria e pânico” que marcou o pronunciamento anterior
Numa reação ao isolamento que lhe foi imposto desde o pronunciamento da semana passada, o presidente Jair Bolsonaro girou em 180 graus sua abordagem sobre a pandemia em pronunciamento em rede nacional.
No pior dia desde o início do enfrentamento do coronavírus no Brasil, quando foram registrados 42 mortos e 1.138 novos casos, o presidente abandonou o discurso da “histeria e pânico” que marcou o pronunciamento anterior. Disse que os efeitos das medidas não podem ser piores do que a doença que visam combater. “Minha preocupação sempre foi a de salvar vidas, tanto aquelas ameaçadas pela pandemia quanto pelo desemprego”.
O presidente voltou a comparar sua abordagem àquela feita pelo diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus. Bolsonaro citou um trecho do discurso do dirigente da OMS em que ele lembra sua origem pobre para se dizer preocupado com aqueles que precisam trabalhar para ganhar a vida.
Omitiu, no entanto, que este trecho foi precedido pela ponderação de Ghebreyesus de que os governos, ao adotarem medidas para restringir a circulação, devem garantir apoio às pessoas que perderam renda e aos mais velhos e vulneráveis.
Bolsonaro reproduziu um trecho do discurso do dirigente da OMS - “toda vida importa” - para se contrapor à sua própria declaração:
“Alguns vão morrer? Vão morrer, ué, lamento.” Insistiu na comparação a despeito de o diretor-geral da OMS ter esclarecido que não corroborara com o fim do confinamento, mas apenas apelara à sensibilidade dos governantes.
Bolsonaro citou medidas como a liberação de R$ 600 para trabalhadores informais, ainda pendente de sanção presidencial, linhas de crédito para empresas, além do adiamento no reajuste dos medicamentos e do pagamento das dívidas de Estados e municípios.
Na mão contrária à adotada há apenas uma semana, quando confrontara governadores e prefeitos pelo isolamento, o presidente conclamou a união de todas as autoridades para salvar vidas e elogiou a atuação dos profissionais de saúde e de atividades essenciais.
O discurso marca uma inflexão na postura. Os panelaços durante o pronunciamento nas grandes cidades, porém, sugerem que Bolsonaro demorou muito para voltar atrás e terá dificuldade em reconquistar a confiança da população.
Andrea Jubé: Senador comprovou. 'Não é gripezinha'
Senadora Kátia Abreu critica “arroubos” de Bolsonaro
Quando embarcar para Campo Grande no fim de semana, o senador Nelsinho Trad (PSD-MS) terá completado 24 dias longe da esposa, Keilla, e da filha de seis anos, após cumprir a jornada de recuperação da infecção pelo coronavírus.
Ele é um dos recuperados num cenário desolador de 159 mortos e 4.579 brasileiros infectados, segundo dados de ontem do Ministério da Saúde. À coluna, Trad contradisse o presidente Jair Bolsonaro: “Só lhe asseguro uma coisa, isso não é gripezinha, é de arrebentar a boca do balão!”
Médico de formação, e primo-irmão do ministro Luiz Henrique Mandetta - que foi seu secretário de Saúde na Prefeitura de Campo Grande - Nelsinho Trad é defensor incondicional da política de isolamento social e exorta Bolsonaro a seguir as orientações do comandante da Saúde.
“Muita calma nessa hora: problemas na economia surgirão, fazendo ou não o isolamento social, mas será possível reagir a eles no momento adequado”, pondera o senador, considerado um aliado do Palácio do Planalto. “Sou aliado do Brasil”, retifica.
Ele é um dos 23 integrantes da comitiva que acompanhou Bolsonaro na viagem aos Estados Unidos no começo do mês e contraiu o vírus.
Trad revelou que teve febre alta e sentiu muito cansaço. “A febre não baixava, ficava em 38,5º, mesmo com a dipirona”, relembrou. “Isso é o sinal amarelo, foi quando eu assustei”. O médico o encaminhou para o hospital e ele passou cinco dias internado na unidade do Sírio Libanês, em Brasília, dois deles na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Trad e Mandetta integram a mesma família tradicional na política do Mato Grosso do Sul: o pai do senador é irmão da mãe do ministro. A parceria entre ambos vigorou pelos oito anos em que Trad comandou a Prefeitura de Campo Grande. Ele ressalva que Mandetta não foi nomeado pelos laços consanguíneos, mas por indicação das entidades médicas locais.
Trad é urologista, e Mandetta, ortopedista. Nenhum deles é infectologista, mas na prefeitura, enfrentaram epidemias complexas: dengue em 2006, Sars e leishmaniose. “Assim como o presidente Bolsonaro ouve o alerta dos economistas, ele deve escutar o ministro da Saúde, porque o Mandetta não está tirando isso [medidas de isolamento] da cabeça dele, é ciência, não é achismo”.
