valor

Andrea Jubé: O governo claudicante

Disputa na PF pode desencadear guerra de vazamentos

Quando o governo Bolsonaro começou, gerando altas expectativas sobre o combate à corrupção e às reformas estruturantes, predominava a percepção de que se sustentava sobre três pilares: os dois superministros Sergio Moro (Justiça) e Paulo Guedes (Economia), e o núcleo militar.

Passados 16 meses, o primeiro pilar ruiu com a saída de Moro, símbolo da Lava-Jato, enquanto os outros dois entraram em processo de erosão.

Com o governo agora claudicante, Bolsonaro tenta se equilibrar sobre uma base tão sólida como areia movediça, formada pelo Centrão e um bloco de deputados sem partido, exilados no PSL, que aguardam o Aliança pelo Brasil.

Se o governo coxeia, Sergio Moro caiu de pé, como revelou a recente pesquisa digital da Consultoria Atlas Político, mostrando que sua popularidade continua mais alta que a do presidente.

O ex-ministro saiu atirando, guardou munição para o futuro e levou com ele uma ala expressiva da Polícia Federal, que não abdicará do combate à corrupção e não aceitará o risco de esvaziamento da Lava-Jato.

Esse recado foi transmitido pela Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), em carta aberta ao presidente Jair Bolsonaro. A entidade alertou que a exoneração de Maurício Valeixo e a demissão de Moro instalaram uma “crise de confiança”, e por isso, o próximo diretor-geral terá de demonstrar que assumirá para cumprir “missão politica”.

O pule de dez para o lugar de Valeixo, como já divulgado, é o diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, que tem laços de amizade com Bolsonaro e seus filhos. Confrontado na rede social sobre essa relação, Bolsonaro desdenhou: “e daí?”

O desdém é arriscado como um salto de paraquedas. A associação dos delegados recordou que o último comandante da PF que assumiu o órgão em contexto semelhante “teve um período de gestão muito curto”. Escolha pessoal do então presidente Michel Temer - alvo de investigações da PF - o delegado Fernando Segóvia passou três meses no cargo.

A entidade também explicou ao presidente que as atividades da PF são sigilosas, somente os responsáveis em promovê-las acessam os documentos, e o mesmo se aplica aos relatórios de inteligência. Mas ontem Bolsonaro discordou da associação no Twitter: “A Polícia Federal... é parte do Sistema Brasileiro de Inteligência, que alimenta com informações o Presidente da República para tomada de decisões estratégicas”.

A se consumar a nomeação de Ramagem em meio à “crise de confiança”, pode desencadear uma disputa interna na Polícia Federal entre lavajatistas e bolsonaristas, com o risco de abalar ainda mais o governo, emparedado por três crises graves simultâneas: política, econômica e sanitária. A pandemia da covid-19 já fulminou quase cinco mil brasileiros - muitos sem acesso à infraestrutura, como respiradores ou leitos de UTI, que poderiam poupar vidas.

O embate interno na PF pode provocar uma guerra de vazamentos na imprensa, com a exposição de informações sigilosas que podem prejudicar o governo ou seus antagonistas. O primeiro tiro foi disparado: um dia após a saída de Moro, a imprensa veiculou a informação de que o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) seria o “mentor” do esquema de notícias falsas impulsionadas nas redes sociais contra adversários do governo, segundo investigação da Polícia Federal no inquérito das Fake News em andamento no Supremo Tribunal Federal, sob a guarida do ministro Alexandre de Moraes.

Impossível inferir a origem do vazamento, mas foi um tiro de advertência. A presença de Carlos como investigado nesse inquérito, até então, era uma suposição. Há farto material de conteúdo político explosivo e suscetível de vazamentos sob a guarda da PF, do Ministério Público e do STF.

A técnica de vazamentos estratégicos na imprensa marcou a Lava-Jato e era considerada uma arma para conquistar o apoio da opinião pública. Moro já registrou que a tática, empregada na Operação Mãos Limpas, serviu a um propósito útil. “O constante fluxo de revelações manteve o interesse do publico elevado e os lideres partidários na defensiva”, argumentou, em artigo publicado em 2004.

Bolsonaro está convencido de que o inquérito das Fake News é artilharia do STF para abreviar o seu mandato. A tese não se confirma, mas o cerco judicial cresce em torno do governo.

Em uma semana, abriram-se duas novas investigações que, direta ou indiretamente, miram o presidente: a primeira, para apurar quem organizou e financiou os atos antidemocráticos do último dia 19, de que Bolsonaro participou. E a segunda, relativa às denúncias de Sergio Moro, de que Bolsonaro tentou interferir politicamente na PF. Essa investigação é considerada sensível para ambos os lados: se o ex-ministro não comprovar as acusações, pode responder por crime de denunciação caluniosa.

Em meio ao confronto com a PF, Bolsonaro agiu rápido para conter a escalada dos rumores de perderia outra perna do governo, com a iminente saída de Paulo Guedes. O “Posto Ipiranga” foi escanteado e desafiado diante do anúncio do Plano Pró-Brasil, apoiado pelo núcleo militar, que colocou em xeque o teto dos gastos públicos e o compromisso de ajuste fiscal.

“O homem que decide a economia é um só: chama-se Paulo Guedes”, ressaltou Bolsonaro ontem logo pela manhã, na porta do Alvorada. Foi a segunda vez em dois meses que Bolsonaro teve que sair em defesa de Guedes. Tanto empenho é alarmante por se tratar de um dos pilares de sustentação do governo.

Em fevereiro, o presidente disse ter a convicção de que Guedes fica com ele até o fim. “O Paulo Guedes não pediu para sair. Aliás, eu tenho certeza que, assim como ele é um dos poucos que conheci antes das eleições, ele vai continuar conosco até o último dia”.

Na outra ponta, emerge a ala militar, cada vez mais expressiva no primeiro escalão. Depois da saída de Moro, pelo menos um ministro do núcleo militar palaciano telefonou para alguns jornalistas para assegurar que os militares não abandonarão Bolsonaro. Estes auxiliares podem não sair, mas há representantes da cúpula das Forças Armadas que nunca entraram no governo, não o apoiam cegamente e não dão sinais de mudar de ideia.

Em suma, sem Moro, Bolsonaro fica sem uma das pernas do tripé original de sustentação do governo, mas pode perfeitamente caminhar com duas. Mas se perder Paulo Guedes, o governo Bolsonaro terá de pular como um saci.


José Graziano da Silva: Desigualdade, vírus da segunda onda

A pandemia provavelmente tornará todas as regiões do Brasil vulneráveis à fome

Empregos informais e instáveis, muitos deles dependentes do movimento das ruas; crianças e adolescentes dependentes da merenda escolar para assegurar uma refeição diária e saudável; saneamento básico deficitário, com acesso intermitente à água corrente; condições precárias de habitação, que abrigam famílias numerosas em espaços reduzidos. A desigualdade endêmica do nosso país será o verdadeiro vírus a atingir a “segunda onda” de infecção, a da economia global e sua imediata consequência, o crescimento da miséria e da fome no mundo.

Vale recordar que a desigualdade social no Brasil é estrutural. Lembremos que, em 1974, ao criticar as políticas praticadas pela ditadura militar, o economista Edmar Bacha se referia à “Belíndia” como um país dividido entre os que moravam em condições similares à Bélgica e aqueles que tinham o padrão de vida da Índia. Tal desigualdade brasileira, estabilizada em nível tão alto, se explica pela alta e histórica concentração de riqueza, especialmente do patrimônio imobiliário, pela falta de um imposto mais taxativo para herança, especificamente a da propriedade de terra rural que é extremamente concentrada.

No início do novo milênio, milhões de brasileiros conseguiram se ver livres da fome e da pobreza extrema - em menos de 10 anos. Isso só foi possível graças à implementação de uma política de segurança alimentar e programas de transferência de renda - aliados à iniciativas de fortalecimento da agricultura familiar, de acesso à alimentos e de articulação e mobilização social - a partir do primeiro governo Lula da Silva.

Infelizmente, a partir da década passada, com o acirramento da crise econômica e a desaceleração dos investimentos sociais, a pobreza no Brasil voltou a ter aumento significativo. Segundo relatório do Banco Mundial do ano passado, quase 21% da população brasileira vivia em situação de pobreza entre 2014 e 2017, contra 17,9% daqueles registrados em 2014. No mais, segundo a Pesquisa Nacional de Domicílios (Pnad) do IBGE, a desigualdade dos rendimentos autodeclarados entre 2012 e 2018 cresceu significativamente a partir de 2016 até 2018.

