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Claudia Safatle: Estado vai investir na recuperação pós crise

Área econômica estuda o uso de reservas cambiais para financiar retomada

O plano de recuperação da economia no pós coronavírus exigirá do Estado investimentos pesados que, somados às medidas recentes de socorro às empresas e aos empregados, além do auxílio de para os trabalhadores informais, elevará substancialmente os gastos públicos. Técnicos da equipe econômica avaliam, em cálculos preliminares, que a dívida bruta poderá sair do patamar de 75,8% do PIB, registrado no ano passado, para a faixa entre 85% e 90% do PIB neste ano.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) está encarregado de preparar um plano de recuperação da economia nos moldes do Plano Marshall - que era oficialmente chamado, nos Estados Unidos, de Programa de Recuperação Europeia, que financiou a reconstrução dos países aliados nos anos que se seguiram à Segunda Guerra.

Com o esperado processo de “desglobalização”, na medida em que as economias que hoje sofrem com a pandemia devem se fechar, o governo pretende recompor as cadeias produtivas no mercado doméstico; patrocinar investimentos em infraestrutura na linha das PPP (Parcerias Público Privadas) e do PPI (Programa de Parceria de Investimentos); e reforçar a rede de proteção social para socorrer os novos desempregados.

Para financiar a recuperação da economia o governo pensa, sim, em usar um pedaço das reservas cambiais. Em recente conversa por videoconferência com um grupo de senadores, o ministro da Economia, Paulo Guedes, mencionou a possibilidade de vender uns US$ 70 bilhões das reservas internacionais para dispor de mais de R$ 350 bilhões, que ajudariam substancialmente a reduzir a conta do endividamento público gerado pela pandemia do coronavírus. Se a dívida chegar ao patamar de 90% do PIB, terá crescido em um ano pouco mais de R$ 1 trilhão.

Aliás, Guedes salientou que no ano passado vendeu US$ 30 bilhões das reservas e ninguém comentou ou notou.

Quem torce o nariz para essas conversas é o presidente do Banco Central, Roberto Campos, que, até por dever de ofício, não gosta de misturar política fiscal com a gestão monetária. As reservas são um ativo do BC cujo passivo são os títulos públicos emitidos para esterilizá-las, que hoje têm um custo mais baixo dada a queda da taxa básica de juros (Selic).

Os técnicos que defendem o uso de parte razoável das reservas (que totalizavam, ontem, US$ 341,2 bilhões) também não apreciam muito a ideia, mas “a dimensão da crise é assustadora e exigirá medidas excepcionais”, comentou uma fonte da área econômica.

Teme-se, muito, pelo risco da economia brasileira entrar em depressão. Pior do que a recessão, a depressão econômica caracteriza-se por um círculo vicioso de queda da renda, contração do crédito, do investimento, do emprego. Foi o que aconteceu nos anos 30, com a Grande Depressão, uma crise que começou com o “crash” na bolsa de Nova York que contaminou a economia mundial e cujo círculo vicioso só foi rompido com pesados investimentos feitos pelo Estado.

Hoje, na visão de economistas oficiais, há uma crise sistêmica, que atingiu em cheio os Estados Unidos - que continuam sendo a locomotiva do mundo. As projeções para o nível de atividade nos EUA vão de uma contração de 6% a até 20%, citou uma fonte.

“O pessoal não está se dando conta de que o estrago na economia vai ser muito grande, rompendo cadeias produtivas no mundo”, completou. Nesse meio, o Brasil tem na agricultura um trunfo. É o único setor que poderá crescer neste ano. A expectativa é de uma expansão de 2,5%.

Na mesma videoconferência que teve com senadores na quinta-feira da semana passada, o ministro da Economia mencionou como possível uma recessão no país, com queda do PIB da ordem de 4%, a depender da duração do confinamento e da paralisia na atividade econômica.

Há quem considere esse prognóstico de Guedes já bem defasado “A devastação é gigantesca”, comentou a fonte do governo.

O ex-presidente do BC Arminio Fraga, em uma live na noite de quarta-feira, disse que o país deverá ter, neste ano, “uma grande recessão”, com queda de até 8% do PIB.

Obscena é a leitura da edição de terça feira do “Diário Oficial do Estado Rio de Janeiro”, que publicou a lei 8.793, sancionada pelo governador Wilson Witzel, autorizando o governo a alterar o Orçamento de 2020 para permitir revisão das remunerações dos servidores estaduais. Ainda não há informações sobre quanto vai custar o aumento de salários dos servidores do Rio, informa o colunista do Valor Ribamar Oliveira, na edição de ontem do jornal.

É necessário lembrar que outros entes da federação concederam, recentemente, reajuste salarial a seus servidores, como foi o caso de Minas Gerais, que, tal como o Rio, é um Estado falido que busca ajuda junto ao governo federal para pagar suas contas, inclusive as dos aumentos de salários.

Em meio a mais grave pandemia que o Brasil já viveu, com previsões catastróficas de recessão na economia por causa da paralisação das atividades em função do combate ao coronavírus, governadores quebrados, pressionando o Tesouro Nacional por mais ajuda, querem espaço no orçamento para aumentar salários dos servidores!.

Isso soa como afronta aos trabalhadores do setor privado que estão tendo que aceitar 25%, 50% e até 70% de redução dos salários em troca da permanência no emprego. Já foram assinados mais de 2,4 milhões de acordos dessa natureza desde a edição da medida provisória que autoriza a negociação direta entre empregados e empregadores e que normatiza, também, a suspensão temporária do contrato de trabalho.

Os parlamentares que votaram a favor da aprovação do plano de socorro a Estados e municípios, pela União, num valor de R$ 100 bilhões, sem qualquer condicionalidade, deveriam trabalhar, agora, para colocar uma cláusula nessa negociação, proibindo os governadores de aumentar salários por pelo menos um par de anos.

São os “caronavírus”, uma doença endêmica no Brasil, conforme cunhou o economista Marcos Mendes em artigo recente.


Cristiano Romero: A Grande Devastação

No exterior, pessimismo em relação ao Brasil é impressionante

Ainda é muito cedo para fazer projeções confiáveis sobre o estrago que a pandemia do novo coronavírus provocará nas economias, mas, lá fora, o pessimismo em relação ao Brasil é impressionante. A Economist Intelligence Unit projetou contração de 5,5% para o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro neste ano, em linha com a previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgada ontem, de queda de 5,3%. O número do Institute of International Finance, entidade que representa os maiores bancos do mundo, é menos pessimista - recuo de 1,8%.

No último boletim Focus, elaborado pelo Banco Central (BC) com base nas projeções feitas pelo mercado, a mediana das projeções prevê queda de 1,96% para o PIB do país em 2020, bem maior que a mediana das opiniões colhidas há uma semana (-1,18%). “Assusta ver uma instituição muito conservadora [o FMI] prevendo contração do PIB do Brasil maior do que a visão de consenso de mercado [no país]. Além disso, a recuperação do Brasil é lenta frente aos Estados Unidos, a Alemanha e por aí vai”, disse a esta coluna o economista Nilson Teixeira, sócio-fundador da gestora de recursos Macro Capital.

De fato, o FMI prevê, em seu Panorama Econômico Mundial, que em 2021 a economia americana, depois de levar um tombo de 5,9% neste ano, crescerá 4,7% no próximo ano, enquanto o Brasil deve ter avanço de 2,9%. A Alemanha teria crescimento negativo de 7% em 2020, mas teria expansão de 5,2% no ano que vem.

Em ambientes de incerteza como o que vivemos, a chance de as previsões errarem o alvo é enorme. Em favor dos economistas, e Nilson Teixeira é um que acerta com grande frequência as suas projeções - dos 18 anos que trabalhou no banco Credit Suisse, atuou como economista-chefe durante 14 -, diga-se que os cálculos não são meros chutes. As projeções são feitas com base na assunção de uma série de dados, a partir de um cenário que considera, inclusive, eventos políticos com força suficiente para interferir no funcionamento da economia.

O problema é que a pandemia do coronavírus é um fenômeno absolutamente inesperado, que não estava nas contas de ninguém. O vírus foi descoberto na China no último dia de 2019 e, apenas 20 dias depois, já havia se disseminado com velocidade incrível por várias cidades e províncias chinesas. O restante do mundo não se deu conta imediatamente da gravidade do que ocorria no país mais populoso do planeta e essa letargia, não se tenha dúvida, é a responsável pela contaminação devastadora que o vírus provocou em nações ricas como Itália, Alemanha, França e, por fim, Estados Unidos, onde está hoje o epicentro da pandemia.