Mesmo assim, Trad contemporizou a escapada do presidente no domingo, em Brasília, quando deliberadamente se expôs, bem como aos populares com quem interagiu. “São os rompantes dele”. Para o senador, Bolsonaro está agindo como um “rádio que não está sintonizando bem”. Mas se ele deixar cada auxiliar atuar no seu quadrado, acredita que a crise possa ser controlada.
Bolsonaro violou a quarentena imposta por decreto do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), e saiu às ruas para circular entre comerciantes e ambulantes, estimulando-os a retornar ao trabalho apesar das medidas restritivas, que vêm sendo recomendadas não apenas pelo Ministério da Saúde, mas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Para assegurar a cura, Trad diz que seguiu “rigorosamente e disciplinadamente” o protocolo médico. Receita administrada, lembra ele, por países como Japão e Coreia do Sul, onde a epidemia tem sido contida. “Nesses países, a autoridade sanitária é respeitada, não tem ninguém querendo sair da linha”, comparou.
Trad não trocou dicas com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), de quem é próximo, e que também agonizou na cama com o vírus nas duas últimas semanas.
“A recuperação dele [Alcolumbre] está boa, mas não fico ligando”. Trad revela que o isolamento induz o doente a um modo de introspecção. “Cultivamos o exercício de ficar quietos”.
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A senadora Kátia Abreu (PP-TO) não foi infectada pelo coronavírus, mas é como se sentisse na pele cada sintoma da enfermidade que atingiu há cerca de uma semana seu filho do meio, o empresário Iratã, de 34 anos.
Ele teve muita tosse, sentiu-se febril, mas com pouca falta de ar. A senadora reconhece que o filho não observou as medidas restritivas, e agora encontra-se em total isolamento em seu quarto, na residência da família em Palmas.
“Como muitos jovens, achou que não se contaminaria”, lamentou a senadora. Ao contrário do que tem afirmado o presidente Jair Bolsonaro, as estatísticas mostram que no Brasil o vírus tem atacado adultos com menos de 50 anos com a mesma fúria com que dizimou populações de idosos na Itália e na Espanha.
Kátia dispensou os empregados domésticos e assumiu pessoalmente os cuidados com o filho, inclusive o preparo das refeições e a higienização das roupas. Próxima ao governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), que é médico, ouviu dele a advertência de que todos deveriam sair da casa, isolando o paciente. Mas ela desobedeceu o amigo: “E quem vai cuidar dele? Não desejo para mãe nenhuma a angústia pela qual estou passando”, desabafou. ”Qualquer mãe que passe pelo que estou passando não exclui as possibilidades mais trágicas”.
Embora distante, Kátia tem mantido contato telefônico diário com o vice-presidente do Senado, Antonio Anastasia (PSD-MG), e com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), sobre as ações do Congresso para mitigar os efeitos da pandemia. Ela vai propor um projeto para que os pacotes de internet de quem não puder pagá-los não sejam cortados, para que as pessoas não deixem de se informar sobre a pandemia.
Kátia condenou o tour de Bolsonaro no fim de semana pelas ruas do Distrito Federal. “Ele agiu com deslealdade com a população. As pessoas têm medo de perder o emprego, mas têm medo de perder a vida também”, argumentou.
Kátia diz que na sexta-feira, quando o governo apresentou o pacote de socorro às empresas para garantir o pagamento dos salários sem demissões, os parlamentares avaliaram que o cenário estava pacificado. “E agora ele [Bolsonaro] teve esse arroubo, isso não é normal”, criticou. “Precisamos combater o vírus, não o presidente!”
Bruno Carazza: Um novo 7 a 1?
Bolsonaro abandona a retranca e parte para o tudo ou nada
No dia 07 de julho de 2014, véspera da semifinal da Copa do Mundo de futebol, o técnico Felipão realizou o último treino tático antes do confronto com a Alemanha. Naquele dia, após analisar os jogos anteriores dos adversários, os auxiliares técnicos Roque Júnior e Gallo haviam entregue ao comandante da equipe um relatório. Comparando os dados e as estatísticas dos dois times, os ex-jogadores sugeriam que o Brasil deveria encarar os alemães numa postura mais defensiva. Sem Neymar, machucado, a ideia era reforçar o meio-campo, deixando Fred no banco e escalando Paulinho e Willian em seus lugares.
A tese de Roque Júnior e Gallo era compactar a defesa e o meio-campo da seleção brasileira para tentar conter a velocidade e as rápidas trocas de passe entre Schweinsteiger, Kroos, Özil, Müller e cia. Cabeça-dura, Felipão não acatou a sugestão. Quando entrou no gramado, o Brasil veio com uma formação ofensiva, com Hulk, Fred e o jovem Bernard no ataque. Com 30 minutos de bola rolando os alemães já venciam por 5x0, e o resto da história o mundo todo conhece.
No dia seguinte ao maior vexame de nossa história esportiva, o técnico Luiz Felipe Scolari admitiu que nunca havia treinado a seleção com a escalação que levou a campo no Mineirão. A opção por Bernard, o garoto que tinha “alegria nas pernas”, seria uma tentativa de surpreender o técnico alemão Joachim Löw. Questionado por que não havia testado os titulares com Bernard na véspera do jogo, o técnico justificou-se dizendo que sua estratégia era “despistar” os rivais.
