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Maria Cristina Fernandes: Não é um "casuismozinho"
Sem 308 votos para mudar a Carta, boiada da reeleição das Mesas quer passar no STF
É preciso notório saber jurídico para chegar ao Supremo Tribunal Federal, mas basta um domínio rudimentar da língua portuguesa para entender o parágrafo quarto do artigo 57 da Constituição: “Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de dois anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.
Apesar disso, a conjunção dos astros na capital federal indica que a tese que permitirá a reeleição do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP) e do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) à presidência das Mesas tem a maioria dos 11. E por que renomados magistrados submeteriam sua reputação a tamanho constrangimento?
Já o fizeram antes, explicam os defensores da tese. Sim, fartamente, sem que nenhum deles se sinta impedido de olhar o espelho de manhã cedo. O casamento homoafetivo é o exemplo mais usado de reinterpretação sem mudança constitucional. Trata-se, porém, de dispositivo envelhecido por uma sociedade mais inclusiva que passou a reivindicar a cláusula pétrea dos direitos e garantias individuais.
A julgar pela dedicação dos arautos da tese, se não há uma “parada do fico” no calendário, em defesa da reeleição das Mesas, é porque não há pleno conhecimento das ameaças que pairam sobre a democracia. Os argumentos vão dos predicados do principal adversário de Maia, o deputado ficha suja Arthur Lira (PP-AL), que conquistou seus dois últimos mandatos pendurado em liminar do STJ, até o ataque de hackers no TSE.
Investigações preliminares da Polícia Federal que indicariam o envolvimento de deputados federais do círculo mais próximo de Bolsonaro, teriam bastado para convencer os recalcitrantes. Quando o ministro Luís Roberto Barroso entrou na linha de tiro pelo apagão do TSE no primeiro turno, Maia foi o primeiro a se solidarizar. O ministro Gilmar Mendes, relator da reeleição, o segundo.
A reiterada desconfiança do presidente Jair Bolsonaro na lisura das urnas eletrônicas seria outra evidência de que a própria alternância de poder estaria em risco. Por isso, o atentado contra a alternância no outro Poder, o Legislativo, estaria justificado. Com dois precedentes. Um, protagonizado por Ulysses Guimarães, “o pai da Constituinte”, que presidira a Câmara na legislatura que antecedeu a da nova Carta e pretendia ficar no cargo para comandar os trabalhos. O regimento interno foi, então, modificado para abrigar a permanência do progenitor.
O segundo precedente se deu com o próprio Rodrigo Maia. Com a cassação do então presidente da Casa, Eduardo Cunha, o deputado, na condição de vice, cumpriu o mandato-tampão. Quis disputar a reeleição na mesma legislatura e foi, para isso, liberado pelo Supremo, tendo como relator o decano, Celso de Mello.
Uma nova reeleição de Maia não se encaixa em nenhum dos puxadinhos. Mas se é a democracia que está em jogo, emende-se a Constituição, ora pois. O problema mora aí. Como inexistem 308 votos para isso na Câmara, é mais fácil conseguir os seis votos no Supremo. Ou não.
Como Edson Fachin, Cármen Lúcia e Marco Aurélio Mello estariam irredutíveis, sobrariam Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Kassio Nunes. É sobre esta trinca de ministros que se concentram Lira e o presidente da República, que vê em Maia a reencarnação de Eduardo Cunha, aquele que o convocou ao microfone para cassar o mandato de uma presidente da República em nome de seu torturador.
Para contra-atacar a ofensiva, os defensores da tese que beneficia Alcolumbre e Maia se comprometeram com uma única recondução, ainda que o voto do relator ainda não seja conhecido. Se o compromisso sossegou Lewandowski, ainda pairam dúvidas sobre o comportamento dos outros dois.
Kassio Nunes, indicado por Bolsonaro, acaba de interromper dois plenários virtuais, mesma modalidade, sem sessão ou debate, na qual está pautada a reeleição. E Toffoli interrompeu um julgamento onde a condição de réu de Lira estava em pauta.
Se isso acontecer, a expectativa é de que Gilmar, no início do recesso, dê uma cautelar liberando a recandidatura de Maia e Alcolumbre. Caberia então, ao presidente da Corte, Luiz Fux, na condição de plantonista do recesso, cassar ou não esta medida. Depois de tomar posse demarcando terreno em relação a Gilmar Mendes, Fux dá sinais dúbios. Tomou a decisão, por exemplo, de levar a plenário as ações penais que o colega pretendia julgar na turma que preside, transformada em cemitério da Lava-Jato, mas tem-se mostrado sensível à tese de que a reeleição seja uma norma interna da Câmara, ainda que a matéria esteja estampada na Constituição.
Os partidos no Congresso que, até aqui, têm assistido o espetáculo de camarote, resolveram colocar sua colher de pau nesse angu. Parlamentares de oposição com os quais Maia e Alcolumbre contavam agora dizem que são contra a reeleição. Ninguém sabe se manterão a postura se a recandidatura for avalizada e se, num segundo turno, Maia for a única alternativa anti-Bolsonaro.
O fato é que o desempenho do DEM nas eleições municipais tanto aumentou seu cacife como articulador dos palanques de 2022 quanto gerou reações da oposição que teme ser imprensada na disputa nacional e receia a ofensiva sobre suas bases regionais, como PSB e PT deixaram claro.
Não é apenas o Legislativo que está em jogo, mas um combo de poderes aliançados no Judiciário e até no Ministério Público. Entre as cartas na manga de Gilmar Mendes está a relatoria da ação sobre a prisão domiciliar do ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, que o ministro tirou de pauta para levá-la a julgamento no momento que lhe convier. O procurador-geral da República, Augusto Aras, que toca pelo diapasão de Gilmar, parece ter concluído que o papel de engavetador-geral não tem trazido sucesso para suas ambições e resolveu remontar as forças-tarefas regionais.
O pacote ainda prevê a arbitragem, via TCU, da queda de braço, dentro e fora do governo, sobre os limites fiscais do próximo ano. Vide a decisão, desta semana, autorizando o empenho de despesas a serem feitas apenas em 2021.
O combo que se apresenta para resgatar a democracia pretende fazê-lo atropelando a alternância do poder. Não tem um dono só a boiada que, na era bolsonarista, quer arrombar a cerca da Constituição.
Fernando Exman: Sem base organizada não há pauta positiva
MP do Casa Verde e Amarela é objetivo de curto prazo
A decisão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) de retomar o sistema de bandeiras tarifárias turvou os planos do governo de criar uma agenda positiva imediatamente após o segundo turno das eleições municipais. Não que o efeito da decisão seja dos mais desastrosos, mas não ajuda a estratégia desenhada no Executivo para tentar garantir um reposicionamento rápido e efetivo do presidente Jair Bolsonaro depois do retumbante fracasso da maioria dos seus aliados na disputa que se encerrou no domingo.
Prefeitos de cidades importantes que enfrentaram o discurso negacionista emanado do terceiro andar do Palácio do Planalto se deram bem nas urnas. O presidente está com claras dificuldades para manter o auxílio emergencial em R$ 300 a partir de janeiro ou criar um novo programa social e, agora, vê-se obrigado a responder ao eleitor de classe média por que as contas de luz podem voltar a subir.
Os danos gerados pelo apagão ocorrido no Amapá ao grupo do presidente do Congresso, senador Davi Alcolumbre (DEM), relembraram às autoridades os potenciais prejuízos eleitorais que problemas de gestão no setor elétrico podem causar. A notícia positiva, por outro lado, é que a área técnica de um setor sensibilíssimo da administração federal teve autonomia suficiente para responder da forma que achou mais adequada à constatação de que os níveis dos reservatórios de usinas hidrelétricas estão chegando a níveis baixos demais.
No entanto, sabe-se no governo que esse tipo de sinal de reaquecimento do consumo não construirá sozinho um ambiente favorável aos negócios, se o Executivo não conseguir uma maior organização da base para destravar a agenda legislativa.
Na oposição, é crescente a visão de que o Congresso facilitou demais a vida do presidente quando deu a Bolsonaro a chance de ter a palavra final em relação ao valor do auxílio emergencial, que acabou ficando em R$ 600 na etapa mais aguda da crise. Dificilmente ela deixará caminho livre para se preservar o instrumento, agora em R$ 300 ou futuramente um pouco menos, que foi fundamental para a sustentação da popularidade do presidente, mesmo em tempos de crise.
Pouco avançaram as negociações da equipe econômica com o senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator do Orçamento e da PEC Emergencial, cuja caneta pode viabilizar a criação do novo programa social que traria a assinatura de Bolsonaro. Resta ao governo neste momento, portanto, impedir que caduquem as medidas provisórias deixadas até agora de lado tanto pela cúpula do Congresso quanto pelos partidos aliados.
O objetivo de curtíssimo prazo passou a ser a aprovação da MP que viabiliza a criação do Programa Casa Verde e Amarela, que além de ser um mecanismo capaz de gerar investimentos e empregos, pode melhorar a relação do governo federal com os novos prefeitos. O programa foi criado para atacar um déficit habitacional que acumula um passivo de 6,5 milhões de moradias. Nas contas do Executivo, se projetado o crescimento da população até 2030, a expectativa é que o desafio de produção de unidades habitacionais seja de mais 1,23 milhão de casas por ano.
