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César Felício: Bolsonaro e o abismo

Pandemia contaminou imagem do presidente

Quase todas as pesquisas de opinião no Brasil, independentemente do instituto ou da metodologia utilizada, apontam a mesma tendência. O sentimento mais poderoso que existe no Brasil, com trajetória ascendente, não é o bolsonarismo, e muito menos o petismo. O presidente e seu antecessor contam com taxas de aprovação relativamente estáveis ao longo do último ano.

É o antibolsonarismo que se desenvolve, ainda sem auferir capital a ninguém na oposição ao atual governo. É uma onda por ora sem beneficiários. Existe, de forma cada vez mais nítida, uma demanda de opinião pública a ser atendida por quem se habilitar.

Talvez seja equivocado dizer que há espaço para o tal “centro”. Há uma brecha para se desenvolver uma candidatura que signifique o repúdio a Bolsonaro e a Lula simultaneamente, o que é diferente de estar no meio do espectro ideológico.

A pesquisa XP/Ipespe, por exemplo, que foi divulgada anteontem, mostra uma queda horizontal em relação ao presidente: o repúdio a Bolsonaro cresceu na segunda quinzena de abril em todos os segmentos, independentemente da faixa de renda, da religião, do sexo, da escolaridade, da região do país.

A rejeição avança conforme o coronavírus avança. O percentual de pessoas que conhece alguém afetado pela pandemia passou de 2% para 31% entre março e maio. O de quem teve impacto na situação financeira saltou de 26% para 56%. Há dois meses 21% se diziam com muito medo da pandemia. Agora são 43%.

Isso tudo mesmo levando em conta que 34% dos pesquisados já receberam o benefício de R$ 600 do governo e que 14% acreditam que ainda vão receber. Os programas para garantir a sobrevivências básica da população, ainda que garantam em determinados segmentos um salto importante de renda, como por exemplo entre os beneficiários do Bolsa Família, não estão por ora servindo de anteparo.

Os levantamentos por “tracking” da Idea Big Data mostram alguma nuance. A Idea Big Data realizou levantamentos quantitativos específicos fora dos grandes centros urbanos nortistas e nordestinos.
Bolsonaro teria perdido nas últimas semanas oito pontos percentuais de apoio no Sul e no Sudeste, mas a queda foi amortecida, ainda que suavemente, por um crescimento de 2 a 3 pontos percentuais no Norte e no Nordeste.

O saldo final é que Bolsonaro está deixando de ter o apoio de um terço da população e caminhando para ficar com um quarto, panorama que seria mais agudo sem o auxílio emergencial.

“A rejeição a Bolsonaro cresce mais onde o repúdio ao PT é grande, abrindo espaço para uma liderança que seja ao mesmo tempo antibolsonarista e antipetista”, diz o economista Mauricio Moura, que dirige o Idea. Para ele, no Sul e no Sudeste não é o avanço da pandemia que corroeu Bolsonaro. Foi a demissão dos seus ministros mais populares, sobretudo Sergio Moro, que estava na Justiça.

No Nordeste e no Norte, a recuperação bolsonarista aparece em alguns bolsões no interior, onde a ajuda dos R$ 600 pesa mais do que nas capitais. É um eleitor que está abandonando o petismo, outra notícia ruim para os aliados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Além de desastrosa, a frase de Lula sobre o lado bom do surgimento do coronavírus, da qual ele já se desculpou, é equivocada do ponto de vista político. Lula perde, e muito, com a pandemia.

O ligeiro crescimento bolsonarista sangra o petismo, mas não compensa, nem de longe, a perda de substância do presidente nos grandes centros. Pelo menos ainda.

E fica estabelecido para o presidente um dilema: para Bolsonaro trocar sua base de apoio, e passar a ser um candidato dos pobres e não das classes médias, como aconteceu com Lula em 2006, ele precisa ir muito além. “Em Codó, no interior do Maranhão, 8 em cada 10 entrevistados acreditam que o benefício de R$ 600 é permanente. Não sabem que é temporário”, comenta Moura.

A manutenção da política de Paulo Guedes é incompatível com uma estratégia de contenção da perda de popularidade bolsonarista. Fica estabelecido um dilema. Se o benefício for diminuído de R$ 600 para R$ 200, como sugeriu anteontem o ministro, o impacto disso na popularidade de Bolsonaro é óbvio demais para ser demonstrado.
Sem uma guinada populista clara na política econômica, o presidente terá muitas dificuldades no jogo sucessório em 2022, partindo da premissa de que não haverá uma interrupção das regras legais.

Mandando a austeridade econômica às favas, é desnecessário demonstrar como o mercado financeiro reagiria e seu declínio no Sul/Sudeste pode se acentuar. Bolsonaro tem duas opções, as duas ruins para seu projeto político.

Para sedimentar o Bolsonaro pai dos pobres, é preciso ir muito além.

“Ainda não está caracterizado um realinhamento do eleitorado semelhante ao que aconteceu em 2006”, quando Lula se reelegeu, opinou o cientista político André Singer, professor da USP e ex-secretário de Comunicação Social no governo petista. “Não dá para falar que com uma guinada na política econômica o realinhamento seria automático, mas sem essa mudança, ele não tem como se dar. É uma condição necessária, mas não suficiente”, disse.

Para o dono do Ipespe, Antonio Lavareda, o problema que Bolsonaro enfrenta é muito mais complexo. Não se trata apenas do fato de a percepção de sua política econômica ser ruim. “A pandemia reverteu a tendência de influência declinante da imprensa. Todo mundo está buscando informação muito mais do que antes. De modo que o impacto de um noticiário negativo em relação ao comportamento dele na pandemia tornou-se demolidor”, disse.

Segundo Lavareda, 58% da população reprova o comportamento de Bolsonaro na pandemia. E a pandemia cada vez mais é uma espécie de tema único na sociedade. A tendência é que a curva de desaprovação do governo se aproxime deste percentual. Ou seja: ainda há mais abismo para o presidente cair.


Ribamar Oliveira: Programas precisam ser mais agressivos

Ação do governo para ajudar micro e pequenas empresas é necessária antes que seja tarde demais

A trajetória de contaminação da população brasileira pelo novo coronavírus parece ser aquela traçada pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, de que o pico da doença ocorrerá somente em julho, com um platô em agosto e uma queda a partir de setembro. Se esse é o cenário mais provável, o governo precisa adotar programas mais agressivos, que deem sustentação financeira às micro e pequenas empresas, antes que seja tarde demais.

O noticiário mostra que o crédito não está chegando a essas empresas, que são aquelas que mais empregam trabalhadores na economia. Milhares de pequenos e microempresários lutam para sobreviver e não encontram quem lhes dê suporte financeiro para enfrentar esta fase de hibernação da economia, que vai passar. Eles se viram diante de uma situação em que, de uma hora para outra, o dinheiro deixou de entrar no caixa de suas empresas, pois as vendas acabaram. E estão à beira da falência, se é que muitos já não sucumbiram.

Não se pode exigir que os bancos privados, que devem satisfação aos seus acionistas e precisam apresentar resultados, assumam esse papel. Ao analisar o pedido de empréstimo de um pequeno empresário em dificuldade, o gerente avalia a situação da empresa sem fluxo de caixa, as perspectivas da economia para os próximos meses e conclui que o crédito pedido não será pago.

Ele teme, e ninguém pode culpá-lo por pensar assim, que se a inadimplência crescer, a sua instituição poderá ficar comprometida. O que menos se deve querer na atual pandemia é uma crise bancária.
Resumindo, o crédito não está chegando aos micro e pequenos empresários por uma razão simples: os bancos não podem arcar com o risco da operação, mesmo que um ou outro banqueiro eventualmente queira fazê-lo.

Na situação que estamos vivendo, de quase completa paralisação da atividade econômica, com economistas mais pessimistas já projetando queda do Produto Interno Bruto (PIB) acima de 10% neste ano, só há uma maneira de ajudar as pequenas e micro empresas: o Tesouro (ou seja, nós contribuintes) bancar o risco da operação de crédito. Vários economistas já elaboraram propostas de como isso pode ser feito.