O contínuo crescimento do desemprego e a redução das transferências de renda a partir de 2015 acarretaram também o empobrecimento da classe média, incluindo a parcela significativa de pessoas que haviam ascendido socialmente durante os dois governos do ex-presidente Lula, como mostrou o Panorama Econômico da Cepal de 2019. Agora, a necessidade emergencial de se implementar programas de renda para milhões de brasileiros durante três meses em meio à epidemia apenas expõe a frágil política de empregos no Brasil, que desprezou a geração de postos de trabalho com carteira assinada e com direitos mais estáveis.

A desigualdade em tempos de covid-19 também se reflete na própria exposição à doença. De acordo com o estudo “Covid-19 e desigualdade: a distribuição dos fatores de risco no Brasil”, de Luiza Pires, Laura Carvalho e Laura Xavier, “a incidência de comorbidades - doenças crônicas associadas aos casos mais graves da covid-19 - é muito maior entre os brasileiros que só frequentaram o ensino fundamental do que nos demais grupos: 42%, ante 33% na média da população. Tais achados estão em linha com estudos anteriores, que encontraram, por exemplo, uma maior incidência de diabetes entre os mais pobres no Brasil e no mundo”.

Como se sabe, a diabetes, além da hipertensão e das doenças do coração, é uma das principais consequências da obesidade para a saúde. E a obesidade, assim como a fome, são faces da mesma moeda: a falta de renda para se ter acesso a uma alimentação adequada, saudável e de qualidade de forma constante. Segundo dados de 2018 do Ministério da Saúde, 1 em cada 5 brasileiros é obeso, sendo 55% homens e 45% mulheres.

Fato é que a covid-19 escancarou a negligência dos últimos governos brasileiros em combater nossa endêmica desigualdade. E isso tem relação íntima com a desidratação da coordenação das políticas de segurança alimentar, exemplificadas pela dissolução do Consea, pelo enxugamento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e pela ameaça de privatizar a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Esse desmonte já vinha se refletindo num aumento da insegurança alimentar da população mais carente, principalmente no Norte e Nordeste, mas a pandemia possivelmente tornará todas as regiões brasileiras mais vulneráveis à fome.

Há, ainda, dimensões significativas e ainda pouco ou mal equacionadas. A covid-19 expõe uma crescente dificuldade de os agricultores familiares entregarem seus produtos. Há um corte nos canais de abastecimento dos produtos frescos, pois feiras livres e mercados diretos foram reduzidos em meio ao controle social. Já há relatos de agricultores sendo obrigados a desperdiçar frutas, legumes e verduras, sem contar outros alimentos perecíveis, como o leite. Sem apoio para o escoamento, podemos testemunhar uma total desarticulação da pequena produção familiar, o que é muito preocupante: são eles que provêm grande parte dos alimentos que consumimos nas cidades.

E o que fazer para se evitar isso?

O mais importante é combater e proibir a especulação no preço dos produtos alimentícios. Temos de evitar o pânico generalizado das pessoas que vão às compras: elas não podem formar estoques de comida, como fizeram com as máscaras e o álcool-gel, senão o sistema de fornecimento de alimentos não vai resistir. Precisamos de um controle da especulação por meio de organismos de defesa do consumidor, de fiscalização de preços.

Já está ocorrendo algo do gênero com o feijão. Estamos em plena safra e o preço disparou, não há nenhuma razão para tal. O governo tomou uma medida importante nessa linha em relação aos produtos farmacêuticos. Deveria agir da mesma forma em relação aos produtos da cesta básica. Não se trata de congelamento de preços, mas de acompanhar, fiscalizar, inspecionar.

Também é fundamental fazer da cidade o centro da política de segurança alimentar nessa pandemia. Temos de fortalecer ações em nível local: é ali que as pessoas estão confinadas, onde moram e onde têm de comer. Há uma série de medidas e programas específicos para fortalecer seu papel no abastecimento alimentar, e elas têm de ser colocadas em prática.

*José Graziano da Silva foi diretor-geral da FAO.


Luiz Carlos Mendonça de Barros: Olhando com otimismo para 2021

As três maiores economias entrarão em ciclo de crescimento, e garantindo a emergentes a saída da recessão

Estamos entrando em uma segunda fase da crise mundial provocada pela covid-19, com os efeitos da quarentena social chegando de forma agressiva às economias nacionais. O primeiro impacto, provocado pelo pânico que atingiu investidores e instituições financeiras no mundo todo, está controlado pela ação conjunta dos bancos centrais.

A lição de 2008 foi aprendida e desta vez o protocolo definido após 2008 não foi só rapidamente aplicado, como expandido por outras medidas ainda mais heterodoxas.

Para o enfrentamento desta segunda fase as lições do passado não foram suficientes pela natureza diferente do choque negativo que atingiu simultaneamente a operação de empresas e a renda dos salários de trabalhadores e arrecadação de impostos dos governos.

Felizmente a leitura deste choque feito por economistas e governos nacionais foi rápida e correta ao identificar o verdadeiro apagão de renda que iria ocorrer nas economias de mercado pelo tempo em que o afastamento social durasse. Em pouco tempo construía-se um protocolo de natureza keynesiana para enfrentar a recessão que se seguiria.

As aprovações das medidas deste protocolo estão ainda em andamento na maioria das democracias, mas será uma questão de tempo para que seja mitigado o impacto deflacionário que vamos sofrer nos próximos meses evitando uma verdadeira depressão econômica. Os primeiros dados já conhecidos na Europa e Estados Unidos não deixam dúvidas sobre a intensidade da queda da atividade que vamos viver pelo menos até o terceiro trimestre deste ano. Queda de mais de 6% do PIB, em muitas das maiores democracias, não parece ser previsão muito pessimista.

Mesmo com uma visão otimista quanto ao controle da covid-19 - o que ocorreu na China e já está sendo visto nas maiores economias nos permite assim proceder - apenas na virada do ano é que teremos sinais mais claros de uma retomada da atividade econômica de caráter mundial. Mas ela vai ocorrer em cenário com um grande hiato do produto e com um quadro deflacionário preocupante. A China será uma exceção pelo sucesso obtido no controle da doença, e pela rapidez com que a atividade econômica está se normalizando. O FMI prevê um crescimento de 1,5% em 2020 seguido de uma expansão de 9% em 2021 em função de um programa de estímulos fiscais e monetários -- que certamente virá - como ocorreu em 2010.

Nos Estados Unidos, outro pilar da economia mundial, também chegaremos ao quarto trimestre deste ano com uma economia em recessão, mas com um hiato elevado do produto e um mercado de trabalho com bastante folga também. Mesmo com as incertezas de um novo presidente, podemos afirmar que haverá no Congresso um segundo grande esforço de estímulos fiscais para colocar a economia em uma rota mais clara de recuperação e uma redução do desemprego. Se estiver certo, teremos na virada do ano e durante 2021 as duas maiores economias do mundo lado a lado com uma volta do crescimento econômico.

Mesmo a Europa - sempre atrasada pela heterogeneidade política de seus membros - está para finalizar a implantação de uma ajuda fiscal via o chamado “multiannual financial framework (MFF)” com mais de US$ 1 trilhão de recursos como afirmou recentemente Úrsula von der Leyen, presidente atual da Comissão Europeia. Estes recursos vão certamente acelerar a recuperação econômica dos países em maior dificuldade como Espanha, Itália, Grécia e do Leste europeu. Desta forma as três maiores economias do mundo devem - ao longo do quarto trimestre - entrar em um ciclo de crescimento positivo garantindo para o mundo emergente uma condição de - embora mais lentamente - sair da armadilha da recessão ao qual estão hoje destinados.

Neste cenário de crescimento com políticas monetárias extremamente expansionistas - e, portanto, com juros reais muito baixos - lentamente parte dos capitais internacionais que fugiram para os EUA ao longo dos últimos meses voltarão a se posicionar, como sempre aconteceu no passado, no mundo emergente. Neste cenário o Brasil deve receber um empuxo externo via as exportações de commodities e a volta do investimento estrangeiro principalmente no setor de infraestrutura, viabilizando novamente o ambicioso processo de privatizações atualmente em stand by no governo Bolsonaro. Os dados da conta corrente e da entrada de investimento estrangeiro de março último já mostram o início deste processo.

Sei que serei chamado de otimista com este meu modelo para a evolução da economia mundial e brasileira em 2021, mas apenas repliquei nesta coluna o que acompanhei no passado quando acontece um alinhamento de dimensão mundial do início de um ciclo econômico de crescimento. Mercado de trabalho sem tensões, preços das principais commodities também em seu ciclo de baixa - o que garante um mundo sem inflação - combinados com uma imensa liquidez ao nível mundial serão incentivos suficientes para que os traumas e efeitos colaterais sofridos por empresas e consumidores sejam substituídos por expectativas mais favoráveis.