A forma como a China decidiu enfrentar o avanço veloz do vírus - fechando a entrada e a saída de pessoas de cidades com até 15 milhões de habitantes - foi vista no Ocidente como coisa de país autoritário. Sim, o regime chinês é autoritário, mas, se tivessem olhado o tamanho do problema mais de perto, especialistas e autoridades da área de saúde teriam constatado rapidamente que o “lockdown” (o bloqueio das cidades, numa tradução imprecisa) promovido pelo governo chinês é a única estratégia à mão para de se conter a velocidade de contágio do coronavírus, um agente infeccioso novo e cujo DNA tem uma única missão: hospedar-se em células do corpo humano para se reproduzir.

A opção da China deu certo, uma vez que, à medida que os dias foram passando, a curva epidêmica do vírus foi sendo achatada, com o número de novos casos diminuindo dia a dia. O achatamento da curva não tem outro objetivo a não ser conter a evolução do contágio, alongar no tempo a chegada da contaminação ao seu ápice, de forma que o número de novos casos possa ser atendido pelo sistema de saúde de cada país.

Mas o perigo nunca está afastado, uma vez que há o risco de haver uma nova onda de contaminação, uma vez que a China, por exemplo, começou a relaxar as medidas de isolamento social e o “lockdown”. Um possível retorno da pandemia, dizem especialistas, é muito perigoso porque, como ainda não se descobriu uma vacina contra o vírus e a maioria da população ficou isolada em suas casas, o organismo das pessoas não desenvolveu anticorpos contra o novo coronavírus. Uma segunda onda teria, portanto, efeitos ainda mais fortes sobre a saúde da população e devastadores no que diz respeito à economia, à medida que o isolamento social e a restrição ao direito de ir e vir das pessoas teriam que ser novamente postos em prática, paralisando uma vez uma economia já fragilizada pela parada súbita anterior.

O “lockdown”, evidentemente, paralisa a atividade econômica de forma radical. O isolamento social, estratégia recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e adotada pelo Brasil e muitos países, é menos rígido que o “lockdown”, mas também faz um estrago gigantesco na economia, especialmente no setor de serviços.

No documento divulgado ontem, o FMI assim definiu o momento vivido pela economia mundial: “O Grande Bloqueio: a pior crise econômica desde a Grande Depressão”. E nós que achávamos que a crise mundial de 2008 tinha sido mais profunda desde 1929

Nesse contexto, as projeções de recuperação rápida em 2021 soam frágeis. Se o Brasil, que está sendo atingido por este tsunami com a economia fragilizada depois de três anos de recessão, seguidos de um triênio em que não avançou acima de 1,3% ao ano, crescer os 2,9% previstos pelo FMI no ano vindouro será o melhor desempenho em quase dez anos.


Andrea Jubé: CPMI mira epidemia de ‘fake news’

Comissão tentará votar quebras de sigilo remotamente

A afirmação do presidente Jair Bolsonaro no domingo de que “está começando a ir embora a questão do vírus” não tem base científica e esbarra na realidade e nos números. Naquele mesmo dia, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que tem feito o contraponto técnico ao chefe do Executivo, advertiu que “maio e junho serão os meses mais duros”.

Mandetta baseia-se nos números, que são implacáveis e desafiam Bolsonaro porque os novos casos e as novas mortes não arrefecem. O balanço divulgado ontem pelo Ministério da Saúde apontou 23.430 casos confirmados e 1.328 mortes. A taxa de letalidade da covid-19 subiu de 5,5% para 5,7%. Em 24 horas, foram 105 novas mortes de brasileiros, um acréscimo de quase 10%.

O presidente da CPMI que investiga a máquina de disseminação de notícias falsas, senador Ângelo Coronel (PSD-BA), disse à coluna que Bolsonaro cometeu uma “fake news”. “Não é o que estamos vendo e ouvindo [que o vírus está indo embora], o que tem sido noticiado pela mídia, pelos governadores, prefeitos e pelo Ministério da Saúde. Ou será que governadores, prefeitos e o próprio ministério estão errados e só ele está certo?”

O presidente já incorreu em notícia enganosa. No começo do mês, Bolsonaro foi a público pedir desculpas pela divulgação de conteúdo falso em suas redes sobre desabastecimento de alimentos em Minas Gerais por causa do vírus. “Não houve checagem”, lamentou.
O agravante em meio ao enfrentamento da pandemia é que as notícias falsas crescem encadeadas com o aumento dos infectados. “As ‘fake news’ subiram mais do que o número de casos”, alertou Mandetta há uma semana.

Na semana passada, o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), teve de desmentir nas redes sociais a notícia de que teria requisitado presidiários para monitorar a população nas ruas, em caso de violação do isolamento social. Na verdade, os detentos foram recrutados pelo governo para pintar faixas demarcando o distanciamento seguro dos usuários do transporte público nos pontos de ônibus.

No plano científico, uma notícia intensamente compartilhada ontem nas redes sociais afirmava que a Food and Drug Administration (FDA), agência americana reguladora de medicamentos, teria aprovado o uso da hidroxicloroquina no tratamento dos infectados pela covid-19 nos Estados Unidos. Na verdade, segundo a agência de checagem Aos Fatos, o órgão americano permitiu a utilização do medicamento em alguns casos de pacientes hospitalizados. O fato é especialmente preocupante porque Bolsonaro tornou-se um garoto-propaganda da substância no Brasil, apresentando-a como panaceia da crise.

As consequências do incremento das “fake news” sobre o coronavírus para a saúde dos brasileiros serão a expansão do número de infectados, associada ao risco de colapso da rede hospitalar pública e privada. No ano passado, o Ministério da Saúde verificou o impacto desse conteúdo falso sobre as campanhas de vacinação contra o sarampo e a poliomielite, doenças que haviam sido extintas no país.

É nesse cenário que a CPMI das Fake News abrirá uma linha de investigação para apurar a origem e o financiamento dos canais de propagação desse conteúdo. Pelo calendário original - e pela vontade do Planalto - a comissão encerraria hoje os trabalhos. Com a prorrogação, ela funcionará até outubro, fazendo as investigações coincidirem com as eleições municipais. Mas as reuniões estão suspensas há mais de um mês por causa da crise.

No dia 2, a artilharia do Planalto foi acionada para tentar garantir o arquivamento da CPMI, que tem como um dos alvos o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). O ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, e os senadores Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e Eduardo Gomes (MDB-TO) dispararam telefonemas aos aliados e conseguiram retirar dez assinaturas favoráveis à continuidade da investigação. Mas Ângelo Coronel reagiu e obteve mais sete apoiamentos.

Para tentar dar fluxo aos trabalhos, o presidente do colegiado, Ângelo Coronel, aguarda resposta do presidente do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), sobre a viabilidade do uso do sistema remoto para que a comissão possa votar requerimentos de quebras de sigilo fiscal e telefônico de pessoas e empresas investigadas. Isso daria celeridade ao trabalho dos técnicos enquanto os parlamentares não voltam a se reunir. Outro apelo é para que o prazo de funcionamento da comissão não seja contabilizado até a retomada presencial dos trabalhos.

O presidente da CPMI acredita que será possível avançar na investigação dos responsáveis pela propagação das “fake news” sobre o coronavírus da mesma forma que a comissão evoluiu na apuração do conteúdo falso sobre vacinas, que prejudicou as campanhas do Ministério da Saúde de imunização contra o sarampo e a poliomielite.

As informações são sigilosas, mas a CPMI já está de posse dos e-mails de criação e IPs relativos a dois canais do YouTube apontados como disseminadores de conteúdo falso sobre vacinas. A CPMI tem poder apenas investigativo, mas os dados serão enviados ao Ministério Público por meio do relatório final para que promova as respectivas ações penais para as punições cabíveis.

O senador tem sido perseguido na vida real e nas redes sociais. Uma pessoa residente em Belo Horizonte tornou-se réu em um processo depois de ter ameaçado de morte o senador por um e-mail anônimo. Uma fazenda do senador na Bahia foi invadida e depredada.

No plano virtual, o senador revela que um levantamento identificou a ação de robôs em ações coordenadas contra ele. “Tem textos que são iguais; é como se fosse um texto pronto e preparado para disseminação, é uma característica dos robôs, agindo quando querem depreciar um alvo”. Ele almeja, com a CPMI, exterminar os robôs e seus financiadores. “Quem paga por essas despesas [os robôs] merece ser punido exemplarmente”.


Alex Ribeiro: BC avalia momento certo para os juros

Injeção de liquidez não exclui possível estímulo monetário

Muitos analistas do mercado financeiro acreditam que exista um conflito entre as medidas de liquidez e de política monetária. Ou seja, quando o Banco Central (BC) adota medidas para injetar dinheiro na economia, sinaliza que não pretende fazer novos cortes na taxa básica de juros. Essa leitura não parece correta. O BC tem enfatizado o princípio da separação entre a política monetária e a estabilidade financeira. Novas baixas da taxa básica de juros seguem em consideração. A questão é quando usar esse instrumento de estímulo da economia.