Para dificultar a situação dos articuladores do governo, Bolsonaro tornou-se alvo preferencial dos prefeitos que já começam a sinalizar novas medidas de contenção do coronavírus.
Avalia-se, na oposição e em partidos de centro-direita, que muitos dos candidatos que adotaram uma postura mais restritiva em relação à pandemia conquistaram a confiança do eleitor e apostarão nessa estratégia durante os próximos meses. Não se sabe ainda como isso irá reverberar no Parlamento.
Os prefeitos reeleitos de São Paulo e Belo Horizonte, Bruno Covas (PSDB) e Alexandre Kalil (PSD), são dois exemplos. No PT, é simbólico o caso do ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Edinho Silva, reeleito para a Prefeitura de Araraquara, no interior paulista.
Edinho fez parte da cúpula de um partido que segue sofrendo rejeição de parcela considerável dos eleitores. Também integrou o núcleo central de uma administração que enfrentou grave crise política e um processo de impeachment. Não pode se apresentar como representante da nova política ou antissistema. Teria tudo para ser levado pela onda antipetista, mas aproveitou a maré favorável aos gestores que conseguiram, a despeito da resistência bolsonarista a medidas restritivas, reduzir os danos provocados pelo vírus em suas cidades.
Araraquara tem um baixo nível de letalidade por covid-19 entre os grandes municípios de São Paulo. Mas, mesmo assim, a prefeitura local foi criticada algumas vezes pelo próprio Bolsonaro, em razão da detenção de uma mulher que teria desobedecido as determinações da guarda para que se retirasse de uma praça e a desacatado.
Esses prefeitos não tendem a abrir mão da autonomia que lhes foi garantida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para regulamentar as medidas de isolamento social. Já possuem, por outro lado, uma ampla lista de demandas a ser endereçada ao Palácio do Planalto e o primeiro item dela é a manutenção das transferências financeiras da União para os entes subnacionais. A pressão dos gestores municipais na tramitação da reforma tributária, que nem mesmo tem ainda um parecer oficial apresentado pelo relator Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), não deve ser menosprezada.
A sorte de Bolsonaro, por ironia, é que a pandemia impedirá a realização da tradicional grande marcha de prefeitos eleitos neste fim de ano. Os gestores municipais muito provavelmente tampouco conseguirão falar em bloco com parlamentares, ministros e autoridades do Palácio no início de 2021. Nada de aglomerações no Congresso Nacional, na Esplanada ou na Praça dos Três Poderes, o que não reduz a urgência para que o governo enfim reorganize uma base que defenda seus interesses.
Francisco Góes: É o ‘emprego, emprego, emprego’, diz Covas
Incerteza é sobre a capacidade dos municípios de sustentar suas receitas
No discurso da vitória, no domingo à noite, o prefeito reeleito de São Paulo, Bruno Covas, deu ênfase à prioridade que dará, no segundo mandato, ao combate ao desemprego: “Nós temos que fazer da nossa gestão mantra na busca de emprego, emprego, emprego e busca de oportunidades”, afirmou. O foco, avisou, tem que estar sobretudo nos jovens da periferia, que são os que mais sofrem com a crise. Ontem, no dia seguinte à eleição, o tucano reconheceu as limitações que todo prefeito tem no manejo de políticas macroeconômicas, mas prometeu mais ações de inclusão e investimentos na economia criativa para estimular startups, cultura, esporte lazer e turismo.
A taxa de desemprego precisa mesmo ser uma das preocupações dos prefeitos que assumem os cargos a partir de 1º de janeiro, afinal as pessoas moram nas cidades, e costumam atribuir aos gestores municipais parte dos problemas que vivem no dia a dia. No terceiro trimestre, a taxa de desemprego medida pelo IBGE ficou em 14,6%, a mais alta da série histórica desde 2012. Até setembro, o país tinha 14,1 milhões de desempregados. Só no Estado de São Paulo, o mais populoso do Brasil, a taxa de desemprego ficou em 15,1% no terceiro trimestre.
Como disse Covas ontem, os prefeitos não têm ferramentas para mudar taxa de câmbio, controlar a inflação ou emitir moeda. Assim, dependem, em boa medida, da retomada da economia para garantir mais investimentos e geração de emprego e renda. O problema é que na situação atual, com a pandemia dando sinais de piora, o cenário é de incertezas. É voo quase cego considerando o efeito que eventual novo fechamento do comércio, por exemplo, poderia ter sobre as receitas municipais. E também porque as indicações são de que não haverá novo apoio do governo federal a Estados e municípios. No Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus, a ajuda a Estados e municípios chegou a R$ 60,1 bilhões, além do diferimento de dívidas com a União de R$ 65 bilhões. Tudo leva a crer que a ajuda não vai se repetir em 2021.
“O clima é de total incerteza, o que vai acontecer ninguém sabe, é loteria”, diz François Bremaeker, gestor do Observatório de Informações Municipais. Se houver lockdown e restrições nas cidades, os municípios terão queda na arrecadação própria, sobretudo no recolhimento de ISS, que, em 2019, representou 48% da receita tributária das capitais. Haverá ainda redução nos recursos recebidos via transferências feitas por Estados, no caso do ICMS, e pela União, via Fundo de Participação dos Municípios (FPM), formado por receitas do IPI e do Imposto de Renda. Do total arrecadado, 22,5% ficam com os municípios. Na distribuição, aplica-se coeficiente que diz quanto cada um recebe.
A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) mostra que de janeiro a novembro houve queda de 7,34% na arrecadação do FPM sobre igual período de 2019. Nota técnica da entidade reconhece que a proximidade do fim do ano deixa os gestores municipais preocupados com o fechamento das contas: “Nesse ano atípico com pandemia da covid-19, essa preocupação é mais pertinente.”
A CNM conduz pesquisa sobre as condições financeiras das prefeituras para pagar o 13º salário, e a tendência da enquete é que o resultado não seja ruim, diz Eduardo Stranz, consultor da CNM. A instituição também vai fazer trabalho para saber quanto os prefeitos vão deixar de caixa em 31 de dezembro. Stranz estima que a queda na arrecadação do FPM, no acumulado do ano, deva ser de 5%. A recuperação deve ser puxada pelas vendas de Natal.
Ele diz que o fim do auxílio federal a Estados e municípios impõe, a partir de janeiro, desafio de emprego e renda aos prefeitos. “O município terá que ser um dos indutores da retomada. Esse será o desafio, junto com um quadro de queda da arrecadação, de pandemia e de fim de auxílio federal”, diz o consultor da CNM.
Stranz afirma que o poder municipal é ator importante na economia uma vez que costuma ser também o maior comprador. Na crise, o gestor municipal pode direcionar compras para a própria comunidade encomendando uniformes escolares, por exemplo, a fornecedores locais. Pode ainda fazer uma boa organização do território, com licitações para uso de locais por micro e pequenos empreendedores. O dono da carrocinha de cachorro-quente se cadastra na prefeitura, ganha alvará e pode se instalar na frente do estádio ou do fórum. O prefeito tem a opção de criar um fundo de aval, mesmo que pequeno, para que esse empreendedor compre os equipamentos para o negócio. São soluções simples que o poder público pode tomar para fomentar negócios no município. O economista Mauro Osório, especialista em temas regionais, acrescenta que uma forma de melhorar a gestão municipal é integrar o trabalho das secretarias. “É integrar as políticas sociais, de saúde e educação, ter um olhar interdisciplinar”, diz.
Parte das soluções para os municípios depende, porém, de medidas macroeconômicas que podem ser implementadas a partir das reformas tributária e administrativa. Jonathas Goulart, economista-chefe da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), entende que é preciso inserir os municípios e o ISS na reforma tributária e também aproveitar a oportunidade para rediscutir a distribuição do FPM “Hoje há má distribuição dos recursos do fundo”, diz. Ele prevê que em 2021 os pequenos municípios, cujos orçamentos dependem mais das transferências da União e de Estados, podem sofrer impacto menor com a crise. Mas os municípios maiores, que dependem mais da arrecadação de ISS, tendem a ficar em situação mais complicada.
Matheus Rosa, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz que a preocupação para 2021 é a dependência dos municípios do ISS. É imposto ligado à prestação de serviços, segmento cuja recuperação é mais lenta do que a indústria e o varejo. Os serviços também são mais suscetíveis a restrições provocadas pela pandemia. “A grande incerteza é saber se municípios vão sustentar a arrecadação em 2021 e se isso será em nova onda de covid. “Um novo apoio federal [a Estados e municípios] não parece provável dada a preocupação do governo com teto de gastos”, diz Rosa. Ele fez estudo que avaliou a arrecadação de 26 capitais na pandemia. As seis com maior PIB (Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Manaus) apresentaram até agosto relativa estabilidade da receita tributária. Nenhuma teve perda de receita acima de 1% e algumas tiveram alta. É o que todos os prefeitos esperam para 2021, como Covas e seu mantra por geração de emprego e renda.