Jair Bolsonaro se encontra diante do adversário mais perigoso desde que assumiu o comando do país. Embora nas entrevistas o presidente sempre tenha minimizado a sua força, a verdade é que para chegar até aqui o coronavírus derrubou economias muito mais poderosas do que a nossa.
Acompanhando com atenção as estatísticas e as tentativas das outras nações de conterem o rápido ataque da covid-19, o auxiliar Luiz Henrique Mandetta sugeriu que o Brasil enfrentasse o rival fechado na defesa, buscando ganhar tempo nos momentos iniciais da partida até que o sistema de saúde conseguisse equilibrar o jogo.
Jogar na retranca, porém, não é a tática preferida de Bolsonaro. Insuflado por parcela importante da torcida, o ex-capitão planeja mudar o esquema de jogo e ser mais arrojado na movimentação do seu time. Em lugar do conservador isolamento horizontal proposto por Mandetta, Bolsonaro tem ensaiado jogadas com Paulo Guedes para implantar em breve um inovador lockdown vertical. Mas alterar a estratégia com a bola rolando pode ser extremamente arriscado.
Na “entrevista” concedida à XP Investimentos na noite de sábado (28/03), Paulo Guedes apresentou as medidas desenhadas em sua prancheta para conduzir a economia até a recuperação da atividade.
No pacote de aproximadamente R$ 750 bilhões (em torno de 4,8% do PIB), estão incluídos a injeção de liquidez por meio da redução das exigências de compulsórios e outras regras prudenciais do Banco Central (R$ 200 bilhões) e empréstimos com taxas reduzidas a serem concedidos pela Caixa, BNDES e Banco do Brasil (R$ 150 bilhões).
Ainda com o objetivo de tentar evitar o estrangulamento do capital de giro, Guedes confirmou a linha de crédito especial do Bacen para pequenas e médias manterem os salários em dia nos próximos dois meses (R$ 40 bilhões) e a complementação, pelo Tesouro, da folha de pagamentos das empresas (R$ 50 bilhões).
Na linha de socorro da população mais pobre, o Ministério da Economia já anunciou o reforço do Bolsa-Família, a antecipação do abono salarial e do 13º salário para aposentados e pensionistas, a transferência dos valores não sacados do PIS/Pasep para o FGTS (R$ 147,7 bilhões) e o auxílio emergencial de R$ 600 mensais (mais R$ 50 bilhões). Para fechar a conta, Paulo Guedes ainda sinalizou a rolagem de dívida para Estados e municípios, acrescendo mais R$ 88 bilhões ao pacote.
Tendo perdido um precioso tempo negando a força do adversário e o seu poder de ataque sobre a economia brasileira, o time de Bolsonaro enfrentará a falta de ritmo de jogo para tentar virar o placar contra o coronavírus. Até chegarem ao bolso de cidadãos e ao caixa das empresas, as medidas anunciadas por Paulo Guedes precisam ser articuladas em diferentes níveis. O auxílio emergencial, por exemplo, ainda depende de aprovação no Senado e sanção presidencial, assim como a ajuda para Estados e municípios, que requer lei complementar para ser efetivada - sem falar na ausência de previsão legal ou regulamentar para a linha de crédito do Banco Central e as garantias do Tesouro para a folha de pagamentos.
No caso das transferências para a população mais pobre, a equipe de Guedes terá que atuar improvisada numa posição para a qual não está acostumada a jogar. Tendo passado o primeiro ano do governo desarticulando programas sociais e reduzindo sua dotação orçamentária, terá poucos dias para zerar a fila do Bolsa-Família e driblar a burocracia governamental e da Caixa Econômica Federal para fazer o dinheiro chegar a pessoas que não estão abrigadas pelo INSS e nem inscritas no Cadastro Único.
Atordoado com a velocidade com que a covid-19 envolve seu governo, Bolsonaro se vê tentado a seguir a estratégia de Felipão no fatídico “mineiraço” de 08/07/2014. Desprezando os dados, a observação do que acontece no restante do mundo e a recomendação dos especialistas, o presidente deseja partir para o tudo ou nada do decreto do fim do isolamento social. Com todas as nossas fragilidades expostas, assistiremos novamente, estupefatos, a uma goleada causada pelas tabelas mortais entre o colapso do sistema de saúde, de um lado, e a recessão econômica, na outra ponta.
A grande diferença entre o fiasco de Felipão e a tragédia anunciada de Bolsonaro, porém, será que o choro da derrota vai se revelar muito mais dolorido do que um simples vexame num campeonato de futebol.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
César Felício: Quem sobrevive
Na pandemia, política e compaixão são água e óleo
Política e compaixão são universos que não se misturam, está claro, assim como economia e comiseração. Em uma calamidade como a que vivemos, fica evidente o brutal “trade-off”: a classe política deve tolerar quantas mortes na pandemia? É aceitável que os mais vulneráveis morram para que a engrenagem gire? Qual o custo social da parada da engrenagem?