Ficará apenas - para ser tratado mais a frente com a volta do crescimento econômico - um aumento generalizado do endividamento dos governos centrais, a começar pelos Estados Unidos. Neste sentido serão os países emergentes como o Brasil que vão precisar de um programa do estilo defendido por Keynes em 1940 em seu extraordinário texto chamado “ How to pay for the War”.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


Bruno Carazza: No que vai dar a crise?

28 anos depois, a mesma pergunta e as mesmas opções

A capa da revista “Veja” de 1º de julho de 1992 trazia uma pergunta que voltou a circular no Brasil desde sexta-feira: “No que vai dar a crise”? As opções eram as seguintes: a) impeachment; b) renúncia; c) parlamentarismo já; d) Collor continua, forte; e) Collor continua, fraco. Àquela altura dos acontecimentos, a revista cravava a última alternativa como a mais provável.

A despeito das fortes denúncias de corrupção envolvendo o então presidente e seu tesoureiro de campanha PC Farias, a princípio pouca gente acreditava que a CPI criada para investigá-los realmente levaria ao fim prematuro do governo.

Desde que seu irmão Pedro o acusou, Collor articulava nos bastidores para encontrar uma saída. Uma trama de negociações começou a ser costurada com os poderosos Antonio Carlos Magalhães e Jorge Bornhausen (caciques do PFL, atual DEM), Ulysses Guimarães (presidente do PMDB, hoje MDB) e Mário Covas (líder do PSDB) e tudo parecia indicar que fechariam um acordo: lançariam PC Farias aos leões da CPI e da opinião pública, enquanto Collor seria poupado, loteando seu ministério à coalizão formada pelos maiores partidos de então.

Nas últimas três semanas Bolsonaro movimentou-se intensamente na direção de partidos que podem lhe dar proteção para enfrentar a crise. De acordo com sua agenda oficial, divulgada na página do Palácio do Planalto na internet, o presidente recebeu recentemente lideranças do PP (Ciro Nogueira), Republicanos (Marcos Pereira), PSD (Gilberto Kassab), Democratas (ACM Neto), MDB (Eduardo Braga e Baleia Rossi) e PL (Jorginho Mello). Dada a frequência das visitas dos deputados Fábio Faria (PSD-RN) e Arthur Lira (PP-AL), ambos herdeiros de famílias tradicionais de políticos, Bolsonaro está buscando não apenas uma conexão com o Centrão, mas também com os clãs nordestinos.

Um acordo entre Bolsonaro e os principais partidos do Centrão sempre fez sentido. Eles partilham de uma visão conservadora da sociedade, encaram a política como um meio de perpetuar seu poder e de sua família e não têm pudores de trocar de lado caso as circunstâncias mudem. A grande questão que se coloca, hoje, é o timing dessa aproximação.

Bolsonaro poderia ter feito essa opção assim que tomou posse - afinal de contas, um contingente enorme de deputados e senadores foi eleito com o apoio dos mesmos “ismos” que o conduziram ao Palácio do Planalto, como o antipetismo, o lavajatismo, o liberalismo na economia e o conservadorismo nos valores morais. Com popularidade em alta, o ex-capitão poderia ter abrigado em seu ministério representantes dessas correntes vindos do Centrão, e assim teria consolidado sob a sua liderança uma base governista praticamente imbatível.

Mas não foi esse o caminho escolhido, e agora o preço subiu bastante. Desgastado nas últimas semanas, o presidente senta-se à mesa de negociações com muito menos cacife do que possuía em janeiro de 2019. Uma parte de seus apoiadores originais já tinha abandonado o barco com a condução errática do país em meio à pandemia e um outro tanto desertou junto com Sergio Moro. Após 16 meses maldizendo o “toma lá dá cá” e a tal “velha política”, será difícil para Bolsonaro explicar para o seu eleitor-raiz essa mudança de rumo - e uma nova leva de bolsonaristas pode virar a casaca.

Hoje em dia Bolsonaro também tem muito menos a oferecer ao Centrão. É óbvio que sempre existirão cargos e orçamento a distribuir, mas com uma severa recessão mundial à espreita, o butim encolheu significativamente. Em vez de sócios na época de prosperidade e fartura prometida por Paulo Guedes há bem pouco tempo, deputados e senadores do Centrão poderão se tornar devedores solidários num governo quebrado em meio a milhões de desempregados e empresários falidos.

Em qualquer curso de negociação aprende-se como a credibilidade é importante. Desde o fim da ditadura, a maioria dos presidentes brasileiros enfrentou graves crises econômicas ou de governabilidade que colocaram em risco o comando do país. Collor e Dilma sucumbiram - e não por acaso, eram aqueles com menor habilidade política. Sarney, FHC, Lula e Temer, todos eles macacos-velhos em lidar com o Congresso, de uma forma ou de outra driblaram as adversidades e chegaram ao fim dos seus mandatos.

Em quase três décadas como deputado, Bolsonaro nunca se notabilizou pela liderança - ao contrário, o baixo clero foi sempre a sua casa. Alçado à Presidência do país, nunca se empenhou em criar um clima positivo com o parlamento. Diante desse histórico, os partidos do Centrão não têm quaisquer garantias de que seu apoio terá como contrapartida estabilidade e segurança por parte do Palácio do Planalto.

Para completar o quadro, a incerteza quanto ao futuro é outro obstáculo à celebração de um pacto com o Centrão. Depois das denúncias apresentadas pelo ex-ministro Moro, ninguém sabe o que ainda pode sair da caixa de Pandora das investigações levadas a cabo pela Polícia Federal a respeito do envolvimento de seus filhos com a disseminação de “fake news”, o escândalo das rachadinhas e a atuação das milícias.

Na crise do governo Collor, a negociação com os principais partidos ruiu à medida que se acumularam evidências do relacionamento do ex-presidente com as atividades criminosas de PC Farias e o favorecimento de sua família - e a população, em massa, foi às ruas pedir a sua cabeça. Poucas semanas após a publicação da capa da revista “Veja”, as apostas rapidamente mudaram do prognóstico “Collor continua, fraco” para “impeachment”. E ao final resultaram em “renúncia”.

Pouca credibilidade, apoio popular em queda, uma forte recessão à frente e incertezas quanto à lisura das atividades de seus filhos - por mais lucrativo que seja fazer parte do governo, é difícil vislumbrar o que o Centrão teria a ganhar com uma associação a Bolsonaro nas condições atuais de seu mandato.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Valor: Vírus devasta mercado de trabalho, diz Ibre

Boletim Macro projeta queda de 10,3% na renda expandida e desemprego de 17,8% este ano

Por Arícia Martins e Anaïs Fernandes, do Valor Econômico

SÃO PAULO - A crise provocada pela pandemia do novo coronavírus deixará uma herança negativa mesmo após a doença ter sido controlada, sobretudo no mercado de trabalho. Segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), a taxa de desemprego, a massa salarial e a massa total de renda terão em 2020 o pior desempenho de suas séries históricas, mesmo com as medidas do governo para amenizar a perda de vagas e salários.

Na edição de abril do Boletim Macro, antecipado ao Valor, o Ibre estima que, sem as políticas governamentais, a massa de rendimentos ampliada cairia 10,3% no ano. Incluindo as transferências de auxílio emergencial para informais, os benefícios do Bolsa Família e compensação de parte da renda para trabalhadores formais que entrarem na Medida Provisória 936, a redução será de 5,2% - queda mais forte da série elaborada pela entidade, iniciada em 2003.

Nessa conta, além da renda do trabalho, são considerados benefícios previdenciários e de assistência social. Já a massa de renda real dos ocupados deve encolher 14,4% em 2020, com recuo de 6,6% da população ocupada e de 8,6% do rendimento médio efetivo. Assim, calcula o pesquisador Daniel Duque, a massa de renda do trabalho terminará o ano 3,2% abaixo do nível do começo da série do IBGE, em 2012.

Já a taxa de desemprego do país, medida pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, deve alcançar 17,8% na média anual, vindo de 11,9% em 2019. Este também seria o pico da série retropolada do Ibre para a Pnad, que tem dados desde 1981.

Coordenadora técnica do Boletim Macro, Silvia Matos afirma que as medidas do governo são mais efetivas para sustentar a renda do que a ocupação. Isso porque, diferentemente da crise financeira de 2008 e 2009, o choque atual atingirá em cheio o setor de serviços, que concentra 70% da mão de obra e 60% dos trabalhadores informais.

“Esta crise é muito diferente e, potencialmente, pode gerar mais destruição de empregos”, disse Silvia, que participou ontem da “Live do Valor ” com o tema Conjuntura em tempos de pandemia. Na transmissão, Silvia falou dos impactos da covid-19 já detectados sobre a economia brasileira e sobre os que estão por vir.