Sergio Lamucci: Um país cada vez mais isolado
Com a derrota de Trump nas eleições americanas, o Brasil fica distante de todas as principais potências globais
Novembro foi mais um mês em que o presidente Jair Bolsonaro se esforçou ao máximo para criar incidentes diplomáticos com parceiros comerciais importantes do Brasil, contando ainda com a ajuda de seu filho Eduardo Bolsonaro para a tarefa. Como resultado desse empenho, o país está cada vez mais isolado no cenário externo, especialmente por causa da política ambiental. Para Matias Spektor, professor da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV), é o momento em que as relações exteriores do Brasil “estão mais deterioradas” desde a transição para a democracia.
Há pouco menos de 20 dias, Bolsonaro ironizou Joe Biden, o vencedor das eleições nos EUA. Ao comentar declarações do americano sobre eventuais sanções ao Brasil por causa do desmatamento da Amazônia, o brasileiro lançou uma bravata, dizendo que “apenas pela diplomacia não dá” e que “depois que acabar a saliva, tem que ter pólvora - não precisa nem usar a pólvora, tem que saber que tem”. Na semana seguinte, ameaçou divulgar o nome de países que comprariam madeira ilegal do Brasil. Ele voltou atrás, mas já havia causado outro mal estar com países europeus.
Por fim, Eduardo Bolsonaro provocou mais um ruído nas relações com a China na semana passada. Presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, o filho do presidente escreveu que o governo apoiou a aliança “Clean Network”, lançada por Donald Trump, por ser uma frente global para um “5G seguro, sem espionagem da China”. Eduardo apagou a publicação, que recebeu resposta agressiva da embaixada chinesa, advertindo para “consequências negativas” dessa retórica.
Com a derrota de Trump nas eleições americanas, o Brasil fica distante de todas as principais potências globais. Até o momento, Bolsonaro não fez nenhum gesto em direção a Biden. O brasileiro é um dos poucos chefes de Estado ou de governo a não ter cumprimentado o americano pela vitória. Ontem, Bolsonaro disse ainda que tinha informações de que houve “muita fraude” nas eleições americanas.
Spektor diz que a “relação interpessoal entre Bolsonaro e Biden será difícil, tendo em vista a “reação visceral” que o brasileiro “provoca no Partido Democrata de modo específico, mas também “na classe política americana de modo mais geral”. Segundo ele, não se trata apenas do meio ambiente, mas também dos valores que o brasileiro representa, vistos no contexto americano não só “como antiquados, mas como politicamente incorretos”.
O mal estar em relação ao Brasil não se resume à política ambiental, mas esse será o terreno em que o país tende a enfrentar maiores problemas com os EUA. A nomeação do ex-secretário de Estado John Kerry como czar do ambiente mostra a importância central que o tema terá no governo Biden, diz Spektor. “O meio ambiente será para Biden o que a reforma do sistema de saúde foi para Barack Obama no primeiro mandato” avalia ele, observando que isso coloca o Brasil numa situação muito difícil, num momento em que se consagrou a ideia e a imagem do país como um “vilão do clima”. Para Spektor, reverter essa tendência demandaria um esforço muito forte do Brasil, algo que até o momento o governo Bolsonaro não parece disposto a fazer.
Para Spektor, há “um risco enorme” para as exportações brasileiras por causa desse tema. “O mundo está avançando numa direção na qual as normas internacionais de preservação ambiental não serão implementadas pelo Conselho de Segurança da ONU, pela Otan, por um país invadindo o outro. O processo de implementação será feito via regras comerciais. É nos acordos comerciais que os países vão sentir a pressão para se adequarem”, afirma ele, para quem já parece “contratada” essa crise do comércio exterior brasileiro. Ou o Brasil se adapta a essas normas e dá uma sinalização clara de que está em conformidade com elas ou o setor exportador brasileiro arcará com esse custo, diz Spektor. Segundo ele, para todos os efeitos, os países europeus não vão ratificar neste momento o acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul.
O governo Bolsonaro também tem se especializado em criar ruídos com a China, o principal destino das exportações brasileiras. Spektor diz que, nesse front, “o que está em jogo agora, para além da briga pública entre a embaixada chinesa e o deputado Eduardo Bolsonaro, é o papel do Brasil diante da presença econômica chinesa na América Latina”. É o país da região no qual a China enfrenta mais dificuldades, nota ele. “Um exemplo disso é o processo licitatório do 5G. Para onde o Brasil vai avançar deve depender da relação com os EUA, de quanto pressão os americanos colocarão”, diz Spektor. “O Brasil é a principal economia que ainda não tomou a decisão para que lado penderá. A Argentina não tem muita opção, a não ser pender para a China, idem o Chile, idem a Colômbia. No caso do Brasil, ainda há incerteza.”
Dada a orientação do governo Bolsonaro para a política externa e a política ambiental, o isolamento do Brasil se acentua. Para Spektor, é uma tendência que vem de antes de Bolsonaro. “A operação Lava-Jato aumentou muito o isolamento brasileiro na América do Sul, por causa dos efeitos deletérios que teve para a classe política, sobretudo da Argentina, Peru, Colômbia e México”, diz ele. O ponto é que, com Bolsonaro, a tendência de um Brasil isolado se reforçou, afirma Spektor, observando que o brasileiro não foi capaz nem sequer de montar uma coalizão com os governos de direita da região, como Iván Duque na Colômbia ou Sebastián Piñera no Chile. “O nosso isolamento já está contratado, e pelo menos hoje não parece haver um sinal de que essa tendência será revertida. À medida que o tema ambiental ganhar força, essa tendência deve se acirrar”, diz Spektor. Para ele, o Brasil começa a se colocar numa posição um “pouco análoga” a que o país tinha em meados dos anos 1980, quando estava assolado por uma crise ambiental (por fatores como o desmatamento na Amazônia, a poluição em Cubatão e o assassinato de Chico Mendes), uma imagem muito negativa da classe política e uma crise fiscal com implicações inflacionárias.
Para ele, este é o momento em que o país se encontra mais isolado desde a época da transição para a democracia, há mais de 30 anos. “É uma notícia muito negativa para a qualidade de vida dos brasileiros, porque boa parte do bem-estar da população depende ativamente do sistema internacional, da economia internacional, do comércio internacional, da taxa de juros internacional, da capacidade de cooperação em áreas como saúde global no contexto da pandemia”, lamenta Spektor.
Bruno Carazza: O mapa da mina
Encerrado o segundo turno, é hora de fazer contas para 2022
Fechadas as urnas em todo o Brasil (com exceção de Macapá, cuja eleição foi adiada por causa do apagão), é hora de contabilizar vencedores e perdedores, tentando extrair sinais que possam iluminar o caminho da política rumo a 2022.
Diversos rankings podem ser traçados. Em termos de número de prefeituras, o 2º turno não trouxe nenhuma novidade em relação ao que já havia sido definido há duas semanas. O MDB manteve a sua histórica liderança, seguido pelos dois principais representantes do Centrão (PP e PSD) - PSDB e DEM completam o “top five”. Nessa métrica, o que conta é a capilaridade, e aqui a centro-direita vai muito melhor que a esquerda, cujos partidos melhor colocados foram o PDT (em 7º lugar), PSB (8º) e PT (na 11ª posição).
Do ponto de vista regional, entre os partidos que mais foram penalizados em 2018, na esteira da Operação Lava-Jato, vemos o PT cada vez mais reduzido ao Nordeste (seus melhores desempenhos relativos foram no Piauí, no Ceará e na Bahia) e ao seu enclave acreano. Já os tucanos do PSDB mantêm seus domínios em São Paulo e no Mato Grosso do Sul - chamando a atenção o fraco desempenho do partido no RS, onde o governador Eduardo Leite só conseguiu garantir 5% das prefeituras.
Embora tenha mantido seu tradicional posto de dono do maior número de municípios no Brasil, o MDB se vê cada vez mais reduzido aos seus clãs, com domínio forte no Pará dos Barbalhos (43% das prefeituras), na Alagoas dos Calheiros (37%), no Rio Grande do Sul de Eliseu Padilha (28%) e do Norte dos Alves (23%), além do Amazonas de Eduardo Braga (22%). Mas nem tudo são flores: com exceção da vitória de Sebastião Melo em Porto Alegre, o MDB perdeu em todas as capitais desses Estados.
E já que estamos falando de feudos políticos, eles também estão presentes no campo das esquerdas. Partidos fortemente personalistas, em que famílias influenciam as eleições por décadas, ainda têm grande dificuldade de ampliar seus domínios Brasil afora, como é o caso do PSB da família Arraes, ainda encastelado em Pernambuco (onde venceu quase um terço das disputas municipais, inclusive no Recife, onde o bisneto João Campos venceu a neta Marília) e os irmãos Gomes do PDT, que apesar de terem ganhado 40% das prefeituras no Ceará, ainda têm baixa penetração em outros Estados (exceção feita ao Maranhão).