Não há desavisados neste jogo e as opções de cada um dos protagonistas têm em mente o equilíbrio das forças que buscam o poder. Sobre o comportamento do presidente da República, há quem veja em sua atuação intenções preocupantes.
Para o filósofo Marcos Nobre, presidente do Cebrap, a perspectiva eleitoral deixou de ser o plano A na estratégia política do presidente Jair Bolsonaro para se manter no poder. Nobre acredita que o presidente concluiu que a pandemia do coronavírus comprometeu definitivamente o cenário econômico para 2022.
A depressão econômica retira o favoritismo de uma candidatura à reeleição. Bolsonaro teria passado então a apostar no caos social, eliminando os instrumentos de controle da pandemia que tentam ser impostos, como forma de estimular o surgimento de um cenário que permita a ruptura institucional.
“Bolsonaro não está pensando mais em eleição para se manter no poder. Ele acha que com o caos há um ambiente para as Forças Armadas interferirem. Se há algo que as Forças Armadas não toleram é o caos”, aposta Nobre.
Segundo o filósofo, em meio ao tumulto do coronavírus o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), surgiu em cena para aumentar o grau de confusão. Ele nota que é nítido que o tucano se movimenta para tentar assumir um papel de liderança entre os governadores e avoca para si o figurino de antibolsonarista por excelência. Ou seja, busca garantir a polarização que lhe interessa em 2022 agora em 2020.
Na visão de Nobre, a manobra de Doria só favorece Bolsonaro. Partir da premissa que haverá 2022 quando o adversário já não trabalha mais com este cenário seria um equívoco. A antecipação da disputa eleitoral faz com que o tucano perturbe o surgimento de uma grande coalizão nacional que imponha a Bolsonaro o isolamento vertical de si próprio e conduza o país a uma saída institucional.
Esta é uma visão que suscita diversas indagações. A primeira é se Bolsonaro de fato já não trabalha mais com perspectiva eleitoral. Não é apenas no Brasil que existe uma tensão entre o governo central e as administrações regionais, e nem apenas aqui há uma discussão sobre a extensão da política de confinamento. Ela se repete em outras partes.
A dinâmica é semelhante: o governo central parece mais preocupado em não paralisar a economia do que evitar mortes a qualquer custo. Os governos regionais pressionam por um fechamento total e cobram socorro da administração central. A mensagem subliminar é política: quem vai pagar a conta eleitoral do desastre econômico que se seguirá à catástrofe sanitária?
Presidentes como Bolsonaro, Trump e Lopez Obrador querem passar esta conta para a oposição. Nem todos têm US$ 2 trilhões para injetar na economia. Em países sem margem fiscal, como o Brasil, o abismo é mais fundo.
Aliás, melhor seria dizer que, no Brasil, vale passar a conta para qualquer um, inclusive para aliados. Foi o golpe que o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, acusou anteontem, ao anunciar seu rompimento com Bolsonaro. Ele disse textualmente que o presidente procurava criar uma situação “como se amanhã o desemprego fosse responsabilidade das pessoas que estão contendo o fluxo”, ou seja, os governadores. A transferência de responsabilidade, portanto, pode embutir um cálculo eleitoral.
Outro aspecto a se considerar é qual a força que Bolsonaro teria para levar a um fechamento de regime, em meio a uma situação de caos social e econômico. O fato do vice-presidente ser um general reformado dá às Forças Armadas maior tranquilidade para aceitar uma decisão do mundo político de arrumar um pretexto qualquer para afastar Bolsonaro, dentro dos parâmetros da lei do impeachment.
O apoio do establishment empresarial a Bolsonaro está diretamente ligado à capacidade do presidente de implementar as reformas prometidas pelo mercado. É algo que pode desaparecer como que por encanto se por acaso surgir uma alternativa real de poder, já que no cenário presente a capacidade do presidente de promover reformas naturalmente diminuiu.
O presidente parece dispor do apoio incondicional das igrejas evangélicas, muitas das quais também cerraram fileiras e ocuparam ministérios nas gestões de Lula e Dilma. Talvez seja um sustentáculo suficiente para dar musculatura eleitoral a um governante que vai se tornando impopular, mas pouco para segurar na cadeira um presidente que eventualmente entrar em uma espiral de ingovernabilidade.
Finalmente há os ativistas da Internet, todos muito ligados a uma espécie de negacionismo da política, da mídia, da ciência, de que tudo que se tornou conhecimento doutrinário. Empoderam o presidente e o presidente os empodera, dando likes, retuítes e postagens aos vídeos e WhatsApps insanos que recebe. Olavo de Carvalho é o exemplo mais notório, mas não o único, e talvez sua influência junto ao presidente tenha sido superestimada. São a base popular sólida de Bolsonaro, a ligação entre o líder e as massas. São capazes de segurar o presidente? A moral da história é que, querendo, Bolsonaro talvez não consiga golpear as instituições, mesmo em um ambiente de balbúrdia.