No início da atual crise, o governo se preocupou em garantir a liquidez do sistema financeiro e fazer fluir o canal de crédito. A ideia era que os bancos tivessem recursos em volume suficiente para emprestar e para refinanciar dívidas das pessoas e empresas mais afetadas. Para isso, o BC reduziu o compulsório dos bancos e adotou uma série de medidas para facilitar o crédito.

Dados da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) mostram que as concessões de crédito, no período de 16 de março a 8 de maio de 2020, somaram R$ 540,3 bilhões, incluindo contratações, renovações e suspensão de parcelas. Segundo a Febraban, o setor já renegociou 8,5 milhões de contratos com operações em dia, que têm um saldo devedor total de R$ 468,2 bilhões. A soma das parcelas suspensas dessas operações repactuadas totaliza R$ 47,5 bilhões.

Os dados do Banco Central corroboram esse cenário, pois indicam que da 15ª à 18ª semana deste ano, ou seja, de 6 de abril a 3 de maio, as concessões de crédito livre aumentaram 8,7% para as pessoas físicas e 27,4% para as pessoas jurídicas, na comparação com igual período do ano passado. No acumulado deste ano, as operações livres aumentaram 12,7% para as pessoas físicas e 32,5% para as pessoas jurídicas. O problema, no entanto, está no fato de que o crédito não chegou aos e micro e pequenos.

Ao mesmo tempo em que o Banco Central adotava medidas para fazer o crédito fluir, o governo federal criou três programas para ajudar as empresas durante a crise. Criou uma linha especial de crédito para o pagamento de pessoal. O Tesouro entra com 85% do valor do crédito e o restante é bancado pelas instituições financeiras. A linha de crédito não funcionou. De um total de R$ 40 bilhões disponíveis, só cerca de R$ 1,6 bilhão foi emprestado até agora.

Apenas as médias e grandes empresas tomaram os recursos, de acordo com informações de fontes do governo. No início, muitos interessados foram descartados porque estavam inadimplentes com a Previdência Social. Apenas depois da aprovação da Emenda Constitucional 106 é que essa exigência foi excluída.

A maioria das empresas descartou a linha de crédito, entre outras razões, porque o governo deu mais duas opções. A primeira é a suspensão temporária dos contratos de trabalho. A segunda, a redução da jornada de trabalho em até 70%, com a correspondente diminuição dos salários.

Em uma avaliação pragmática, o empresário concluiu que era preferível suspender os contratos, reduzir salários ou simplesmente demitir os seus funcionários do que pegar um empréstimo para pagar os salários, com o compromisso de não os demitir pelo período de quatro meses da data da contratação da operação.

O problema atual está em garantir sustentação financeira às micro e pequenas empresas, até que seja possível reabrir a economia. Os sinais emitidos pelo governo federal, no entanto, estão indo em direção oposta. Na terça-feira passada, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei 13.999, que institui o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe).

O programa cria uma linha de crédito em condições vantajosas para a pequena e média empresa, de até 30% de sua receita bruta anual. Os juros serão iguais à Selic, acrescidos de 1,25% sobre o valor concedido, com prazo de amortização de 36 meses. O presidente vetou o artigo que previa carência de oito meses.

A justificativa do veto foi que a medida “contraria o interesse público e gera risco à própria política pública, ante a incapacidade dos bancos públicos executarem o programa com as condições apresentadas pelo projeto”. O governo pode alegar que essa não é uma regra que possa ser permanente, mas ela poderia, perfeitamente, ser utilizada neste momento de pandemia.


Maria Cristina Fernandes: Cassação da chapa é o labirinto mais curto

Se cabo, soldado e Centrão deixarem, bastam quatro votos no TSE

Das saídas constitucionais para o fim do governo Jair Bolsonaro, a da cassação da chapa pelo Tribunal Superior Eleitoral é aquela que parece mais simples. Não carece de convencer o capitão a renunciar, nem de alargar o funil dos 343 votos necessários à chancela parlamentar para um processo de impeachment. Bastam quatro votos. O caminho para esta maioria pró-cassação, porém, é de um sinuoso labirinto.

São seis os processos que correm no TSE. Tem de tudo lá, mas nenhuma das acusações agrega maior apelo hoje do que o disparo de mensagens falsas. Andam com o vagar próprio dos processos da Justiça Eleitoral, mas podem ser pressionados por duas investigações em curso.

A primeira é aquela que apura a manipulação da investigação do desvio de verbas no gabinete do senador Flávio Bolsonaro na campanha de 2018. Não tem repercussão processual para o TSE mas joga água no moinho da percepção de que um gol de mão contribuiu para o resultado eleitoral. Foi esta, aliás, a tese que prevaleceu no processo de impeachment de Richard Nixon, abreviado por sua renúncia.

A segunda investigação é aquela conduzida, no Supremo Tribunal Federal, sobre a máquina de notícias falsas. Este inquérito pode vir a compartilhar provas com a Justiça Eleitoral, a exemplo do que aconteceu no processo que julgou a chapa Dilma Rousseff/Michel Temer.

O inquérito é conduzido, a sete chaves, pelo ministro Alexandre de Moraes. Apesar de dispor de policiais federais para as investigações, apenas os juízes auxiliares e o delegado da Polícia Civil de São Paulo lotados em seu gabinete têm acesso ao conjunto de provas colhidas. O comando é de um ministro que, de tão obcecado por investigações, fez fama em São Paulo por chegar às 4h da manhã na sede da Secretaria de Segurança Pública, sob seu comando, para participar de operações policiais.

Com a saída da ministra Rosa Weber, na segunda-feira, Moraes assume um assento no TSE. Comporá, junto com Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, que presidirá o tribunal, a trinca de ministros do Supremo que atuarão como juízes eleitorais no restante do mandato presidencial.

A nova composição do TSE impulsionou a campanha de 100 entidades que atuam no campo da corrupção eleitoral (reformapolitica.org.br) pela agilização dos processos que hoje correm no TSE. Esta campanha pode dar amplitude ao que hoje está restrito a alguns gabinetes brasilienses. É uma articulação ora favorecida pela reaproximação de antigos adversários, como os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, ora contida por espantalhos como o artigo do vice-presidente Hamilton Mourão atacando as instituições.
Ao contrário do que se passou por ocasião do julgamento da chapa Dilma/Temer, em que a cassação foi derrotada por 4x3, os carpinteiros da tese da separação da chapa, hoje estão de quarentena. Se for para cassar, que seja o presidente e seu vice. Por isso, o artigo de Mourão assustou.

Ao proteger o titular do cargo e bater em todas as demais instituições da República, o vice-presidente, na leitura dos artífices da “saída TSE”, buscou blindagem das Forças Armadas contra qualquer desfecho que o alije. A ocupação do Ministério da Saúde e a negociação com o Centrão hoje são vistos como um sinal de que, seja com Bolsonaro, seja com Mourão, os militares não pretendem arredar pé.

As dúvidas não se limitam à reação da farda em relação à cassação da chapa. Estende-se à composição do TSE. Ao contrário do tribunal que inocentou Dilma e Temer, aquele que estará empossado a partir de segunda-feira, conta com três ministros do Supremo que não são de sentar em cima de provas.

Três ex-ministros do TSE, em anonimato, concordam que o quarto voto não viria de nenhum dos dois ministros do Superior Tribunal de Justiça com assento na Corte eleitoral. O mandato do atual relator, Og Fernandes, se encerra em agosto. Como Fernandes também é o corregedor da Casa, o processo ficará com o futuro ocupante do cargo, o também ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, que passará a ter, como colega, também no TSE, Mauro Campbell.