Depois de deixar o mercado sem referências durante o período de silêncio do Comitê de Política Monetária (Copom), o presidente do BC, Roberto Campos Neto, fez uma maratona de comunicação nas duas últimas semanas. Ele chamou muito a atenção para as medidas que injetam liquidez, capital e crédito na economia. Essa é a prioridade no momento. Sobre juros, disse várias vezes que, para cortar mais a taxa Selic, é preciso ter certeza de que os estímulos vão de fato se transmitir pelo mercado financeiro, chegando à economia real.

Lembrou que não se deve fazer política monetária por analogia - ou seja, não é porque os Estados Unidos cortaram os juros a zero que o Brasil deve fazer o mesmo. Campos Neto vem repetindo a tese de que países desenvolvidos, que atraem capitais nos períodos de incerteza, são diferentes de países emergentes, que registram fuga de capitais nessas circunstâncias. No momento atual, a saída de recursos estrangeiros tem sido dez vezes maior do que na crise financeira de 2008.

Isso quer dizer que a política monetária perdeu a eficácia? “Não significa que nós não acreditamos na política monetária”, ponderou Campos Neto numa live promovida pela XP. “Não que acreditamos que a política monetária não tem potência”, disse ele num webinar do Credit Suisse.

Na realidade, Campos está apenas reproduzindo a comunicação feita pelo Copom na sua última reunião. Quem quer conhecer a visão do colegiado sobre a força da política monetária na conjuntura atual deve reler a ata da reunião de março. “Os membros do comitê discutiram a efetividade da política monetária como política de estímulo à demanda”, diz o documento. “Concluíram que, embora nesse momento seus efeitos sejam limitados, os mesmos serão relevantes para acelerar a recuperação econômica, quando as restrições impostas pela pandemia começarem a arrefecer.”

A questão, portanto, não parece ser que a política monetária não tenha potência. O ponto é quando ela poderá ser útil para estimular a demanda. Nesse período de forte volatilidade e de excesso de prêmios de risco, estímulos monetários têm efeitos limitados. Podem ter até efeitos negativos, se o estímulo for mal recebido pelos mercados e se acelerar a fuga de capitais do país, com efeitos sobre o dólar.

Mas é bom notar que, embora haja uma certa obstrução na transmissão da política monetária na conjuntura atual, ela voltará a ficar operacional mais adiante. E, provavelmente por isso, Campos Neto tem enfatizado que, hoje, a agenda são as chamadas medidas macroprudenciais. “A gente está fazendo [medidas] em liquidez e capital porque a gente entende que são mais importantes neste momento”, disse ele no webinar do Credit Suisse. Por extensão, pode-se entender que cortar os juros não é o mais importante “neste momento”.

Há duas semanas, quando anunciou um conjunto de medidas que injetou liquidez e capital na economia, o presidente do Banco Central indicou que, dependendo das conjuntura, o remédio a ser adotado é diferente. “Medidas tomadas em momentos de maior turbulência têm efeitos que são diferentes de um momento em que o mercado está mais calmo”, disse. Com um mercado mais calmo, o BC teria espaço para cortar juro.

A conclusão é que, ao contrário do que muitos acreditam, o Banco Central não abandonou a lógica do regime de metas de inflação.

Aparentemente, está aguardando o momento o adequado, quando a transmissão da política monetária ganhará mais potência.

É certo que o Banco Central vai cortar os juros? O que há, hoje, é uma sinalização de manutenção da taxa básica na próxima reunião, em maio. Mas esse não é um “forward guidance” firme - num cenário de muita incerteza, o Copom está mais propenso a fazer algo diferente do sinalizado. “O comitê reconhece que se elevou a variância do seu balanço de riscos e novas informações sobre a conjuntura econômica serão essenciais para definir os seus próximos passos”, disse o comunicado do colegiado, que até agora não foi modificado pelos seus membros.

A grande variância do balanço de riscos significa que, hoje, o Copom acredita menos no seu cenário econômico central, no qual não há muito espaço para os juros caírem. Os cenários alternativos têm peso muito grande nas decisões do Copom. Tanto que, na reunião de março, o colegiado deu um peso especial para um cenário de queda mais forte da demanda, que aconselhava cortes maiores do que 0,5 ponto percentual.

Mas Campos Neto tem enfatizado riscos do lado negativo, sobretudo o de abandono das reformas e do ajuste das contas públicas. O cenário principal do BC é que, num momento em que governo e Congresso priorizam a resposta emergencial à crise do coronavírus, reformas e o ajuste fiscal ficam em segundo plano, porém serão retomados logo em seguida. Mas há uma incerteza que tem pesado na curva de juros futuros. Se o risco se materializar, o impacto deve ser mais forte, elevando inclusive o juro neutro da economia.

É dentro desse arcabouço bem convencional do regime de metas que o Banco Central deverá tomar as suas próximas decisões. As medidas que injetam liquidez e capital na economia seguem a lógica da estabilidade financeira. Campos Neto lembrou nos últimos dias que há certa relação entre uma coisa e outra, já que uma liberação de compulsórios ou uma eventual compra de títulos públicos no mercado tem implicações monetárias. Mas a tendência é que o Copom apenas procure medir os impactos das medidas na trajetória da inflação para, então, tomar separadamente a melhor decisão para os juros.


Bruno Carazza: O antes e o depois de Bolsonaro

Coronavírus marca o fim da primeira fase do governo

James Carville é um consultor político que em 1992 assessorou Bill Clinton na disputa pela Presidência dos EUA, então ocupada por Bush pai. Reza a lenda que Carville afixou numa das paredes do comitê de campanha um cartaz com três lembretes para que o candidato democrata não perdesse o foco durante os debates. Diziam eles: “Não se esqueça do sistema de saúde”, “Mudança vs Mais do Mesmo” e “A economia, estúpido”.

Muito antes de Carville, economistas e cientistas políticos já estudavam as íntimas relações entre a política econômica e seus impactos nas urnas. Políticos normalmente se esquecem disso, mas além de eleitores, somos empregados, empresários, profissionais liberais ou aposentados. E percepções sobre crescimento, desemprego e inflação afetam nossas decisões de votar tanto ou mais do que preferências ideológicas ou inclinações por este ou aquele candidato.

William Nordhaus, vencedor do prêmio Nobel de economia em 2018, lançou em 1974 a hipótese de que políticos são tentados a se valer da política econômica como estratégia para se reelegerem ou fazerem seus sucessores. De acordo com sua teoria dos ciclos político-econômicos, governantes tendem a adotar políticas restritivas no início do governo, aprovando reformas e apertando o cinto das despesas enquanto sua popularidade está alta. À medida em que o mandato se aproxima do fim, é hora de afrouxar as rédeas e expandir os gastos e o crédito, apostando que o crescimento dos empregos e dos lucros lhes trarão mais votos.

Em 2018, ao se colocar à disposição de Bolsonaro para ser o seu Posto Ipiranga, Paulo Guedes prometeu mundos e fundos. Com números espetaculosos, convenceu o ex capitão de que valeria a pena apoiar um programa amargo de reformas no primeiro ano de governo (Previdência, privatizações e cortes de despesas), pois dali em diante os investimentos iriam bombar e o crescimento, deslanchar.

Seguindo a receita de bolo do ciclo econômico-eleitoral, Guedes persuadiu Bolsonaro de que as medidas liberais se reverteriam em uma fácil reeleição em 2022.

No entanto, o mesmo antigo compositor baiano que dizia que “tudo é divino, tudo é maravilhoso” também nos alertava que “a vida é real e de viés”. E se no início do ano, quando tudo parecia tranquilo, Bolsonaro já estava incomodado com a demora de Guedes em entregar os resultados prometidos, a pandemia causada pelo novo coronavírus torna ainda menos provável que os planos de Guedes se concretizarão.

Analisando as pesquisas de opinião pública conduzidas pelo Ibope nos últimos 35 anos, fica evidente como a gestão da economia foi determinante para as ambições eleitorais de praticamente todos os presidentes brasileiros. José Sarney, por exemplo, viu sua aprovação cair da casa dos 70% no lançamento do Cruzado para menos de 10% após os sucessivos fracassos de seus planos heterodoxos. O mesmo aconteceu com Collor: engana-se quem imagina que sua popularidade despencou com as denúncias de corrupção. Com a inflação subindo e a economia em recessão, sua avaliação positiva já estava abaixo de 20% quando Pedro Collor contou tudo. Daí em diante foi só ladeira abaixo.