Sobre Doria, é fato que o governador paulista acelerou a estratégia de antecipar a disputa eleitoral. Não tanto por sua presença diuturna na mídia nesta fase de combate à pandemia - os demais governadores também estão fazendo isso -, mas pelo grau de antagonismo em relação ao presidente. Foi de Doria que partiu a iniciativa de colocar o conflito com Bolsonaro em discussão, na última reunião do presidente com os governadores. Ele parece ter no horizonte sólidas condições de forjar uma aliança do PSDB com o DEM e o PSD nas eleições de 2022.
Doria continua emparedado pela questão de sempre - ninguém se sente sócio de seu projeto no mundo político e empresarial, nem seu próprio partido.
A disputa política por aí prosseguirá, subjacente, enquanto a estatística de mortos pela covid-19 desenvolver a sua espiral de subida. Ela, com certeza, sobreviverá à pandemia.
Ribamar Oliveira: EUA podem emitir moeda. E o Brasil?
Governo brasileiro vai apelar para a venda de reservas cambiais?
Em uma guerra, a primeira vítima é a verdade, já dizia, em 1917, o senador americano Hiram Johnson (alguns atribuem a frase ao grande dramaturgo grego Ésquilo).
Parodiando o senador, em uma recessão, a primeira vítima são os impostos. Quando os empresários começam a encontrar dificuldades em seus negócios, com retração acentuada das vendas, a primeira coisa que fazem é deixar de cumprir suas obrigações tributárias. Este é o principal problema que os governos estaduais, municipais e federal vão enfrentar nos próximos meses, pois, com a queda da receita tributária, terão muito menos recursos para realizar as ações de combate à pandemia do novo coronavírus.
Terão que contar com a ajuda financeira da União. E de grande monta. Mas e o governo federal, onde encontrará recursos?
O que está no horizonte é uma retração brutal da atividade econômica no Brasil e no mundo, provocada, principalmente, pela quarentena a que está sendo submetida grande parte da população. Setores industriais importantes estão parando. E, para completar, o comércio está fechado. Como observou uma importante fonte do governo, “quando o setor de serviços para, acabou”. A expectativa, portanto, é de forte queda da arrecadação federal, estadual e municipal. Em que proporção isso vai acontecer, ainda é uma incógnita.
A receita tributária registrada em março não será um bom indicador, porque os pagamentos de tributos têm certa defasagem. A maior parte dos tributos é paga no mês seguinte ao da competência.
O anexo de riscos fiscais, da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) válida para este ano, dá algumas informações para se avaliar o impacto da recessão sobre a receita tributária. O anexo informa que a variação de 1 ponto percentual do PIB tem impacto de 0,13% na receita previdenciária e de 0,64% nos tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal. Isto significa que para cada 1 p.p. de queda do PIB, a arrecadação com tributos será reduzida em R$ 7,1 bilhões. A receita do Orçamento foi estimada com base em um crescimento de 2,3% do PIB. Mas isso é só o começo.
Há um efeito também da inflação sobre a receita tributária. Segundo o anexo da LDO, uma variação de 1 ponto percentual na inflação tem impacto de 0,13% na receita previdenciária e de 0,61% nas demais receitas administradas pela SRF. Assim, se a inflação ficar 1 p.p. menor que a taxa usada na estimativa da receita, ela ficará R$ 6,8 bilhões abaixo. Por causa da recessão, a inflação ficará abaixo da prevista no Orçamento, que foi de 3,53%, acumulada neste ano.
Um dos principais efeitos da retração da atividade será o aumento do desemprego. As empresas já começaram a demitir, pois estão sem receita para pagá-los. Uma variação de 1 ponto percentual na massa salarial (que é a soma de todos os salários pagos durante o ano) tem impacto de 0,80% na receita previdenciária e de 0,06% nas demais receitas administradas pela SRF. Uma queda de 1 p.p. na massa salarial traria redução de R$ 4,1 bilhões nas receitas, segundo o anexo da LDO.
Se a taxa de câmbio e a taxa de juros variarem em 1 p.p., a arrecadação sofrerá um impacto de 0,10% e de 0,03%, respectivamente. Então, com uma subida de 1 p.p. do câmbio e dos juros, a receita poderá subir R$ 1,3 bilhão. No momento atual, a taxa de câmbio está em alta e a taxa de juros está em baixa.
Haverá perdas também nas chamadas receitas não administradas. O anexo da LDO não estimou, por exemplo, o efeito da queda dos preços do petróleo na receita com royalties do petróleo, que passou a ser essencial para alguns Estados e municípios. A previsão oficial de R$ 68 bilhões para esta receita neste ano foi feita com base em uma cotação média de US$ 58,96 por barril de petróleo. O preço internacional está abaixo de US$ 30. Esta arrecadação terá forte queda neste ano.
No caso das concessões de serviços públicos, o problema é ainda mais grave. O governo programou para este ano uma arrecadação de R$ 16 bilhões com a privatização da Eletrobras. Hoje, é certo que essa receita não ingressará nos cofres do Tesouro, mesmo porque não há clima no mercado para uma privatização. Outras receitas de concessão também não se realizarão.