Nenhum dos dois desfruta, em Brasília, da mesma reputação do independente Herman Benjamin, o ministro relator do processo Dilma/Temer que votou pela cassação. Sobre Salomão pesam ainda as expectativas de que ambiciona uma vaga no Supremo, situação que o deixaria em pé de igualdade com o procurador-geral Augusto Aras na condição de personagens-chave a quem o presidente poderia buscar atrair com as duas vagas que terá a preencher até julho de 2021.

Ainda que ambos venham a jogar no time anti-cassação, o quarto voto poderia ser buscado nos dois advogados do tribunal. A expectativa de recondução ao cargo, prerrogativa do presidente da República, pode vir a inibir um deles (Sergio Banhos), mas é inócua em relação ao segundo (Tarcísio Vieira), que está no último mandato na Corte. Somados os quatro votos, restaria ainda a dúvida sobre o prosseguimento do processo com um relator que venha a se mostrar desinteressado no desfecho.

Os percalços não param por aí. A lei diz que se a chapa é cassada no primeiro biênio do mandato presidencial, faz-se nova eleição. Se for no segundo, convoca-se eleição indireta, em até 90 dias. “Na forma da lei”, diz a Constituição. Lei esta que não existe. Teria que ser formatada e votada em pontos sensíveis, como desincompatibilização e filiação partidária, em meio ao caos de uma pandemia que, além de vidas, também vitima o bom combate da política.

E, finalmente, o processo de escolha de um presidente-tampão seria conduzido pelas futuras mesas da Câmara e do Senado, a serem escolhidas num Centrão repaginado pelo bolsonarismo, visto que os mandatos de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre se encerram em fevereiro. A pergunta de um ex-ministro do TSE resume o drama: “Quanto custaria esta eleição”?

Se a pedreira é tão grande, por que a “opção TSE” continua sobre a mesa? Porque todas as demais saídas parecem tão ou mais difíceis. A ver, porém, se os percalços permanecerão em pé se o país, no balanço dos milhares de mortos e milhões de desempregados, decidir que não dá para seguir adiante sem afastar o principal culpado.


Cristiano Romero: Somos uma sociedade fundada no ódio não às minorias, mas à maioria

Sem nos reconhecermos no outro, jamais vamos superar a desigualdade que nos define como país

Uma medida da dificuldade que o Brasil tem para modernizar sua economia é o fato de nunca termos concluído as chamadas "reformas" estruturais. Com exceção dos períodos de bonança, o tema sempre esteve presente na agenda nacional desde a década de 1950. No plano simbólico, a imagem é a de um país cuja sociedade, de tão desigual na origem e no caminhar da história, não chega a consensos mínimos, o que dificulta sobremaneira a construção de uma nação. E, sem que nos reconheçamos no outro, característica fundamental de qualquer nação, jamais vamos superar as desigualdades que nos definem desde sempre e nos prendem a um binômio perverso - o de ser um país rico, porém, pobre.

Quando, em outubro de 1979, o senador Ted Kennedy decidiu disputar as eleições primárias do partido Democrata para ter o direito de se candidatar à Presidência dos Estados Unidos, ele justificou desta maneira, em entrevista à rede CBS, seu interesse em comandar o país mais rico do mundo: "As razões que me fariam concorrer são porque eu acredito neste país. Isto é, há aqui mais recursos naturais do que em qualquer nação do mundo; temos a população mais educada, a melhor tecnologia, a maior capacidade de inovação e o melhor sistema político no mundo".

A história não foi generosa com o irmão mais novo de John Kennedy. Ted perdeu as primárias para o incumbente, o então presidente Jimmy Carter, e este perdeu a eleição para o desafiante do partido Republicano, Ronald Reagan.

Assim como os Estados Unidos, a Ilha de Vera Cruz é riquíssima em recursos naturais. Se não bastasse toda a riqueza que se conhece há mais de um ou dois séculos, segue descobrindo novos ouros, exatamente como fazem os americanos. Um exemplo: o gás de xisto lá, que tornou os EUA auto-suficientes em petróleo, e a abundante reserva da mesma matéria-prima que encontramos na camada pré-sal da nossa costa. Não são muitos os países premiados pela natureza como o Brasil e os EUA.

Mas, e daí? Este país tem a maior floresta tropical do planeta, a Amazônica, que cobre 45% do nosso território, o 4º maior do mundo.

Todos, leigos e cientistas, sabemos que essa floresta encerra tesouros que tornam indigno o fato de os ribeirinhos sofrerem, ao longo do curso do rio mais caudaloso do globo, dos males da fome, do desamparo, enfim, da pobreza. No entanto, o que realmente nos impede de alcançar o futuro não é a suposta baixa exploração de nossos recursos naturais, mas os outros fatores mencionados por Ted Kennedy - elevado grau de escolaridade da população, tecnologia e alta capacidade de inovação.

Estes fatores não existem por aqui porque somos uma sociedade fundada no ódio não às minorias, mas à maioria. Reside na Ilha de Vera Cruz o maior desafio da humanidade no que diz respeito à construção de uma nação. Fizeram da nossa fortuna - a diversidade étnica - uma maldição.

Durante quase 400 dos 520 anos desde a chegada dos "colonizadores" europeus, os ricos iam ao mercado fazer a feira da semana, adquirir bens importados e… comprar gente. Sim, trocar dinheiro por seres humanos. Estes tinham várias utilidades: trabalhar na lavoura, cozinhar, arrumar a casa, fazer faxina, entregar seus corpos ao deleite dos “donos”.

Com isso, subvertemos nossa natureza naquilo que lhe é mais caro: a liberdade. Jamais aceitamos, como sociedade, o fim da escravidão.

Para não pagar salários a escravos alforriados, importamos mão de obra da Europa e do Japão e empurramos para a marginalidade milhões de brasileiros (não nos esqueçamos que os escravos estão aqui há tanto tempo quanto os “colonizadores”, embora com uma diferença: não vieram a Cabrália empreender, mas, sim, como mercadoria; eram números na balança comercial e o principal fator de acumulação de capital).

Vem daí a dificuldade em termos uma economia competitiva. Nossos antepassados foram de uma perversidade indizível ao privar do acesso à educação gerações e mais gerações de brasileiros. E o fizeram porque, para eles, era inaceitável - e ainda é - educar “escravos”.

A mão de obra importada de países como Itália, Alemanha e Japão, por sua vez, começaram a reagir a péssimas condições de trabalho oferecidas por aqui. Assim, as famílias abonadas começaram a reempregar os ex-escravos na lavoura, nas residências, nas casas de serviços íntimos, a escambo e salário indigno. É a escravidão 2.0, a mais difícil de se combater - todos já escutamos a mais cínicas das justificativas: “Olha, tenho duas empregadas porque quero ajudá-las, do contrário, elas passam fome”. A homofobia, dentre tantas outras formas de discriminação, usa os óculos da escravidão.

Não se tenha dúvida: depois da passagem da pandemia, estaremos piores: mais pobres, mais desiguais, mais longe do futuro. E com um Estado quebrado, retornando à estaca zero no que diz respeito à sua capacidade de atender os mais desfavorecidos.

Esta é a quarta coluna dedicada a relatar e discutir o passado recente da história econômica do país. O objetivo é humildemente tentar entender onde estamos, uma vez que, há sete anos, nosso PIB parece preso numa espécie de areia movediça.

Na próxima semana, tem mais, mas, antes, um registro para mostrar como o patrimonialismo, isto é, o hábito secular de grupos sociais de ver a coisa pública como algo que lhes pertença, é uma característica mais forte entre nós do que o populismo: 30 anos depois do Plano Collor, congressistas e Judiciário ainda tomam medidas para compensar servidores públicos que, sem estabilidade constitucional, foram demitidos na ocasião.


Fernando Exman: Serviços de inteligência são alvejados na crise

Setor é essencial no processo decisório governamental

Psiquiatras bolsonaristas certamente contestariam o diagnóstico. Tem-se a impressão, contudo, de que o governo vive um transtorno bipolar. Oscila entre momentos de grande euforia, como nas cada vez mais frequentes manifestações realizadas em frente à rampa do Palácio do Planalto, lances de agressividade e átimos de lamentação e depressão. No afã de se livrar dos problemas, o governo joga aliados para o centro das crises e ataca instituições de Estado.