FHC segurou o quanto pôde para se reeleger, mas viu a sua reprovação crescer de 20% para 50% com a liberação do câmbio no início de 1999. A partir desse ponto seu segundo mandato se arrastou em meio a políticas fiscais e monetárias restritivas para salvar o Real, racionamento de energia e problemas externos como a crise na Argentina e os atentados terroristas nos Estados Unidos. Como resultado, o projeto de permanência do PSDB no poder foi abortado com a derrota de José Serra em 2002.

Lula foi o único presidente do atual ciclo democrático a conseguir aplicar as recomendações do manual da teoria do ciclo político-econômico. Com Antonio Palocci no Ministério da Fazenda, foi dada continuidade à política contracionista de Pedro Malan nos primeiros dois anos de governo, comprando credibilidade nos mercados interno e externo. Com o mensalão batendo às portas do seu gabinete, Lula abriu as torneiras do gasto público e do crédito dos bancos oficiais para estimular a economia e impulsionar sua popularidade. Sua aprovação subiu de 30% em meados de 2005 para atingir impressionantes 80% em 2010, atropelando a crise financeira de 2008 e elegendo com facilidade a sua sucessora para o Palácio do Planalto.

A história de Dilma na Presidência pode ser contada em três atos.

Enquanto a economia rodava acelerada pela política expansionista de Guido Mantega, seus índices de aprovação giravam em torno de 60%. A insatisfação popular com a classe política irrompeu com os protestos de rua de 2013, e dali até a reeleição Dilma se equilibrou entre 30% e 40% de popularidade.

Mas então a tempestade perfeita se formou: os excessos econômicos do passado cobraram seu preço no mesmo momento em que o maior escândalo de corrupção da história brasileira atingia o PT e os principais partidos da coalizão governista. Com sua reprovação batendo em 70% da população, todos sabem o que aconteceu.

A crise da covid-19 marca o fim prematuro da primeira fase do governo Bolsonaro. Ninguém sabe qual será o saldo macabro de mortes da pandemia no Brasil, e muito menos qual a duração e a gravidade dos seus efeitos econômicos. Simulações do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estimam que a economia brasileira crescerá de 2,3% a 4,4% menos do que o esperado, enquanto no mercado já há instituições financeiras que trabalham com uma recessão de 5%, segundo o boletim Focus do Banco Central.

Se o cenário de desemprego recorde e quebradeiras no setor privado se concretizar, e de mãos atadas pela piora fiscal provocada pelas medidas de socorro contra a pandemia, a maldição de Carville (“é a economia, estúpido!”) assombrará os 30 meses que separam Bolsonaro das eleições de 2022. Haja cloroquina para tentar evitar a queda na sua popularidade.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Ribamar Oliveira: 'É preciso uma ação forte dos bancos estatais'

Para Henrique Meirelles, alguns dos problemas enfrentados pelas companhias ainda não foram adequadamente resolvidos pelo governo

Os governos e analistas de vários países já discutem cenários para a retomada da economia no pós-crise da covid-19. Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central, ex-ministro da Fazenda e atual secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo, observa que, no Brasil, o ritmo da retomada vai depender da saúde financeira das empresas no momento da transição.

Com a experiência de quem pilotou a saída do país da crise de 2008, Meirelles adverte que alguns problemas enfrentados hoje pelas empresas ainda não foram adequadamente resolvidos pelo governo.

O primeiro deles, segundo Meirelles, é que os bancos estão com políticas restritivas de crédito. Embora tenham recursos disponíveis, pois o BC reduziu o depósito compulsório e o governo disponibilizou uma linha especial de crédito para capital de giro, o dinheiro não está chegando nas empresas. “É normal, pois há o receio com a situação futura dos tomadores. Mas é preciso pensar em alternativas para o problema.”

Ele lembra que, na crise de 2008/2009, um dos problemas centrais foi justamente o travamento do crédito, tanto internacional, como doméstico. “O consumo colapsou porque não tinha crédito”, recorda. “Houve queda de 20% do crédito total no país.” Naquela época, pequenas e médias empresas e pequenos bancos ficaram sem acesso ao crédito.

Entre as medidas adotadas para enfrentar aquela crise, Meirelles destaca a redução do compulsório. “Liberamos desde que os recursos fossem direcionados para bancos e financeiras com capital até certo limite.” Ele sugere que as próximas liberações sejam vinculadas a empréstimos para pessoas físicas, jurídicas e a outros bancos.

O atual secretário da Fazenda de São Paulo observa que, no Brasil, existem quatro grandes bancos, sendo dois deles estatais. “É preciso usar mais o Banco do Brasil e a Caixa, pois eles foram muito úteis em 2008 e 2009”, diz. “É preciso uma ação forte dos bancos oficiais federais ofertando recursos.” Ele lembra que, naquela época, o cadastro positivo ainda não era público, uma vantagem da situação atual.

Para Meirelles, os bancos estatais poderão, sem dúvida, estimular a competição entre os bancos. Mas ele sugere também que o governo pense na criação de um fundo garantidor de crédito, que possa dar maior segurança às operações.

Além da questão do crédito, o ex-ministro da Fazenda considera que a ajuda do governo às empresas que não demitirem os trabalhadores também não foi adequada. O governo criou uma linha de crédito para financiar a folha de pagamento das empresas, mas Meirelles acha que o caminho correto é o adotado pelo Reino Unido. Lá, o governo vai bancar 80% do salário, até um certo limite, dos trabalhadores que não forem demitidos, mas colocados em licença.

O ex-ministro considera que a solução adotada pelo governo brasileiro - a linha de crédito para a folha de pagamento - levará as empresas a ficarem endividadas, o que poderá dificultar a retomada da economia.

Para ele, seria preferível que o Tesouro disponibilizasse recursos, a fundo perdido, para que as empresas pagassem os seus empregados. “Antes da crise, as empresas estavam saudáveis. Elas também precisam estar saudáveis na retomada”, propõe.

Outro problema que precisa ser resolvido com rapidez, na opinião do ex-ministro, é o pagamento da renda emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais. “Esse é um desafio logístico”, disse, observando a dificuldade da maioria desses trabalhadores terem acesso aos sites oficiais com as informações sobre o programa.

Sem que essas questões estejam bem resolvidas, Meirelles acha que a maior probabilidade é que a retomada da economia no pós-crise da covid-19 tenha a forma de “U”, e não de “V”. Ou seja, depois de uma queda abrupta, haverá um tempo maior para que ocorra uma recuperação plena da atividade econômica. Em sua avaliação, uma rápida recuperação após a crise é uma possibilidade mais difícil.

Sem ilusões
Não se pode ter ilusão sobre o efeito da crise provocada pela pandemia na economia. A melhor referência sobre o que vai acontecer nesta área é a crise internacional de 2008/2009. A economia brasileira sofreu pouco com aquela crise, pois o Produto Interno Bruto (PIB) caiu apenas 0,1% em 2009. A retomada foi rápida, pois aconteceu no segundo trimestre daquele ano.

Mesmo assim, os tributos administrados pela Receita caíram 1,3 ponto percentual do PIB. Mas a queda foi compensada por aumento de receitas não administradas pela Receita, como dividendos pagos por estatais federais. Houve alta ainda da receita da Previdência.

Neste ano, a recessão será bem maior que em 2009, como estima a totalidade dos analistas do mercado. Alguns chegam a dizer que o PIB poderá cair 6%. Em tal cenário, não é apenas a receita administrada pela RFB que será bem menor, mas também a receita não administrada e a arrecadação da Previdência, em virtude do desemprego que deverá ocorrer. “A queda da receita vai ser muito forte”, disse uma fonte do governo.

No caso do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), o efeito também será dramático e a receita deverá cair mais do que o PIB. Especialistas consultados pelo Valor advertem que setores com maior carga tributária (como energia elétrica e combustíveis) poderão ter maior contração da atividade do que os de baixa carga tributária (como alimentos e produtos farmacêuticos).


Cristiano Romero: Onde estão 20 milhões de brasileiros?

O problema da pobreza não atendida por programas sociais está nos grandes centros e capitais

O governo federal demorou a reconhecer que, diante de uma crise sem precedentes como a provocada pela pandemia do novo coronavírus, é preciso deixar de lado a austeridade fiscal e agir rapidamente para evitar uma tragédia econômica maior e mais longa. O isolamento social, adotado pelo Brasil e a maioria dos países como estratégia para conter a velocidade de contágio do coronavírus, está fazendo estragos no setor de serviços, afinal, há quase um mês, praticamente todo o comércio está de portas fechadas.