Na tão comentada centro-direita, vemos o DEM se posicionando muito bem no cinturão da soja, obtendo os seus melhores resultados em Goiás (25% dos municípios do Estado), Mato Grosso do Sul (19%), Mato Grosso (17%), Tocantins (19%) e Rondônia (16%). Já o Progressistas (antigo PP) e o PSD de Kassab tiveram seu melhor desempenho não apenas no Nordeste (principalmente no Piauí, Bahia, Alagoas e Sergipe), mas também no Sul, com o primeiro se dando bem no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, enquanto os pessedistas destacaram-se no Paraná.
Muito se disse que a onda de renovação na política brasileira perdeu força, mas os números indicam que 16% dos municípios brasileiros escolheram prefeitos que nunca haviam disputado uma eleição antes - a maioria empresários, produtores rurais, advogados e médicos. E aqui também se nota como as legendas mais à direita do espectro político continuam conseguindo atrair mais novatos com viabilidade eleitoral, numa tendência já observada em 2018, quando Bolsonaro chegou ao poder. Entre os partidos que conseguiram emplacar neófitos nas prefeituras, destacam-se o MDB (104), PP (93), PSD (92), DEM (69) e PSDB (64), com os partidos mais à esquerda vindo bem atrás, com PDT (57, em 7º lugar), PSB (39, 9º lugar) e PT (23, no 12º lugar).
Mais do que atrair candidatos novatos com boas chances de estrear com vitória, os partidos da centro-direita também se notabilizaram por conseguir “roubar” políticos de outras legendas. Mergulhando nos dados sobre vinculação partidária dos prefeitos vencedores em 2020, é possível verificar que entre os dez partidos com o maior número de prefeituras, o Republicanos foi o campeão na atração de candidatos de outras legendas - nada menos que 56% dos novos prefeitos disputaram sua última eleição por outro partido. DEM e PSD também tiveram em torno da metade dos candidatos vencedores no pleito atual foram captados em hostes adversárias, principalmente MDB e PSDB.
Se levarmos em conta a população que passará a ser governada a partir de primeiro de janeiro nos municípios, a vitória de Bruno Covas sobre Guilherme Boulos na cidade mais populosa do Brasil garantiu aos tucanos a maior fatia do “mercado eleitoral” deste ano, com mais de 16% dos brasileiros. Num patamar abaixo, na faixa de 11% a 12% vêm, pela ordem, MDB, DEM e PSD.
O resultado do segundo turno jogou uma ducha de água fria nas pretensões dos partidos de esquerda de sair da disputa com algumas vitórias importantes. É verdade que houve o que comemorar, como a vitória do cirista Sarto e do psolista Edmilson Rodrigues sobre candidatos bolsonarista em Fortaleza e Belém, respectivamente. Mas as derrotas de Boulos, Manuela d’Ávila e Marília Arraes acrescentam um gosto amargo a um indigesto resultado das esquerdas neste ano.
Tudo somado, subtraído, dividido e multiplicado, o que podemos extrair de todos esses números? Em primeiro lugar, ainda que Bolsonaro não tenha lançado o seu próprio partido, o fato de que os poucos candidatos que ele apoiou terem sido derrotados pode indicar um arrefecimento do bolsonarismo enquanto movimento. Por outro lado, para quem não deseja vê-lo no Palácio do Planalto a partir de 2023, uma inclinação para a centro-direita parece ser um caminho muito mais seguro do que uma guinada à esquerda.
Os resultados deixam muito claro que se consolidou no Sul, São Paulo e Centro-Oeste uma forte resistência ao PT e a seus antigos partidos satélites. Por outro lado, o avanço dos partidos de Centrão no Nordeste sinalizam que o último bastião do petismo pode ter caído.
De eleição para eleição, todas as atenções a partir de agora se colocam sobre as articulações dos partidos da centro-direita. As composições em torno das escolhas para as mesas diretoras da Câmara e do Senado podem ser um boa prévia do que pode acontecer até 2022.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Daniel Rittner: Os US$ 4 bilhões que travaram na Esplanada
Empréstimos do BID, CAF e NDB esbarram em vaivém de pareceres
O governo Jair Bolsonaro está deixando parado um financiamento internacional de US$ 4 bilhões, com taxas de juros mais baixas e prazos mais longos do que as captações feitas pelo Tesouro no mercado, para arcar com o pagamento do auxílio emergencial e ações de combate à crise econômica provocada pela pandemia.
A tomada do crédito, que foi anunciada em maio, travou na burocracia da Esplanada dos Ministérios. Enquanto isso, o Brasil abre mão de um alívio de algumas centenas de milhões de reais na gestão de sua dívida pública porque é obrigado a pagar mais caro para credores privados que têm financiado o gigantesco déficit primário no nosso “Orçamento de guerra”.
Seis bancos multilaterais e agências de desenvolvimento se dispuseram a emprestar para o Brasil. Todos já aprovaram, em suas instâncias decisórias, a liberação do crédito. As fontes de financiamento são as seguintes: US$ 1 bilhão do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), US$ 1 bilhão do Banco Mundial, US$ 1 bilhão do NDB (conhecido como Banco do Brics), US$ 420 milhões do banco de fomento alemão KfW, US$ 350 milhões do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e US$ 240 milhões da Agência Francesa de Desenvolvimento.
No entanto, de forma atípica, nenhuma mensagem foi enviada ao Senado até agora pedindo autorização para essas operações. O passo a passo de qualquer financiamento é o seguinte. Primeiro, o próprio Poder Executivo analisa os termos do empréstimo negociado. Isso costuma ser um procedimento rápido, toma no máximo algumas semanas depois de aprovado o crédito pelos organismos internacionais, que é o tempo para a elaboração de um parecer do Tesouro e um sinal verde da Casa Civil. Na sequência, a mensagem do Palácio do Planalto vai para a análise dos senadores - tanto na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) quanto do plenário. Uma vez votada, ela se transforma em projeto de resolução do Senado. Não cabe veto. Há apenas promulgação.
Por causa do excesso de burocracia no governo, está tudo demorando. A primeira operação de crédito, do Banco do Brics, foi aprovada por sua diretoria em Xangai no dia 20 de julho. Lá se vão mais de quatro meses e nada de o financiamento caminhar em Brasília. Em agosto, foi a vez de aprovações pelas diretorias do BID e da CAF, o banco que ainda usa a sigla histórica de quando se chamava Corporação Andina de Fomento. Essas operações estão na mesma situação - bem como os recursos do Banco Mundial, da alemã KfW e da francesa AFD.
Há grande mal-estar, nos seis organismos internacionais que fizeram os empréstimos, com a demora do governo. Eles frisam o caráter de emergência que as operações receberam dentro de cada banco ou agência. Em uma das instituições, na última reunião de diretoria, houve surpresa do colegiado com o relato de que o dinheiro ainda não poderia ser transferido por falta de aprovação no Brasil. Era o único dos países beneficiados sem receber financiamento para ações de combate à pandemia.
O Ministério da Economia pretendia usar da seguinte forma o crédito levantado: US$ 1,72 bilhão para o programa de renda básica emergencial, US$ 960 milhões para a ampliação do Bolsa Família, US$ 780 milhões para o aumento das concessões de seguro-desemprego e US$ 550 milhões para o programa de manutenção do emprego. No total, pela taxa de câmbio mais atualizada, são R$ 21,2 bilhões.
Segundo fontes do governo, que reservadamente admitem as reclamações de organismos internacionais, tem havido um vaivém dos pareceres técnicos elaborados pela Secretaria do Tesouro Nacional. A Casa Civil teria rejeitado as primeiras versões dos documentos. No meio disso, comenta-se que também houve ressalvas da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). A coluna não conseguiu obter detalhes do que estaria causando as divergências.
Em termos práticos, existem dois problemas. Um é se os empréstimos programados para este ano podem escorregar para 2021. Tecnicamente, diz um dirigente de organismo internacional, há condições de manter o crédito de pé. Do ponto de vista político, bate um constrangimento. “Não era para financiar programas emergenciais? Houve decisão política de liberar os recursos rapidamente e a demora não condiz com o que havia sido dito”, afirma esse dirigente.
As taxas dos empréstimos negociados ainda não foram divulgadas. Elas se tornam públicas com a mensagem ao Senado. O último crédito internacional tomado pela União - uma operação de US$ 195 milhões do BID para o fortalecimento da defesa agropecuária em 2019 - tinha juros iniciais de 3,78% ao ano e 300 meses (25 anos) como prazo para o pagamento.
Para ilustrar a diferença: no mercado, os títulos pré-fixados mais longos do Tesouro, com vencimento em 2031, pagam 7,94% ao ano. O resultado é que, sem colocar as mãos no dinheiro dos bancos multilaterais e agências de desenvolvimento, o Brasil está gastando mais para financiar parte do déficit fiscal.
Conclusão: às vezes o que chamamos de “burocracia” é um excesso de zelo legítimo e o que chamamos de “atraso” só reflete a sobrecarga de trabalho de determinados técnicos. De qualquer forma, a demora no envio das mensagens para o Senado soa como uma falta de prioridade pouco justificável.