Foi assim que os serviços de inteligência, sempre prestigiados pelos chefes de governo e também pelo meio militar, passaram a figurar na desconfortável lista de danos colaterais da guerra travada entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-ministro Sergio Moro.

A relativização da violência sempre foi uma marca do grupo político que chegou ao poder. Novo é o uso da rampa do Planalto como plataforma de filmagem e acesso do presidente para o congraçamento com manifestantes que atacam os demais Poderes, governadores e prefeitos.

Já as lamúrias das autoridades federais têm como motivação os dissabores provocados por aliados que se transformaram em adversários. Elas também passam pelas adversidades impostas pela pandemia de covid-19 aos planos de uma administração que chega aos 500 dias com a missão de evitar que o país entre na rota de uma prolongada depressão.

Prova documental do embate entre Bolsonaro e Moro, o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril tornou-se um documento histórico que traduz em imagens todo esse comportamento errático da cúpula federal.

O material possivelmente é, como o próprio presidente afirmou, o registro da última reunião do Conselho de Governo da atual gestão. O chefe do Executivo não confia em grande parte de seus auxiliares diretos e decidiu que reunirá um número mais amplo de ministros apenas em confraternizações, cafés da manhã ou outros convescotes, como as próprias manifestações em frente ao Palácio do Planalto. Mas não mais em amplos encontros de trabalho, dos quais não se poderá descobrir quem seria o responsável pelos inevitáveis vazamentos.

Desse último encontro ministerial ampliado e registrado em audiovisual, além do ápice de uma série de desentendimentos entre Moro e Bolsonaro sobre o comando da Polícia Federal, ficará no arquivo da Presidência da República um capítulo de difícil digestão para a comunidade de inteligência.

De acordo com transcrições feitas pela Advocacia-Geral da União (AGU) de determinadas falas, o presidente da República reclamou com veemência por não ter informações da PF e das inteligências das Forças Armadas. Apontou, ainda, “problemas” na Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Generalizou a crítica: “E me desculpe o serviço de informação nosso - todos - é uma vergonha, uma vergonha, que eu não sou informado, e não dá para trabalhar assim, fica difícil”, afirmou Bolsonaro, antes de prosseguir para um trecho do encontro que já virou antológico: “Por isso, vou interferir. Ponto final. Não é ameaça, não é extrapolação da minha parte. É uma verdade.”

A divulgação da íntegra do vídeo pode esclarecer quais são os problemas realmente apontados pelo presidente - se o objeto da reclamação provocou alguma falha crítica no processo decisório de questões de Estado ou se ele se refere a temas pessoais.

Os órgãos de inteligência são instituições de Estado essenciais à tomada de decisão do presidente da República. Quem encabeça esse esforço é o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, que tem a função de assessorar o chefe do Poder Executivo no desempenho de suas atribuições, sobretudo em relação a assuntos militares e de segurança, como na análise e no acompanhamento de temas com potencial geração de riscos. Outra missão do GSI é ajudar a prevenir crises e articular seu gerenciamento, conforme prevê a legislação que trata do tema, em caso de grave e iminente ameaça à estabilidade institucional.

Ele é também o órgão que coordena as atividades de inteligência federal, as quais têm capilaridade considerável. O Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) é integrado por 42 instituições, incluindo ministérios e agências reguladoras, e conta com o apoio de polícias militares e civis dos Estados.

Em 2019, o objetivo desse setor foi justamente ampliar a integração e a articulação entre os responsáveis pelas áreas de segurança pública, de inteligência e controle aduaneiro. Para 2020, a meta era integrar bases de dados nacionais e internacionais de inteligência, o que incluiria o geoprocessamento de informações estratégicas e a formação dos chamados subsistemas de inteligência em órgãos da administração pública federal e em unidades da federação.

Isso não quer dizer, entretanto, que deve ser considerado natural um presidente da República tentar ter acesso a todo e qualquer relatório de inteligência produzido nesse ecossistema.

Outra prioridade para a área este ano seria a elaboração de um Plano Nacional de Segurança das Infraestruturas Críticas (PLNSIC), o qual poderia contemplar na área de saúde, se seguisse referências internacionais, a previsão de serviços essenciais para o combate de epidemias e para a preservação de vidas em situações como as enfrentadas hoje no Brasil e em todo o mundo.

No entanto, antes de conseguir executar esse planejamento estratégico, os órgãos de inteligência foram surpreendidos pelo avanço do novo coronavírus.

Sob a coordenação da Casa Civil, eles passaram a integrar o centro de coordenação de operações do comitê de crise instalado para monitorar os impactos da pandemia. O grupo atua em tempo integral supervisionando ações e produzindo conhecimento sobre o tema. O problema é que esse tipo de material não tem ganhado a atenção do seu principal destinatário, conforme se pode depreender das queixas feitas na última reunião ministerial.


Andrea Jubé: E vai colocar quem no lugar?

PEC impede vice de assumir Presidência em definitivo

Parlamentares que transitam na cúpula das duas Casas legislativas afastam um eventual impeachment alegando que a popularidade do presidente Jair Bolsonaro ainda é alta, não tem ambiente político, a economia claudica, mas ainda não tombou, e não tem povo na rua - até porque a pandemia da covid-19 impede aglomerações. Essas lideranças insistem que “precisa de povo na [Avenida] Paulista para derrubar presidente”.

Do rol de justificativas, o argumento cabal é a ausência de uma liderança nacional que traga estabilidade ao país. “Vamos tirar o Bolsonaro para colocar quem no lugar?” É a pergunta que todos se fazem e, invariavelmente, vem acompanhada de um silêncio e um suspiro. Um dirigente partidário observa, em tom pragmático, que “Bolsonaro é o que temos para o jantar”.

A leitura predominante entre parlamentares influentes nas duas Casas é a de que um impeachment neste momento só favorece o vice-presidente Hamilton Mourão e mais dois atores: o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

“E ninguém no Congresso gosta deles”, sublinha um senador experiente, sobre Moro e Doria. A menção a Mourão sugere outro verbo: não é gostar ou desgostar, trata-se de desconfiar.

Embora Moro tenha feito gestos de aproximação com o mundo político na passagem pelo governo, a maioria dos parlamentares ainda o vê como o “xerife” da Lava-Jato, que levou dezenas de deputados e senadores ao banco de réus.

Em março de 2017, a temida “Lista de Janot” - do então procurador-geral da República, Rodrigo Janot - decorrente da Lava-Jato, resultou em 83 pedidos de abertura de inquérito para investigar políticos citados nas delações de executivos da Odebrecht. Um mês depois, o ministro Edson Fachin do Supremo Tribunal Federal autorizou a investigação de oito ministros, três governadores, 24 senadores e 39 deputados.

Em outra frente, João Doria não empolga os congressistas. No começo do ano, o tucano era candidato a se reeleger governador. Mas o acirramento da crise sanitária e o palanque alcançado pelo antagonismo a Bolsonaro lhe conferiram protagonismo nacional e o catapultaram de volta à corrida sucessória.

Apesar da visibilidade, Doria tem dificuldade em conter o avanço do coronavírus no Estado, que se consolidou como o epicentro da pandemia. Ontem, em um discurso veemente, o tucano prometeu reagir se ficar confirmado que o governo federal o estaria retaliando politicamente, por exemplo, ao não enviar respiradores para o Estado. “Espero que o governo federal não faça seletividade política dos brasileiros que podem ou não podem sobreviver”, advertiu.

Outra ressalva é a de que Doria não desperta empatia na bancada nordestina. “Como é que eu vou chegar com o Doria no Nordeste?”, questiona um veterano do Senado, observando que o paulista não tem apoio na região, assim como Bolsonaro.