Se a situação já é difícil para lojas comerciais e de serviços médias e grandes, estabelecidas, formais, imaginemos como deva estar o pequeno negócio. Deduzimos, portanto, que a vida de uma pequena empresa formal não esteja nada bem, afinal, um dia sem faturar já impacta fortemente sua atividade. As empresas precisam vender para continuar operando. Só assim vão honrar o salário dos funcionários.

Imaginemos o quadro de milhares de firmas que funcionam na informalidade - mesmo sem saber, lidamos com muitas delas no nosso cotidiano, inclusive, algumas farmácias, algo inesperado da maioria. Nesse grupo, há o trabalhador autônomo, um contingente enorme de brasileiros, os equilibristas, cidadãos que vivem à margem do Estado e que, neste momento, já podem estar passando fome porque a possibilidade de trabalhar está suspensa. Estima-se que 40% da força de trabalho do país esteja nessa categoria.

A Ilha de Vera Cruz avançou bastante, desde a promulgação da Constituição em 1988, na criação de uma rede de proteção social. Todos sabemos que muito ainda precisa ser feito, que há gastos vultosos mal alocados e que é preciso avaliar os programas sociais existentes e melhorar muito a qualidade da despesa realizada. Mas, vejamos: numa crise aguda como a que vivemos, não se vê fome no interior do Nordeste, uma vez que a aposentadoria rural paga um salário mínimo a cada agricultor aposentado, independentemente do fato de ter contribuído ou não para o INSS.

O Bolsa Família, que paga benefícios muito menores, também cumpre papel importantíssimo na região Nordeste e, por essa razão, não se vê mais o cenário de fome e desterro comum à história daqueles Estados ao longo do século XX. Mas não nos enganemos: vivem no Nordeste 57,7% dos brasileiros em situação de extrema pobreza, isto é, com menos de R$ 145 por mês.

O problema da pobreza não atendida por programas sociais está nos grandes centros e capitais deste imenso território. Nesses locais, estão os brasileiros que vivem no mundo da informalidade. Achá-los para ajudá-los é tarefa urgente, não será nada fácil e pode não haver tempo suficiente para isso.

Instituído pela chamada PEC da Guerra, aprovada no último fim de semana pelo Senado, o benefício social temporário de R$ 600, com duração de três meses e renovável por mais três, é ambicioso (e justo) para o momento que a economia brasileira atravessa. O Senado estendeu a abrangência do auxílio, incluindo 19 categorias, como diaristas, caminhoneiros, pescadores, vendedores de acarajé, entregadores de aplicativos. Além disso, deu aos homens chefes de família o direito a duas cotas do benefício, como já estava previsto para mulheres que fazem o mesmo.

Quem tem direito ao benefício? O Congresso decidiu que os beneficiários devem ser os seguintes:

1. as pessoas inscritas no Programa Bolsa Família;
2. as que fazem parte do cadastro de Microempreendedores Individuais (MEI);
3. os contribuintes individuais do INSS;
4. as pessoas inscritas no Cadastro Único até 20 de março deste ano;
5. os trabalhadores informais que não façam parte de nenhum cadastro do governo federal.

Os beneficiários precisam cumprir alguns requisitos, como ter mais de 18 anos, integrar família com renda mensal por pessoa de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou renda familiar mensal de até três salários mínimos (R$ 3.135). Outra condição é não ter tido rendimento tributável, em 2018, superior a R$ 28.559,70.

Na primeira década deste século, o Brasil fez o dever de casa na área fiscal, tirou proveito do boom de commodities propiciado pela China e, assim, experimentou taxas de expansão econômica bem superiores às das duas décadas anteriores. Isso permitiu bancar programas sociais como o Bolsa Família e reduzir a pobreza, a desigualdade nem tanto. Em 2010, nosso PIB apareceu como o 6º maior.

Apesar do recuo, a pobreza seguia em 2010 como marca indelével da nossa sociedade. Três anos de recessão (2014-2016) profunda e outros três (2015-2019) de crescimento medíocre (média anual de 1,2%) aumentaram novamente a pobreza. Dados do IBGE mostram que, em 2018, havia 13,5 milhões de pessoas em extrema pobreza no país. O número, recorde, é superior à população da Bélgica e de Portugal. Em relação a 2014, houve incremento de 4,5 milhões de cidadãos, uma prova cabal do mal que más ideias na condução de uma nação podem provocar.

Esse é, em tese, o público-alvo do Bolsa Família. O universo da pobreza, porém, vai muito além disso. Uma iniciativa elogiável dos governos anteriores foi justamente criar um cadastro para identificar as famílias em situação de pobreza e extrema pobreza. Entram no Cadastro Único (CadÚnico) famílias em que os indivíduos ganham até meio salário mínimo por mês ou cuja renda mensal seja de até 3 salários mínimos.

O Cadastro Único tem registro de 29 milhões de famílias, algo como 76 milhões de pessoas, incluindo o universo do Bolsa Família, que atende a 14 milhões de famílias (44 milhões de beneficiários). Uma parte grande dos beneficiários será identificada por meio desse cadastro. Um outro contingente de beneficiários identificáveis está entre os que se enquadram como MEI e os contribuintes individuais do INSS.

Mas, e a maioria dos trabalhadores informais? “Estimativas de técnicos da área social apontam cerca de 20 milhões de pessoas, ou algo entre 15 milhões a 30 milhões, o grupo populacional fora do CadÚnico e do mercado de trabalho formal. Este é o contingente que precisa ‘ser encontrado’ pelo auxílio informal, o que significa um enorme desafio para um programa urgente e de curtíssimo prazo”, diz Luiz Guilherme Schymura, diretor do Ibre-FGV.


Andrea Jubé: O capitão prepara o adeus ao marechal

Bolsonaro não desistiu de demitir ministro da Saúde

O começo teve ar de mau agouro. No dia 20 de novembro de 2018, quando confirmou a escolha do ex-deputado federal Luiz Henrique Mandetta para compor o seu time de auxiliares, o então presidente eleito Jair Bolsonaro disse aos jornalistas: “eu confirmo o marechal Mandetta, que se Deus quiser assumirá ano que vem com essa enorme missão”.

É singular a associação do nome de Mandetta, na largada do governo, a um posto da hierarquia militar extinto em 1967. O marechalato havia se transformado no regime militar em uma espécie de sinecura a militares em fim de carreira, e o fim da patente - embora decretado como uma tentativa do presidente Castello Branco de impor revés ao general Costa e Silva - acabou recepcionado como um aceno à austeridade fiscal.

Voltando ao presente, é como se Bolsonaro ao anunciar o “marechal Mandetta” para o ministério o tivesse nomeado já com prazo de validade.

Sem vaticínios ou ilações, o que os fatos mostram nas últimas semanas é o desgaste da relação entre o presidente e o auxiliar acentuando-se num crescendo quase insuportável. No domingo, Bolsonaro admitiu a um interlocutor que o visitou no Palácio da Alvorada que a decisão de demitir o ministro da Saúde é irrevogável. A dúvida continua sendo quando consumar o ato.

Segundo interlocutores que se reuniram com o presidente nos últimos dois dias, Bolsonaro está convicto de que Mandetta extrapolou os limites da hierarquia e incorreu em quebra de confiança em uma sequência de ações que remontam ao início da crise do coronavírus.

Bolsonaro ouviu de um de seus comensais no Alvorada neste fim de semana que errou ao não imitar neste episódio o presidente americano Donald Trump, que se abespinhou com seu secretário de Saúde Alex Azar, o porta-voz da pandemia que roubou a cena.

Trump sugeriu que a palavra sobre a crise deveria ficar com o responsável pelo Centro dos Serviços de Medicare e Medicaid, Seema Verma. Depois, rendeu-se à figura de Azar e passou a dar entrevistas ao lado do auxiliar. Bolsonaro, na visão de aliados, errou porque ao contrário de Trump, preferiu romper com Mandetta e se isolar.

A conclusão de quem ouviu Bolsonaro e Mandetta ao longo da fervura é de que a demissão do ministro se transformou em uma questão de honra para o presidente, convencido de que o auxiliar desafiou sua autoridade. Bolsonaro tornou público esse inconformismo. Em uma entrevista de rádio, teve de lembrar: “O presidente sou eu”. No domingo, foi mais explícito: “A hora deles não chegou, mas vai chegar. E a minha caneta funciona e será usada”.

Num momento em que as pesquisas de opinião atestam a deterioração de sua popularidade, Bolsonaro continua dando sinais de que vai mais uma vez ceder à ala ideológica do governo e comprovar a influência de Olavo de Carvalho.

No meio da tarde de domingo, o guru bolsonarista em sua conta no Facebook a cobrança: “Fora, ministro Punhetta [Mandetta]!” E prosseguiu: “O Punhetta [sic] é o exemplo típico do que acontece quando um governo escolhe seus altos funcionários por puros ‘critérios técnicos’, sem levar em conta a sua fidelidade ideológica”.