O coronavírus atinge o Brasil num momento em que o mercado de trabalho já estava mais frágil, observou ela. O contingente de trabalhadores informais e conta própria com CNPJ subiu, em média, 3% ao ano de 2017 a 2019, destacou, bem acima do ritmo do PIB e do setor formal. “Era um setor que podia ofertar trabalho, a despeito da fraqueza da economia. Agora, a crise bate diretamente nesses segmentos e por isso é difícil que o governo consiga preservar mais empregos.”

Por isso, comentou a pesquisadora, as políticas governamentais para atenuar a redução da renda são importantes, já que manter o nível de ocupação é mais complicado. “Provavelmente, não vamos salvar tantos empregos formais [quanto seria possível]”, afirmou.
Isso porque, em sua visão, dificuldades para normalizar o processo de implementação das medidas e para garantir segurança jurídica a empresas e trabalhadores fizeram com que o governo “perdesse um pouco de tempo”.

De acordo com Duque, os dados de março já começaram a refletir os efeitos econômicos da pandemia. Em seus cálculos, os desempregados representaram 12,7% da força de trabalho no primeiro trimestre, percentual que foi de 11,6% nos três meses terminados em fevereiro. Já o rendimento médio real efetivo ainda deve ter alta de janeiro a março, de 1% ante igual período de 2019, mas terminará 2020 em nível 8,6% menor do que o do ano passado, aponta o pesquisador.

“O cenário é de grande perda de empregos e renda. A composição das perdas também dificilmente será homogênea, e será dependente das políticas públicas adotadas”, diz Duque. No mercado formal, ele destaca o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, que possibilita a suspensão do contrato ou redução dos salários, com compensação parcial do governo pelo seguro-desemprego.

O governo, menciona o economista, prevê que 70% dos ocupados no setor privado estarão sob esse acordo nos próximos meses, o que corresponde a cerca de 25 dos 35 milhões de empregados nesta categoria. “No entanto, até 15 de abril, apenas 1,7 milhão de trabalhadores estavam sob esse novo regime, colocando em dúvida a escala efetiva que tal política terá”, pondera Duque.

No mercado informal, o custo de manutenção das atividades é menor em relação ao setor formal, mas, enquanto a circulação de pessoas estiver restrita, grande parte dos empregos será afetada, comentou ele, ainda que esses postos de trabalho possam ser recuperados após a crise.

Para Silvia, é possível pensar em início de normalização do mercado de trabalho brasileiro em 2021, mas esse processo não vai mudar o elevado nível de informalidade na economia. “Infelizmente, em 2021 acho que a gente volta para um patamar nesse sentido, com informalidade ainda mais alta do que quando começou a crise.”


Naercio Menezes Filho: Pandemia, pobreza e política

Se todas as pessoas enquadradas receberem a renda emergencial a pobreza extrema seria praticamente eliminada

A pandemia da covid-19 está provocando várias mudanças em quase todos os países do mundo. Ela está afetando o modo de vida das pessoas, os empregos, os preços dos ativos, o funcionamento dos negócios, a pobreza e a desigualdade.

Essas transformações são especialmente difíceis para as famílias mais pobres, que estão no setor informal, não têm poupança e, portanto, precisam de rendimentos diários para poder sustentar suas famílias. O que poderá acontecer com as crianças nessas famílias? Será que o programa de renda básica emergencial será suficiente para protegê-las? Quais serão os efeitos dessa crise sobre a popularidade do presidente?

Vários estudos acadêmicos mostram que o estresse materno durante a gestação afeta o desenvolvimento dos bebês, diminuindo seu peso ao nascer e sua produtividade futura. Assim, a incerteza das mães com relação às suas condições econômicas para comprar comida e o receio de ficarem doentes já estão afetando as crianças que irão nascer esse ano, os “filhos do Coronavírus”.

Sabemos também que a velocidade do desenvolvimento cerebral é muito maior nos primeiros anos de vida do que nos demais períodos. Nessa fase, a criança precisa viver num ambiente tranquilo, mantendo interações saudáveis com seus pais. Mas a crise está fazendo com que muitas pessoas estressadas fiquem o tempo todo juntas, em casas muito pequenas. Isso pode provocar alterações no cérebro da criança que poderão fazer com que ela não desenvolva as habilidades necessárias para o aprendizado. Quantas famílias terão que passar por isso?

Um novo estudo mostra que cerca de 37 milhões de brasileiros trabalham em ocupações e setores vulneráveis ao distanciamento social, ou seja, extraem seus rendimentos diretamente de venda de produtos a pessoas, prestação de serviços ao público e a empresas em áreas urbanas. Esses setores empregam desproporcionalmente mais mulheres, negros, empregados sem carteira assinada e trabalhadores por conta própria, que ganham salários mais baixos e vivem em famílias mais pobres do que os trabalhadores nos demais setores.

Nossas simulações indicam que numa situação limite, em que todos os trabalhadores informais desses setores perdessem o emprego, a taxa de desemprego iria para 28%, a pobreza passaria de 17% para 23%, o Gini aumentaria de 0.55 para 0.59 e a renda domiciliar per capita cairia 8%. O Estado que mais sofreria nesse caso seria o Amapá, em que a pobreza aumentaria 12 pontos percentuais, pois tem a maior concentração de trabalhadores informais em setores vulneráveis.

Para atenuar os impactos do distanciamento social nas famílias, o Congresso aprovou, após pressão da sociedade civil, o programa de Renda Básica Emergencial, que está sendo implementado pelo governo federal. Esse programa atende as pessoas com mais de 18 anos de idade, que não estão empregadas no setor formal, não recebem aposentadoria, seguro-desemprego ou programa de transferência de renda e que têm renda mensal de até três salários mínimos (R$ 3.135). O benefício será pago por três meses para no máximo duas pessoas por domicílio.

Nossas simulações indicam que se esse benefício fosse transferido apenas para trabalhadores informais nos setores vulneráveis que perdessem o emprego e atendessem aos critérios do programa, ele atenderia 9 milhões de pessoas e a pobreza diminuiria de 23% para 19%. Além disso, a renda média e a desigualdade voltariam à situação pré-crise. Isso significa que se o benefício fosse concedido somente para os trabalhadores que perdessem o emprego no setor informal, atenuaria os efeitos da crise, supondo que todos conseguissem realmente receber o benefício.

Agora vamos supor que todas as pessoas que se enquadram nos critérios do programa (incluindo o limite de renda) recebam o benefício, mesmo aquelas que não tenham perdido emprego com a crise. Nesse caso, 32 milhões de brasileiros receberiam o auxílio. Como muitos dos novos beneficiados não estavam trabalhando mesmo antes da crise (e eram pobres), isso faria com a pobreza diminuísse, com relação à situação inicial sem crise, de 17% para apenas 6%. A pobreza extrema seria praticamente eliminada nesse caso. Isso mostra como um programa desse tipo já deveria ter sido implementado no Brasil.

Mas, na verdade, para muitos trabalhadores informais não há como averiguar o critério de renda, pois eles são “invisíveis” para o governo. Assim, o número de beneficiados deverá ser bem maior do que o público-alvo inicial do programa. Isso já era previsto, pois o mais importante agora é atenuar os efeitos da crise sobre as famílias mais pobres, ficando a questão de focalização para um segundo momento, se o programa continuar.

Assim, no caso em que todos os trabalhadores informais recebem o benefício, independentemente da sua renda, além de todos os que já se enquadravam nos critérios do programa, 52 milhões de pessoas são beneficiadas. Esse número está próximo do que deverá ocorrer na realidade. A redução adicional na pobreza nesse caso seria pequena com relação ao caso em que somente o público-alvo recebe o benefício. Assim, se o programa for mantido no futuro, deveríamos focalizar o benefício nos que mais precisam dele.

É interessante também especular sobre os efeitos políticos da crise e suas consequências. Antes da pandemia, o governo federal estava restringindo os gastos com o programa Bolsa Família, represando o número de beneficiários. Com a crise, houve forte pressão da sociedade civil e o Congresso acabou aprovando um programa de transferência de renda que em circunstâncias normais nunca teria sido aprovado, pois sofreria forte oposição do governo e de alguns setores da sociedade.

Mas, como o benefício foi implementado pelo governo federal, é possível que a avaliação do presidente até aumente entre os mais pobres. Vários estudos mostram que o programa Bolsa Família trouxe dividendos políticos, por exemplo. Tudo vai depender da duração do distanciamento social, dos efeitos da pandemia sobre a mortalidade por todo o país, da dimensão do desastre na economia e da duração do programa de renda emergencial. Mas o importante agora é salvar a vida das crianças mais pobres.

*Naercio Menezes Filho é professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper e professor associado da FEA-USP e membro da Academia Brasileira de Ciências.


André Lara Resende: Quem vai pagar essa conta?