Esses são os efeitos negativos nas receitas primárias federais. O anexo da LDO não considera, nem poderia, os efeitos da recessão na arrecadação do ICMS, que é um tributo estadual, nem na do ISS, que é municipal. O impacto negativo nos dois impostos será muito forte, embora ainda não se tenha uma estimativa oficial.
Quanto maior forem a recessão econômica e o aumento do desemprego, maior será a redução das receitas tributárias.
O Valor teve acesso a uma projeção preliminar que aponta para perda de R$ 70 bilhões para a arrecadação do governo federal neste ano, na comparação com o que estava programado no Orçamento. Mas não são conhecidas as variáveis utilizadas para se chegar a esta cifra.
O presidente Jair Bolsonaro já anunciou que o governo federal vai compensar os fundos de participação dos Estados e dos municípios (FPE e FPM) pela queda prevista das receitas do Imposto de Renda e do IPI, que compõem os fundos. O governo dará R$ 4 bilhões por mês ao FPE e ao FMP, durante quatro meses. Os governadores já disseram que é pouco.
Haverá também perda de receitas financeiras para o governo federal, pois o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou alguns Estados a não pagarem suas dívidas com a União. Depois dessa decisão, Bolsonaro autorizou uma moratória de seis meses nos pagamentos dos débitos estaduais com a União. Esse prazo, no entanto, não será respeitado, pois os governadores ingressarão no STF pedindo que o não pagamento seja autorizado enquanto durarem os efeitos negativos da epidemia sobre as suas receitas e as suas despesas.
O custo fiscal da crise provocada pelo coronavírus será imenso. Alguns especialistas chegam a falar em mais de R$ 500 bilhões. O governo ainda não divulgou uma previsão. O montante dependerá da duração da pandemia e da duração da recessão econômica.
De onde o governo federal vai tirar os recursos para compensar as perdas das receitas tributárias, para custear as despesas adicionais que será obrigado a fazer na área da saúde, para sustentar os programas de ajuda financeira a trabalhadores informais e às pessoas mais vulneráveis da população e, ao mesmo tempo, ajudar financeiramente Estados e municípios? Para custear o seu pacote de mais de US$ 2 trilhões, o governo americano vai colocar títulos no mercado para captar recursos e, quase certamente, emitir dólares, que é uma moeda aceita mundialmente. O governo brasileiro também vai emitir títulos para arrecadar dinheiro. Vai apelar também para a emissão de moeda? Ou vender reservas?
Maria Cristina Fernandes: A carta da renúncia
A costura de uma renúncia, como saída, passa pela anistia aos filhos
A tese do afastamento do presidente viralizou nas instituições. O combate à pandemia já havia unido o país, do plenário virtual do Congresso Nacional ao toque de recolher das favelas. Com o pronunciamento em rede nacional, o presidente conseguiu convencer os recalcitrantes de que hoje é um empecilho para a batalha pela saúde da nação. Se contorná-lo já não basta, ainda não se sabe como será possível tirá-lo do caminho e, mais ainda, que rumo dar ao poder em tempos de pandemia. A seguir a cartilha do presidiário Eduardo Cunha, seu afastamento apenas se dará quando se encontrar esta solução. E esta não se resume a Hamilton Mourão.
Ao desafiar a unanimidade nacional, no uniforme de vítima de poderes que não lhe deixam agir para salvar a economia, Bolsonaro já sabia que não teria o endosso das Forças Armadas para uma aventura que extrapole a Constituição. Era o que precisaria fazer para flexibilizar as regras de confinamento adotadas nos Estados. Duas horas antes do pronunciamento presidencial, o Exército colocou em suas redes sociais o vídeo do comandante Edson Leal Pujol mostrando que a farda hoje está a serviço da mobilização nacional contra o coronavírus.
Pujol falou como comandante de uma corporação que tem a massa de seus recrutas originários das comunidades mais pobres do país, hoje o foco de disseminação mais preocupante para as autoridades sanitárias. Disse que agirá sob a coordenação do Ministério da Defesa. Em nenhum momento pronunciou o presidente. Moveu-se pela percepção de que uma tropa aquartelada hoje é mais segura que uma tropa solta. Na mão inversa do trem desgovernado do discurso presidencial daquela noite.
Quando já estava claro que descartara o papel de guarda pretoriana, Pujol reforçou a importância do combate ao coronavírus: “Talvez seja a missão mais importante de nossa geração”. Vinte e quatro horas depois, o vídeo ultrapassava 500 mil visualizações, mais do que o dobro do efetivo do Exército.
O distanciamento contaminou os ministros militares com assento no Palácio do Planalto. “Não quero ter minha digital nisso”, comentou um deles ao perceber o rumo provocativo que o pronunciamento da noite de quarta-feira teria. Deixou o Palácio antes da gravação, conduzida sob o comando dos filhos e da milícia digital do bolsonarismo.