Poucas horas depois, um Bolsonaro visivelmente contrariado pareceu em sintonia com Olavo ao admitir a apoiadores na porta do Alvorada, que havia se equivocado na composição de seu ministério. “Escolhi por critérios técnicos, errei com alguns, alguns já foram embora, estamos vivendo agora um novo momento”.

A opção pela ala ideológica enquanto a economia marcha sobre o cadafalso terá um custo político. Após horas de suspense, com impacto direto no mercado, e nova onda de panelaços em bairros influentes de São Paulo, Bolsonaro terminou o dia sem demitir o ministro da Saúde. Mas o ambiente continua tenso e os sinais estão truncados.

O embate arrastado com o ministro da Saúde já fez ruir o apoio do grupo político que avalizou a nomeação do “marechal Mandetta”, capitaneado pelo governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), agora um opositor declarado de Bolsonaro. Da mesma ala, o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, saiu enfraquecido da Casa Civil, e o correligionário Abelardo Lupion perdeu o cargo de assessor especial no Planalto.

O apoio residual do DEM ao governo ainda não virou pó porque a manutenção de Mandetta no cargo garante a interlocução com os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (RJ). Se o ministro for afastado, a relação institucional pode implodir.

Enquanto Mandetta e sua equipe agonizaram mais 24 horas ontem no cargo, o ex-ministro da Cidadania Osmar Terra, cotado para substitui-lo, roubou os holofotes ao participar de uma reunião com Bolsonaro e os quatro ministros do Planalto - Walter Souza Braga Netto (Casa Civil), Jorge Antônio de Oliveira (Secretaria-Geral da Presidência), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional). A pauta foi a epidemia do coronavírus, mas sem o titular da Saúde.

Mandetta continua na cadeira, mas Terra calçou as chuteiras e está no aquecimento. Desde o ano passado, o emedebista faz movimentos discretos para tentar sentar na cadeira. A saúde sempre foi feudo do MDB, o partido dirigiu a pasta com o ex-deputado Saraiva Felipe (MG) e o hoje senador Marcelo Castro (PI).

De um lado, a cúpula do MDB afirma que se Terra for convidado por Bolsonaro, será um nome de sua cota pessoal. Nos últimos dias, as redes sociais do MDB publicaram mensagens explícitas de apoio a Mandetta e às medidas de distanciamento social.

A “cota pessoal” vale como retórica, mas se Terra ascender à Saúde, levará junto o MDB e acirrará a disputa de poder entre as siglas hegemônicas no Congresso. O MDB não tem ministério, mas tem os dois interlocutores do Planalto com o parlamento: os líderes do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (TO), e no Senado, Fernando Bezerra Coelho (PE).

Bolsonaro não tem base de apoio formal no Congresso, mas DEM e MDB têm apoiado o governo nas agendas econômicas. Acirrar a disputa entre as duas siglas às vésperas da sucessão nas presidências da Câmara e do Senado é inoportuno. Se ao fim e ao cabo Bolsonaro defenestrar o “marechal Mandetta”, perderá o DEM e a linha direta com o Congresso, num ambiente tenso em que a palavra “impeachment” deixou de ser um sussurro.


Pedro Cafardo: É uma bênção quando o nº 1 sabe dar ordens

Pessoas sensatas agem para que medidas restritivas façam efeito e crise possa ser superada o mais rápido possível

Chegará o dia em que os paulistanos lotarão a avenida Paulista, os cariocas superlotarão as praias de Copacabana e Ipanema e os brasileiros, em geral, sairão às ruas para comemorar o “Dia da Vitoria”. Muitos, com lágrimas nos olhos, esquecerão sua condição de petista ou bolsonarista, de esquerda ou direita e se abraçarão na via pública. Como no fim da Segunda Guerra, um marinheiro uniformizado beijará uma jovem enfermeira no cais do porto de Santos, a exemplo do que um americano fez na Time Square, em 1945.

Sim, esse dia da vitória, que na verdade será a derrota do coronavírus, vai chegar. Acredita-se, porém, que não haverá um único dia D dessa vitória, porque a retomada será gradual e também em tempos diferentes, dependendo do país e da cidade. Em Wuhan, na China, por exemplo, as comemorações já começaram.

Seja como for, haverá um momento em que, a um sinal das autoridades da área da saúde, a vida voltará ao normal. Estaremos livres das quarentenas e dos isolamentos sociais, sem riscos de morrer por deficiência respiratória. Estará terminada uma batalha global nunca antes travada pela humanidade com tamanha intensidade, caracterizada de um lado por um único inimigo, poderoso, e, de outro, por quase 8 bilhões de terráqueos.

As crianças e os jovens voltarão às escolas saindo cedinho de casa. As igrejas reabrirão suas portas para reunir seus fiéis. Os “farialimers” e similares retornarão aos escritórios refrigerados e os operários, às fábricas. Os casais voltarão a entrar nas salas de cinema com enormes sacos de pipoca. Os fanáticos por futebol voltarão aos estádios para berrar a favor e contra seus times - os técnicos voltarão a ser chamados de burros, e as mães dos árbitros, desrespeitadas.

Novos livros, uns bons e outros nem tanto, baseados em vida real ou em ficções imaginadas nos momentos de solidão, chegarão às livrarias. Compositores mostrarão músicas também criadas no desalento da quarentena. Algumas delas nos farão chorar.

Aviões voltarão a decolar cheios de turistas - inclusive, com empregadas domésticas -, levando filhos à Disney. Bares ficarão cheios de jovens e idosos falando alto. Restaurantes finos reabrirão suas portas, reescreverão seus cardápios com preços assustadores e reorganizarão filas de espera.

Filas também voltarão às lojas lotéricas, de pessoas com esperança de acertar na Mega-Sena. Os shopping centers recuperarão seu público fiel, que mais passeia do que compra. Os bailes funk, demonstração cultural das periferias, retomarão seus batidões barulhentos. O trânsito das grandes cidades voltará a ser infernal, as estradas ficarão congestionadas nos fins de semana, e as bicicletas reaparecerão em grande número.

A melhor notícia de todas, porém, é a certeza de que, nove meses depois do isolamento, o índice de natalidade aumentará muito em todo o mundo. Milhões de bebês virão substituir vidas tristemente perdidas e darão início à geração pós-corona. Serão os novos “baby boomers”, talvez tão numerosos quanto no pós-guerra, e que não terão as lembranças terríveis de seus pais e avós sobre esses tempos de doença, isolamento e sofrimento. Nem sofrerão com a memória de tantas perdas de pessoas queridas.

Orgulhosa de seus avanços tecnológicos em todas as áreas, inclusive na da medicina, a atual geração nunca imaginou que seria encurralada e ameaçada não pela bomba atômica ou pelas armas químicas dos ditadores, mas sim por uma microscópica proteína coberta de finíssima camada de gordura, um vírus.

Hora das pessoas sensatas
Os parágrafos acima não são devaneios. É certo que essa vitória sobre o vírus virá mais cedo ou mais tarde, ainda que seja gradual e que não tenhamos um dia D e que milhares de bravos soldados fiquem pelo caminho. E todo o esforço das pessoas sensatas, neste momento, é para que essa vitória venha o mais cedo possível.

Infelizmente, a Presidência da República ainda tenta convencer a opinião pública de que seus subordinados estão errados em suas determinações de isolamento social amplo. Vários chefes de Estado que tinham opinião semelhante mudaram de ideia à medida que o impacto da pandemia aumentava em seus países.

Não há espaço, num momento como este, para contestações leigas contra determinações da ciência. Vale, então, fazer uma citação de uma grande personalidade do século 20:

“O poder numa crise nacional, quando um homem acredita saber que ordens devem ser dadas, é uma bênção. Em qualquer esfera de ação, não há comparação entre as posições do número um e dos números dois, três ou quatro. Os deveres e problemas de todas as pessoas que não são o número um, são muito diferentes e, sob muitos aspectos, mais difíceis. É sempre uma infelicidade quando o número dois ou o número três têm que tomar a iniciativa de um plano ou de uma medida de peso. Ele tem que considerar não apenas os méritos da medida, mas também a cabeça do chefe; não apenas o que deve recomendar em sua posição e não apenas o que fazer, mas também o modo de obter anuência para isso e o modo de conseguir que seja executado”.

A citação entre aspas é de Winston Churchill, o poderoso primeiro-ministro britânico um dos líderes dos países aliados durante a Segunda Guerra. A declaração está em seu monumental livro de seis volumes, “Memórias da Segunda Guerra Mundial”, algumas páginas antes de citar sua famosa frase dita na Câmara dos Comuns - “Nada tenho a oferecer senão sangue, trabalho, suor e lágrimas” - ao conclamar o país para a vitória contra Adolf Hitler.