O dogmatismo fiscal não ameaça só a economia: é hora de parar de repetir chavões anacrônicos e de repensar, senão quem pagará é a democracia

Até os mais empedernidos defensores do equilíbrio fiscal - e no Brasil de hoje eles dão as cartas - reconhecem que diante da crise é preciso que o Estado gaste para evitar uma verdadeira catástrofe humanitária. Mas como foram pegos no contrapé, no meio de uma cruzada para equilibrar as contas públicas, para salvar o Tesouro do cerco dos infiéis, perderam o rumo. Não apenas a agenda do ministro Paulo Guedes, mas também o discurso da esmagadora maioria dos analistas, tinha se transformado em samba de uma nota só: eliminar o déficit.

Tudo mais seria irrelevante ou viria como consequência. Investimentos em saneamento, segurança, saúde, educação e infraestrutura? Impossível, não há como financiá-los. Um programa de metas para sair da armadilha da estagnação? Desnecessário, bastaria aprovar as reformas que o investimento externo e a confiança garantiriam o novo milagre brasileiro. Não foi o que se viu. Aprovada a reforma da Previdência, aquela que seria a mãe de todas as reformas “estruturantes” segundo seus preconizadores, a economia continuou anêmica e o desemprego, aberto. É claro que tanto o ministro como o seu coro na mídia agora sustentam o contrário, que a economia estava pronta para decolar, quando foi “atingida por um meteoro”.

A crise provocada pelo coronavírus é de fato inusitada. A parada da economia, tanto pelo lado da demanda como da oferta, não tem precedentes. Ainda por cima é uma crise sincronizada, que atinge praticamente todas as economias no mundo. Nunca se viu nada parecido. Para amenizar o drama humano e evitar uma depressão profunda, o Estado precisa prover um auxílio de emergência. O Banco Central deve emitir para injetar liquidez no sistema bancário e evitar que a parada da economia se transforme também numa crise financeira.

Como o sistema bancário está, compreensivelmente, assustado com a possibilidade de uma onda de quebras e inadimplência, a injeção de liquidez não será repassada para a economia real. É preciso fazer o auxílio chegar diretamente às empresas e às pessoas necessitadas. Nesse momento, o aumento dos gastos públicos é essencialmente uma ajuda de emergência, para aliviar o sofrimento e impedir quebras generalizadas, mas os investimentos contracíclicos serão necessários, uma vez superada a epidemia. É preciso agir com urgência, fazer chegar o auxílio assistencial diretamente aos necessitados, com o mínimo de formalidades burocráticas.

É aqui que a prisão conceitual do ministro da Economia e de sua equipe se torna um obstáculo insuperável. Mal concedem a necessidade imperiosa de expandir a liquidez e de aumentar os gastos, tomados de dissonância cognitiva, entram em pânico. Quem irá pagar essa conta? Por toda parte, em artigos na imprensa, nas videoconferências, a pergunta mais feita no Brasil de hoje é quem irá pagar a conta. Na Europa, o BCE já sancionou uma expansão monetária superior a 6% do PIB, mas a longa tradição de conservadorismo fiscal da Alemanha ainda resiste à criação de um título de dívida europeu que poderia ajudar aos países periféricos da região.

A França, assim como a Inglaterra pós-Brexit, já entendeu que neste momento a preocupação com a expansão de moeda e dívida não faz sentido. A França aprovou gastos de emergência que chegam a mais de 15% do PIB. O presidente Macron em vídeo-entrevista ao “Financial Times”, sem se referir uma única vez ao “custo fiscal”, disse que se trata de “dinheiro de helicóptero”, uma analogia, criada originalmente por Milton Friedman, para designar a ajuda direta e indiscriminada do Estado através da emissão de moeda.

Numa crise como esta, a perda de renda e da redução do poder aquisitivo pode e deve ser compensada pela transferência de recursos do Estado. As guerras sempre exigiram enormes gastos do Estado, justamente quando a economia sofre com o conflito. A história está cheia de exemplos. Entre 1942 e 1945, anos em que os EUA estiveram envolvidos na Segunda Guerra Mundial, o déficit público foi sempre superior a 15% do PIB, chegando a um pico de 30% em 1943. A dívida pública passou de 40% para mais de 120% do PIB. Embora os EUA, desde então, raramente tenham tido superávit fiscal, a relação dívida-PIB se reduziu até a crise financeira de 2008. A razão é simples: a renda cresceu mais do que a dívida. Dívidas públicas internas não são pagas. São renovadas e se tornam irrelevantes com o crescimento da economia.

À medida que a economia se recupera, mesmo uma dívida aparentemente alta se torna perfeitamente administrável. Trata-se de pura aritmética. Se o crescimento da renda é maior do que o serviço da dívida, a relação dívida-PIB não terá uma trajetória explosiva. A mesma aritmética serve para demonstrar que se a economia encolher, independentemente do equilíbrio fiscal, a relação dívida-PIB irá aumentar. A dívida interna brasileira, antes da crise, era da ordem de 75% do PIB. Ainda que com superávit primário, algo praticamente impossível dada a queda inexorável da receita, se a economia vier a encolher 20% nos próximos anos, o que infelizmente não é tão improvável, sobretudo se o Estado tiver as mãos atadas pelo dogmatismo fiscal, a dívida iria para mais de 90% do PIB.

O endividamento público vai crescer e muito nos próximos anos. Trata-se de uma realidade irreversível. O que não tem remédio, remediado está, já dizia minha avó, mas nesse caso existe remédio. Basta impedir que a economia se desarticule numa crise humanitária sobreposta a uma depressão profunda.

Basta que, superada a epidemia, o setor privado não tenha se desarticulado e o Estado possa voltar a investir. Com um programa de investimentos públicos e privados inteligente, com um Estado eficiente, a favor do cidadão e indutor da produtividade, a economia sairá da crise e a dívida interna perderá importância.

Mas a obsessão fiscalista agora ameaça, além da economia, provocar uma crise na federação. Os Estados e os municípios, como não emitem moeda própria, estão obrigados a gastar apenas o que arrecadam. Com a queda da receita provocada pela parada da economia, sem ajuda da União, em poucos meses ficarão impossibilitados de prestar serviços básicos.

A aprovação na Câmara de que as transferências da União tenham como base a arrecadação do ano passado, mais do que razoável nessas circunstâncias, foi taxada de “pauta bomba” pelos cruzados do fiscalismo. Em disputa com os governadores, o presidente da República, provavelmente insuflado pela sua equipe econômica, entendeu a iniciativa do Legislativo como uma provocação. Partiu para o ataque ao Congresso e às instituições democráticas.

Numa crise dessa magnitude, com um presidente desequilibrado, o dogmatismo fiscal já não ameaça apenas a economia. É hora de parar de repetir chavões anacrônicos e de repensar, caso contrário quem vai acabar pagando a conta é a democracia.

*André Lara Resende é economista


César Felício: Linhas cruzadas

Crise com Moro perturba aproximação com Centrão

A crise entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sérgio Moro, pode ter a substituição do diretor da Polícia Federal como origem, mas suas razões de fundo se entrelaçam com o movimento presidencial em direção ao mundo tradicional da política brasileira. Não há uma relação de causa e efeito: há sim influência do primeiro fato no segundo.

A cena do poder se alimenta de símbolos, e é emblemático que Moro se dirija para uma porta quando Roberto Jefferson entrou por outra. Arthur Lira por uma terceira. Kassab por uma quarta. Marcos Pereira por uma quinta.

A trajetória de Moro à frente do Ministério da Justiça armou uma situação altamente indesejável no mundo político, que é a guerra em duas frentes. Popularidade alta garante uma certa blindagem, mas é insuficiente para romper um cerco. O ministro sempre antagonizou com o mundo político tradicional. As malfeitorias de amigos e antigos auxiliares da família Bolsonaro no Rio o fizeram colidir com os operadores políticos mais incondicionais do chefe.

Operadores políticos, é bom frisar, não os militantes fanáticos das redes sociais, que permanecem fechados com Moro. Quem se volta contra o ministro da Justiça são os que puxam os cordéis das campanhas orquestradas no WhatsApp, no Twitter, no Facebook. Um curioso caso de contradição entre base e pico desta pirâmide.

A forma como essa contenda se resolver - ainda não havia desfecho no momento em que essa coluna era escrita - será sugestiva do destino de Bolsonaro.

Com Moro fora, o presidente pode continuar a cimentar alguma coisa semelhante a uma base de governo no Congresso, o que é bom para aprovar medidas que facilitem a retomada pós-pandemia.

Em compensação, pode ganhar um adversário à direita na eleição presidencial de 2022. A permanência de Moro, se acompanhada da permanência do diretor da Polícia Federal, significará que o presidente é muito suscetível à reação da militância anti-establishment nas redes. O que pode azedar o ambiente para uma recomposição presidencial com o Congresso.