Por fim, Doria não une nem o PSDB. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não esconde a simpatia pelo projeto de Luciano Huck, embora há um mês tenha reconhecido em entrevista que Doria cresceu na crise, enquanto o apresentador encolheu. Além disso, uma ala dos tucanos prefere como presidenciável o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.

A pesquisa XP/Ipespe realizada há um mês mostrou que Bolsonaro alcança 28% de ótimo e bom, e 44% de ruim e péssimo. Políticos do Centrão consideram esses números relevantes, se comparados aos índices dos presidentes que sofreram impeachment.

Quando o então presidente da Câmara Eduardo Cunha (ex-MDB) - hoje em prisão domiciliar, por causa da covid-19 - deflagrou o processo contra Dilma Rousseff em dezembro de 2015, a petista tinha 69% de ruim e péssimo segundo pesquisa CNI/ Ibope. Fernando Collor tinha 59% de ruim e péssimo em agosto de 1992, segundo a CNI/Ibope - em dezembro os senadores aprovaram o impeachment.
Deputados e senadores ouvidos pela coluna creditam, em parte, a popularidade de Bolsonaro ao auxílio emergencial de R$ 600 concedido a um terço da população, embora a proposta originária tenha partido da oposição. “Acabou se transformando no Bolsa Família dele”, observou um senador.

Mas a avaliação quase unânime desse grupo influente é que a crise em torno das denúncias de Sergio Moro, em tramitação no STF, tem a força de um traque. “Videozinho não derruba presidente, o que o derruba é a economia e povo na rua”, reforça este senador.

Para outra liderança do Senado, Moro puxou o gatilho e atingiu o presidente, mas ainda não foi a bala de prata. Segundo este parlamentar, o descontrole sobre a pandemia fulminará Bolsonaro, porque o Brasil ficará entre os dois países com o maior número de vítimas fatais da covid-19, e cada família brasileira poderá ter perdido um parente ou um amigo para o coronavírus.

Ao mesmo tempo, nesse cenário de luto nacional, milhares de empresas terão ido à falência e o número de desempregados terá se multiplicado. “Isso vai enterrar a popularidade dele e será a bala de prata”, concluiu o senador.


Para neutralizar o “risco Mourão”, a oposição tenta convencer o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a criar uma comissão especial para votar a PEC 37 dos ex-líderes do PT Paulo Teixeira (SP) e Henrique Fontana (RS). A proposta impede o vice-presidente de assumir em definitivo a Presidência da República, na hipótese de vacância do cargo, e amplia a regra a governadores e prefeitos. No Amazonas, por exemplo, começou a tramitar o impeachment do governador Wilson Lima (PSC).

Segundo a emenda, vagando o cargo de presidente, será realizada eleição direta em 90 dias para escolha do sucessor. O texto também dispõe que “em nenhuma hipótese” o vice assumirá a chefia do Executivo em definitivo.

O relator da PEC é o deputado Felipe Francischini (PSL-PR), ex-aliado de Bolsonaro. A PEC teria efeito imediato. Para justificar, um petista evoca a PEC da reeleição de Fernando Henrique em 1997, que beneficiou o então titular do cargo.


Pablo Ortellado: Chegou a hora de regular as mídias sociais

Conter desinformação exige enfrentar os paradoxos da colisão de direitos e os riscos da regulação estatal

À medida que o problema da desinformação nas mídias sociais se agrava, em meio à pandemia, propostas legislativas apressadas e mal formuladas têm ganhado impulso —inclusive sendo aprovadas em assembleias estaduais.

Por isso, é um alento ver o projeto de lei de regulação das plataformas de mídia social dos deputados Felipe Rigoni e Tabata Amaral. Apesar de imperfeições pontuais, o projeto tem uma abordagem adequada, ampliando a transparência e aperfeiçoando medidas já adotadas.

Assim que foi apresentado, o projeto despertou um apaixonado debate entre plataformas, ativistas dos direitos humanos e empresas de comunicação. Um dos pontos centrais do debate são possíveis ameaças à liberdade de expressão.

Embora as mídias sociais ofereçam um serviço privado, elas se tornaram o meio padrão de comunicação da sociedade, de maneira que é perfeitamente razoável entender que limitar a expressão nesse serviço efetivamente limita a liberdade de expressão.

Mas a liberdade de expressão não é o único direito humano em questão na regulação das plataformas. Outros direitos, como o direito à não discriminação e o direito à vida, têm sido fortemente ameaçados, caracterizando uma colisão de direitos que precisam ser ponderados.

Hoje, as plataformas têm adotado, cada uma à sua maneira, um conjunto de medidas contra a desinformação: reduzem o alcance do conteúdo desinformativo, rotulam quando uma notícia é considerada falsa e, no limite, apagam o conteúdo.

Se quisermos que todas elas sigam um padrão razoável, uniforme, que seja estabelecido pelo poder público e que possa ser supervisionado, precisamos de uma boa lei.

Se vamos regular conteúdo desinformativo, precisamos estabelecer quem verifica o conteúdo, para evitar que agentes incapazes, ou pior, que agentes maliciosos, se coloquem como agência de verificação. E precisamos criar um arsenal e uma gradação de ações, com rotulação, sistema de apelação, apresentação da correção para quem viu o conteúdo desinformativo, impedimento da promoção do conteúdo, redução do alcance e, como último e extremo recurso, a remoção do conteúdo.

Podemos nos deixar paralisar pelos desafios da colisão de direitos ou pelos riscos da regulação estatal. Mas a inação do Legislativo é o império da discricionariedade do poder privado e a certeza de que, muitas vezes, o interesse econômico vai se sobrepor ao interesse público.

Temos uma lei em discussão que é razoável e que encontrou seu momento. Melhor aperfeiçoá-la e aprová-la antes que coisa pior apareça.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.


Luiz Carlos Mendonça de Barros: Acompanhamento da crise econômica

No Brasil, vamos precisar iniciar um debate sobre a questão de novos estímulos para enfrentar 2021

Na coluna de abril desenhei para o leitor do Valor uma linha do tempo do meu cenário para a recuperação da economia brasileira até 2021. Aproveito para substituir o termo “otimista”, que utilizei então, pelo de “construtivo” para evitar os comentários de estar sendo uma espécie de Polyana sobre o nosso futuro. Tomo emprestado do ministro do STF, Luiz Roberto Barroso, que também sofria com a mesma qualificação de excesso de otimismo em relação à democracia no Brasil, como confessou em recente entrevista ao canal CNN.

Neste período, entre as minhas duas colunas, foi possível aprofundar o entendimento sobre dois temas: a duração esperada da quarentena social e a natureza da recessão econômica que vai se seguir. Tenho aproveitado o lockdown radical em meu apartamento para acompanhar as informações disponíveis sobre estas duas questões. A partir delas, e de manifestações de pessoas envolvidas na linha de frente do combate à crise, foi possível reduzir um pouco da falta de visibilidade sobre a intensidade da crise que vamos enfrentar.

A primeira informação relevante vem das várias curvas disponíveis que mostram a evolução do número de pessoas infectadas - e também mortas - pela covid-19 nos cem dias que já se seguiram ao início da pandemia. Neste conjunto de curvas fica claro que nas próximas semanas a maioria dos países poderá iniciar um processo de volta ao trabalho e à maioria das atividades de empresas e cidadãos.

A partir desta hipótese podemos começar a entender a natureza da recessão que vamos viver no restante do ano. Um dos textos, que de maneira simples joga alguma luz sobre o que vamos enfrentar, é o “Economics in the Time of covid-19” editado por Richard Baldwin para a CEPR Press” e do qual retirei as observações abaixo:

“O consenso entre os autores deste eBook - e de fato entre os principais economistas que estão escrevendo sobre isso - é bastante simples. Está no título do nosso e-livro: "Aja rápido e faça o que for preciso".

Os governos devem implantar políticas que 'aplanem” a curva da recessão, evitando danos duradouros às nossas economias. Os governos devem fazer o que for necessário para "manter as luzes acesas" até que a recessão termine”.