A insistência do presidente na tese esticou a corda com os governadores e com o Congresso, que amanheceu na quarta-feira colocando pilha na saída do ministro Luiz Henrique Mandetta. A pressão atingiu o pico do dia com o rompimento do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), com o presidente. Aliado de primeira hora de Bolsonaro, presença mais frequente, entre seus pares, nas solenidades do Palácio do Planalto, Caiado foi um dos principais padrinhos de Mandetta, um deputado do Mato Grosso do Sul que não disputou em outubro de 2018 porque temia não se reeleger.
O ministro negaria a demissão num entrevista em que citou Caiado, mas não Bolsonaro. O Congresso mantinha a aposta na saída de Mandetta como mais um tapume no isolamento do presidente quando João Doria, na reunião de governadores com o presidente, partiu para o confronto. O discurso de palanque do governador de São Paulo não é unanimidade entre os envolvidos em busca de uma solução de consenso, especialmente os da farda, mas sua ação deliberada para levar os governadores a recusar interlocução com o presidente, caiu como uma luva para a estratégia de levar Bolsonaro ao limite do isolamento.
Para viabilizar o enfrentamento dos governadores, o Congresso busca meios de manter o acesso dos Estados a recursos com os quais possam manter suas políticas de combate à doença, hoje confrontadas pelo Planalto. O pronunciamento acabou por frear a proposta de emenda constitucional com a qual se pretendia criar um orçamento paralelo para viabilizar as ações de Bolsonaro no combate à pandemia e calar a tecla com a qual o presidente se diz impedido de agir pelo Congresso. Cogitou-se até incluir nesta PEC instrumentos com os quais Bolsonaro poderia ter mais poderes sobre o confinamento e o confisco de insumos hospitalares, como meio de evitar o Estado de Sítio.
Ainda que Bolsonaro hoje não tenha nem 10% dos votos em plenário, um processo de impeachment ainda é de difícil de viabilidade. Motivos não faltariam. Os parlamentares dizem que Bolsonaro, assim como a ex-presidente Dilma Rousseff, já não governa. Se uma caiu sob alegação de que teria infringido a Lei de Responsabilidade Fiscal, o outro teria infrações em série contra uma “lei de responsabilidade social”. Permanece sem solução, porém, o déficit de legitimidade de um impeachment em plenário virtual.
Vem daí a solução que ganha corpo, até nos meios militares, de uma saída do presidente por renúncia. O problema é convencê-lo. A troco de que entregaria um mandato conquistado nas urnas? O bem mais valioso que o presidente tem hoje é a liberdade dos filhos. Esta é a moeda em jogo. Renúncia em troca de anistia à toda tabuada: 01, 02 e 03. Foi assim que Boris Yeltsin, na Rússia, foi convencido a sair, alegam os defensores da solução.
Não faltam pedras no caminho. A primeira é que não há anistia para uma condenação inexistente. A segunda é que ao fazê-lo, a legião de condenados da Lava-Jato entraria na fila da isonomia, sob a alcunha de um “Pacto de Moncloa” tupiniquim. A terceira é que o Judiciário, agastado com o bordão que viabilizou o impeachment de Dilma (“Com Supremo com tudo”), resistiria a embarcar. E finalmente, a quarta:
Quem teria hoje autoridade para convencer o presidente? Cogita-se, à sua revelia, dos generais envolvidos na intervenção do Rio, PhDs em milícia.
A única razão para se continuar nesta pedreira é que, por ora, não há outra saída. Na hipótese de se viabilizar, o capitão pode estar a caminho de encerrar sua carreira política como começou. Condenado por ter atentado contra o decoro, a disciplina e a ética da carreira militar, Bolsonaro foi absolvido em segunda instância. Em “O cadete e o capitão” (Todavia, 2019), Luiz Maklouff, esboça a tese de que a absolvição foi a saída encontrada para o capitão deixar a corporação.
Em seguida, o Bolsonaro disputaria seu primeiro mandato como vereador no Rio. Trinta e quatro anos depois, a borracha está de volta para esfumaçar o passado. Desta vez, com o intuito de tirá-lo da política.
Cristiano Romero: Crise expõe nossas vergonhas
Não há mais tempo de debater se a política pode ser heterodoxa
A taxa de desemprego da Noruega sempre foi um não assunto para quem acompanha o desempenho da economia mundial. Foi assim até ontem, quando ficamos sabendo que a taxa de desemprego do país nórdico chegou a impensáveis 10,9%, a mais alta em 80 anos. A última vez em que o desemprego chegou perto disso na Noruega foi durante a Grande Depressão, na década de 1930, quando o capitalismo sofreu sua primeira crise global.
A notícia de ontem assombrou analistas, investidores e autoridades mundo afora pelas seguintes razões: apenas uma semana atrás, a taxa de desocupação na Noruega estava em 5,3%, menos da metade do que está agora. Ter 5,3% de sua força de trabalho procurando emprego também não é comum naquele país.