Em qualquer tempo da história, sem dúvida, é uma bênção quando o número um sabe quais ordens devem ser dadas. Neste momento, seria imprescindível.

*Pedro Cafardo é editor-executivo


André Nassif: O que fazer em uma economia de guerra

O governo deve sinalizar imediatamente ao mercado que atuará como comprador de última instância

Para enfrentar os impactos sanitários, econômicos e sociais da crise do coronavírus (covid-19), as autoridades governamentais brasileiras terão de lidar com um cenário de guerra sanitária e economia de guerra. Com o país já praticamente em lockdown, a paralisação da demanda de bens e serviços provocará uma contração brutal da renda agregada, o aumento massivo do desemprego dos trabalhadores formais e informais e uma situação de penúria destes últimos e da população pobre.

Com tamanha contração ou mesmo interrupção dos fluxos de caixa da maioria das empresas, necessita-se de contínua coordenação entre as políticas monetária e fiscal, mas é a política fiscal que deve comandar a política econômica. Será preciso atuar em várias frentes conjuntamente, e todas implicarão aumento de gastos públicos, dos déficits fiscais e da relação dívida/PIB.

Nesse cenário extremo, não faz sentido pensar que aumentos de gastos governamentais acarretarão incerteza quanto à solvência da dívida pública. Maior incerteza haverá se o governo brasileiro não sinalizar, de imediato, que evitará a quebradeira generalizada de empresas e a destruição de produto potencial no Brasil. Será preciso atuar em diversas frentes, o que exigirá forte coordenação entre as diversas esferas governamentais, já que o maior problema será colocar em prática as medidas para mitigar os efeitos do terremoto em curso. O desafio será fazer o dinheiro chegar rapidamente às famílias e empresas afetadas.

A primeira frente é direcionar os recursos públicos necessários para os serviços de saúde funcionarem eficientemente, evitando que entrem em colapso. As prioridades são salvar vidas humanas, minimizar a taxa de mortalidade do grupo mais vulnerável e assegurar o fornecimento de equipamentos médicos à rede do SUS e hospitais privados.

A segunda é assegurar transferência de renda mínima para os grupos mais vulneráveis da população, como os já cadastrados no Bolsa Família e a maioria dos trabalhadores informais que ficarão desempregados durante o tempo de confinamento. Esses recursos deverão ser bancados temporariamente pelo Tesouro.

A terceira é evitar o total estrangulamento dos fluxos de caixa das empresas, visando descartar um efeito cascata que levaria à interrupção dos pagamentos de todos os tipos de dívida, colocando em risco a solvência do sistema bancário. Nessa crise da covid-19, em princípio não faria muito sentido o governo ampliar gastos para recompor demanda perdida, porque empresas e trabalhadores ficarão temporariamente sob lockdown.

No entanto, como já estamos no “momento Minsky”, a partir do qual quedas expressivas dos preços dos ativos e colapso significativo da demanda e dos fluxos de produção colocarão boa parte do sistema produtivo sob risco de falência, o governo deve sinalizar imediatamente ao mercado que atuará como comprador de última instância (big government), única saída para eliminar o risco de uma Grande Depressão, como insistiu Hyman Minsky, em seu clássico “Stabilizing an Unstable Economy” (Yale University Press, 1986).

Para oxigenar o setor real da economia, o governo deverá suspender a cobrança de impostos indiretos e assumir a garantia das dívidas ou a compra de dívida corporativa, privilegiando as micro, pequenas e médias empresas, que enfrentarão maior asfixia em seus fluxos de caixa. O Tesouro pode também atuar como demandante de última instância em setores em que possa haver mobilização controlada da mão de obra (por exemplo, limpeza, higienização das cidades, construção de hospitais provisórios de campanha etc).

Quando as medidas de distanciamento social forem relaxadas e a economia voltar a operar em condições de normalidade, o governo deveria assumir, definitivamente, o protagonismo dos investimentos em infraestrutura pública, a fim de promover uma recuperação mais rápida e sustentável. Isso exigiria a substituição da Emenda do Teto de Gastos por uma estratégia de ajuste fiscal de longo prazo que não comprometesse gastos mínimos do governo (como proporção do PIB) em infraestrutura.

A última frente é a sinalização de que o governo irá oferecer linhas de crédito para capital de giro para que as empresas, mesmo sob a pressão imposta pelo lockdown, continuem a manter um nível mínimo de produção. Nesses momentos é que se percebe a importância de o Brasil contar com bancos públicos, diferentemente de muitos países desenvolvidos, cujos bancos centrais não têm outra opção senão comprar títulos do Tesouro (ou seja, imprimir dinheiro) para cumprir tal função.

O BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica devem suspender os serviços das dívidas já contraídas, trocar a folha de pagamentos de salários por recebíveis das empresas paralisadas e manter linhas abertas de capital de giro, com taxas de juros subsidiadas, por um período provisório de seis meses, prorrogáveis até que o sistema bancário privado deixe para trás a compressão de liquidez e retome o ritmo normal de suas linhas de financiamento.

No entanto, se houver reincidência do surto epidêmico e o período de confinamento social for estendido por muito tempo, será preciso que a União crie dívida pública adicional mediante a venda de títulos ao setor privado e, em casos extremos, ao próprio Banco Central do Brasil - o que requererá mudanças provisórias na Lei de Responsabilidade Fiscal, até que a situação de economia de guerra tenha sido totalmente dissipada.

Numa economia de guerra, se for preciso que, nestes casos extremos, a dívida pública seja financiada por emissão monetária (uma forma alternativa de helicopter money), não faz sentido conjecturar sobre inexistente risco de default governamental. A escolha recairá entre aumentar temporariamente - e não permanentemente, que fique bem claro -, a dívida pública em pontos de percentagem do PIB que poderá alcançar dois dígitos, ou aceitar o colapso econômico e o caos social generalizado, como já sentenciara Minsky no livro mencionado.

Tamanho esforço de “guerra” implicará avanço substancial dos déficits fiscais e da relação dívida/PIB. Entretanto, ao deixar claro para a sociedade e para os agentes econômicos em geral que esse desvio temporário da “responsabilidade fiscal” é o custo de oportunidade que todos deverão pagar para evitar uma completa deterioração do aparato produtivo e do tecido social, as autoridades econômicas brasileiras estarão contribuindo, paradoxalmente, para se antecipar à confiança que deverá ser reconstruída mais adiante para que alguma perspectiva de retomada possa ser vislumbrada em um futuro incerto.

*André Nassif é doutor em Economia pela UFRJ e professor associado do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense.


Bruno Carazza: O futuro é sombrio

Se nada for feito, no futuro a peste, a guerra, a fome e a morte continuarão a cavalgar nas costas da imensa desigualdade social brasileira

Com a recomendação de jejum nacional sendo alçada a política pública de combate à covid-19, é bom lembrar que, de acordo com João, o fim dos tempos chegará sob a liderança da Peste. Na sequência, virão a Guerra, a Fome e, finalmente, a Morte.

Walther Scheidel, professor de história antiga na Universidade de Stanford, também tem seus quatro cavaleiros do Apocalipse. Dois são os mesmos elencados pelo “discípulo que Jesus amava”: as epidemias e a guerra. Completam o quarteto o colapso do Estado e as revoluções socialistas.

Em “The Great Leveller: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century” (que nas próximas semanas será lançado no Brasil pela editora Zahar sob o título “Violência e a História da Desigualdade”), Scheidel analisa os principais fatores que levaram não ao Armagedon, mas sim à redução esporádica da desigualdade ao longo da história da humanidade.

Com abundância de exemplos e dados, o autor argumenta que, nas sociedades eminentemente agrárias que predominavam até o início do século XX, as epidemias exterminavam grandes contingentes de pessoas. Em resposta à escassez de mão de obra, o mercado de trabalho se reequilibrava com o aumento dos rendimentos dos sobreviventes - e, assim, a distância entre ricos e pobres diminuía.

Outras formas traumáticas de reduzir a desigualdade foram as guerras, as revoluções e a falência do Estado. Ao romperem a estrutura social, esses eventos levavam a uma redistribuição de poder e riqueza entre os diferentes grupos, podendo ocasionar um momentâneo efeito “nivelador” das condições de vida entre seus habitantes.

Com os intensos processos de urbanização, industrialização e aprimoramento educacional da população mundial ao longo dos séculos XX e XXI, o professor de Stanford deposita suas esperanças na mudança de preferências do eleitorado como uma solução menos violenta para as graves crises que enfrentamos. Em entrevista recente à BBC, Scheidel acredita que se a covid-19 for realmente devastadora, a população poderá demandar mudanças políticas e econômicas na direção de um Estado de bem-estar social mais forte, principalmente em países como Estados Unidos e Brasil.