Maria Cristina Fernandes: A contida expressão eleitoral do antirracismo
A intolerância, como o vírus, ainda paira no ar
As primeiras pesquisas depois da morte de João Alberto Freitas no supermercado Carrefour em Porto Alegre não confirmam a contaminação da disputa municipal pela brutalidade do episódio.
O precedente é o da invasão da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ), por tropas do Exército e da Polícia Militar. O episódio produziu três mortos e dezenas de feridos. Seis dias depois, elegeu-se uma bancada de prefeitos sindicalistas - do ex-metalúrgico de Volta Redonda, Juarez Antunes, a Luiza Erundina (São Paulo), passando por Olívio Dutra (Porto Alegre), Chico Ferramenta (Ipatinga) e Jacó Bittar (Campinas).
Desta vez, são escassos os sinais de que o fenômeno se repita. O primeiro Ibope do segundo turno em Porto Alegre, que colheu entrevistas ao longo do fim de semana depois do assassinato, mostrou que o líder, Sebastião Melo (MDB), distanciou-se ainda mais da candidata do PCdoB em Porto Alegre, Manuela d’Ávila.
Melo terminou o primeiro turno dois pontos percentuais à frente de Manuela, que havia liderado durante toda a campanha. Agora a distância aumentou para sete. O movimento sugere não apenas a continuidade da curva com a qual Melo terminou o primeiro turno, como a tradicional migração de votos do eleitorado de candidatos mais afinados ideologicamente com os finalistas. O crescimento de Manuela pouco supera a soma dos votos de Juliana Brizola (PDT) e Fernanda Melchionna (Psol).
Da mesma maneira, Melo cresceu com a adesão dos eleitores de todos os demais candidatos, do centro à direita, desde o atual prefeito Nelson Marchezan (PSDB) até mesmo o candidato do PSD, Valter Nagelstein, cuja declaração sobre a nova composição da Câmara (“muitos deles jovens, negros, sem nenhuma tradição política e com pouquíssima qualificação”) não foi rechaçada por Melo.
Foi a primeira vez que Porto Alegre elegeu vereadores negros (dois do Psol, dois do PCdoB e um do PT). Os dois que atualmente exercem mandato foram eleitos como suplentes. O Ibope, no entanto, indica que os dividendos eleitorais do antirracismo não invadiram o segundo turno.
Levantamento da Bites indica que nos cinco dias que se seguiram à morte de João Alberto Freitas, os 36 candidatos que disputam o segundo turno em capitais publicaram nas redes (Twitter, Facebook e Instagram) 5.213 “posts”. Desses, apenas 129 mencionaram racismo, Carrefour, João Alberto ou “vidas negras”. Quem mais tocou no assunto foi Manuela, com 45 “posts”, seguida de Guilherme Boulos, em São Paulo, com 30. Sebastião Melo publicou quatro e Bruno Covas, sete.
Ambos os finalistas de Porto Alegre mencionaram o episódio na sua propaganda eleitoral gratuita. Manuela chegou a ir para a passeata do dia da Consciência Negra, mas deixou o evento antes do confronto com policiais. Três dias depois, nova manifestação, em frente a uma outra unidade do Carrefour, também foi reprimida pela polícia. A candidata não estava lá, mas entre os que portavam adesivos nas camisetas, só se viam os de Manuela.
Para os jovens que lá estavam, como o vereador eleito pelo Psol, Matheus Gomes, que nem era nascido no massacre de Volta Redonda, a referência são as manifestações que pipocaram nos EUA e no mundo depois da morte do vigilante negro George Floyd em Minneapolis.
Se Manuela e Boulos foram os candidatos que mais indignação demonstraram, ambos foram cautelosos em demarcar distância dos conflitos com a polícia. Dos 97 “posts” sobre os protestos na unidade do Carrefour nos Jardins, bairro da zona sul de São Paulo, nenhum deles, na métrica da Bites, foi de autoria do candidato do Psol. O racismo, apesar da indignação nacional, não moveu o debate eleitoral. O total de “posts” dos 36 candidatos nas capitais nos cinco dias que se seguiram à morte geraram mais de 11 milhões de interações, sendo que apenas 2,5% delas trataram de racismo.
Marqueteiro da campanha de Boulos e daquela que elegeu Erundina em 1988, Chico Malfitani não usou o episódio 32 anos atrás nem pretende fazê-lo hoje. A única menção feita três décadas atrás foi nos segundos finais do último dia da propaganda eleitoral. O programa foi embalado por um tom de comemoração pela trajetória de Erundina na campanha. Ao final, ela dizia que a alegria nem sempre é completa e a dela havia sido abalada pela morte dos operários.
Se não explorou naquele momento em que ainda se tinha ódio e nojo da ditadura tampouco tem motivos para explorar hoje. Se, por um lado, Bruno Covas não é Paulo Maluf, o país hoje, diz, é mais reacionário: “O Brasil de 32 anos atrás estava ansioso por democracia. Agora tinha muita gente olhando o linchamento sem fazer nada”.
O marqueteiro de Boulos não atribui sua alavancagem entre homens negros com renda de até dois salários mínimos ao episódio, mas ao fato de o candidato hoje encarnar esse sentimento difuso de revolta que, dois anos atrás, beneficiou Jair Bolsonaro.
A canalização dessa revolta é pesada e medida porque o mote da campanha desde o início, na opinião de outra veterana em eleições, a diretora do Ibope, Márcia Cavallari, é a segurança. Aquela que indique ser possível sair da hecatombe que se abateu sobre o eleitor com a pandemia.
Em novembro de 2018, com a eleição de Bolsonaro ainda fresquinha, Márcia colocou uma pesquisa na rua para tentar identificar o perfil do eleitor. A fatia daqueles que se identificavam com a direita superava a soma dos eleitores de centro e de esquerda. Agora esta soma ultrapassa, com folga, os que se dizem de direita. Não porque a esquerda tenha crescido, mas graças ao centro, que se encorpou.
O racismo não é de esquerda, de centro ou de direita. É odiento. Mas este rechaço parece ter uma contida tradução eleitoral porque não é contra um candidato ou outro que se expressa, nem mesmo contra um presidente que o ignora, mas contra a intolerância que ainda paira no ar, como o vírus.
São tão grandes as incertezas da conjuntura que todos parecem movidos por um pacto de sobrevivência, guiado pela moderação. Há exceções, como a campanha do prefeito-bispo, no Rio, ou a lamentável disputa que sacode as tumbas ancestrais dos primos-candidatos no Recife. A batalha contra os fantasmas despertados em 2018 ainda demora.
Andrea Jubé: A lição de Patos para a sucessão em 2022
Centro-direita larga fragmentado para 2022
Os ingredientes da eleição para prefeito de uma cidade média no sertão paraibano alçaram-na ao patamar de microcosmo político do país, na visão de alguns cientistas políticos.
Projetando-se o cenário local para o plano nacional, em um criativo exercício de análise política, o resultado da eleição em Patos, na Paraíba, colocaria em xeque o sucesso de uma eventual chapa encabeçada pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro em 2022.
Uma premissa somente autorizada, ressalte-se, no contexto da recuperação da política tradicional como principal resultado do primeiro turno das eleições municipais.
Com 108 mil habitantes, o terceiro reduto de poder mais cobiçado da Paraíba - depois de João Pessoa e Campina Grande - foi palco de uma eleição acirrada, polarizada entre um “outsider” e um representante da “velha política”.
De um lado, concorreu o Juiz Ramonilson Alves, postulante do Patriota, que se aposentou para ingressar na política; na outra ponta, o ex-prefeito Nabor Wanderley, candidato do Republicanos.
Chamado de “Moro da Paraíba”, o Juiz Ramonilson encabeçou a chapa, com o DEM na vaga de vice. Nos discursos, afirmava que a solução para a cidade passava pelo combate intensificado à corrupção e pelo fim do monopólio político local.
Seu adversário era um legítimo representante da política tradicional, encabeçando uma coligação formada por Republicanos, PP, PSD, PSL, Rede e Cidadania. Nabor governou a cidade duas vezes, de 2005 a 2012.
Nabor respondeu a denúncias de corrupção, muitas delas julgadas por Ramonilson. No horário eleitoral e em entrevistas, acusou o ex-magistrado de persegui-lo há muitos anos, desde sempre com finalidades eleitorais.
Ao fim de um embate acalorado, Nabor alcançou 51% dos votos, contra 41% do Juiz Ramonilson. Um resultado local que refletiu o quadro verificado no plano nacional, considerado o placar das capitais e principais cidades brasileiras: a vitória da política tradicional sobre a “nova política”, da qual Jair Bolsonaro foi o expoente em 2018.
“A eleição municipal restaurou o sistema político, o “outsider” perdeu valor no mercado político e o centro institucional saiu consagrado”, disse à coluna o cientista político Nelson Rojas de Carvalho, professor do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Para ele, este resultado reduz as chances de “players” de fora da política cotados para a sucessão presidencial, como Sergio Moro e Luciano Huck.