Este conselho é baseado em dois pontos simples: o choque médico é transitório, mas o dano econômico pode ser persistente e de longo prazo. Sem medidas preventivas, os empregos podem não existir quando a recessão passar, e muitas empresas terão seus balanços societários bastante fragilizados.

Portanto a chave é reduzir o número de falências - pessoais e corporativas - nos setores mais atingidos pela quarentena, e garantir que as pessoas tenham dinheiro para continuar gastando, mesmo que não estejam trabalhando. A única forma possível de se realizar este objetivo será via ações fiscais e monetárias por parte dos governos como um Programa de Renda Mínima para os mais pobres e linhas de crédito para as empresas mais atingidas pela queda da demanda.

Mas mesmo que se consiga limitar os danos ao tecido econômico quando terminarem as restrições de locomoção ainda teremos uma recessão tão profunda que a retomada será frágil demais para recolocá-las naturalmente em novo ciclo de crescimento.

Neste sentido trago para minhas reflexões de hoje as palavras de Jay Powell, presidente do Federal Reserve, que em uma “live” nos EUA disse que "medidas políticas adicionais" podem ser necessárias pelo Banco Central e pelas autoridades fiscais dos EUA para evitar maiores danos a longo prazo à economia devido à pandemia. Segundo ele o Fed tem uma pesquisa mostrando que quase 40% dos americanos, em famílias que ganham menos de US$ 40 mil por ano, perderam o emprego em março.

Ele está falando, portanto, da necessidade de um segundo pacote de estímulo às economias quando houver um controle estável sobre a evolução da covid 19. Os dados econômicos já divulgados mostram de maneira clara a intensidade da recessão e sua extensão simultânea no mundo desenvolvido e emergente. Trago ao leitor alguns deles que me chamaram a atenção e que mostram a natureza da recessão que vamos viver nos próximos meses.

1- A queda da produção industrial, 9,5% no Brasil, 9,7% no Reino Unido e 12,9% na Europa Unida;

2- Desemprego de 22 milhões nos Estados Unidos sendo que 90% destes desempregados por tempo limitado e, portanto, voltando ao trabalho a qualquer momento;

3- As vendas ao varejo nos Estados Unidos caíram incríveis 21,6 % em abril;

4- A Câmara de Deputados dos Estados Unidos já está discutindo um segundo pacote de cerca de US$ 1 trilhão para ser implantado com o objetivo de reforçar a recuperação econômica que virá;

Os números recentes da economia chinesa reforçam as minhas expectativas em relação à recuperação das economias de mercado se este for o caminho seguido. Eles mostram uma volta rápida da atividade, com uma perda pequena na velocidade de seu crescimento econômico. Aliás o que está previsto pelo FMI que projeta um crescimento positivo do PIB ainda em 2020 e um salto maior no próximo ano.

Mesmo no Brasil, com todas as dificuldades de lidar ainda com a fase de estabilização da pandemia, vamos precisar iniciar um debate sobre a questão de novos estímulos para enfrentar 2021.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


Bruno Carazza: Nau à deriva

Estamos perdidos entre o #fiqueemcasa e as manifestações de Bolsonaro

Passei o sábado esperando o pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV. Anunciado pelo próprio presidente da República na sexta-feira, o comunicado oficial poderia indicar os novos rumos da estratégia do governo no combate à covid-19 depois da segunda troca de ministro da Saúde em menos de um mês. Perdi o meu tempo.

Perder tempo, aliás, tem sido a tônica dos governos no Brasil quando se trata do enfrentamento da pandemia. A Organização Mundial da Saúde alertou sobre a detecção de casos de pneumonia provocados por um novo tipo de coronavírus em Wuhan, na China, em 10 de janeiro. Somente doze dias depois o Ministério da Saúde brasileiro se manifestou oficialmente, por meio de uma nota à imprensa declarando que estava acompanhando o assunto junto à OMS.

Após a publicação da Lei nº 13.979, de 06/02, que declarava emergência de saúde pública em todo o país, o governo federal só começou a se mexer em 11/03. Por meio da Portaria nº 356, o Ministro da Saúde orientava as secretarias estaduais e municipais sobre como proceder em relação ao isolamento de casos suspeitos e a decretação de quarentenas. Àquela altura, já haviam sido confirmados 52 casos no Brasil.

A partir da confirmação da primeira morte em território nacional, em 16/03, o que se viu foi uma proliferação de medidas descoordenadas sendo tomadas em âmbito municipal, estadual e federal com o propósito de “achatar a curva” de contágio. Nesta data Bolsonaro criou um comitê de crise para supervisionar e monitorar os impactos da covid-19 - apenas com seus ministros, sem nenhum representante dos governos regionais ou locais.

Para se ter ideia do tempo perdido no início da pandemia, foi só em 27/03 que uma portaria da Anvisa restringiu a entrada de estrangeiros no país. Naquele momento, já havia 597.457 casos confirmados no mundo.

Enquanto isso, governadores e prefeitos passaram a decretar quarentenas e medidas de distanciamento social. Ganhar tempo passou a ser a principal estratégia adotada em todo o país - para não dizer a única. Dois meses e mais de 16 mil óbitos depois, o país está dividido entre a vontade do presidente de decretar o fim do isolamento para reativar a economia e a cautela de governadores e prefeitos que temem o colapso do sistema de saúde. Nenhum dos lados, porém, dispõe de um plano sobre o que fazer depois.

Bolsonaro fritou dois ministros da Saúde em um mês devido à sua obsessão com a reativação da economia. O presidente minimiza os riscos sobre a saúde e despreza a dor de parentes e familiares de milhares de mortos acreditando no poder de uma droga sem comprovação científica. Por outro lado, esquece que só haverá recuperação econômica significativa quando consumidores e investidores não só do Brasil, mas de todo o mundo, se sentirem confiantes de retomar a sua vida e seus negócios com segurança de não serem infectados.

Governadores e prefeitos acusam Bolsonaro de agir contra as recomendações científicas, mas afora a insistência na importância do distanciamento social, decisões são tomadas em nível estadual ou municipal sem qualquer suporte em dados ou evidência empíricas.

Não há protocolos ou mesmo uma sinalização clara para a população sobre o que pode e o que não pode em relação à circulação em espaços públicos e ao uso de máscaras, por exemplo. Não se reformulou o sistema de transporte público para diminuir a concentração de pessoas nos horários de pico do trajeto entre casa e trabalho. Rodízios de automóveis são impostos sem prever seus efeitos sobre o deslocamento de quem não pode ficar em casa.

Enquanto Bolsonaro, governadores e prefeitos se digladiam sobre o fim ou a continuidade da quarentena, o Brasil continua sendo um dos países mais atrasados na aplicação de testes à sua população. Também não conseguimos rastrear o círculo de contatos dos contaminados a fim de isolá-los preventivamente para conter o ritmo de propagação da doença. Sem conseguir identificar quem já está imune e quem não foi infectado, continuamos num voo cego que inviabiliza um possível plano de isolamento vertical.

Em meio à guerra de narrativas sobre o que mata mais, se a fome ou o coronavírus, ainda não temos estratégia de identificação de quais regiões ou setores poderiam retomar gradualmente as atividades normais. Tampouco foi sugerido um plano com possibilidade de utilização de hotéis ou imóveis ociosos para abrigar idosos e outros integrantes de grupo de risco caso seus familiares tenham contraído o coronavírus. Também não sabemos o que fazer caso a situação saia do controle e o sistema hospitalar não aguente o aumento de demanda. Entre o #fiqueemcasa e os que aplaudem o presidente e seus ministros participando de aglomerações, continuamos sem adotar práticas tentadas pelos principais países do mundo.

Bolsonaro elogia a Suécia por não ter determinado o encerramento obrigatório de atividades econômicas, mas dados de movimentação de pessoas medidos pelo Google revelam que na capital do país, Estocolmo, houve uma redução de 23% nos deslocamentos a centros de comércio e lazer e uma queda de 29% do público em estações de transporte. Mesmo sem lockdown, o medo e a conscientização das pessoas, associados às perdas com o comércio internacional e o turismo, farão a economia sueca cair entre 6,9% e 9,7% segundo seu Banco Central - situação nem um pouco melhor do que seus vizinhos europeus que implementaram medidas mais rigorosas de isolamento.

Dois meses depois das primeiras mortes, a população segue perdida entre um presidente que pensa que tudo se resolveria na base de um decreto reabrindo o comércio e governadores e prefeitos que parecem empurrar a curva adiante, em vez de achatá-la. A única evidência científica que dispomos nesta altura dos acontecimentos é o total despreparo de nossos governantes em enfrentar a crise e propor soluções para superá-la. No falso dilema entre a saúde e a economia, caminhamos para um cenário com dezenas de milhares de mortos e dezenas de milhões de desempregados.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Carlos Pereira: Modo sobrevivência ativado

A ‘maior minoria’ proporcionada pelo Centrão pode ser a ‘vida extra’ do governo Bolsonaro

Quando o modo sobrevivência em um videogame é ativado, não é permitido pausas ao jogador, que deve continuar jogando em uma sessão ininterrupta tentando não morrer. Do contrário, “the game is over”!

Nessa modalidade, o jogo apresenta obstáculos cada vez mais difíceis. Ao tempo em que coloca o jogador contra a parede, o modo sobrevivência funciona como um bônus, dando a ele uma última oportunidade de lambuja para que possa se redimir e aprender com erros antes cometidos e oferecer melhores respostas aos problemas e desafios. Indica, portanto, que nem tudo ainda está perdido, mas as condições de sobrevivência são precárias.

As recentes e radicais inflexões do presidente Bolsonaro sugerem que foi ativado o modo sobrevivência em seu governo. Ora vejamos: até muito pouco tempo atrás, Bolsonaro demonizava o presidencialismo de coalizão argumentando que este era baseado em um jogo sujo de “toma lá, dá cá”.

Queria distância dos partidos políticos e ignorava as lideranças do Congresso Nacional, rotulando-as de representantes da “velha política” e preferindo constrangê-las por meio de conexões diretas com a sociedade. Ao invés de negociar, assumiu uma postura de confronto polarizado com todos aqueles que ofereceram resistência às suas iniciativas.

Entretanto, de uma hora para outra e contrariando tudo aquilo que havia prometido em sua campanha e durante quase 500 dias de seu mandato presidencial, se aproximou de alguns partidos políticos na tentativa tardia de montagem de uma coalizão com o Centrão (bloco informal e heterogêneo de partidos ideologicamente amorfos e não programáticos).

Governar por meio de coalizões majoritárias e estáveis é condição sine qua non em um ambiente institucional multipartidário, especialmente hiperfragmentado como o brasileiro.

Presidentes minoritários tendem a ser malsucedidos no Legislativo e a enfrentar problemas crescentes de governabilidade. Contudo, governar não é o único propósito de se montar coalizões multipartidárias e, em certas ocasiões, nem é o principal objetivo.

Coalizões também são fundamentais para resguardar o presidente de iniciativas que venham a fragilizá-lo. Ou seja, funcionam como um escudo protetor e, quando bem gerenciadas, coalizões ajudam na própria sobrevivência do governo.

Diante de fragilidades crescentes enfrentadas pelo presidente Bolsonaro com a má gerência da pandemia, com os escândalos das tentativas de interferência na Polícia Federal, possivelmente para encobertar possíveis malfeitos de seus filhos, e com a saída de Sérgio Moro do governo, ameaças de impeachment de Bolsonaro se tornaram cada vez mais críveis.

A coalizão com o Centrão, portanto, talvez tenha se tornado o “1-up” do governo Bolsonaro. Ou seja, aquela última chance ou “vida extra” que um jogador recebe quando o modo sobrevivência é ativado. Como se trata de uma coalizão que gera apenas uma “maior minoria”, não deve ser o bastante para proporcionar governabilidade e aprovação de agendas ambiciosas.

Entretanto, pode ser suficiente para proporcionar sobrevivência ao governo, pois impeachments no Brasil necessitam de quórum qualificado de 342 votos e, portanto, uma minoria de 172 deputados pode barrar o processo na Câmara dos Deputados.

A vida extra dada a Bolsonaro pelo Centrão não significa a eliminação completa das dificuldades por ele enfrentadas, mas apenas uma promessa de que, por enquanto, o jogo não acabou.


César Felício: O dilema do sofá-cama

No mundo ao contrário, presidente é um oposicionista

A epidemia provocada pelo novo coronavírus começou a mudar a vida de cada brasileiro há cerca de sessenta dias, quando houve o despertar global para o problema. Foi pouco antes dos meados de março que a Organização Mundial de Saúde, depois de alguma hesitação, decretou a existência de uma pandemia.

O contraste do Brasil com o panorama internacional é gritante. Ásia, Europa e mesmo os países da América do Sul fecharam ou estão na iminência de fechar um ciclo, preparando-se para a provável segunda onda de contaminação da doença. No Brasil, a roda claramente gira em falso. Não há preparação para nada.

A semeadura fraca que justifica colheita tão pobre era sugerida pela leitura de qualquer matutino cerca de dois meses atrás.

Uma grande polêmica no Brasil em 14 de março era sobre o resultado do exame para detectar a doença feito pelo presidente da República. O governador de São Paulo, João Doria, acusava Bolsonaro em entrevista de desrespeitar outros poderes. Epidemiologistas diziam que a única forma do Brasil conter o flagelo era por meio da paralisação das atividades. Faltava um dia para Bolsonaro participar de aglomerações em Brasília que pregavam a ditadura. O conflito entre ele e o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, começaria na semana seguinte.

A América Latina teve o bônus de ser uma das últimas regiões a receber a doença. Até 7 de abril, nenhum país da região havia registrado mais de 300 mortes, ao contrário do que ocorreu nas economias mais desenvolvidas. O Brasil entrou naquela semana com 200 casos e o primeiro óbito de covid-19 só seria confirmado no dia 17. Havia tempo para agir.

Na área econômica houve ação, depois de alguma tergiversação do ministro Paulo Guedes. Ele só tomara plena ciência da gravidade da crise poucos dias antes, em uma reunião no Congresso Nacional, quando o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, traçou um prognóstico sombrio sobre a velocidade do contágio no Brasil e o efeito devastador da doença na atividade produtiva.

O estímulo fiscal para a proteção da economia no Brasil ficou entre 5% e 6% do PIB, um dos patamares mais altos da região, inferior apenas aos do Chile e do Peru, segundo relatório do Banco Mundial. A criação do auxílio emergencial e de medidas de apoio ao empresariado começou ali a ganhar forma, em um ambiente político que claramente tinha e tem outras prioridades. O Congresso aprovou anteontem, por exemplo, com esmagadora maioria e o beneplácito do Palácio do Planalto, aumento salarial para os policiais do Distrito Federal.

Na área propriamente sanitária pouco se fez. A ação coube a cada governador, sem nenhuma concatenação federal. O saldo foi irregular. Em geral, o que houve no Brasil foi uma quarentena mitigada, algo que não foi carne e nem peixe, que interrompeu a normalidade econômica com baixo índice de isolamento social. Diminuiu o número de casos que haveria se nada tivesse sido feito, mas sem a força necessária para apontar uma estratégia de saída.

“Tivemos uma espécie de sofá-cama. Trata-se de um meio termo que é ruim como sofá e ruim como cama, tentando ser os dois ao mesmo tempo”, ironizou Roberto Kraenkel, um físico teórico da Unesp, que se tornou especialista em biologia matemática, com aplicação em epidemiologia.

O que Kraenkel quis dizer é que a descoordenação entre o presidente e os governadores explica a situação brasileira hoje. Uma medida extrema, como o “lockdown” em determinados centros, terá que ter amplitude geográfica restrita e duração curta, porque só poderia ser diferente com apoio e coordenação federal.