Esta é uma das apostas daqueles que se preocupam com o aumento do trânsito político de Bolsonaro. “A natureza do Bolsonaro é contra o Parlamento. Na primeira pressão que ele sofrer nas redes sociais ele reverte isso”, comentou o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), um oposicionista com excelente relação com o presidente da Câmara. E já há sinais neste sentido, já existe um sentimento de perplexidade entre bolsonaristas empedernidos com a aproximação entre Bolsonaro e o Centrão.

Orlando Silva admite que há uma força natural que impele os deputados dos partidos do Centrão a buscarem guarida no Palácio do Planalto. “Há um contingente muito expressivo dos parlamentares destes partidos em Estados onde o governador está na oposição. É difícil para um deputado destes partidos ser oposição ao mesmo tempo ao governador e ao presidente”, disse.

E se há alguma coisa que cresceu na catástrofe da pandemia foi o protagonismo dos governadores. Há um certo consenso de que o paulista João Doria ganhou muita densidade política, estabeleceu uma polarização com o presidente e se consolidou como a principal alternativa, no momento, a uma eleição presidencial em 2022. Todos os movimentos recentes de Rodrigo Maia coincidem com os interesses de Doria e isso explica muito da escalada de Bolsonaro contra o presidente da Câmara.

Os deputados do Centrão aceitam a aproximação, mas evitam se comprometer com a desmontagem de Maia. “O presidente sente que uma base mais sólida no Congresso é necessária e tenta reduzir a influência do Rodrigo, mas não sei se isso vai funcionar. Os partidos separam as coisas. Vão dar musculatura para o governo atuar na crise, mas Rodrigo não estará isolado e será o condutor da própria sucessão”, disse o deputado Marcelo Ramos (PL-AM).

A entrega de cargos aos partidos do Centrão é a argamassa fundamental para essa aproximação, em um processo sinérgico de ganhos políticos entre os militares - leia-se o ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, e o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos - e os parlamentares do bloco pragmático.

Os militares cedem posições que estavam guardando até o momento. Será a turma da caserna que dará lugar no segundo e terceiro escalões a indicações políticas. Ganham os militares assim respaldo político. Assumem o papel de mediadores das crises. Entregam peças para avançar várias casas.

O objetivo central é o posto Ipiranga. Provocar um “downgrade” na condição de superministro de Paulo Guedes é uma meta que parece ao alcance da mão, agora que Braga Netto lançou seu plano nacional de desenvolvimento. “Os militares tem o apoio da base política para o enfrentamento maior dentro do governo”, resumiu Ramos.

A pandemia abriu um espaço para esta aliança. O discurso antiquarentena de Bolsonaro, por mais irresponsável que seja, o fortalece, enquanto a catástrofe produzir mais desemprego e perda de renda do que mortos. “É um discurso bem encaixado para um ponto futuro, para o que vem a seguir”, reconheceu Orlando Silva. Mas Bolsonaro precisa de respaldo político para romper com a cartilha de Guedes. O que implica em repactuar com o Congresso.

Neste cenário, a pandemia já trabalha contra a polarização ideológica, à parte do alarido dos fanáticos. Quando o presidente e seus aliados falam ou insinuam golpe, despertam a sombra do impeachment. Quando a oposição se mobiliza pelo impeachment, reforça o discurso de vitimização de Bolsonaro.

Estabeleceu-se um equilíbrio do terror. Os que defendem golpe e impeachment, a princípio, perdem. Os bombeiros tendem a ganhar.

Nesta quadra, tentar tirar Valeixo agora pode ter sido um passo em falso de Bolsonaro. Quando os interesses de Moro são contrariados certas coisas começam a acontecer, engrenagens que pareciam paradas estalam e se movimentam, há uma certa constância nisso. A pedido da Lava-Jato, um juiz federal em Curitiba bloqueou parcialmente os salários do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), e do deputado Arthur Lira (PP-AL), com quem o presidente confraternizou recentemente. Mais uma frente fria que vem do Sul e chega ao Cerrado.

*César Felício é editor de Política.


Ribamar Oliveira: Senado condiciona benefício a emprego

Se aprovada pela Câmara, “PEC da guerra” criará insegurança jurídica

O texto da Proposta de Emenda Constitucional 10/2020, mais conhecida como “PEC do Orçamento de Guerra”, recentemente aprovado pelo Senado, introduziu um novo complicador para as empresas que, se aprovado pela Câmara dos Deputados, trará uma grande insegurança jurídica, de acordo com consultores ouvidos pelo Valor.

O recebimento de benefícios creditícios, financeiros e tributários, direta ou indiretamente, concedidos no âmbito dos programas oficiais de combate aos efeitos da pandemia, estará condicionado ao compromisso das empresas de manutenção de empregos, “na forma dos respectivos regulamentos”, de acordo com o artigo 4º do texto do Senado.

Uma das medidas adotadas pelo governo para redução dos efeitos do novo coronavírus na economia, logo no início da pandemia, foi adiar o pagamento de PIS, Pasep e da Cofins, bem como da contribuição previdenciária patronal. Os empresários pagarão as quatro contribuições devidas em abril e em maio apenas em agosto e em outubro.

Esta foi uma forma de dar mais fôlego de caixa às empresas, que tiveram suas vendas drasticamente reduzidas do dia para a noite. Tecnicamente, o procedimento é conhecido como diferimento. A questão é que todas as empresas, mesmo aquelas que estão demitindo trabalhadores, terão direito de adiar o pagamento das quatro contribuições. Quando o diferimento foi autorizado, ainda em março, a instrução normativa da Receita Federal não condicionou o benefício à manutenção do emprego.

Pode-se alegar, portanto, que o artigo da PEC, caso aprovado pela Câmara, terá vigência posterior ao início do diferimento das quatro contribuições. A lei não pode retroagir para prejudicar o contribuinte. Ocorre que, segundo avaliação da área técnica do governo, é muito provável que as empresas não tenham caixa em agosto e outubro para pagar os tributos do mês e os atrasados. Por isso, os técnicos não descartam que os débitos tributários referentes a abril e maio venham a ser, posteriormente, objeto de um novo Refis, ou seja, de um parcelamento em condições favorecidas, que já está sendo chamado de “coronarefis”.

Se isto ocorrer, será um novo benefício tributário a ser concedido às empresas em relação a fatos ocorridos no período da pandemia. Neste caso, o artigo da PEC poderá ser acionado e em que medida? O texto diz que a manutenção do emprego será exigida, “na forma dos respectivos regulamentos”, sem explicar o que isso significa, talvez indicando a necessidade de uma regulamentação.

A exigência da manutenção do emprego, no entanto, se aplica a todos os outros benefícios que estão sendo concedidos pelo governo durante a pandemia, inclusive os creditícios e os financeiros. Há, por exemplo, empréstimos em condições especiais que estão sendo colocados à disposição das empresas. O Banco Central será autorizado também a comprar títulos privados e a realizar uma série de operações financeiras que, de forma direta ou indireta, pode resultar em benefício para alguma empresa ou instituição financeira.

Diante da amplitude da medida, com consequências jurídicas imprevisíveis, um político de grande experiência disse ao Valor que o Senado colocou o artigo na PEC para ficar bem com o eleitorado, ao mostrar sua preocupação com o emprego, mas certo de que ele será derrubado pela Câmara, com desgaste para os deputados. É, pode ser. Mas, vale lembrar a famosa pergunta feita por Garrincha, na Copa do Mundo de 1958: “Já combinaram com os russos?”.

O artigo 9º da PEC aprovada pelo Senado determina que as instituições financeiras que venderem ativos ao BC, durante a pandemia, não poderão aumentar a remuneração, fixa ou variável, de diretores e membros do conselho de administração, no caso das sociedades anônimas, e dos administradores, no caso de sociedades limitadas.

De acordo com a PEC aprovada pelo Senado, a remuneração variável inclui bônus, participação nos lucros e quaisquer parcelas de remuneração diferidas e outros incentivos remuneratórios associados ao desempenho.

Mas, não está claro o período da vigência da proibição. A PEC aprovada pelo Senado diz que o Banco Central editará regulamentação sobre as exigências de contrapartidas “durante a vigência desta emenda constitucional”. Não seria durante a vigência da situação de calamidade pública, ou seja, até 31 dezembro deste ano?

Há também outra redação confusa na PEC do “Orçamento de Guerra”. Mas, neste caso, a confusão já vem do texto inicial aprovado pela Câmara. O artigo 5º diz que será dispensado o cumprimento da chamada “regra de ouro”, durante ‘a integralidade do exercício financeiro em que vigore a calamidade pública nacional”.

A Constituição proíbe que o governo aumente o seu endividamento para custear despesas correntes. Só pode fazer isso para financiar investimentos e para amortizar a dívida, ou seja, despesas de capital. Este princípio é conhecido como “regra de ouro” das finanças públicas. Como observa a nota técnica 95/2020, da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados, desde meados do ano passado já se projetava descumprimento da “regra de ouro” em 2020.

O Orçamento da União deste ano foi aprovado com montante de operações de crédito superior em R$ 343 bilhões às despesas de capital, lembram os consultores legislativos Vinícius Leopoldino do Amaral e Fernando Moutinho Ramalho Bittencourt, autores da nota técnica. Tais operações de crédito em excesso, assim como as despesas por elas custeadas, encontram-se pendentes de autorização, observam.

Como o regime extraordinário da PEC visa atender às necessidades decorrentes da pandemia, a suspensão do cumprimento da “regra de ouro” não poderia ser aplicada a situações anteriores ao surgimento do novo coronavírus. Os autores concluem que a suspensão da “regra de ouro” teria que ser parcial e somente aplicável às repercussões geradas pela pandemia. Mas isto não é o que está escrito na PEC, que suspende o cumprimento da “regra de ouro” durante “a integralidade do exercício financeiro em que vigore a calamidade”.


Maria Cristina Fernandes: A cilada do impeachment

Pedido é a isca jogada por Bolsonaro para se vitimizar e unir militares em sua defesa

O presidente da República participou de uma manifestação que tinha por objetivo subverter a ordem política, infração que o enquadra tanto na Lei de Segurança Nacional quanto na Lei do Impeachment. Ao fazê-lo diante de um quartel, além de incitar militares à desobediência, preceito que também o enquadra nesta lei, infringiu a norma que submete atividades no perímetro de 1.320 metros dos quartéis militares à autorização se seus comandos.

Sozinha, a manifestação de domingo já dá motivos de sobra para juristas redigirem empolados pedidos de impeachment. Somado ao estímulo do presidente a que as pessoas quebrem o isolamento social, colocando em risco o direito coletivo e individual à saúde, tem-se aí abundantes argumentos para o afastamento do presidente do cargo. É um prato cheio de iscas.

O PT já fisgou a primeira ao aprovar o mote #forabolsonaro. Ao fazê-lo, o partido reverte decisão tomada dias atrás e torna-se a primeira grande legenda a cair na armadilha que o presidente montou para se apresentar como vítima de uma conspiração. Foi seguido pelo PDT, que briga pela hegemonia dos escombros da oposição.

O comando de caça aos esquerdistas continua vivo no bolsonarismo, ainda que roto e amarelado. No poder, o presidente da República ganhou novas bandeiras. Quer reviver o espírito antipolítica que move tanto as Forças Armadas quanto a classe média urbana desde o tenentismo e foi, em grande parte, responsável por sua eleição.

Para isso, gostaria de fisgar a Câmara dos Deputados e, se der, até o Supremo Tribunal Federal. Um inimigo comum com os militares é um cobiçado objeto de desejo do bolsonarismo e mesmo entre os militares mais abespinhados com o ato de domingo, encontra-se convergência com o discurso de que não o deixam governar. Ter evidências de que Rodrigo Maia estaria envolvido numa articulação para derrubá-lo é tudo que o presidente precisa para unificar, em sua defesa, militares da reserva e da ativa, em grande parte divididos em relação aos limites de sua provocação.

A ferida do domingo ainda está aberta. O acerto feito entre o comandante do Exército, Edson Pujol, e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva era o de que o primeiro cuidaria das tropas e o segundo, da política. A geração que hoje ocupa cargos de comando nas Forças Armadas ainda se ressente por pagar o preço de um golpe do qual não participou. Por isso, a Pujol caberia manter as tropas longe da política e a Azevedo, tomar conta para que o capitão, além de militarizar o Palácio do Planalto, não se arvorasse a politizar os quartéis.

Faz tempo que esse acerto foi destroçado, se é que, algum dia, chegou a ter validade. No dia seguinte ao ato de domingo, quando o comandante do Exército não foi capaz de mandar sua tropa enxotar quem fazia do perímetro militar um palanque antes da chegada do comandante supremo, Bolsonaro encenou, mais uma vez, o papel de capitão tutelado. E debochado. Ao proclamar que ele era a Constituição, porém, gozou, mais uma vez, de seus bedéis.

Foi assim que o ministro da Defesa foi levado a emitir a nota na qual diz que as Forças Armadas só têm um aliado, a Constituição e, no momento, um inimigo, o coronavírus. Parece pouco, mas seus redatores viram ali o limite até onde um subordinado pode ir.

Os militares parecem se manter silentes frente a um governante que namora à luz do dia com o golpismo porque a alternativa os expõe ainda mais. O que seria um governo Hamilton Mourão senão a farda, sem disfarces, no poder? Por isso, desencadearam a operação panos-quentes. Buscaram interlocutores para mediar a relação com o Congresso. O apelo foi o de que era preciso pacificar para o capitão não radicalizar. Seria preciso aceitar um presidente que estupra mas não mata a Constituição.

De pelo menos um interlocutor ouviram que de nada adiantaria se vestir de bombeiro se o presidente- incendiário permanecia incontido. Bolsonaro voltou o gabinete do ódio contra o projeto aprovado na Câmara de ajuda a Estados e municípios. Considera-o pauta bomba, tanto pelo rombo nas finanças públicas quanto pelo benefício a seus adversários.

Mas isso não justifica que saia proclamando apoio a um ato pela prisão do presidente da Câmara. O segundo mandato de Dilma Rousseff não teria chegado a abril de 2016 se ela tivesse ido à rua protestar contra a patifaria de Eduardo Cunha, das pautas bomba e de todas as emendas impositivas aprovadas durante a agonia de seu mandato. Bolsonaro prova do mesmo veneno que vitaminou sua ascensão. E sinaliza que vai dar continuidade ao banquete.

Para isolar o presidente da Câmara, oferece aperitivos ao Centrão. Vai distribuir os de sempre, Funasa, FNDE, Codevasf, sabendo que vão pedir de entrada as agências reguladoras e, de prato principal, a presidência da Câmara. Como tanto o Executivo quanto parte do Centrão querem se ver livre de Maia, tudo parece convergir para o bem da nação. Só que não.

As lideranças que negociam com Bolsonaro são as mesmas que, em 2016, almoçavam com Dilma e, no mesmo dia, jantavam com Michel Temer. Vão sair correndo do porão antes de o barco começar adernar.
Furos não vão faltar. Paulo Guedes perdeu a aula que ensinava a gastar. Vai ficar ainda mais perdido num governo não vai conseguir se desvencilhar dos auxílios que começou a pagar. Se no Sudeste, os R$ 600 não refrescam o motorista do Uber, no Nordeste já bombou a venda de ovos. O pessoal que tomou conta do governo sabe abrir para-quedas melhor do que fechar contas.

Some-se a isso os dois inquéritos que tramitam no Supremo, fake news e ato antidemocrático, nas mãos do mesmo relator, Alexandre de Moraes. Como poderá compartilhar provas entre um e outro processo, a busca pelo nome e sobrenome do personagem por trás de ambos estará facilitada.

Por isso, o pedido de impeachment é contraproducente. E arrisca a antagonizar a oposição com a maioria que, se não aprova Bolsonaro, tampouco quer tirar o foco do principal, que é a pandemia. As cordas estão aí. O capitão que não consegue colocar uma máscara de proteção ainda está por se mostrar capaz de tirar o novelo que ele mesmo enrola no pescoço. Num país que está na UTI, quem se apresentar para puxá-lo vai passar por carrasco.


Bruno Carazza: Não existem mocinhos e bandidos

Votação sobre o Carf ilustra jogo de interesses

Reducionismos são muito perigosos, principalmente em tempos de crise. Por trás de expressões bonitas como “interesse público”, “bem comum”, “proteção social”, “eficiência e produtividade” podem estar escondidas perigosas armadilhas. Em meio à comoção coletiva e com o noticiário dominado pelo mono assunto da covid-19, é preciso atenção redobrada. Os oportunistas estão à espreita.

Outro risco é acreditar em estereótipos e rotulagens. Frequentemente caímos no conto do mocinho versus bandido, do bem contra o mal. Relações sociais em geral são desiguais, e a maioria dos países busca aprovar legislações para evitar abusos contra o lado mais frágil, como empregados, tomadores de empréstimos e locatários. Quando erramos a mão na tentativa de regular a vida em sociedade, ocorrem distorções com consequências severas - imóveis vazios num país de enorme déficit habitacional, crédito caro e escasso, 40 milhões de trabalhadores informais. Mas isso é assunto para outras colunas.

O pior dos mundos acontece quando grupos de interesses muito bem articulados se valem de simplificações maliciosas e de um falso discurso de boas intenções para impor grandes prejuízos para a sociedade. A história aconteceu nas últimas semanas, e quando percebemos o leite já havia sido derramado.

Em outubro de 2019, muito antes de um simples vírus colocar de joelhos toda a humanidade, o governo Bolsonaro editou a Medida Provisória nº 899, que tinha por objetivo estabelecer as condições para que a União e seus devedores pudessem sentar na mesma mesa e encontrar uma solução consensual para seus litígios. A iniciativa, proposta pelos ministros Paulo Guedes (sob cujas asas está a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) e André Luiz de Almeida Mendonça (titular da Advocacia-Geral da União), visava aumentar a probabilidade de recuperar os créditos da dívida ativa da União.

De acordo com os números apresentados na Exposição de Motivos encaminhada ao Congresso, o governo tem uma carteira de quase R$ 3 trilhões de reais de dívida questionada na Justiça, além de outros R$ 600 milhões em disputa administrativa, no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o Carf (guarde esse nome). Como boa parte desse crédito é de difícil recuperação - pois até que o processo judicial seja encerrado, as empresas já faliram, ou os devedores deram o seu jeito de desviarem o patrimônio -, a proposta era estimular uma solução negociada entre as partes, em que o devedor pague a dívida imediatamente, mesmo que com um desconto. Ao propor a MP, o governo seguia a velha máxima de que “um mau acordo é melhor do que uma boa demanda”. Cabia, porém, regular essa transação, revestindo-a de legalidade e dos devidos controles para evitar casos de corrupção e outros crimes contra a Administração.

Quando se trata de assuntos envolvendo tributação, os interessados ficam de olho. Durante a tramitação, os parlamentares fizeram 220 sugestões para “aprimorar” o texto. Duas delas merecem atenção. A emenda nº 9, de autoria do deputado Heitor Freire (PSL-CE), pretendia acabar com o voto de desempate do representante do Fisco nos processos do Carf que estabelecem o crédito tributário e o seu valor. Já a emenda nº 162, apresentada por seu colega Gilberto Nascimento (PSC-SP), buscava regular o pagamento do Bônus de Eficiência e Produtividade aos auditores e analistas fiscais da Receita Federal.

Nenhuma dessas duas sugestões foi acatada pelo relator da MP, o deputado Marco Bertaiolli (PSD-SP). Mas quando a matéria foi à votação, no dia 18/03, todos os olhos já estavam voltados para o coronavírus. Foi aí que o deputado Hildo Rocha (MDB-MA) propôs ressucitá-las, e o plenário da Câmara aprovou a sugestão sem qualquer resistência.

Com o Senado já realizando votações virtuais, a questão foi resolvida em uma única seção, no dia 24/03. Após ser alertado pelos senadores Fabiano Contarato (Rede-ES), Carlos Viana (PSD-MG), Chico Rodrigues (DEM-RR) e Alessandro Vieira (Cidadania-SE) que os dois dispositivos incluídos pela Câmara traziam matérias estranhas à MP original, e por determinação constitucional não poderiam ser aprovados, o presidente em exercício da Casa, Antonio Anastasia (PSD-MG), colocou as questões em discussão. O bônus da Receita caiu, mas a mudança no critério de decisão do Carf não.

Bolsonaro teve a oportunidade de vetar o dispositivo do Carf. Dizem até que Sergio Moro se mostrou preocupado com os danos sobre a corrupção e as investigações ainda em curso da Operação Lava-Jato, mas a Lei nº 13.988 foi sancionada integralmente pelo presidente no último dia 14.

Essa história maçante sobre tramitação legislativa ilustra bem como se arruína um país com movimentos sutis. Sob argumentos nobres como a proteção do contribuinte, o princípio do “in dubio pro reu” (na dúvida, a favor do réu) e a necessidade de conter a voracidade do Fisco brasileiro, aumentou-se ainda mais o risco de corrupção. Se antes da mudança a Operação Zelotes já apresentava fortes evidências de beneficiamento indevido de grandes empresas nos julgamentos do Carf, não é difícil imaginar o que acontecerá com o voto de desempate agora contando a favor dos devedores.

Não há dúvidas de que o modelo tributário brasileiro precisa ser completamente revisto. A legislação é caótica, há muita margem para a interpretação do Fisco e o modelo ibérico de decisões administrativas passíveis de questionamento na primeira instância da Justiça traz insegurança e ineficiência. Mudanças sorrateiras feitas na legislação, porém, não têm o propósito de reformá-lo, e sim dar ainda mais poder para quem dispõe de grandes escritórios de advocacia e redes de lobistas para pagar menos impostos.

A história talvez também teria sido diferente se os órgãos de representação dos fiscais da Receita Federal tivessem utilizado sua pressão no Congresso Nacional para defender o interesse da sociedade e não para defender um penduricalho de até 80% nos seus já elevados salários. De boas intenções, o Congresso está cheio. Mas, no inferno, quem reside é a maioria da população brasileira.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”


Maria Cristina Fernandes: Desgastado, presidente intimida governadores

Se o pronunciamento visava a tranquilizar a população, menção ao estado de sítio teve efeito inverso

O presidente Jair Bolsonaro trocou o ministro da Saúde sem arredar um milímetro de suas convicções sobre o combate à pandemia do coronavírus. E ainda valeu-se do discurso de apresentação do novo ministro para subir o tom contra os governadores e o Congresso. Se o pronunciamento visava a tranquilizar a população sobre a condução de um governo desfalcado do principal gerente do combate à pandemia, a menção ao estado de sítio, ainda que para dizer que o instrumento não seria usado, teve efeito inverso.

Ao citar o “clima de terror que se instalou na sociedade”, Bolsonaro tentou relacioná-lo ao desemprego provocado pelas medidas restritivas dos governos estaduais e não ao medo da morte pela doença. Subiu o tom contra os governadores, com quem trava uma disputa no Congresso no projeto de compensação pelas perdas na arrecadação: “Se governadores e prefeitos exageraram, não coloquem essa conta nas costas do povo brasileiro”. São Paulo e Rio, de João Doria e Wilson Witzel, são os Estados que mais perderam receita.

Acusou-os de cercear direitos individuais, quando “quem tem direito a estado de defesa ou estado de sítio é o presidente da República”. Não defendeu o uso de nenhum dos dois instrumentos, mas sua menção no discurso não é fortuita. Tanto reitera sua autoridade num momento em que foi derrotado na Câmara pelo projeto de ajuda aos Estados e no Supremo pela tentativa de afrouxar o isolamento social, quanto tenta colocar governadores e prefeitos no mesmo balaio de seu voluntarismo.

Ao demitir o ministro mais popular de seu governo em meio à elevação da curva de óbitos da covid-19, Bolsonaro fez aposta arriscada. Os panelaços, durante o discurso, anteciparam prejuízos que já busca socializar. Se ele perde com a demissão de Henrique Mandetta, governadores e prefeitos, alheios ao fato de que “junto com o vírus veio uma máquina de moer empregos”, não podem sair ganhando: “O remédio não pode ser mais danoso que a doença”.

O novo ministro, ao seu lado, demonstrou que não montará em cavalo de batalha por suas convicções. A julgar pelo artigo que escreveu, no início de abril sobre a covid-19, Nelson Teich pouco mudaria na gestão do ministério. “Felizmente, apesar de todos os problemas, a condução até o momento foi perfeita”, escreveu. No texto, defendeu a opção pelo distanciamento social: “É uma estratégia que permite ganhar tempo para entender melhor a doença e implementar medidas que permitam a retomada econômica do país.” No discurso em que se apresentou ao país limitou-se a dizer que não haverá mudanças bruscas: “Saúde e economia não são excludentes.”

A comparação de Bolsonaro entre os direitos individuais pretendidas pelos governadores e os danos que um estado de sítio poderia provocar deve ter surtido efeito sobre Teich. O novo ministro enfatizou a necessidade de aprimorar a coleta de dados e informações sobre a doença, mas não retomou a proposta do artigo (“estratégias de rastreamento e monitorização, algo que poderia ser rapidamente feito com o auxílio das operadoras de telefonia celular”). Ao contrário de seu antecessor, que sempre alertou contra a impossibilidade de se fazer isso num país de 200 milhões de habitantes, Teich quer testes em massa. O novo ministro promete agir sob bases “técnicas e científicas”. Hermético, não se fará entender facilmente pela população, o que, pelo histórico de comunicador de Mandetta, deve ter contado, para o presidente, a favor de sua nomeação.

Dono de uma empresa de gestão tecnológica de saúde, o novo ministro surpreenderá se aparecer com o jaleco do SUS. O Sistema Único de Saúde teve uma breve menção em seu discurso de ontem, quando Teich disse que o programa de testes o envolveria, bem como a saúde suplementar e as empresas. Não deixa de ser uma evolução. No artigo do início de abril, entre 1.991 palavras, não se encontra nenhuma menção ao sistema público que tem segurado o tranco da pandemia no país.