O pesquisador aponta a derrota da “nova política” neste pleito, mas, não a do presidente Jair Bolsonaro como cabo eleitoral. Isso porque a eleição municipal não tem determinantes nacionais, mas, sim, consequências no plano nacional.
“A eleição municipal tem uma dinâmica local que gera efeitos nacionais”, argumenta o autor de “E no início eram as bases - Geografia política do voto e comportamento legislativo no Brasil”.
Ele aponta dois efeitos principais do pleito municipal no âmbito nacional: uma configuração mais sólida do quadro sucessório, e a composição de forças no Congresso Nacional na próxima legislatura.
O primeiro efeito do pleito municipal na sucessão presidencial, na visão de Nelson Rojas, é a fragmentação das forças de centro-direita, que tendem a avançar separadamente após o resultado deste ano.
Para o pesquisador, o desempenho do DEM, principalmente nas capitais, levará o partido a lançar candidatura própria em 2022. “O partido não aceitará ser vice do PSDB de novo”.
Um dos nomes colocados é o do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Correm por fora o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
No primeiro turno, o DEM reelegeu Rafael Greca, em Curitiba; Gean Loureiro, em Florianópolis; elegeu Bruno Reis em Salvador; e avança rumo à vitória de Eduardo Paes, que deverá governar o Rio de Janeiro pela terceira vez.
De igual forma, se o PSDB reeleger o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, não terá por que renunciar à cabeça de chapa na disputa presidencial em 2022. O nome mais provável é o do governador João Doria, embora o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, também seja cotado para a empreitada.
Mas se Covas for à lona, abatido pelo ativista Guilherme Boulos (PSOL), “o PSDB se perde”, e ficará difícil encabeçar a chapa, diz Nelson. Em especial, após o desempenho de Geraldo Alckmin em 2018, que obteve 4,7% dos votos válidos.
No espectro da esquerda, o pesquisador vê Ciro Gomes (PDT), ou um candidato apoiado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais competitivos numa conjuntura de crise econômica, em um paralelo com a Argentina, onde a derrocada levou à vitória de Alberto Fernández.
“Se a economia chegar em 2022 em um diapasão tolerável”, as chances aumentam para a centro-direita”, diz o professor, que foi colunista convidado do Valor.
O segundo reflexo das eleições municipais na conjuntura nacional, segundo Nelson Rojas, vai se consumar na eleição dos deputados federais e senadores para a legislatura de 2023-2026.
Ele afirma que a nova correlação de forças que emerge da eleição municipal vai se refletir na composição do novo Congresso, e os partidos que elegeram mais prefeitos serão hegemônicos no Legislativo. As seis siglas que mais conquistaram ou preservaram prefeituras foram MDB, PP, PSD, PSDB, DEM e PL, todos representantes do centro político.
Nelson discorda da interpretação de que o primeiro turno das eleições municipais foi um “plebiscito” sobre o governo Bolsonaro. Ele acha equivocado atribuir o mau desempenho do prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), ao apoio de Bolsonaro. O presidente perdeu, na sua visão, ao não conseguir organizar o seu partido, e com ele, ocupar espaço no pleito municipal.
Luiz Carlos Mendonça de Barros: A covid-19 contra-ataca
Esforço fiscal adicional precisa recair sobre as classes de renda mais elevada
Neste final de 2020, as incertezas sobre a perenidade da recuperação econômica em curso nos países mais importantes do mundo voltaram a crescer com a chegada da chamada segunda onda da pandemia. Inicialmente associada ao inverno no hemisfério norte, ela atinge também países, como o Brasil, situados abaixo da linha do Equador. Um “castigo” para as sociedades que não trataram a pandemia com o devido respeito. Felizmente a vacina contra a covid-19 será uma realidade ainda no primeiro trimestre de 2021 evitando que uma segunda rodada do isolamento social jogue a economia em nova recessão. O comportamento dos mercados nos últimos dias é uma prova desta afirmação.
Conhecemos hoje o cronograma desta batalha mortal entre o ser humano organizado em sociedade e a natureza representada pelo vírus. Surpreendidos pela rapidez e mortalidade com que o vírus se espalhou, os governos reagiram com as armas que o conhecimento científico coloca à sua disposição em momentos como este. E elas vieram tanto do campo das ciências, em especial da medicina, como da gestão da economia. O primeiro movimento foi o de definir um protocolo multidisciplinar de ações para enfrentar esse inimigo desconhecido e perigoso.
Gostaria de refletir neste espaço do Valor sobre os resultados deste protocolo na Economia, área em que me sinto profissionalmente mais qualificado. Os economistas e governantes já viveram momentos em que novos protocolos de ações tiveram que ser construídos para enfrentar situações inesperadas, mas com efeitos sociais e políticos explosivos. No caso da covid-19 os governantes foram buscar no passado ensinamentos para orientar suas ações emergenciais. O mesmo ocorreu aqui no Brasil e, na minha opinião, foi um dos mais exitosos e eficientes entre os que foram acionados por países emergentes e mesmo os desenvolvidos.
O Banco Central teve uma ação decisiva no mercado de crédito para as empresas, o que levou a uma expansão vigorosa ao longo do ano. Da mesma forma, via Copom, agiu rapidamente na acomodação das condições monetárias e na redução dos juros sob seu controle direto. Paralelamente o Ministério da Economia tomou várias medidas de expansão fiscal, tanto na ajuda financeira para Estados como para empresas e a parcela mais vulnerável da sociedade, compensando com seus recursos parte da brusca redução de renda criada pelo afastamento social e a recessão que se seguiu. Os números são hoje conhecidos e chegam a mais de 10% do PIB.
Além destas ações institucionais, as reações de consumidores e empresas vieram em ajuda no enfrentamento da crise. As economias de mercado têm esta capacidade de reagir de forma espontânea quando atingidas por eventos como a chegada da covid-19. Dois mecanismos merecem ser citados no caso do Brasil: de um lado a reação defensiva dos consumidores à recuperação rápida da atividade econômica sob os estímulos do governo criando um imenso pool de poupança privada adicional e que representa uma reserva de consumo para ser utilizada no ciclo de recuperação em 2021.
Outro estímulo natural criado no Brasil pela reação dos mercados foi a desvalorização de mais de 50% do real nos últimos seis meses, em um momento em que os salários privados ficaram praticamente estáveis em função da inflação baixa e do aumento do desemprego. Isto foi particularmente importante nos setores exportadores, mas também ajudaram a indústria com baixa exposição aos mercados internacionais pelo aumento de sua competitividade em relação as importações. Isto ocorre pois a folha de salários em US$ caiu praticamente 50% neste período, o que representou na prática a criação de um imposto de importação da ordem de 12% em vários mercados importantes. Como resultado, a produção industrial brasileira já é hoje 2% superior à de 2019 e um dos setores que mais rapidamente voltaram a crescer.
A recuperação rápida da atividade econômica no Brasil foi conseguida principalmente em função de uma expansão vigorosa dos gastos do governo em um momento em que a arrecadação corrente de tributos era reduzida pela recessão. Portanto era natural - e necessário - que seu déficit fiscal tivesse um grande aumento no período mais agudo da crise. Somente com o retorno do crescimento econômico sustentado a partir de 2021 é que o governo poderá voltar a uma situação orçamentaria de superávits primários que estabilize a curva da dívida pública.
A partir daí seria desejável que, junto com o Congresso, o governo criasse um protocolo de ações emergenciais para reduzir a corcova na dívida pública criada pelo enfrentamento da covid-19 e sinalizasse uma linha descendente de crescimento para o futuro. A dependência estrutural de nossa economia em relação à poupança externa nos obriga a trabalhar com um protocolo que incorpore valores aceitos pelos investidores internacionais. E deste protocolo fazem parte métricas sobre a expansão da dívida pública em uma linha do tempo de prazo mais longo. Dele deriva a importância do nível da dívida pública bruta em relação ao PIB e a perenidade do superávit primário como parâmetros a serem seguidos.
Mas este esforço fiscal adicional e temporal precisa recair sobre as classes de renda mais elevada na sociedade e que foram diretamente as mais beneficiadas pela recuperação rápida da economia. O mais justo seria o aumento da faixa superior do IR dos rendimentos de salário e a tributação com IR dos dividendos pagos pelas empresas privadas e públicas por um período finito de alguns anos.
*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.
Valor: “Fim das coligações produziu o melhor sistema eleitoral da história”, diz Nicolau
Votação por aplicativo, tese levantada pelo presidente do TSE, ameaça o sigilo, diz professor
Por Maria Cristina Fernandes | Valor Econômico
SÃO PAULO - Debruçado há três décadas sobre o sistema eleitoral brasileiro, o professor da Fundação Getulio Vargas do Rio, Jairo Nicolau, diz que as eleições municipais se realizam sob as melhores regras da história. Não tem dúvidas de que o fim das coligações nas eleições proporcionais oferecerá um maior controle do eleitor sobre o resultado das urnas e depuração do quadro partidário no Legislativo. A maioria das Câmaras de Vereadores do país reduziu o número de partidos lá representados. E, com isso, a hiperfragmentação da Câmara dos Deputados, quesito em que o Brasil se mantém no pódio mundial há muitos anos, também deve se reduzir. Por isso mesmo, já se iniciou um movimento para ressuscitar as coligações proporcionais.