A queda acentuada do preço do petróleo, principal produto exportado pela Noruega, já vinha motivando demissões nos dois primeiros meses do ano. Ainda assim, no fim de fevereiro, a taxa de desemprego, que é apurada semanalmente, era de 2,3%, muito provavelmente uma situação de pleno emprego. Portanto, em apenas três semanas, o número de desempregados de um dos países mais ricos do planeta quase quintuplicou.
Ao divulgar os números, a Agência do Trabalho e do Bem-Estar do governo norueguês informou que o Leviatã, a bestafera que emerge das consequências da pandemia do covid-19, o novo coronavírus, varreu o país nórdico nas últimas duas semanas. Nesse período, tudo ou quase tudo fechou no país, principal estratégia que governantes responsáveis têm adotado para conter o avanço do maldito vírus.
A Noruega é o primeiro país a revelar os impactos catastóficos do covid-19 na economia. Os outros virão em angustiante sequência e é impossível prever a dimensão do tombo que todos, obrigatoriamente, tomaremos. "Esta crise é muito mais aguda e impactará a todos indistintamente", diz Mário Torós, ex-diretor do Banco Central, hoje sócio da Ibiúna Investimentos. Em 2008, o vendaval que todos julgavam o mais severo desde 1929, ele estava na cabine de comando do BC, tendo enfrentado, inclusive, um ataque especulativo que poderia ter levado nossa moeda à breca.
O cidadão norueguês entrega ao governo, em forma de tributos, mais de 40% de sua renda. O imposto sobre a renda dos viventes equivalia, em 2018, a 9,9% do Produto Interno Bruto (PIB), a mesma proporção registrada pelos Estados Unidos no ano passado. Na Noruega, vejam só, se o contribuinte achar justo pagar mais imposto do que se cobra dele, tudo bem, ele pode fazer isso. Por aqui, filantropia é feita com o chapéu alheio - por meio de dedução de imposto devido -, sendo que o chapéu, no caso, não é do doador, mas de todos os que respiram o ar do Gigante Adormecido (que há seis anos não consegue sair de seu pior pesadelo), principlmente dos pobres.
A experiência mostra que as nações que tributam mais a renda e menos o consumo _ o oposto do que se faz no Gigante do Atlântico Sul (editoriais da imprensa venezuelana costumavam nos chamar assim) - são as que prestam os melhores serviços a seus habitantes - há exceções que não desmentem a tendência, como Japão e Israel.
Não é difícil comprovar a correlação: enquanto os estudantes noruegueses têm nota ligeiramente superior à média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) no exame PISA (sigla em inglês do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), considerando os exames de matemática, leitura e ciências, os brasileiros, devido ao nosso secular descaso com educação, ocupam a penúltima colocação nos três itens _ podia ser pior porque participam do PISA apenas 40 países. Trata-se de uma nódoa que nos envergonha perante a humanidade e que não se apagou nem com a vinculação de receitas (esta, aliás, é uma das causas da tragédia) nem muito menos por meio de planos mirabolantes de políticos que passaram pela Educação. Mais de um deles imaginou que, mesmo submetendo nossos jovens ao vexame do PISA, encurtaria o caminho para chegar ao Palácio do Planalto a partir do Mnistério da Educação (MEC).
Na Noruega, o governo prevê queda da atividade econômica privada entre 10% e 15% neste semestre. Depois de decretar quarentena para tentar conter o surto do covid-19, o governo aprovou rapidamente uma série de medidas com o objetivo de amenizar os efeitos econômicos da crise para empresas e trabalhadores e o banco central jogou a taxa básica de juros a zero (0,25% ao ano, a menor da história).
O Coisa Ruim acelerou sua marcha no Brasil nos últimos cinco dias. O país da falta de urgência se assustou com as declarações do ministro da Saúde, Luiz Mandetta, prevendo colapso do sistema de saúde em abril. No rastro do capeta em forma de vírus, o Leviatã já começou a avistar suas vítimas, não por causa da saúde, mas do apocalipse econômico que se anuncia na Ilha de Vera Cruz.
Quem e quantas são? Na linha de frente, 100 milhões de brasileiros, segundo estimativa do economista Arminio Fraga. É quase metade da população. Menos da metade recebe uns trocados do elogiadíssimo programa Bolsa Família. O restante está no cadastro único, onde estão inscritos brasileiros pobres, um pouquinho menos pobres que os elegíveis do Bolsa Família, mas ainda pobres. A maioria dessas pessoas trabalha como ambulante, empregado de pequena empresa etc. Desde o último fim de semana, eles estão sem renda alguma.
A Noruega recebeu o novo coronavírus e o Leviatã com um Produto Interno Bruto (PIB) per capita que, em dezembro, era de US$ 78,33 mil. Na Ilha de Vera Cruz, somava US$ 8,9 mil em outubro de 2019, bem inferior ao seu pico (US$ 13,3 mil em 2011). Esta é sua estatística porque a maioria absoluta dos brasileiros adoraria ter renda annual de US$ 8,9 mil.
O Leviatã vai nos pegar de calça curta.