A liberação de todas as atividades, como se pandemia não existisse, o que parece ser o desejo de Bolsonaro, não tem guarida entre os governadores, na comunidade científica e na justiça, e não é por outra razão que o presidente se esforça para usar o empresariado como um exército seu, a ser mobilizado para pressionar pelo fim dos controles.

A reunião virtual de ontem entre o presidente e empresários não poderia ser mais ilustrativa disso. Bolsonaro chamou os empresários de “nossos patrões”, mas quem estava tentando dar ordens ali era ele.

A estratégia de saída do isolamento é uma discussão mundial, da qual o Brasil quer participar tendo feito muito menos do que os outros. No mundo ao avesso que existe no país, os governadores estão no centro do combate à pandemia, escorados pelo Supremo Tribunal Federal, e o presidente porta-se como um oposicionista, convocando protestos que beiram a desobediência civil. Quer se sair do descalabro econômico provocado por um isolamento meia-boca com o vírus ainda em circulação.

Caso a vontade de Bolsonaro seja atendida, Kraenkel estima que mortalidade em função da covid-19 chegue com facilidade ao patamar de centenas de milhares de mortes, possivelmente colocando o Brasil em primeiro lugar no ranking mundial de fatalidades. Difícil entender como uma situação dessas irá harmonizar com a retomada da economia, mas aparentemente há empresários que acreditam que a saúde pública é uma questão menor.

Caso Bolsonaro não seja atendido, temos no horizonte um período de isolamento social muito longo, muito mais longo do que poderia ter sido e do que será em outros países onde o presidente de turno não tenha se metido em guerras e operações políticas.

Kraenkel ressalva que se São Paulo, Rio de Janeiro e outros grandes centros tivessem feito “lockdown” em março seria possível ter agora uma estratégia de saída. Nada mais longe disso do que a realidade que se apresenta. Tanto em um caso como em outro, o de Bolsonaro desmontar a aliança entre governadores, Justiça e Congresso ou a de ser emparedado por essa aliança, o Brasil deve figurar como um exemplo internacional de país que fracassou ao enfrentar a pandemia.

Nos aguarda queda recorde do PIB, ou muitos mortos, ou uma combinação das duas coisas. Possivelmente já perdemos essa guerra.


Ricardo Abramovay: Lições da pandemia para a crise climática

Ao contrário do coronavírus, as emissões de gases de efeito estufa não respeitam o fechamento de fronteiras

A “Eu sabia que havia cem casos de coronavírus na França e estava para viajar àquele país. Eu sabia também que a evolução da doença era exponencial. Eu nem considerei o fato de que se a taxa de infecção estivesse dobrando a cada três dias, em um mês, o número inicial de infectados seria multiplicado por mil. Tudo isso está além de nossa compreensão intuitiva. Inclusive da minha”.

O depoimento à revista New Yorker seria trivial, não fosse o fato de que ele vem de ninguém menos que Daniel Kahneman, psicólogo, autor de “Rápido e Devagar” e contemplado com o Nobel de Economia em 2002, por mostrar o quanto nossos comportamentos distanciam-se da imagem canônica do homem econômico racional. Seu trabalho inspirou as pesquisas de importante vertente do pensamento social contemporâneo, voltada ao estudo da maneira como as pessoas se comportam diante do risco.

Um de seus mais importantes discípulos, Paul Slovic, abriu caminho a estudos que buscam explicar as bases psicológicas a partir das quais nos relacionamos com os riscos e sobretudo com os riscos resultantes de tecnologias industriais. No que se refere ao coronavírus, Slovic, ilustra o crescimento exponencial mostrando que, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, o tempo entre o primeiro caso da doença e a marca de cem mil atingidos foi de 67 dias. Outros cem mil casos foram registrados 11 dias depois. E levou apenas quatro dias para que mais uma leva de 100 mil pessoas adoecessem.

A análise de risco é fundamental sobretudo para eventos de baixa probabilidade, cuja ocorrência, no entanto, é de grande impacto. Sabemos lidar com eventos relativamente habituais como os acidentes de trânsito ou diferentes tipos de doenças. Mas faz parte dos mecanismos cognitivos básicos com base nos quais organizamos nosso dia-a-dia, guiarmo-nos pelo que já sabemos e a partir de referenciais que nos são fornecidos pelos grupos a que pertencemos. Tendemos a focar nossas decisões no curto prazo; a ignorar lições de desastres passados; a imaginar que nunca seremos atingidos por males que afetam os outros; a aderir a explicações simples diante de fenômenos complexos e a fazer escolhas apoiados na conduta e no universo cultural dos que nos são próximos.

Estas características cognitivas, resultantes de nossa própria evolução, constituem obstáculos à percepção de fenômenos que têm trajetória contrária ao que nos ensina nossa experiência cotidiana, como mostraram outros dois especialistas em análise de risco, Robert Meyr e Howard Kunreuhther, em The Ostrich Paradox.

A experiência acumulada no estudo sobre percepção de riscos é que explica o fato de Paul Slovic e Howard Kunreuther fazerem exatamente agora um alerta fundamental. Há outro fenômeno que traz a marca do crescimento exponencial e diante do qual, igualmente, se espalha a ilusão perceptiva de que seu poder destrutivo é menor e muito mais distante do que o anunciado pelos que o estudam: as mudanças climáticas.

Não poderia ser maior o contraste entre a mobilização massiva (ainda que, em tantos casos, tardia e hesitante) contra o coronavírus e a complacência diante da emissão de gases de efeito estufa, venha ela dos combustíveis fósseis; dos fertilizantes nitrogenados; do rebanho bovino ou da destruição florestal. Os gases de efeito estufa acumulam-se na atmosfera em magnitude tal que vai esgotando a capacidade de serem neutralizados por seus sorvedouros naturais, as florestas (que continuam sendo destruídas) e os oceanos. O derretimento das geleiras no Ártico (que, há apenas quarenta anos, cobriam o dobro da superfície que ocupam atualmente) faz com que o calor antes refletido passe a ser absorvido pelos oceanos, criando um feedback altamente destrutivo. O resultado é que o volume de CO2 na atmosfera que era de 315 partes por milhão em 1958 já está em 414 partes por milhão.

Só que nada disso é visível a olho nu, contrariamente ao que ocorre com as tristes imagens dos efeitos da pandemia no sistema hospitalar e até no sistema funerário. A pandemia é uma espécie de aceleração vertiginosa do filme a que estamos, quase imperceptivelmente, assistindo, como se fosse em câmara lenta, com as mudanças climáticas. É verdade que as mortes por covid-19 são atestadas por exames clínicos. O mesmo não ocorre com as enchentes que desabrigaram mais de 50 mil pessoas em Minas Gerais, no Espírito Santo e em São Paulo em fevereiro, com a ampliação em 163% da população suscetível de ser atingida por furacões na Flórida entre 1980 e 2018 (muito mais que o aumento demográfico no período) e com a estimativa de que as perdas globais com o aumento do nível do mar devem passar de US$ 52 bilhões em 2005 para US$ 1,2 trilhão em 2050. O vínculo entre estes eventos e as mudanças climáticas foge de nossa intuição imediata.

No caso da pandemia, soluções nacionais construtivas são possíveis, ao menos durante certo tempo. Mas, contrariamente ao coronavírus, as emissões de gases de efeito estufa não respeitam o fechamento de fronteiras. A conclusão é que o combate à pandemia, tem que ser acompanhado de um planejamento em cujo centro esteja a urgência climática. A criação de empregos, a redução das desigualdades e o crescimento econômico têm que girar em torno da necessidade de se evitar a grande ameaça representada pelo aumento exponencial a que assistimos até aqui das emissões de gases de efeito estufa. A urgência da pandemia é imediata, mas não é razoável que ela ofusque a urgência de se enfrentar a crise climática.

*Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, autor de “Amazônia. Por uma economia do conhecimento da natureza” (ed. Elefante/Outras Palavras).