Presença frequente em todas as discussões de reforma política no Congresso Nacional nos últimos anos, onde sempre advogou pelo fim das coligações proporcionais, Nicolau não acreditava mais que o dispositivo cairia quando, finalmente, em 2017, sua extinção foi constitucionalizada. Por isso, não se surpreendeu ao saber do movimento, liderado pelos pequenos partidos, pela volta do mecanismo. É a sobrevivência de sua representação na Câmara dos Deputados que está em jogo - “É um vexame nacional se vier a acontecer”.
Essas legendas viram a redução de seus exércitos de vereadores, com os quais contam para sua recondução. Nas contas de Nicolau, 15 partidos não chegaram a 2% dos votos para vereador em 15 de novembro. É esta a cláusula de desempenho para 2022. Com isso, o tema já entrou na barganha dos pequenos partidos na disputa pela Mesa da Câmara. Em alguns deles a discussão já é aberta - o apoio estará condicionado ao compromisso dos candidatos à Mesa com a flexibilização das regras. Não é um acordo fácil de ser operacionalizado. Até porque os partidos com mais chances de levar a presidência da Câmara estão entre aqueles mais beneficiados pelo fim das novas regras: PP, DEM, MDB e Republicanos.
Jairo Nicolau vê com ceticismo a proposta da federação de partidos como alternativa à coligação. Ao contrário desta, a federação vai além da conjuntura eleitoral e prevê a atuação conjunta dos partidos também ao longo da legislatura. O dispositivo já foi derrotado na Câmara. Para não ser uma burla à coligação, diz Nicolau, teria que ser uma federação nacional, de canto a canto do país, o que confronta as contingências regionais dos partidos.
O fim das coligações não é o único retrocesso que pode advir das eleições municipais. O atraso na contagem dos votos, amplificado pela militância de extrema direita, deu asas a teorias conspiratórias de fraude eleitoral. O presidente Jair Bolsonaro retomou a defesa do voto impresso e encontrou guarida em parlamentares como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Nicolau acompanhou de perto o tema quando o TSE, na gestão Gilmar Mendes, promoveu debates sobre o aprimoramento do processo eleitoral. Os engenheiros presentes alertaram para a inviabilidade técnica da alternativa pelo potencial de problemas que as impressoras podem causar. No limite, diz, o TSE poderia fazer a impressão do voto por amostragem.
Outra mudança aventada que Nicolau teme é a do voto pelo aplicativo. A questão chegou a ser levantada pelo presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, antes dos problemas com a apuração. Animado com a boa aceitação do registro da ausência no local de votação pelo aplicativo do TSE, ao qual se atribui, somado à pandemia, o aumento na abstenção, o ministro foi adiante e disse que o Brasil, um dia, também poderia votar pelo aplicativo. A mudança, diz o professor, não poderá ser feita sem anuência legislativa, uma vez que abre portas para a adoção paulatina do voto facultativo. E não apenas. Ameaça o sigilo do voto. “Não é fantasioso imaginar que se formem filas nos currais eleitorais para se ‘ensinar’ o eleitor a votar”, diz. É a volta - ou a modernização - do voto de cabresto.
César Felício: Esteios da governabilidade
Partidos que crescem não vão disputar Presidência
As eleições municipais registraram crescimento dos seguintes partidos na malha de prefeituras espalhada pelo país: PP (de 495 para 682), PSD (de 537 para 650), DEM (de 266 para 459), PL (de 294 para 345) e Republicanos (de 103 para 208). Estes cinco partidos somaram 1.695 conquistas em 2016. Foram 2.344 agora, ou 38% a mais.
Em comum, estes partidos têm a característica de estarem vocacionados para as eleições de caráter local e parlamentar. Não são legendas para disputar a Presidência, salvo às vezes fornecendo o nome para vice em alguma chapa, como fez o PP em 2018 e o DEM em 2010, acompanhando os candidatos tucanos. O PP não lança candidato próprio à Presidência desde 1994, quando ainda se chamava PPR. o DEM não o faz desde 1989, ocasião em que era o PFL. PSD, PL e Republicanos jamais o fizeram. São, portanto, coadjuvantes, e não protagonistas do jogo presidencial.
Os partidos que tradicionalmente são atores da eleição maior tiveram encolhimento de malha. O MDB (candidaturas próprias em 1989,1994 e 2018) caiu de 1.035 para 773. O PSDB minguou de 785 para 512. O PDT deslizou de 331 para 311. O PSB despencou de 403 para 250. E o PT saiu de 254 para 179. Somados, recuaram de 2.808 para 2.025, queda de 28%. A conta pode mudar um pouco com o segundo turno, mas nada que altere o eixo da Terra.
Sem legenda, Bolsonaro não fixou em lugar algum o bolsonarismo. Esta foi uma eleição em que o coração governista ficou de fora, salvo uma ou outra incursão desastrada do presidente por alguma eleição local.
O resultado da eleição tomado pelo atacado, ou seja, pela soma da quantidade de prefeituras conquistadas pelas grandes siglas, mostra uma diminuição da polarização e do efeito nacional sobre as eleições locais, que já não era lá muito grande.
Mesmo sendo bastante tênue, a polarização nacional ainda assim se refletia na competição pelas prefeituras. PT e PSDB viveram ciclos de crescimento nas bases municipais enquanto monopolizavam as eleições presidenciais, entre 1994 e 2014. Agora não há mais o corte entre bolsonarismo e antibolsonarismo. Nem como efeito da eleição de 2018, nem como projeção do que pode ser a escolha para o Legislativo e a presidencial em 2022.
Essa desideologização do pleito de 2022, em linhas gerais, indica uma tendência importante de PP, PSD, DEM, PL e Republicanos terem bancadas muito grandes depois da eleição que acontecerá dentro de dois anos. Passarão com louvor pelo teste da cláusula de barreira e darão cartas no próximo governo.
É no sentido de facilitar a governabilidade e o de darem alguma musculatura a quem tem pouca que estes cinco partidos serão muito disputados para alianças na próxima eleição presidencial.
PP e Republicanos já indicaram de forma claríssima a possibilidade de apoio a uma candidatura presidencial de Bolsonaro. É comentada a hipótese do presidente se filiar a um desses dois partidos.
A adesão ao bolsonarismo é muito menor em relação ao DEM e PSD. O DEM herdará o governo de São Paulo caso o tucano João Doria dispute a Presidência, o que não é pouco. O presidente da sigla, ACM Neto, sequer coloca à mesa um nome próprio para negociar alianças de 2022, o que é sugestivo. O presidente do PSD, Gilberto Kassab, coloca alguns, para valorizar o passe, e daí citou em entrevista à “Folha” os senadores Antonio Anastasia e Otto Alencar.
Os partidos que mais amealharam prefeituras podem dar ossatura para Bolsonaro e Doria na eleição presidencial de 2022, mas obviamente não lhes fornecem os votos para se elegerem. A dinâmica presidencial é outra. Permitem antever apenas, no caso de vitória de um ou de outro, base parlamentar relativamente tranquila para governar.
Pode-se perguntar onde está o MDB nesta análise. O MDB é um esteio da governabilidade que esmaece. Tinha 1.194 prefeitos depois das eleições de 2008, às vésperas de fechar a parceria Dilma/Temer vencedora de duas presidenciais. Era 35% maior do que hoje. O MDB hoje é mais uma entre as legendas que se candidatam a fiel de balança.
O jogo da esquerda é disputado nas grandes cidades. Guilherme Boulos mudou de patamar na política nacional, ainda que perca a eleição paulistana, como é provável. O PT não poderá olhar mais o Psol com a condescendência de um irmão mais velho, como faz hoje. Se José Sarto ganhar em Fortaleza, o PDT e Ciro Gomes se preservam do vexame das apostas erradas no Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo.
O duelo entre Marília Arraes (PT) e João Campos (PSB) pela Prefeitura do Recife terá consequências na eleição presidencial de 2022. A vitória de Marília tende a ameaçar a hegemonia do PSB no governo de Pernambuco e deste modo situar a sigla de modo definitivo no antipetismo. Pode ser uma boa notícia para Ciro.
Ganhando ou perdendo em Porto Alegre, Manuela d’Ávila será uma estrela a brilhar com força no PCdoB, partido condenado a morrer pela cláusula de barreira. É provável que o PCdoB, com o governador do Maranhão Flávio Dino à frente, procure uma incorporação branca a alguma sigla de esquerda ou centro-esquerda mais capacitada a sobreviver. PT parece o caminho mais natural, mas de nenhum modo é a única saída que resta.
E Luciano Huck? O apresentador de TV e candidato a ser um presidenciável pouco ou nada tem a ver com as eleições municipais. Sua possível candidatura dependerá do fracasso de outros atores. Huck se viabiliza caso tudo ou quase tudo dê errado para Doria e Bolsonaro. Vencida esta peneira, ele procurará os esteios da governabilidade já mencionados.