A nova pandemia está expondo as diversas fragilidades do modelo brasileiro de (sub)desenvolvimento. Nossa resiliência à crise está sendo afetada pela crônica falta de dinamismo de nossa economia e à irresponsabilidade fiscal dos últimos anos. E à medida que a doença avança, outras deficiências ficam morbidamente mais claras: o baixo grau de formalização do mercado de trabalho, a precariedade de nossa rede de proteção social, as diferenças entre os sistemas público e privado de saúde e as mazelas de nosso saneamento básico e das condições habitacionais.

Ao que tudo indica, infelizmente, ainda passaremos as próximas semanas em isolamento social, acompanhando apreensivos a contagem de mortos e a deterioração econômica, enquanto a covid-19 chega cada vez mais próximo de nossos lares e famílias. Ainda não sabemos quando e nem como devemos afrouxar o distanciamento social para permitir uma retomada segura das atividades cotidianas. Muito mais importante, contudo, é pensar que tipo de país construiremos depois do coronavírus.

A opção proposta pelo professor Scheibel passa pela construção de um novo pacto social, em que os imensos déficits gerados pelos pacotes de estímulo serão cobertos por impostos cobrados daqueles com maior capacidade contributiva. Também haveria um estímulo ao aprimoramento dos sistemas de assistência médica à população e de maior proteção aos trabalhadores mais vulneráveis, eventualmente com a implementação de um programa de renda básica universal. Dessa forma, o efeito nivelador da covid-19 seria alcançado com políticas públicas e econômicas mais progressistas.

No caso brasileiro, tenho sérias dúvidas se conseguiremos fazer uma limonada desse amargo limão que é a pandemia provocada pelo novo vírus. Ainda é cedo para afirmar, mas as medidas do governo para resgatar a economia podem ter efeito negativo sobre a desigualdade.

Ao que tudo indica, a recessão será muito mais profunda e duradoura do que esperávamos, e auxílios emergenciais de R$ 600 ou frações de seguro-desemprego por três meses não serão capazes de neutralizar os severos impactos sobre a renda dos mais pobres e desamparados. Enquanto isso, aqueles que têm empregabilidade, economias e acesso ao crédito conseguirão superar os tempos ruins de forma muito mais suave.

Novas leis e decisões judiciais tomadas sob a pressão da emergência social também podem levar a ainda mais desigualdade. Nas últimas semanas centenas de novos projetos de lei foram apresentados no Congresso Nacional, boa parte deles pedindo proteção e tratamento especial para as mais variadas categorias. No Judiciário, medidas liminares suspendendo efeitos contratuais vêm sendo concedidas em todos os tribunais, influenciadas por uma perigosa lógica de curto prazo que tem efeitos bastante deletérios num horizonte mais largo.

Para piorar, a crise da covid-19 ainda teve a externalidade negativa de interditar o debate sobre reformas que poderiam contribuir para as condições de competitividade e até mesmo na distribuição de renda no Brasil. Com a recessão afetando principalmente o setor de serviços, será muito difícil retomar num curto intervalo de tempo a tramitação da reforma tributária, que previa um tratamento equânime na cobrança de impostos sobre o consumo. Com todas as energias concentradas nas medidas de saúde pública e econômicas, também serão adiadas as discussões sobre a reforma administrativa e os privilégios de certos segmentos do serviço público.

Quanto mais profunda a recessão, mais difícil será convencer os setores mais privilegiados da sociedade a aceitarem uma tributação mais progressiva; e quanto maior o crescimento da dívida, menos provável ampliarmos nossos programas sociais. Se nada for feito, no futuro a peste, a guerra, a fome e a morte continuarão a cavalgar nas costas da imensa desigualdade social brasileira.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Gustavo Loyola: Falsos dilemas e perda de tempo

Os riscos de o Brasil sofrer uma tragédia em termos humanos, sociais e econômicos são grandes demais

No meio da grave pandemia da covid-19, o país se viu envolvido nas últimas semanas num debate estéril e absurdo a respeito de um falso dilema, por obra principalmente do presidente da República. A ideia de que as medidas drásticas de distanciamento social (DS) trazem maiores prejuízos para a economia do que políticas menos severas de restrição (“isolamento vertical”) é completamente falaciosa. Resulta de uma visão míope e egoísta que toma em consideração apenas os efeitos de curto prazo sobre a atividade econômica.

Sem contar com as implicações éticas derivadas da defesa de políticas que desvalorizam a vida humana, os defensores do “isolamento vertical” cometem grave erro, como amplamente mencionado em vários artigos de especialistas publicados recentemente mundo afora. Para poupar espaço, menciono aqui, de modo sucinto, apenas três dos graves equívocos da posição a favor da política de afrouxamento das medidas de DS como possível forma de abrandar os efeitos da crise sobre a economia.

O primeiro e mais grave erro é o de desconsiderar os riscos do colapso do sistema de saúde com consequências econômicas, sociais e políticas provavelmente muito mais danosas e permanentes do que a perda temporária de consumo e produção derivadas das políticas mais duras de DS. As imagens do que ocorre no norte da Itália já falam por si mesmas, porém num país com as desigualdades sociais maiores e com um gigantesco déficit habitacional, como é o caso do Brasil, é necessário ter em conta o risco de a catástrofe ser ainda maior do que se observa na velha Europa.

Outro problema é ignorar os efeitos negativos sobre as expectativas dos agentes econômicos que resultariam de meias medidas adotadas no enfrentamento da pandemia. Como uma espada de Dâmocles pendendo sobre a economia, os riscos de um agravamento do surto da covid-19 mais adiante seguirão impactando as expectativas e assim restringindo as decisões de consumo e investimento e adiando a retomada da economia.

Um terceiro problema é hipótese subjacente de que não existem, à disposição dos governos, políticas compensatórias que podem mitigar de modo relevante os custos econômicos de curto prazo trazidos pelas medidas de distanciamento social. Neste ponto, o equívoco salta ainda mais aos olhos quando se têm em conta a reação praticamente universal dos governos com o intuito de amortecer os impactos da crise sobre as economias. Neste ponto, aliás, há uma contradição gritante entre a postura desarrazoada do presidente contrária ao chamado isolamento horizontal e as ações que seu próprio governo vem adotando na esfera da economia.

Nunca é demais lembrar que o enfrentamento de uma crise do porte da covid-19 exige alto grau de coordenação entre todas as esferas de governo e uma comunicação eficiente e transparente com a sociedade. Cabe aos governantes, principalmente nas situações de crise nacional, o papel de alinhamento das expectativas da população. No campo da economia, o governo deve reduzir as incertezas que, se amplificadas, trazem consequências ainda mais danosas sobre a vida econômica.

Quanto às ações anunciadas pelo governo federal, pode-se dizer que estão na direção correta, mas sua efetividade ainda está para ser provada. Algumas dessas medidas são de fácil implementação - como por exemplo as ações do Banco Central para assegurar a liquidez no sistema financeiro - mas outras - justamente as de impacto mais imediato e direto - são de execução complexa que demanda capacidade de gestão por parte dos diversos componentes do governo. Nesse ponto é que a postura divisiva de Bolsonaro pode atrapalhar a consecução tempestiva das medidas, já prejudica a coordenação entre os vários envolvidos em sua implementação.

Vale ressaltar que o volume de recursos envolvidos nas medidas até aqui divulgadas não é pequeno, em torno dos R$ 750 bilhões, segundo o ministro Paulo Guedes. Dessas medidas, cerca de R$ 200 bilhões têm impacto fiscal direto, o que se trata de esforço razoável considerando que a situação fiscal do Brasil no pré-crise não era confortável. Exatamente por isso, é mais necessário ainda que as ações do governo sejam bem executadas, evitando-se desperdício de recursos que são escassos.

Nesse contexto, a desarticulação provocada pelas falas inoportunas e equivocadas de Bolsonaro restringem a efetividade das iniciativas de seu próprio governo. Preocupa especialmente as críticas do presidente da República aos governadores e prefeitos que aderiram massiva e corretamente às medidas de isolamento social. As características da federação brasileira e as competências concorrentes em áreas como a saúde exigem que as três esferas de governo trabalhem de modo coordenado em situações de crise como a que agora se encontra o Brasil.

Definitivamente, não é o momento para se perder tempo com debates inúteis. Os riscos de o Brasil sofrer uma tragédia em termos humanos, sociais e econômicos são grandes demais para que dirigentes políticos como Bolsonaro sigam estimulando a divisão entre aqueles que deveriam estar na frente de batalha contra a pandemia.

*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV, foi presidente do BC e é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo