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Armando Castelar Pinheiro: Em busca de uma narrativa
Precisamos começar logo a planejar o pós crise e, quem sabe, aproveitar as oportunidades que esta abrirá
Dói ver a bagunça de nossa reação à covid-19. Ela chegou aqui depois de a outros países, nos dando tempo de nos prepararmos. Mas, em vez disso, vimos o presidente, líder político de parte da população, defender atitudes favoráveis ao contágio e contrárias aos controles que governadores tentam instituir. Imagina a confusão na mente das pessoas, já apavoradas pela perda de renda e trabalho.
O resultado será uma dinâmica mais desfavorável da epidemia. Enquanto a coisa melhora em muitos países, no Brasil batemos novos recordes a cada dia. A rede hospitalar não dará conta da demanda e os médicos terão de escolher quem salvar, uma situação terrível e desnecessária. Teremos muitas mortes evitáveis.
O mais paradoxal, porém, é que essa bagunça prejudicará ainda mais a economia, justo o que os contrários à quarentena e ao distanciamento social estariam querendo evitar. Em vez de uma curta e forte paralisação, seguida de uma gradual reabertura dos negócios, teremos uma paralisação parcial por um longo período, com muita gente evitando sair de casa. A economia continuará deprimida e o desemprego elevado, afetando a saúde do sistema financeiro, comprimindo as receitas tributárias e elevando a pressão por mais gastos públicos.
É um cenário assustador, não só por si, mas pelo que trará para o futuro do Brasil. Já entramos na crise com baixa coesão social, o que ajuda a ter bagunça. Sairemos dela ainda menos coesos, uns culpando os outros. Isso trará mais incerteza política e mais dificuldade para recuperar a economia.
Por isso precisamos começar logo a planejar o pós crise. E, quem sabe, aproveitar as oportunidades que esta abrirá. Eu penso que isso passa por construir uma narrativa que, ao contrário do que vimos nos últimos 10 anos, una os brasileiros em torno de um objetivo comum, tirando-nos do “nós contra eles”.
Precisamos encontrar uma narrativa própria, que reflita nossa realidade, alinhada com nossos interesses, ou seremos capturados pelas narrativas que outros países estão desenvolvendo com foco em seus próprios interesses. Vemos isso nos EUA, que estão construindo uma narrativa anti-China, de parcial marcha a ré na globalização. É uma estratégia para unir o país contra o inimigo externo, que funcionou bem no passado e pode evitar que a covid-19, e os erros com que se lidou com ele, agrave a polarização que também há por lá. Para pensar sobre isso, fui reler duas referências a que sempre volto.
Uma é um artigo de Irma Adelman sobre como alguns países conseguiram se desenvolver no século XX (bit.ly/3cdFwhf). . Adelman começa alertando que desenvolvimento econômico não é só crescimento, mas combina: “(1) crescimento auto-sustentável; (2) mudança estrutural nos padrões de produção; (3) atualização tecnológica; (4) modernização social, política e institucional; e (5) melhoria generalizada da condição humana”.
Ela também realça o papel da liderança política em focar no desenvolvimento econômico, na necessidade de alinhar a burocracia pública com esse objetivo, na importância de considerar os condicionantes históricos e a compreensão de que “o que é bom para uma fase do processo de desenvolvimento pode ser ruim para a fase seguinte”. Adelman também enfatiza o papel do capital social, que “reflete a extensão da confiança social, das normas de cooperação e da densidade das redes interpessoais”. Não precisa dizer que reconstituir o capital social terá de ser uma prioridade no pós-covid.
A outra referência é o debate entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin, como compilado e bem introduzido por Carlos Von Doellinger e, na sua 3ª edição, pelo ex-ministro João Paulo dos Reis Veloso (bit.ly/2SH4pKf). . Dois aspectos desse debate me atraem muito.
Primeiro, a importância do contexto histórico, caracterizado não só pela Grande Depressão e a II Grande Guerra, mas também pela difusão global do ideário a favor de um Estado totalitário, capaz de se antepor às tradicionais elites agrícolas, que dominavam a política desde o Império. Para alguém com forte inclinação liberal, é interessante ver como o fim do liberalismo que marcou o Império e a República Velha foi, nesse contexto, um passo à frente. Importa também reconhecer que o debate Simonsen x Gudin simbolizou uma disputa intelectual e política mais ampla e antiga.
Segundo, que, quase leigo em economia, Simonsen venceu o debate, por ter construído uma narrativa que uniu as novas elites, mais urbanas e com um pé na indústria, além de se alinhar com o pensamento dos militares de então. De fato, é fascinante ver como, até hoje, a intelectualidade brasileira segue presa a esse debate, se dividindo entre as posições de Gudin, mais liberal, e as de Simonsen, mais pró intervenção estatal. De fato, é o que vemos no debate sobre o programa Pró-Brasil, defendido por uma parte do governo e criticado pela outra.
O Brasil de hoje é muito diferente do de há 80 anos. Precisamos de uma nova narrativa, mais apropriada ao presente e à necessidade de conciliar mais crescimento com melhor distribuição de renda e avanço institucional. E precisamos disso logo, ou a crise iniciada pela covid-19 pode se estender por muitos anos.
*Armando Castelar Pinheiro é coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ
Claudia Safatle: Como será o amanhã?
Temor da equipe econômica é que o resultado das ações emergenciais do Executivo desemboque em maior participação do Estado na economia
Há uma forte inquietação na área econômica do governo em busca de um horizonte de definições para o pós-pandemia da covid-19. O temor é que o resultado das ações emergenciais do Executivo desemboque em uma maior participação do Estado na economia, exatamente o contrário da proposta que venceu as eleições de 2018, de redução do papel do Estado na atividade econômica, sintetizada no slogan “Mais Brasil, menos Brasília”, adotado como lema pelo ministro Paulo Guedes, da Economia.
Uma das medidas temporárias que podem se tornar permanentes, na avaliação de técnicos oficiais, é a do auxílio emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais. Concebida para durar apenas três meses, será muito difícil extingui-la sem colocar nada no lugar, segundo essa visão. Trata-se de um benefício que tem tudo para se transformar em um amplo programa de renda mínima, em detrimento de gastos indiretos em projetos sociais.
O problema é o tamanho dessa despesa: o seu custo final caminha para a casa dos R$ 150 bilhões, envolvendo uma parcela gigantesca da população - mais de 79 milhões de brasileiros, segundo prognósticos da Instituição Fiscal Independente (IFI). São os trabalhadores informais, autônomos, microempreendedores individuais (MEI).
Mesmo diante de resistências iniciais, o governo sabe que não será simples suspender a ajuda a essa parcela da população até então invisível.
Um programa estratégico de saída da pandemia, em que o Estado não ampliaria a sua presença na economia, deve aprofundar a agenda liberal, na ótica da equipe econômica. Mas é importante notar que essa alternativa tem pouca aderência às demandas que a elite política propaga em nome do povo.
Uma das medidas defendidas por alguns assessores do governo pressupõe “desencantar” de vez a reforma tributária não para aumentar impostos, mas para reduzi-los como uma iniciativa que poderia dar um choque de produtividade na economia. Os primeiros candidatos a desaparecer, neste caso, seriam os impostos sobre a folha de salários das empresas.
A situação econômica é muito grave e, até o momento, o que há é uma disputa por hegemonia dentro do governo. De um lado estão os que, no Palácio do Planalto, advogam a participação do Estado de maneira quase que inesgotável - como se não houvesse limitações para a ampliação do gasto público - na geração de investimentos e empregos. E de outro lado, há o grupo de economistas do governo, liderado por Paulo Guedes, que pretende retomar a pauta mais liberal como saída estratégica da pandemia. Trata-se, aqui, da velha disputa entre desenvolvimentistas e ortodoxos, cuja história do país é marcada por fracassos da visão dominante pró-gasto público.
Ao Estado resta, por enquanto, o caminho do aumento do endividamento rumo aos 90% do Produto Interno Bruto (PIB), assumindo uma trajetória insustentável cujo desfecho pode ser a dominância fiscal, tão temida pelos seus efeitos nefastos e cujo golpe final seria um “calote” na dívida interna.
Foi essa a gênese do embate travado entre os ministros da Economia e Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional. Marinho estimulou o ministro-chefe da Casa Civil, Braga Netto, a abraçar a ideia de um programa de investimentos ao melhor estilo do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) concebido no governo Dilma Rousseff. Seria o Pró-Brasil, um plano de investimentos públicos de R$ 184 bilhões por um período de quatro anos, envolvendo projetos de infraestrutura.
Guedes referiu-se a Marinho como um aliado da “gastança” e qualificou o ato do ministro, que chegou ao cargo por indicação do titular da pasta da Economia, de “desleal”. Amigos de Guedes consideraram a atitude de Marinho oportunista. “Ele furou a fila”, indo diretamente ao chefe da Casa Civil vender uma ideia que deveria ter sido submetida, originalmente, a Guedes, que é o guardião da chave do cofre.
O certo, porém, é que a ideia de um PAC subsiste no governo, juntamente com a de uma boa encorpada do Minha Casa, Minha Vida (MCMV), programa de habitação popular sob a gerência de Marinho.
Foi, porém, na votação da proposta de socorro financeiro aos Estados e municípios, na quarta-feira, na Câmara e no Senado, que se assistiu ao ensaio geral do que ocorre no centro da disputa pelo parco dinheiro público em nome do combate à covid-19.
O Executivo havia proposto que os salários do funcionalismo público da União, dos Estados e dos municípios ficassem congelados até dezembro de 2021, representando uma economia de R$ 130 bilhões. Esse seria o preço a pagar pela crise do coronavírus. No setor privado, boa parte dos trabalhadores teve redução de salários em troca de uma temporária estabilidade no emprego. No setor público, a estabilidade é um direito adquirido.
Durante a tramitação do projeto os parlamentares começaram a excepcionalizar o alcance do congelamento de salários. No texto aprovado pelo Senado os salários ficarão congelados até o fim do próximo ano, exceto para os profissionais das áreas de segurança, saúde e educação dos três entes da federação (União, Estados e municípios) diretamente envolvidos no combate à covid-19. São exatamente essas as áreas onde a folha de salários mais pesa nos cofres dos Estados e municípios.
“Arrombaram a porteira”, comentou um qualificado funcionário do ministério da Economia, tão logo foi encerrada a votação, na noite de quarta-feira. O mais grave é que esse duro golpe desferido em Guedes teve a aprovação prévia do presidente da República, conforme explicou o líder do governo na Câmara, deputado Vitor Hugo (PSL-GO), ao encaminhar a votação. Bolsonaro é sensível às pressões das corporações. Mas depois de aprovado e de ouvir Guedes, Bolsonaro disse ontem que pode vetar a parte da proposta que excepcionaliza o congelamento dos vencimentos do funcionalismo. E, mais uma vez, ele garantiu que quem manda na economia é o ministro Paulo Guedes.
César Felício: A fatura a ser paga
Construção de base não combina com apoio a Guedes
Em que pese o propósito golpista claro de uma militância de corte neofascista que apoia Bolsonaro, o presidente, no presente momento - que não fornece garantia alguma de se converter em tendência sustentada para o futuro - está mais próximo de Michel Temer do que de Mussolini.
A aliança entre Bolsonaro e o Centrão é altamente conveniente para ambos. O apoio do que outrora se convencionou chamar de baixo clero pode garantir ao governo algum grau de efetividade para aprovar matérias no Congresso, afasta a imagem de governo disfuncional. Constrói uma base mínima para justificar sua existência.
A sensação de ingovernabilidade é, ao lado da impopularidade, da falta de perspectivas econômicas, da existência de um projeto de poder alternativo e da descoberta de um crime de responsabilidade, uma das condições necessárias para que se desencadeie um processo de impeachment. O presidente parece raciocinar que o quadro é mais favorável a um processo de impeachment do que à concretização de um autogolpe que lhe confira poderes ditatoriais. Entre a tutela e a ruptura, flerta com a tutela.
O Centrão foi uma salvaguarda poderosa para Temer concluir o mandato, e pode ser assim com Bolsonaro. Há muito sentido em se pensar assim. “Existe uma confluência de interesses. Bolsonaro quer blindar o próprio mandato e garantir o dos filhos, o senador Flávio e o deputado federal Eduardo. O Centrão quer garantir o caráter impositivo das emendas, o fundo partidário e eleitoral e participar do bilionário Orçamento de Guerra”, comenta um veterano observador da cena política de Brasília, o cientista político Antonio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar.
Com estas ferramentas na mão, o Centrão garante a eleição de seus protegidos na disputa municipal de 2020, que em algum momento ocorrerá. O fracasso da organização do Aliança pelo Brasil para se converter no partido bolsonarista este ano, nesse sentido, foi altamente conveniente.
Bolsonaro, em contrapartida, faz o jogo das nomeações, como bem demonstrou ontem com a escolha do novo diretor do DNOCS, que será funcional para a candidatura do deputado Arthur Lira (PP-AL) à presidência da Câmara.
Hoje a maior liderança do Centrão, Lira naturalmente tende a se credenciar como favoritíssimo para a vaga de Rodrigo Maia na presidência da Mesa Diretora, se o casamento entre Bolsonaro e Centrão fluir.
Uma Câmara presidida por Lira tende a ter momentos emocionantes.No crepúsculo de seu poder, Rodrigo Maia detém ainda a faculdade de desencadear um processo de impeachment, mas é pouco provável que o faça sem ter certeza absoluta da vitória. Conta com a confiança plena dos principais agentes econômicos do País, mas seu poder para influir na própria sucessão rapidamente se esvai na medida em que fica claro que o DEM deverá repetir em 2022 a aliança com o PSDB. E é altamente provável que o partido do presidente da Câmara fortaleça a candidatura presidencial de Doria.
Lira não tem compromisso com projetos presidenciais atuais ou futuros. Ele assume acordos táticos, é um operador do curto prazo, daqueles que cobram de maneira incisiva faturas não pagas. Seus interesses coincidem com os do Planalto, mas a relação tem tudo para ser atribulada.
Trabalha também a favor de Bolsonaro, ao menos no Congresso, a presença de Hamilton Mourão na vice-presidência da República. Mourão tem sido um exemplo de moderação na posição de vice, mas algumas perguntas persistem no Congresso: o vice-presidente seria capaz de recuar em situações-limite, como Bolsonaro faz? Em momento de grande pressão da opinião pública, o que Mourão faria?
As Forças Armadas estariam mais inclinadas a uma adesão cega a aventuras presidenciais, se o presidente fosse Mourão?
Bolsonaro finge ser o outsider que Mourão na realidade é, esta é a suspeita básica que existe entre parlamentares. Com uma pessoa como Arthur Lira na presidência da Câmara, este fator há de ser medido cuidadosamente.
Para uma aliança entre Bolsonaro e o Centrão prosperar, talvez tenha que haver um sacrifício supremo do presidente da República, uma concessão que beira o insuportável para ser feita, que é a demissão de Paulo Guedes.
O ministro da Economia é um empecilho nesta nova argamassa. Sua agenda de privatizações, rigor fiscal absoluto e Estado mínimo não é compatível com o modelo de governo que o Centrão necessita para se aliar. Se Guedes não abrir mão da agenda de ajuste, subirá a pressão para que ele seja atropelado no processo, acredita Queiroz.
Um sinal eloquente disso foi a aprovação, pela Câmara e pelo Senado, da brecha para reajustes salariais de diversas categorias do funcionalismo. O aviso de Bolsonaro, ao lado de Guedes, de que vetará o dispositivo, mostra que o presidente, por ora, não está disposto a soltar a mão de seu ministro da Economia.
A alegada inadequação da agenda de Guedes às necessidades do mundo real não comove a cúpula da indústria, que ontem estava lado a lado com o governo federal para pressionar o Supremo a colocar em segundo plano a preservação de vidas na pandemia.
A pressão sobre o Supremo por enquanto parece ser apenas um gesto retórico. Ao sugerir que o governo federal crie um comitê de crises para coordenar soluções com as partes envolvidas na pandemia, o presidente do STF deixou claro que o problema não era com ele. Devolveu a bola ao campo adversário. As matilhas que seguem fanaticamente o presidente já estão convocando manifestações antidemocráticas para este fim de semana. Este jogo está em andamento.
O mais importante no gesto de ontem é que lá estavam o grande capital, os ministros militares e o presidente, todos prestigiando Guedes. A questão é por quanto tempo o presidente conseguirá sustentar o fogo para preservar o perímetro de segurança em torno do ministro. O presidente pode ter que fazer uma escolha amarga.
*César Felício é editor de Política.
Ribamar Oliveira: Maior rigor no controle do gasto com pessoal
Mudança na Lei de Responsabilidade Fiscal terá forte efeito sobre a administração
Não recebeu a devida atenção uma mudança feita na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) pelo projeto de lei complementar 39/2020, aprovado na terça-feira pela Câmara dos Deputados e ontem pelo Senado. O noticiário ficou restrito ao montante e à distribuição da ajuda financeira da União aos Estados e municípios, com pouca luz sendo jogada sobre uma alteração que terá caráter permanente e vai melhorar o controle sobre os gastos com a folha salarial dos servidores.
A alteração do artigo 21 da LRF, feita pelo PLP 39, torna nulo o ato que resulte em aumento da despesa com pessoal em períodos posteriores ao final do mandato do titular do Executivo, do Judiciário, do Legislativo, do Ministério Público e dos Tribunais de Contas.
Ou seja, não vale mais aquela prática, bastante difundida, de conceder reajuste salarial em várias parcelas a serem pagas pelos governos seguintes. Prática que, na esfera federal, foi usada em governos do PT. A ex-presidente Dilma Rousseff foi obrigada a pagar parcelas significativas de reajustes salariais concedidos pelo ex-presidente Luiz Inácio da Silva. A nova regra valerá para os três Poderes e órgãos da União, dos Estados e dos municípios.
Os aumentos concedidos durante o governo do ex-presidente Michel Temer tiveram parcelas pagas a várias categorias até o ano passado.
Será nula também a aprovação, a edição ou a sanção, pelos chefes do Executivo, pelos presidentes das casas do Legislativo, pelos presidentes de Tribunais do Poder Judiciário e pelo chefe do Ministério Público da União e dos Estados de norma legal contendo plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público ou a edição de ato para nomeação de aprovados em concurso público quando houver parcelas de aumento de despesas a serem implementadas em período posterior ao fim do mandato.
Como foi aprovado ontem pelo Senado, o PLP 39 vai agora à sanção do presidente Jair Bolsonaro. A nova regra da LRF terá grande importância no controle das despesas com pessoal e acabará com uma prática nefasta dos administradores deixarem despesas de pessoal para serem pagas por seus sucessores.
A iniciativa de alterar o artigo 21 da LRF parece ter sido do Ministério da Economia, aceita e incorporada ao projeto por seu relator, o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). Ela não consta do projeto de lei complementar 149/2020, que trata da compensação pela perda de receita dos Estados e municípios, aprovado anteriormente pela Câmara, e nem do PLP 39/2020 original, de autoria do senador Antonio Anastasia (PSD-MG). Não resultou também de emenda de nenhum senador.
Alcolumbre disse, em seu parecer, que a motivação da mudança na LRF “é impedir que os governantes e chefes de Poder atuais criem despesas novas para seus sucessores, inviabilizando, dessa forma, a futura administração”. O presidente do Senado lembrou aos seus colegas as práticas política que, infelizmente, ainda imperam no Brasil. “Muitos aqui sabem das dificuldades de administrar um município ou um Estado, especialmente quando herdam dívidas contraídas pelo antecessor, que, em busca de dividendos políticos, compromete a sanidade das contas públicas”.
Alcolumbre entendeu que a proibição para que não se deixe despesa salarial a ser paga pelos sucessores “ajuda a resolver um problema mais estrutural, que a LRF, em sua redação original, não conseguiu plenamente”. A mudança, portanto, feita em meio a uma crise sanitária sem paralelo neste século, ajudará, em caráter permanente, o equilíbrio das contas.
Até agora, a LRF considerava nulo apenas o ato que resultasse em aumento da despesa com pessoal expedido nos cento e oitenta dias anteriores ao final do mandato dos titulares dos três Poderes, do Ministério Público e dos tribunais de contas. A regra poderia ser facilmente burlada pois, em boa parte dos casos, os aumentos nas despesas com pessoal são concedidos para vigorarem no último ano dos mandatos, principalmente, no caso de Estados e municípios, com parcelas a serem pagas nos exercícios seguintes.
O exemplo mais recente é o caso da prefeitura do Rio de Janeiro. No mês passado, os vereadores do Rio aprovaram um projeto de lei que cria uma nova gratificação para os servidores administrativos da prefeitura. Como o município está em situação de calamidade pública por causa do novo coronavírus, os vereadores aprovaram uma emenda determinando que a gratificação só será concedida em 2022.
Ou seja, a próxima administração, a ser eleita neste ano, terá que pagar a conta.
Comemorou-se muito, dentro do governo, a aprovação pelo Senado e pela Câmara do artigo 8º do PLP 39, que proíbe governos estaduais e prefeituras de darem aumento, a qualquer título, na remunerações dos seus servidores. O congelamento das despesas com pessoal até o dia 31 de dezembro de 2021 foi apresentado como uma contrapartida de Estados e municípios à ajuda financeira da União durante a pandemia.
A questão discutida na área técnica é que o famoso artigo 8º do PLP 39 pode ser inconstitucional. A nota informativa 18, da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, diz que “poderá haver questionamentos quanto à possibilidade de a União legislar sobre matérias inerentes à competência legislativa e administrativa dos entes subnacionais, sem ofender a autonomia de tais entes”.
A consultoria considera que uma emenda constitucional seria “o instrumento mais adequado para determinar o congelamento da remuneração de todo os agentes públicos das esferas de governo atingidas pela calamidade reconhecida pelo Congresso Nacional”. A questão agora é saber se alguma entidade representativa de servidores terá interesse em ingressar no Supremo Tribunal Federal, com uma ação direta de inconstitucionalidade questionando o artigo 8º.
Maria Cristina Fernandes: Por quem dobram os cotovelos
Gesto que irritou presidente é de autopreservação de Forças Armadas que veem crescer o contágio em suas fileiras
Há 1.813 militares infectados e sete óbitos, num efetivo de cerca de 390 mil nas Forças Armadas. A proporção de casos (0,5%) é dez vezes maior que o contágio do total da população brasileira. O elevado número de contagiados reflete a exposição dos militares em operações de combate à covid-19, da desinfecção de hospitais e higienização de áreas de grande circulação ao transporte de alimentos e equipamentos hospitalares. A mortalidade entre infectados, por outro lado, é um milésimo daquela observada no país, resultado, em grande parte, do monitoramento precoce dos casos e atendimento nos hospitais militares.
Alguns desses números foram expostos no tenso encontro que, no fim de semana, reuniu os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ao Palácio da Alvorada com o presidente da República e seus ministros militares. Na véspera, o general Edson Leal Pujol e todo o generalato presente à cerimônia de transmissão do Comando Militar do Sul haviam dobrado o cotovelo ante um presidente surpreendido.
Com os números, ofereceu-se uma explicação. Para continuar a colaborar com o combate à covid-19, que hoje mobiliza 29 mil militares em todo o país, os militares precisam se cuidar. Os comandantes bateram na tecla, que vêm pautando as portarias militares desde o início da pandemia, de que devem se proteger para proteger o país.
No dia seguinte, o comandante supremo estamparia o divórcio.
Desceu a rampa do Palácio do Planalto para mais um da série de espetáculos que protagoniza nesta pandemia. Cotovelos, naquele domingo, só entraram em cena para seus apoiadores baterem em jornalistas. Sem civismo, mas com muito cinismo, sugeriu que as Forças Armadas partilhariam consigo a paciência esgotada com as instituições e vazou a saída Pujol do comando.
Tratava-se de um balão de ensaio, mas tinha gás suficiente para aumentar a insatisfação dos oficiais da ativa com o presidente da República. O comandante que expunha as tropas ao risco de contágio, visto que se trata “da maior missão” de sua geração, estaria, de fato, com seu cargo em risco? Não. Tratava-se apenas de um presidente que resolvera regar de baciada a semente da indisciplina nos quartéis, praga da República brasileira da qual ele é apenas o mais recente representante.
É sua maneira de reagir ao cordão de isolamento que as instituições começam a apertar em torno de seu pescoço. O decano do Supremo Tribunal Federal é o puxador desse cordão. O depoimento do ex-ministro Sergio Moro frustrou muita gente mas não ao ministro Celso de Mello, que lhe deu publicidade bem como a todo inquérito.
Foi além do procurador-geral da República ao pedir a busca e apreensão do celular do ministro e estabelecer prazo para a tomada de depoimentos das testemunhas e a entrega do vídeo da reunião em que Moro disse ter sido tratada a substituição da superintendência da Polícia Federal no Rio.
Alguns dos intimados não gostaram da advertência do decano de que a resistência das testemunhas em marcar o dia, a hora e o local para serem ouvidos pode resultar em condução coercitiva. Depois que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi tirado de sua casa de madrugada para depor no aeroporto de Congonhas, o Supremo resolveu limitar o instrumento.
Réus não lhe estão mais sujeitos, mas o depoimento “debaixo de vara” continua valendo para testemunhas, mesmo que, entre elas, estejam três generais da reserva na função de ministros (Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto), um dos quais, da ativa.
Advertência no mesmo tom foi usada contra o secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira, e o secretário de Comunicação Social da Presidência, Fábio Wajngarten. Além do prazo de 72 horas para a entrega do vídeo da reunião, eles foram lembrados de que a eventual adulteração do material está sujeita a penalidades previstas na lei.
Um influente general da reserva viu na decisão do decano uma afronta à presunção de inocência, mas Celso de Mello não parece preocupado com as reações. Não foi por decisão dele que generais deixaram as Forças Armadas para servirem a um governo que tem Jair Bolsonaro como presidente da República e Wajngarten como chefe da comunicação.
O decano chegou ao Supremo no governo José Sarney, quando a democracia parecia consentimento de uma ditadura insepulta. Parece confiar no compromisso das Forças Armadas com a defesa da Constituição ao encurtar a vara com a qual intimou os servidores militares lotados no Palácio do Planalto. A quem serão leais, ao presidente, às Forças Armadas ou à lei máxima do país? A evolução do inquérito mostrará se as três lealdades terão como ser conjugadas.
Nas mais de três décadas em que os militares se ocuparam exclusivamente de profissionalizar as Forças Armadas, só deveram satisfação à justiça fardada. Foi a militarização deste governo, pela tese já nocauteada da tutela, que inverteu esta situação. Na ditadura, o Supremo Tribunal Federal teve acanhado desempenho, com honrosas exceções, como o ministro Ribeiro da Costa, que contestou o julgamento do governador deposto Miguel Arraes pela justiça militar. Hoje não há submissão possível.
No limite, o presidente da Corte e seu ex-assessor, o atual ministro da Defesa, movem as peças da contemporização. Se as Forças Armadas têm números a mostrar de sua participação no combate à covid-19, a Corte também os tem. Foram 1.660 processos e 1.473 decisões em torno da pandemia. Dias Toffoli reabilitou a Ordem do Dia de 31 de março, Fernando Azevedo e Silva entronizou a Constituição. Ambos repudiaram a violência contra jornalistas.
Não chega a ser um dueto, mas é um diálogo que pode manter Bolsonaro sob o cerco da Constituição. Ontem Toffoli definiu o Supremo como a última trincheira. A ver como dará cabo de um presidente que, na definição de um fardado, continua a ser o pentatleta da academia militar. Aquele que, quando a corda arrebentar, se manterá em pé com um pedaço dela nos dentes e os cotovelos em riste.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Emissão monetária, dívida e crise
Se a derrocada seguir incontida, até mesmo o fluxo de renda dos pensadores inflacionistas vai cessar
Em um Boletim de 2014, “Money Creation in the Modern Economy”, o Banco da Inglaterra ensina que nos sistemas monetários contemporâneos, o dinheiro é administrado em primeira instância pelos bancos. Essas instituições têm o poder de avaliar o crédito de cada um dos centros privados de produção e de geração de renda e, com base nisso, emitir obrigações contra si próprios, ou seja, depósitos à vista, o meio de pagamento dominante. A criação monetária depende da avaliação dos bancos a respeito do risco de cada aposta privada.
O dinheiro ingressa na circulação com a benção do Estado, o cobrador de impostos, e a unção das relações de propriedade, isto é, decorre das relações estabelecidas entre credores e devedores, mediante a cobrança de uma taxa de juros. No circuito da renda monetária, os gastos privados e públicos precedem a coleta de impostos. As razões são óbvias. Não há como recolher impostos, se a renda não circula.
O banco credor empresta exercendo a função de agente privado do valor universal. O devedor exercita seus anseios de enriquecimento como proprietário privado, usufruindo a potência do valor universal. O dinheiro é riqueza potencial, promessa de enriquecimento, mas também algoz do fracasso. Se o devedor não servir a dívida, o banco, agente privado do valor universal, deve expropriar o inadimplente. A política monetária do Estado é incumbida, em cada momento do ciclo de crédito, de estabelecer as condições que devem regrar e disciplinar as expectativas de credores e devedores. Faz isso mediante a taxa de juros que remunera as reservas bancárias.
No livro “First Responders”, organizado por Ben Bernanke, Henry Paulson e Timothy Geithner, assessores do Federal Reserve e do Tesouro registram as características dos mercados contemporâneos: “O sistema financeiro mudou de forma fundamental nas décadas que antecederam à crise de 2008: mais crédito e precificação de risco foram intermediados nos mercados financeiros, sob os auspícios de instituições não bancárias. Muitas dessas instituições dependem de financiamento de curto prazo nos mercados monetários atacadistas, em vez de depósitos à vista garantidos e estáveis; assim, são mais vulneráveis a uma queda na confiança dos investidores, o que pode levar à queima de ativos e ao contágio do mercado”.
Nos tempos de “normalidade”, esses mercados financeiros ocupam-se de diversificar a riqueza de cada grupo, empresa ou indivíduo, distribuí-la por vários ativos na esperança de assegurar o máximo de ganhos patrimoniais. Os agentes dessas operações, bancos e demais instituições não-bancárias, procuram antecipar movimentos de preços e administrar os instrumentos de hedge e os riscos de contraparte.
Em um clima de convenções “otimistas”, bancos e demais instituições financeiras cuidam de antecipar o “estado de confiança” e estimar as condições de liquidez dos mercados, em conformidade com a evolução dos balanços de empresas, famílias, governos e países.
Sim, países, porque, na era da finança global, a integração dos mercados submeteu o processo de “precificação” dos ativos privados e públicos denominados em moedas distintas às antecipações acerca dos rendimentos dos ativos “de última instância”, líquidos e seguros, emitidos pelo Estado gestor da moeda-reserva. Esses títulos são o fundamento do sistema de criação de moeda fiduciária à escala global, o último refúgio da confiança. Há, portanto, uma hierarquia de moedas - conversíveis e não-conversíveis - que denominam ativos de “última instância” em cada jurisdição monetária.
A crise financeira de 2008 ofereceu a oportunidade de se examinar a resposta da política econômica à desorganização e ao pânico dos mercados. O Quantitative Easing (QE) trouxe à tona o que se movia nos subterrâneos: a articulação estrutural entre o sistema de crédito, a acumulação financeira-produtiva das empresas e a gestão monetária do Estado.
O QE ressaltou, ademais, a importância da expansão da dívida pública para o saneamento e recuperação dos balanços das instituições financeiras. Salvos da desvalorização dos ativos podres que carregavam e agora empanturram o balanço dos bancos centrais, os bancos privados e outros intermediários financeiros garantiram a qualidade de suas carteiras e salvaguardaram seus patrimônios, carregando títulos públicos com rendimentos reduzidos, mas valor assegurado. Os títulos dos Tesouros com rendimentos pífios não cessavam de atrair a volúpia dos investidores apavorados.
Seria interessante observar as relações entre a dívida pública e a dívida privada ao longo dos ciclos de expansão e contração da atividade econômica. O endividamento de empresas e famílias se expande nos períodos de crescimento e “confiança”.
Os bancos, sob a supervisão dos bancos centrais, emprestam às empresas e às famílias. As instituições financeiras não-bancárias emitem títulos que, abrigados nos portfólios, próprios e de outras instituições, amparam as “poupanças” das empresas e das famílias, poupanças acumuladas ao longo dos sucessivos circuitos de gasto-emprego-renda. Títulos públicos e privados são emitidos nos mercados primários, abrigados nos portfólios das instituições e negociados nos mercados secundários. Nos bons tempos, a precificação dos ativos gerados no processo de endividamento define uma curva de juros ascendente conforme a duration.
Na pandemia econômica, os nexos monetários foram rompidos e os proprietários privados, aí incluídos os proprietários da força de trabalho, foram excluídos do circuito da renda. A propriedade perdeu sua função crucial de legitimar a apropriação da renda e a valorização da riqueza. O mercado vira uma mixórdia: não é capaz de diferenciar os ativos de grau de investimento daqueles de alto risco. Trata-se do fenômeno da indiferenciação. A precificação dos ativos só aponta para baixo, jogando os juros longos para cima. Incumbe ao Banco Central achatar a curva, comprando os longos e vendendo os curtos.
A fuga desesperada para a liquidez atesta que, na derrocada, não há ativos melhores ou piores. Todos são fâmulos desprezíveis perante o Dinheiro. A crise desvela o segredo que o sodalício dos Crentes da Sabedoria Informacional dos Mercados - uma seita poderosa - pretende abafar: em sua dimensão monetária, o capitalismo revela o indissociável contubérnio entre o Universal e o Particular, entre o Estado e o Mercado, entre a Comunidade e o Indivíduo.
No pandemônio econômico os mercados gritam: “O Dinheiro acima de Todos, o Estado acima de Tudo.” A restauração das relações de propriedade e de apropriação só pode ser efetuada pela ação discricionária do Estado - Banco Central e Tesouro Nacional. É o paradoxo da livre-iniciativa. A iniciativa é livre enquanto os empreendedores estão legitimados pelo manto protetor da moeda, instituição social administrada pelo Estado.
Um sábio das redes sociais desqualificou o manifesto de economistas que recomendava a emissão monetária para enfrentar a pandemia econômica. “Meu rico dinheirinho vai ser devorado pela inflação”, proclamou. Inflação? Gerar inflação nesse ambiente de contração dos fluxos de gasto e renda seria um prodígio digno do mágico Houdini.
Outro sábio, vaticina que a emissão monetária fatalmente irá comprometer o regime de metas de inflação. Se as relações monetárias de mercado não forem restauradas, o “rico dinheirinho” vai sumir, sim, sugado pela deflação de ativos e por violenta contração dos fluxos de renda monetária.
Caso a derrocada siga incontida, até mesmo o fluxo de renda dos pensadores inflacionistas vai cessar e os ilustres serão expulsos do mercado. Cartão vermelho.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
Andrea Jubé: O recalcitrante
“Falta quem lidere a moderação”, diz general sobre crise
A crise política insuflada pelo próprio presidente da República cresce no mesmo ritmo e proporção que a acentuada curva em ascensão da pandemia da covid-19 no Brasil. Na contramão, a inflexão para baixo verificada nos últimos dias foi a da popularidade presidencial.
Segundo a pesquisa XP/Ipespe divulgada ontem, a aprovação de Bolsonaro caiu quatro pontos percentuais em uma semana (até 30/4), desde o pedido de demissão do ex-ministro Sergio Moro. No mesmo período, o número de casos confirmados e óbitos provocados pelo coronavírus dobrou. Eram 3.704 vítimas fatais em 24 de abril; ontem esse número subiu para 7.288.
É um círculo vicioso e infeccioso: os minicomícios dominicais que atentam contra a democracia (e agora contra a liberdade de imprensa) elevam a temperatura política e violam a quarentena; essa violação gera aglomerações, que podem levar ao aumento dos casos de covid-19; o incremento dos casos obriga governadores a prolongarem a quarentena, o que mantém o comércio fechado, acirra a crise econômica e a política e estimula os minicomícios com o presidente; esses minicomícios violam a quarentena e causam aglomerações, que aumentam os casos da doença.
No domingo, a reedição dos atos antidemocráticos com a participação do presidente Jair Bolsonaro, apenas 15 dias depois do evento cobrando intervenção militar, voltou a gerar desconforto e contrariedade entre políticos e militares. Em paralelo, contudo, prevalecia um sentimento de resignação: no curto prazo, a saída institucional é conviver com a ousadia e recalcitrância presidencial.
O presidente já foi aconselhado a não estimular nem participar desses atos, mas faz ouvidos moucos. “Não adianta, Bolsonaro não vai mudar”, sentenciou à coluna um cacique político com trânsito nos três Poderes. “É o que temos para o jantar”, completou, num esgar. Esta liderança diz que será preciso “administrar” os atos do presidente, e no caso de eventuais arroubos autoritários, acionar os freios e contrapesos institucionais.
Esse mesmo cacique ressalva que não há ambiente político para impeachment. A aprovação popular do presidente vem erodindo, mas não o suficiente para perder a base de sustentação que tenta construir com o Centrão. “27% de aprovação é considerável, não acha?”, diz o aliado, citando a pesquisa XP/Ipespe. Ele observa que Bolsonaro, na prática, mantém os mesmos 30% de apoio popular, porque a margem de erro do levantamento é de 3,2%, para mais ou para menos.
“O silêncio é quem deve falar mais alto”, disse ontem um general integrante do governo abordado pela coluna para comentar os atos de domingo. A insistência de Bolsonaro em tentar vincular as Forças Armadas à sua imagem pessoal desagrada a cúpula, porque o esforço é para esclarecer que são instituições de Estado, e não de um governo.
Mesmo que alguns generais concordem com Bolsonaro de que o STF se excedeu no veto a Alexandre Ramagem e à expulsão dos diplomatas venezuelanos, é um desgaste para o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, divulgar uma nota oficial, a cada 15 dias, reafirmando o compromisso das Forças Armadas com a democracia e a Constituição. “As Forças Armadas cumprem a sua missão Constitucional”, reforçou o comunicado de ontem.
Para este general, é importante ficar claro que “não há ambiente para mais crises”. Entretanto, este oficial ressalta que “falta alguém para liderar essa moderação”. A mesma ausência foi apontada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ontem em live do Valor. “Estamos com uma crise de liderança (…) precisamos de alguém que dê a palavra de coesão”, cobrou o líder tucano.
O agravante nessa conjuntura é que a escalada da pandemia no país, que deveria protagonizar o debate público, virou pano de fundo da turbulência política. Enquanto Bolsonaro acelerou a troca de comando da Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro, a cada semana o sistema de saúde de um Estado entra em colapso.
Depois de Amazonas, Pará e Rio de Janeiro, nesta semana o alerta sanitário chegou ao Amapá, base eleitoral do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM). Dados da Fiocruz mostram que em 30 de abril, havia 171,9 casos confirmados por 100 mil habitantes no Amapá. Ao lado, no Amazonas, esse índice era de 158,8/100 mil, e em São Paulo, de 65,6/100 mil.
Enquanto Bolsonaro conclama a abertura das lojas, nos últimos dias, os governadores Helder Barbalho (Pará), e Paulo Câmara (Pernambuco), decidiram decretar “lockdown” em Belém e Recife para tentar conter a escalada de mortes.
Ontem houve acenos do STF de distensionamento: o ministro Marco Aurélio Mello propôs uma alteração no regimento para que pedidos de liminar envolvendo atos do Executivo ou do Congresso sejam apreciados pelo plenário, sem possibilidade de decisão individual. Incomodou Bolsonaro que o veto a Ramagem partisse de uma decisão sem o respaldo do colegiado.
Em contrapartida, não houve gestos públicos de Bolsonaro para aliviar a tensão. Ele ainda levantou dúvidas sobre as agressões físicas e verbais de seus apoiadores contra os jornalistas que trabalhavam na cobertura do evento.
Em uma crônica dos anos 70, Carlos Drummond de Andrade descreveu um embate entre o trocador e um passageiro, que violou a portaria sobre roupas de banho no ônibus. Invocando a obediência à lei, a disciplina e o senso de coletividade, o trocador pediu que o passageiro viajasse de pé, para não encharcar o banco e permitir que outra pessoa seca pudesse ocupar o assento.
“Não é água de mar, é suor”, retrucou o passageiro, alegando que não estava molhado, e sim, suado. Mas o trocador adverte que segundo a portaria, os recalcitrantes devem se retirar. O passageiro reagiu: não admitiria ser chamado de “réu-não-sei-o-quê” porque não era bandido. E não arredou o pé, ou melhor, o traseiro.
Equipare-se o banhista ao presidente da República e serão dois recalcitrantes, violando normas que miram o bem coletivo, como a quarentena. No caso do presidente, o quadro se agrava devido à estatura do cargo e à responsabilidade pela saúde e bem estar de 200 milhões de brasileiros.
Sergio Lamucci: A máquina de produzir incertezas
Fonte de conflitos, Bolsonaro contribui para manter a incerteza elevada, prejudicando a economia, que pode encolher 5% ou mais neste ano
A pandemia da covid-19 fez a incerteza disparar no Brasil e no mundo, com os indicadores criados para medir o grau de indefinição na economia superando em muito recordes anteriores. A combinação de uma crise de saúde com a paralisação da atividade global provocou um choque de imprevisibilidade sem precedentes.
Por aqui, soma-se a esse cenário os conflitos e ruídos causados pelo presidente Jair Bolsonaro, uma máquina de produzir incertezas desde o início de sua gestão. É um fator de peso a conspirar contra a recuperação da economia quando houver o abrandamento das medidas de isolamento social. Níveis elevados de incerteza atrapalham especialmente o investimento, que depende de um horizonte previsível.
O Indicador de Incerteza da Economia (IIE) da Fundação Getulio Vargas (FGV) alcançou em abril 210,5 pontos, o nível mais alto da série. Em dois meses, subiu mais de 95 pontos. Antes dos recordes de março e abril, o patamar máximo anterior, de 136,8 pontos, tinha sido atingido em setembro de 2015, mês em que a agência de classificação de risco Standard and Poor’s (S&P) tirou o grau de investimento do Brasil.
A imprevisibilidade também superou marcas históricas no exterior. O índice de incerteza de política econômica dos EUA bateu o recorde em março, ao atingir 425,9 pontos, bem acima dos 284,1 pontos do pico anterior, de janeiro de 2019. Em abril, o indicador cedeu um pouco, mas seguiu elevadíssimo, em 400,7 pontos. O índice foi criado em 2011 por Nicholas Bloom, da Universidade Stanford, Steven Davis, da Universidade de Chicago, e Scott Baker, da Universidade Northwestern. Estudiosos do tema, os três mostram em seus trabalhos a influência da imprevisibilidade sobre o investimento, a produção e o emprego. Eles desenvolveram indicadores para mais de 20 países, entre eles o Brasil, baseados na varredura de notícias na imprensa relacionadas à incerteza econômica. O IIE da FGV,, por sua vez, tem dois componentes. O de mídia, com peso de 80%, se baseia na frequência de notícias com menção à incerteza em meios de comunicação impressos e on-line. O de expectativa busca medir a indefinição relacionada a previsões do mercado em relação a câmbio, juros e inflação, com peso de 20%.
No mês passado, Bloom, Davis, Baker e Stephen Terry, da Universidade de Boston, publicaram um estudo sobre a incerteza provocada pela pandemia. Segundo eles, a doença criou um enorme choque de imprevisibilidade, maior do que o associado à crise financeira de 2008 e 2009 e mais próximo em magnitude ao que ocorreu durante a Grande Depressão de 1929 a 1933. Para avaliar esse aumento maciço da incerteza em tempo real, eles usaram medidas de volatilidade no mercado de ações, de incerteza econômica baseada em notícias da imprensa e respostas a pesquisas sobre a percepção do tema pelas empresas. O exercício indica uma contração do PIB dos EUA de 9% no segundo trimestre em relação ao mesmo período do ano passado, atingindo uma retração máxima de 11% nessa base de comparação no quarto trimestre de 2020. Mais da metade desse tombo se deve à incerteza econômica induzida pela doença, de acordo com eles.
Para atenuar os efeitos negativos do choque sobre a economia, bancos centrais e governos têm adotado medidas para garantir a liquidez dos mercados e ajudar consumidores e empresas, que sofrem com a abrupta queda de renda e de receita. Essa estratégia, se bem sucedida, terá um papel relevante para reduzir a incerteza e contribuir para a recuperação da economia quando o isolamento for relaxado. É difícil, porém, acreditar numa retomada rápida. É provável que famílias e empresas sigam cautelosas, num cenário em que medidas de confinamento poderão ser retomadas de modo intermitente, a depender do grau de contágio.
No Brasil, o auxílio emergencial de R$ 600 para informais começou a ser pago, mas há reclamações de trabalhadores que em tese têm direito ao benefício e não o receberam. O maior problema, contudo, é fazer o crédito chegar em maior volume e com maior fluidez a micro e pequenas empresas. Depois da hesitação inicial, a equipe econômica tem buscado agir, mas ainda há correções a serem feitas. Há ainda a importante atuação do Banco Central (BC), reduzindo os juros e provendo liquidez, por exemplo.
Quem joga contra e aumenta a incerteza é Bolsonaro. No meio da pandemia, ele minimiza a gravidade da doença e faz seguidos apelos para o abrandamento da quarentena, contrariando a recomendação da maior parte dos especialistas e a decisão de muitos governadores e prefeitos. Para completar, trocou o ministro da Saúde durante a crise sanitária. O rompimento com Sergio Moro, que pediu demissão do governo, provocou uma grave crise política. Há ainda os constantes atritos com o Congresso e o Judiciário. Fonte de conflitos, Bolsonaro contribui para manter a incerteza elevada, prejudicando a economia, que pode encolher 5% ou mais neste ano. Isso aumenta a probabilidade de uma recuperação lenta depois que a quarentena for relaxada.
Bruno Carazza: O mundo mudou, o Brasil nem tanto
Dá melancolia ler a edição nº 1 do “Valor”, há 20 anos
Eu me lembro exatamente quando e onde estava quando li a edição nº 1 do Valor Econômico, há 20 anos. Eu era praticamente um estagiário de luxo no Ministério da Fazenda quando me mandaram assistir a um seminário sobre a reforma da Previdência em Curitiba. Era a primeira vez que eu viajava de avião, e ao entrar na aeronave a comissária de bordo me entregou um exemplar do jornal de economia que acabara de ser lançado no Brasil.
Muita coisa mudou desde então. Não há mais Varig, três reformas da Previdência foram aprovadas (e ela continuava em déficit), o ministério trocou de nome e (quem diria?) o economista recém-formado - que naquele dia não sabia se olhava pela janela do avião ou lia fascinado o novo jornal escrito por um supertime de jornalistas, com layout inovador e cheio de dados - hoje assina uma de suas colunas.
Vinte anos depois folheio a primeira edição do Valor e reflito sobre as voltas que o mundo e o Brasil deram. Em 2/5/2000, o Valor custava R$ 1,50, e os R$ 5,00 de hoje refletem exatamente os 238% de variação do IPCA no período - um alerta para quem acredita que a inflação deixou de ser um problema no Brasil. Naquele tempo o dólar valia R$ 1,80 e a meta da Selic estava em 18,5%. “Bons tempos”, muitos dirão.
Era um outro mundo. Na página A14 há uma foto dos líderes de então: Tony Blair, Fernando Henrique, Massimo D’Alema, Bill Clinton, Lionel Jospin e Gerard Schröder propondo uma Terceira Via que prometia conciliar justiça social e livre mercado num mundo cada vez mais globalizado. Deu ruim.
Mas muita coisa continua como dantes: Ribamar de Oliveira chamava a atenção para a carga tributária que alcançava 30,3% do PIB graças a uma perniciosa concentração em contribuições sociais aplicadas em cascata, uma distorção de nosso federalismo disfuncional.
O exemplar inaugural traz ainda assuntos que se tornaram recorrentes ou premonitórios de crises nos anos seguintes: Claudia Safatle e Marli Olmos cobriam uma greve de servidores da Receita Federal por aumento de salários e Francisco Góes relatava as ameaças de paralisação dos caminhoneiros por causa do preço do frete e tarifas dos pedágios. E na mesma semana em que seria sancionada a Lei de Responsabilidade Fiscal, o Congresso debatia um projeto de renegociação de dívidas dos Estados, enquanto Rodrigo Maia e Eduardo Paes discutiam uma proposta de constituir um fundo de R$ 700 milhões para financiar campanhas eleitorais. No Rio de Janeiro, o governador Garotinho prometia a privatização da Cedae, a companhia estatal de saneamento que sempre foi um locus de corrupção e hoje distribui água contaminada aos cariocas.
A edição traz também uma longa reportagem sobre suspeitas de fraude no sistema bancário e uma discussão sobre uma suposta vantagem de bancos estrangeiros no leilão de privatização do Banespa. Duas décadas depois, nosso sistema financeiro está muito mais sólido, apesar de a insegurança jurídica do país ter espantado a maioria dos gringos e a concorrência bancária ainda desafiar o Banco Central e o Cade.
E nestes tempos em que Bolsonaro procura desesperadamente o apoio do Centrão para sobreviver, fica o alerta do então presidente do Senado, o cacique baiano Antonio Carlos Magalhães, que demonstrava sua força em entrevista a César Felício: “Eu tenho o governador, os três senadores, 95% dos prefeitos, 30 dos 39 deputados federais. Me mostre alguém que tenha um poder como este onde faz política”.
Nada, porém, mudou tanto quanto a tecnologia. No artigo de apresentação do projeto, a equipe do Valor se orgulhava dos seus 200 computadores, “sendo 21 notebooks”. Também pudera: outra reportagem informava que o mundo àquela época tinha apenas 140 milhões de usuários de internet - sendo 2 milhões no Brasil. E Cristiano Romero, de Washington, anunciava a intenção dos Estados Unidos entrarem com uma ação na OMC contra o Brasil. O motivo? CDs piratas. Mas é bom não se iludir: o primeiro número traz ainda entrevista de Bill Gates defendendo-se das acusações de domínio do mercado, nada muito diferente do que hoje vemos hoje com as chamadas “tech giants” Google, Apple, Amazon, Facebook e… Microsoft.
No entanto, a melhor indicação dos efeitos do tempo são os artigos das principais lideranças políticas do país na época, escritos especialmente para a estreia do Valor. Fernando Henrique Cardoso, àquela altura no sexto ano do seu governo, tecia loas ao recém-lançado tripé macroeconômico e apostava num ciclo de crescimento contínuo de crescimento na casa dos 4% por pelo menos 5 anos. Só não contava com o apagão, cujos riscos foram apontados em reportagem da página A6 - mas com declarações do ministro de Minas e Energia e dos presidentes da Aneel e da ONS negando essa possibilidade.
No artigo de Lula, o “sapo barbudo” ainda brigava com o “Lulinha paz e amor”. Ao mesmo tempo em que acusava FHC e o FMI de tornarem o país “uma nau sem rumo que navega ao sabor dos ventos da globalização neoliberal” e propunha controle de capitais para tirar o Brasil da crise, seu artigo é um prenúncio do que os futuros governos do PT teriam de bom e de ruim: medidas voltadas aos mais pobres (renda mínima, aumento do salário mínimo e estímulo ao crédito ao consumidor) e políticas econômicas que desaguaram em ruína fiscal e grandes escândalos de corrupção, como colocar o BNDES para conceder crédito subsidiado às empresas, estimular a formação de multinacionais brasileiras e lançar um grande programa habitacional.
Em tempos de ameaças autoritárias e “fake news”, chegar aos 20 anos fazendo jornalismo diário comprometido com fatos, dados e informação de qualidade é a principal notícia do dia. Vida longa ao Valor e ao seu excelente time de jornalistas e funcionários!
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Ribamar Oliveira: Sacrifício desigual
Trabalhador “comum” será mais penalizado na crise que servidor público
A contrapartida que o ministro da Economia, Paulo Guedes, quer de Estados e municípios para que recebam ajuda financeira do governo federal chega a ser surrealista. No momento em as receitas estaduais e municipais estão em queda livre e as empresas privadas demitem, reduzem salários e suspendem contratos de seus trabalhadores, Guedes propõe que os servidores públicos fiquem apenas sem reajuste salarial durante 18 meses. Ou seja, até o fim de 2021. Em 2022, que será um ano de eleições gerais, eles poderão ter aumento salarial.
Se este é o sacrifício possível a ser exigido dos servidores, em meio a uma situação de calamidade pública, em que milhares de pessoas estão morrendo e outros milhares perdendo seus empregos, então as propostas de emenda constitucional 186 e 188, encaminhadas no ano passado por Guedes ao Congresso, não irão prosperar. As duas preveem medidas muito mais duras para o funcionalismo, como forma de ajustar as contas públicas. Elas autorizam, por exemplo, a redução da carga de trabalho e a consequente diminuição dos salários.
As medidas das PECs não teriam validade por apenas 18 meses, mas, no caso da União, até que o governo voltasse a cumprir a chamada “regra de ouro” das finanças públicas e, no caso dos Estados e municípios, até que as despesas correntes ficassem abaixo de 95% das receitas correntes. O prazo de vigência das medidas, portanto, seria o do ajuste das contas públicas. A “regra de ouro” é aquela que proíbe o aumento do endividamento público para o pagamento de despesas correntes.
Ainda em março deste ano, quando a Câmara dos Deputados começou a discutir a chamada “PEC do Orçamento de Guerra”, uma das ideias apresentadas foi a redução da remuneração dos servidores, como medida indispensável para fazer frente às despesas que a União, os Estados e os municípios teriam com o combate à pandemia. Era também considerada importante para igualar a situação dos funcionários públicos com a dos trabalhadores da iniciativa privada, que sofrerão perda de renda durante a crise.
A discussão foi liderada pelo próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia, mas contou sempre com a concordância e o estímulo da área econômica do governo. Maia tinha interlocutor constante na equipe e o texto estava sendo redigido em comum acordo. Uma versão da PEC, divulgada com exclusividade pelo Valor, dizia que as remunerações seriam reduzidas em 30% e esse dispositivo teria validade até 2023.
As corporações de servidores reagiram imediatamente à proposta, antes mesmo dela ser oficialmente formalizada. Representantes de entidades dos magistrados foram ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli. Dele, ouviram que as propostas de redução da remuneração dos servidores estavam “paralisadas” e só voltariam à pauta caso houvesse consenso entre os Poderes, como informou o Valor. Os juízes não aceitavam redução de salários.
A equipe de Guedes descobriu também que o próprio presidente Jair Bolsonaro era contrário à proposta. Uma redução de remunerações teria de incluir também os militares. Em entrevista à TV CNN Brasil, no mesmo dia da demissão do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, Bolsonaro acusou o presidente da Câmara de querer fazer “um confisco” de 25% nos salários dos servidores, o que ele considerou inadmissível. Com a reação de Bolsonaro, Guedes foi obrigado a recuar e terminou fazendo a proposta de congelar, por dois anos, os salários dos servidores. Com isso, o assunto saiu da “PEC do Orçamento de Guerra”.
O fato é que, no pós-crise, os desafios serão imensos na área fiscal. Com as medidas que estão sendo adotadas, os principais analistas de mercado estimam que o déficit primário da União deverá ficar em torno de R$ 600 bilhões neste ano. Desde 2014, o setor público apresenta déficit primário em suas contas e elas continuarão no vermelho ainda por vários anos.
A dívida pública bruta poderá sair de 76,8% do Produto Interno Bruto (PIB), no ano passado, para perto de 90% do PIB, este ano, de acordo com projeções de analistas do mercado. A Instituição Fiscal Independente (IFI) projeta que ela chegará a 100% do PIB em 2030.
Como fazer um ajuste fiscal que coloque a dívida pública em uma trajetória sustentável e produza superávit primário, sem atingir os servidores? Antes da pandemia, a solução apontada pela equipe econômica era a aprovação das PECs 186 e 188. As duas estão sendo discutidas no Senado. Mas, se mesmo durante a pandemia não está sendo possível exigir um sacrifício dos servidores maior do que não conceder reajuste salarial por um período de tempo, como esperar que o Congresso Nacional aprove um cardápio de medidas mais duras?
O governo terá que promover também uma nova e ampla renegociação das dívidas estaduais e municipais, pois os Estados e municípios, por decisão do STF, não estão pagando seus débitos com a União nem com os bancos públicos, neste momento de calamidade pública. Tudo isso terá que ser objeto de uma difícil negociação, que envolverá, certamente, contrapartidas por parte de Estados e municípios.
O ingrediente que torna ainda mais nebuloso o pós-crise é a autorização dada pelo ministro Celso de Melo, do STF, para a abertura de investigação, por parte do Ministério Público, das acusações feitas pelo ex-ministro Sergio Moro ao presidente da República. O ministro do Supremo Gilmar Mendes estimou que o inquérito poderá durar 90 dias. Até lá, o país viverá a expectativa de saber se o procurador-geral da República, Augusto Aras, terá elementos suficientes para apresentar denúncia contra Bolsonaro.
Para alguns, as acusações de Moro poderão ter o mesmo efeito sobre as reformas econômicas que as acusações de Joesley Batista contra o ex-presidente Michel Temer, em maio de 2017. Naquela época, a reforma da Previdência ficou paralisada. Se o procurador-geral apresentar denúncia contra Bolsonaro, a Câmara dos Deputados terá que decidir se autoriza a abertura do processo. Neste cenário, que coincidirá com o fim do ano, a crise será jogada para 2021, com consequências imprevisíveis para a agenda de reformas.
Maria Cristina Fernandes: O decano encara cabo, soldado e capitão
Celso de Mello não deixará outra alternativa ao procurador senão denunciar o presidente
O veto à nomeação de Alexandre Ramagem para diretor-geral da PF pelo ministro Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal, mostra que, se o presidente Jair Bolsonaro pretendia ter pontes com a Corte, com suas recentes indicações para a Advocacia- Geral da União e o Ministério da Justiça, a pinguela despencou antes de estabelecida.
Procurador-geral da Fazenda Nacional, Levi Mello do Amaral foi secretário-executivo do MJ na gestão Alexandre de Moraes, hoje relator de dois inquéritos que cercam o mandato presidencial, o das “fake news” e da manifestação do dia do Exército.
Além de segundo de Moraes no MJ, o novo AGU também é próximo de Gilmar Mendes. Compõe com novo ministro da Justiça, André Mendonça, ex-colega do ministro Dias Toffoli na AGU e seu candidato para a próxima vaga no Supremo, uma dupla que prometia azeitar a interlocução com a Corte.
A pinguela começou a ser dinamitada em sua própria base. A deputada Carla Zambelli, da tropa de choque bolsonarista, acusou Moraes, que foi secretário de Segurança em São Paulo, de vínculos com o PCC. Apresentou como única evidência o fato de o ministro “estar envolvido na causa de investigar pessoas que fazem o bem pelo Brasil”.
Na primeira vez em que o STF interferiu numa nomeação do Executivo, a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a Casa Civil de Dilma Rousseff, com base num grampo ilegal do ministro Sergio Moro, deu início à queda da ex-presidente. Não foi a última.
Durante o governo Michel Temer, a ministra Carmen Lúcia suspenderia a nomeação da deputada federal Cristiane Brasil (PTB-RJ) e o ministro Celso de Mello manteria a de Moreira Franco. Nenhuma delas abalou o mandato presidencial.
Por controverso, Moraes achou por bem fiar sua liminar na abertura de investigação sobre a interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, autorizada por Celso de Mello com base nas denúncias de Moro. Deixa claro que é a autoridade do decano que vai avançar os limites da Corte em relação aos atos do presidente da República.
Assim tem sido antes mesmo da posse de Bolsonaro. No dia seguinte à circulação de vídeo em que o deputado federal Eduardo Bolsonaro disse que bastaria cabo e soldado para fechar o Supremo, o então candidato pelo PSL à Presidência enviou uma carta a Mello. Nela, dizia que as manifestações “emocionais” da campanha se deviam à “angústia e às pressões sofridas”.
Mello não era presidente da Corte e se insurgira contra o vídeo da mesma maneira que outros colegas, mas Bolsonaro justificava a escolha do destinatário pela “conduta impecável” e pela “ponderação”.
O constitucionalista Diego Arguelhes (Insper) diz que a atuação do ministro em defesa das minorias parlamentares pode ter despertado empatia no então candidato. Mas ele também tinha ao seu lado Gustavo Bebianno, que trabalhara no escritório de Sérgio Bermudes, e estava em condições de instruí-lo sobre o destinatário que melhor representaria a reserva moral da Corte.
O remetente logo descobriria que não tinha a menor chance de dobrá-lo. O decano hoje simboliza um Supremo mais unido do que se viu nas décadas marcadas por mensalão e Lava-Jato, pelo restabelecimento da ordem constitucional. Dias depois, um coronel bolsonarista aposentado ofendeu a ministra Rosa Weber e o ponderado ministro chamou-o de “imundo, sórdido e repugnante”.
Com a posse do presidente, o tom subiria ainda mais. Na reedição da medida provisória transferindo a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, que sucedeu a decisão parlamentar mantendo-a na Funai, o ministro não pediu vênia: “É preciso repelir qualquer ensaio de controle hegemônico do aparelho de Estado por um dos poderes da República”.
Na escalada do confronto, passou a se dirigir diretamente ao chefe da nação. Na nota em que reagiu a um vídeo compartilhado por Bolsonaro comparando os ministros da Corte a hienas, identificou “atrevimento presidencial [que] parece não encontrar limites na compostura que um chefe de Estado deve demonstrar”.
Àquela altura, nenhum outro ministro ousara tanto. O outrora desbocado Gilmar Mendes se tornara frequentador da corte bolsonarista na companhia de Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Celso de Mello, que nunca foi de frequentar palácios, continuou vigilante em relação à escalada autoritária.
Em março, quando Bolsonaro engajou-se na divulgação de passeata golpista, Mello pulou duas casas: “É uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce”. O ministro submeteu-se a uma cirurgia e, ao voltar da convalescença, já em plenário virtual, resolveu transpor sua indignação para os autos.
Pediu que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, se manifeste sobre denúncia por crime de responsabilidade de dois advogados, determinou que a União devolvesse ao Maranhão ventiladores adquiridos pelo Estado, abriu inquérito para apurar crime de racismo do ministro da Educação, Abraham Weintraub, contra chineses e, finalmente, o mais importante, deles, deu início à investigação sobre as denúncias de Moro contra o presidente. Tudo isso em uma semana.
Conservador nos ritos e na interpretação da norma constitucional e pouco afeito a abordagens emocionais, Celso de Mello parece determinado a deixar sua marca sobre o futuro do estado de direito nos seis meses que lhe restam de mandato. Um parlamentar viu na ênfase dada por Mello à responsabilidade do presidente da República, a minuta de um pedido de impeachment.
O PGR, alerta a constitucionalista Eloísa Machado (FGV), é o condutor da investigação, podendo, inclusive, procrastiná-la. O titubeante pedido de abertura de inquérito é sinal disso. Na opinião de um experiente procurador, porém, Mello pode se valer de medidas cautelares, como aquela incluída no inquérito para que Aras se pronuncie sobre a apreensão do celular da deputada Carla Zambelli, com o intuito de destravar a investigação.
Um ex-ministro do Supremo, que convive com Celso de Mello há décadas, antevê decisões que não deixarão alternativa ao procurador-geral da República, senão denunciar o presidente. Daí pra frente, é outra história. Até lá, a expectativa é de Celso de Mello, na comissão de frente, seja capaz de manter recuados cabos, soldados e, sobretudo, o capitão.
Francisco Góes: Um Plano ‘Marshall’ que divide opiniões
Programa Pró-Brasil aprofunda debate sobre uso de recursos públicos para investimento em infraestrutura
O debate sobre o uso de recursos públicos para obras de infraestrutura no pós-pandemia ganhou força com o lançamento do programa Pró-Brasil, coordenado pela Casa Civil da Presidência, na semana passada. Sob o apelido de Plano Marshall, em referência ao apoio à reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra, o programa é tido, pelas alas política e militar do governo, como instrumento importante na recuperação da economia. Mas a iniciativa vem sendo alvo do bombardeio de economistas e da própria área econômica, liderada pelo ministro Paulo Guedes, pelo potencial destrutivo das contas públicas em momento em que os gastos estão concentrados no combate ao coronavírus e seus efeitos.
Embora seja desejável planejar investimentos setoriais para permitir aos investidores, por exemplo, calcular a taxa interna de retorno, há ceticismo entre economistas que seja possível tirar do papel número considerável de projetos em curto espaço de tempo. “Achar que o investimento em infraestrutura vai ser a base para a recuperação pós-pandemia, no contexto institucional do Brasil, esquece”, diz um economista.
A crítica faz referência à dificuldade do Brasil de executar obras no prazo e no custo originais ou, o que é pior, deixá-las incompletas por anos ou décadas a fio. Essa tradição, da qual ninguém pode se orgulhar, se explica por falta de planejamento, pelo desenho mal feito de concessões de obras públicas, por lacunas regulatórias e pela falta de bons projetos de engenharia. O Pró-Brasil prevê aportes de recursos públicos de R$ 30 bilhões até 2022 e a criação de 1 milhão de empregos no período.
Assim que foi apresentado, o programa expôs divergências entre um pensamento mais intervencionista, representado por políticos e militares do Planalto, e a ala liberal, comandada por Guedes. A área econômica do governo tem chamado a atenção para a necessidade de que gastos públicos que vão além do combate à pandemia respeitem as regras fiscais, entre as quais está o chamado teto de gastos, que limita as despesas não financeiras da União à inflação do ano anterior.
O economista Fabio Giambiagi diz que investimentos de longo prazo, como é o caso dos em infraestrutura, dependem de uma taxa de juros também longa, que subiu. Essa taxa, acrescenta, depende da percepção de solvência do setor público, da dívida pública, que é afetada em casos de “contabilidade criativa”. O termo, também chamado de “pedalada”, ficou conhecido do público no governo de Dilma Rousseff e se refere a operações que buscam garantir um ganho artificial para o resultado primário das contas públicas.
Em 2019, Gambiagi e Guilherme Tinoco, ambos economistas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), publicaram artigo no qual defendiam a revisão do teto do gasto público para preservar a capacidade do Estado de investir, e executar políticas públicas, sem deixar de lado o compromisso com a sustentabilidade fiscal. A proposta, hoje sepultada, foi feita em contexto muito diferente do atual, logo depois da aprovação da reforma da Previdência, que teve como um dos artífices o agora secretário do Desenvolvimento Regional do governo Bolsonaro, Rogério Marinho. Menos de um ano depois, Guedes e Marinho estão aparentemente rompidos, pois o ministro da Economia considera o deputado potiguar um dos mentores do Pró-Brasil, que aumenta os gastos públicos.
Um economista que participou do governo de Michel Temer entende, porém, que faz sentido promover um aumento no investimento público em infraestrutura, cujo retorno se dá pela ótica social. Já o investimento privado no setor olha o binômio risco-retorno. O problema, reconhece o técnico, é que não há espaço no Orçamento para mais despesas, o que vai levar a ampliar o déficit público. Mas isso não seria necessariamente um problema, na sua visão: “O custo-benefício para fazer obras com recursos públicos nunca foi tão barato”, argumenta. Na visão dele, não estaria se falando de “muito” dinheiro dada a baixa capacidade do Estado de executar os projetos de infraestrutura a cada exercício fiscal.
“As coisas demoram a acontecer no Brasil”, afirmou. Um exemplo dessa situação, segundo outro economista, é que as primeiras concessões do governo Bolsonaro começaram a ser preparadas na gestão Temer. A visão desses economistas é que o investimento privado em infraestrutura é pouco plausível agora e os desembolsos em concessões existentes serão unicamente os programados, com risco, inclusive, de prorrogação por causa dos efeitos da covid-19.
O BNDES tem em carteira projetos que somam R$ 188 bilhões (ver tabela) em investimentos, dos quais R$ 70 bilhões podem ser realizados em cinco anos, diz Fabio Abrahão, diretor de infraestrutura, concessões e PPPs do banco. São empreendimentos novos, em fase de modelagem, que vão estar prontos para ir a mercado até 2022. A participação do banco no financiamento dos projetos vai variar dependendo do ativo e do setor, diz Abrahão. O objetivo é envolver cada vez mais os bancos privados nas operações. “Se o BNDES, por meio de boa estruturação, conseguir emprestar menos, mas atraindo outros [bancos], vamos conseguir viabilizar mais projetos.”