Fernando Abrucio: Lições para além da vitória do centro
Muitos creem que as eleições, nos EUA e aqui, apontam um novo caminho de centro para 2022. Faz sentido, porém, é preciso destacar que moderação política não significa inação
Marco Maciel, um dos políticos mais experientes do país, já dizia que uma eleição começa quando acaba a outra. No momento atual, o debate brasileiro multiplica esse provérbio: duas eleições recentes estão alimentando a discussão política, a presidencial americana e a municipal daqui. Inspirados pelo enredo e resultados de ambas, muitos acreditam que elas apontam um novo caminho para o pleito de 2022, no qual um novo centro teria grande espaço para conquistar a Presidência da República. A ideia faz sentido, mas é preciso evitar que ela não se transforme numa fácil e falsa fórmula eleitoral.
Inspirar-se efetivamente nessas duas últimas eleições seria buscar o seu sentido mais profundo, e não ficar na superfície do fenômeno. Se isso for feito, as descobertas irão além de um receituário para o novo centrismo, em contraposição ao Centrão e à polarização Bolsonaro versus Lula. Trata-se de entender os contextos, atores e projetos que deram materialidade à vitória de Joe Biden e Kamala Harris nos Estados Unidos, bem como as razões do triunfo dos políticos pragmáticos vencedores das eleições municipais de 2020.
De maneira sucinta, cinco elementos advêm dessas duas experiências eleitorais como lições para os que pretendem vencer o presidente Bolsonaro. O primeiro deles é que o desempenho do governante de plantão é a baliza básica do jogo político, especialmente quando ele busca a reeleição. No caso americano, a principal escolha estratégica de Biden foi mirar nos principais erros de Trump, colocando-se como o seu oposto nestes pontos, algo que foi facilitado pelo rotundo fracasso federal no combate à covid-19.
Para quem quiser seguir essa trilha, dois passos são necessários: definir quais são os pontos mais frágeis de Bolsonaro, centrando o foco neles, e começando a se construir como oposição a eles. Parece uma obviedade, mas o debate sobre novo centrismo brasileiro fala pouco de oposicionismo. Lembra-se muito da característica moderada de Biden - o que é verdade -, porém se esquece que sua moderação veio a serviço de uma oposição que não foi montada às vésperas da eleição.
Colocar-se mais claramente e o mais rápido possível como oposição, especialmente centrando a crítica nos pontos certos, é fundamental para se definir como um dos projetos alternativos ao governo Bolsonaro. Provavelmente haverá mais de uma proposta política em 2022, de modo que quem ficar esperando e apenas dourando a pílula não terá identidade política junto ao eleitorado. Definitivamente, moderação política não é inação.
Um bom exemplo da necessidade de contrapor claramente ao poder vigente vem de um dos mais brilhantes políticos de centro da história brasileira: Tancredo Neves. Ele só conseguiu o apoio da sociedade que queria acabar com a ditadura e, ao mesmo tempo, dos dissidentes do regime porque marcou sua posição contra o então governante, fez críticas certeiras durantes meses, sem que isso o impedisse de conversar com todos os lados. Cabe ressaltar que se Bolsonaro perder popularidade (e isso tem boas chances de ocorrer), mais a população e os políticos (inclusive governistas) vão começar a buscar alternativas. Qualquer novo centrismo tem que se mexer, o mesmo valendo para os opositores à esquerda.
Uma segunda lição que vem das eleições americanas e das disputas aos governos locais no Brasil é que o desempenho eleitoral depende muito das políticas públicas, mais fortemente quando há um candidato à reeleição. Muitas razões explicam a derrota de Trump, um dos poucos presidentes do pós-guerra que não se reelegeu. Mas é inegável que, quando analisadas as pesquisas de opinião, fica evidente o fracasso de seu governo. Segundo os eleitores, sua atuação na pandemia foi desastrosa, a política educacional foi ruim, a criação de empregos e de um colchão de proteção social diante da crise foi modesta. No computo final, a maioria do eleitorado preferiu votar olhando para resultados, em vez de se definir por guerras culturais.
De maneira inversa, os vitoriosos das eleições nas capitais brasileiras que buscavam a continuidade do governo tiveram seu sucesso muito atrelado à aprovação de suas políticas públicas. Daí que quem quiser usar essas lições eleitorais para pavimentar o caminho contra Bolsonaro precisa definir o atual governo como um fracasso de políticas públicas - na Educação, Saúde, Meio Ambiente, Direitos Humanos etc. - e apresentar alternativas simultaneamente críveis e desejáveis pela população. Esse debate é o terreno mais difícil para o bolsonarismo.
Dentro da agenda de políticas públicas, é preciso entender quais são as tendências que mais vão mobilizar os eleitores. Essa é outra lição, a terceira, para quem quiser vencer em 2022. A dupla Biden-Harris concentrou-se nas principais questões que poderiam engajar a maioria dos cidadãos: pandemia, desigualdades, questão racial, uma política menos polarizada, entre as principais, captando o espírito da época, o que foi expresso numa diferença de cerca de 5 milhões de votos.
Quais serão as principais tendências da eleição de 2022? É muito difícil cravar com certeza uma lista de prioridades porque em dois anos muita coisa pode acontecer. Mas parece que o espírito da época que vai marcar a próxima eleição presidencial vai ter na desigualdade, em suas várias facetas (de renda, regional, de gênero, racial e de acesso aos serviços públicos), o seu aspecto central. Além disso, a questão ambiental, ainda mais com a pressão externa, deve crescer de importância. Por fim, todo mundo quer que a economia ande, pois ninguém aguenta mais uma estagnação tão longa. Em outras palavras, pauta de costumes perde força quando o básico falta para a população.
Qualquer projeto oposicionista vai ter de dizer que com Bolsonaro o Brasil piorou. As qualidades da moderação centrista podem se sobrepor à polarização, mas esse grupo precisa estar antenado com as principais preocupações da população, trazendo respostas aos problemas que afligem à maioria do eleitorado. Em síntese, um novo centro só vai ganhar do bolsonarismo e da esquerda se interpretar melhor o espírito da época que vai alimentar as eleições de 2022. Não basta vender o bom-mocismo.
Além da compreensão do espírito da época, o sucesso da campanha presidencial no Brasil vai depender do grau de engajamento de setores estratégicos do eleitorado. A quarta lição aqui vem mais forte do caso americano, embora o caso paulistano recente tenha mostrado como Boulos foi muito sagaz em mobilizar o eleitorado jovem num momento de pouca participação das pessoas em comícios e afins. Quem quiser ter melhor sorte em 2022 precisará construir uma estratégia de comunicação envolvente, que atinja os grupos que podem decidir a eleição. Aliás, é neste ponto que o bolsonarismo tinha vantagem sobre as outras forças político-partidárias, como ficou claro em seu triunfo em 2018, apesar da dúvida que há hoje após o fiasco nas eleições municipais.
A dupla Biden-Harris foi capaz de fazer uma campanha que se colocou contra o histrionismo de Trump, ao mesmo tempo em que foi criativa e engajadora dos três grupos mais relevantes para a vitória democrata: os mais jovens, as mulheres e os negros. Ficam as perguntas: quais serão os setores decisivos na eleição presidencial de 2022? Como mobilizá-los, tanto na forma como no conteúdo? Essas duas questões são essenciais para todos os aspirantes à Presidência da República, sejam de esquerda, direita ou centro. Ser centrista não é uma forma óbvia de dar conta desses desafios. Criatividade, pluralismo e inserção social mais profunda serão muito mais importantes.
A construção das alianças será essencial, por isso fica aqui como a lição que finaliza o artigo. Entretanto, é engraçado que o debate brasileiro tenha começado neste ponto, quando deveria lidar com os quatro primeiros para desaguar neste último. De qualquer modo, a questão central é a seguinte: uma candidatura fora dos extremos precisa unir candidatos diferentes numa mesma chapa. Ou seja, se o presidenciável vem do centro ou centro-direita, tem de ter um vice mais à esquerda, e se vem da centro-esquerda, tem de ter uma companhia mais ao centro (ou centro-direita). Essa foi a fórmula democrata, que aliás também procurou construir uma parceria entre dois atores políticos com características distintas - um homem e uma mulher, um branco e uma negra, um da costa Oeste e outro da Leste. Isso tem de ser adaptado para as circunstâncias brasileiras, encontrando que tipos de coisas diferentes devem ser unidas para produzir uma chapa competitiva.
Em suma, encontrar uma estratégia para se organizar como oposição ao bolsonarismo, focar no debate das políticas públicas (calcanhar de Aquiles de Bolsonaro), entender quais são as tendências predominantes que importam aos eleitores, construir um modelo de engajamento e comunicação que atue sobre grupos estratégicos do eleitorado, e, por fim, montar uma aliança presidencial entre diferentes, são as peça-chave para se ter uma candidatura bem-sucedida em 2022. Ser de centro ou ter apoio de parcelas importantes do centrismo são características que podem ajudar nesta tarefa, mas com certeza isso não é suficiente. Biden entendeu isso, bem como os pragmáticos que venceram as eleições municipais de 2020.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.