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Armando Castelar Pinheiro: A pandemia, a economia e o Judiciário

Quanto da conta será paga aumentando a carga tributária e quanto cortando gastos públicos?

Nas últimas semanas, o Brasil virou o segundo país com mais casos de covid-19 e o quarto com mais mortes. É desolador. Felizmente, o vírus agora se propaga a taxas decrescentes. O número de mortes, indicador mais preciso, cresceu 3,5% ao dia na última semana, contra 4,7% ao dia uma semana antes. Mantido esse ritmo, fecharemos junho com um quadro parecido ao atual nos EUA.

A pandemia trouxe enormes perdas na economia. Mundo afora, os contribuintes estão assumindo grande parte dessas perdas, via transferências de renda, financiamentos e garantias dadas pelo setor público etc. Porém, em que pese o tamanho desse apoio estatal, sem precedente histórico, parte significativa da perda terá de ser absorvida por empresários, trabalhadores e consumidores.

No primeiro trimestre de 2020, o PIB já encolheu 1,5%. Os analistas de mercado projetam que no segundo trimestre o PIB caia 13,9%, com altas de 9,9% e 3,5% no terceiro e quarto trimestres. No ano, prevê-se que PIB contraia 6,25%, com recuperação apenas parcial em 2021, quando subiria 3,5%.

A crise afetará alguns setores mais do que outros. Empresas de mineração, agropecuária, telecomunicações, supermercados e farmácias, por exemplo, serão menos afetadas. Por outro lado, o impacto será grande em turismo, entretenimento, transporte de passageiros, comércio varejista (ex-supermercados e farmácias), assim como seus fornecedores, de fabricantes industriais a proprietários de imóveis comerciais e concessionárias de aeroportos.

Os setores mais afetados são mais intensivos em mão de obra. Isso aponta para uma forte retração do emprego este ano. Em abril, o número de pessoas ocupadas já foi 3,4% menor do que um ano antes.

Nesse contexto, a sociedade terá de administrar vários tipos de conflitos. O primeiro virá de como pagar a enorme conta deixada pelo apoio ora dado pelo setor público, que virá na forma de uma dívida pública bem mais alta e na necessidade de reduzir o déficit público em 2021, quando a ociosidade na economia ainda será grande. Quanto dessa conta será paga aumentando a carga tributária e quanto cortando gastos públicos? Essa é uma questão política, mas em geral os que perdem a disputa política depois recorrem à Justiça.

O segundo tipo de conflito girará em torno de contratos que ficaram mais difíceis de cumprir. O governo vem facilitando esse processo, como via MP 936, que permitiu a redução proporcional de salários e carga de trabalho. Porém, muito mais ainda restará por ser resolvido via negociação direta - ou o recurso à Justiça. Aqui incluo, por exemplo, a discussão sobre a necessidade, ou não, de reequilibrar os contratos de concessão.

Também se prevê que milhares de empresas entrarão em recuperação judicial. O trabalho será árduo e difícil: como decidir se uma empresa pode se recuperar, ou se a situação mudou de tal forma que a falência é o único caminho? E como fazer isso com rapidez, de forma que as empresas viáveis possam se reestruturar e normalizar suas atividades o quanto antes, facilitando a recuperação da economia? O Congresso Nacional vem discutindo nova lei que obriga a negociação entre as partes antes da ida à Justiça, o que parece sensato, mas, por outro lado, pode atrasar a resolução do problema e manter vivas empresas inviáveis.

Pode haver, também, um imbróglio não trivial de conflitos para responsabilização pelas mortes ocorridas com a covid-19: trabalhadores no setor de saúde, idosos em casas de repouso, consumidores etc. No Reino Unido, o governo se adiantou estabelecendo uma compensação padrão na área de saúde.

Por fim, é preciso nos prepararmos para os novos tipos de litígios que podem surgir no pós-pandemia. Na área trabalhista, há o risco de contaminação no local de trabalho, especialmente depois que o STF derrubou o artigo 29 da MP 927, abrindo a porta para a covid-19 ser considerada doença ocupacional (glo.bo/2BvPvRy). Nos EUA, as empresas estão pedindo proteção do governo contra esses processos ao chamarem seus funcionários de volta ao trabalho (on.ft.com/3bYtwiJ). O receio é que esse tipo de proteção legal leve as empresas a relaxarem na proteção de seus funcionários contra o contágio pela covid-19.

Novos conflitos trabalhistas também podem resultar da dificuldade de aferir horas extras e acidentes de trabalho no ambiente doméstico, ao transferir os escritórios para as residências (glo.bo/2MoBOGc). Também há potencial de novos conflitos consumeristas por contaminação pela covid-19.

O termômetro do STF aponta que já chegaram à Corte mais de 2.800 processos ligados à covid-19 (bit.ly/3dyAHzI), refletindo como a sociedade brasileira cada vez mais judicializa seus conflitos. Se isso se generalizar com os casos gerados pela pandemia, será mais difícil o país virar essa página da nossa história. A negociação, mediada ou arbitrada, pode ajudar. Mas para isso será fundamental estabelecer parâmetros, o que os três Poderes poderiam fazer desde já.

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ


Ribamar Oliveira: Vendas reagem com estímulos econômicos

Dados mostram recuperação em todas as regiões do país

As medidas de estímulo econômico adotadas pelo governo conseguiram reverter a forte queda das vendas ocorrida em abril. Em maio, a média diária de vendas voltou a crescer e chegou a R$ 21,1 bilhões, resultado 11,1% superior ao de abril, em termos reais, de acordo com as notas fiscais eletrônicas registradas no Sistema Público de Escrituração Digital (Sped).

“Houve uma recuperação importante no mês passado”, disse o secretário da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, em conversa com o Valor. Segundo ele, os dados iniciais deste mês indicam que “o fundo do poço ficou em abril”. Tostes acredita que as vendas estão em recuperação, pois “a tendência é continuar essa trajetória”.

Ele observou que alguns Estados adotaram protocolos de abertura controlada de alguns setores do comércio e que isso vai impulsionar as vendas em junho, pois “o varejo terá que ser abastecido”. Tostes citou também dados divulgados recentemente pela Fenabrave (Federação Nacional de Distribuição de Veículos Automotores), que apontam para uma alta de 11,6% nas vendas de veículos em maio, em relação a abril, embora em comparação com o mesmo mês do ano passado a queda ainda seja muito elevada, de 71,98%.

As notas fiscais eletrônicas (NFe) registram as operações de compra e venda entre as empresas e das empresas com os consumidores finais. Elas não incluem, no entanto, as vendas no varejo. O movimento agregado das notas capta, principalmente, as vendas entre empresas de médio e grande porte, bem como as vendas não presenciais de empresas para pessoas físicas - o chamado comércio eletrônico.

Embora cresçam em relação a abril, mesmo assim as vendas em maio apresentaram uma queda de 15,2%, em termos reais (descontada a inflação) na comparação com o mesmo mês do ano passado. Em abril, quando se intensificou o isolamento social para controlar a contaminação da população pelo novo coronavírus, a queda real foi de 17,8% na comparação com março.

Em relação a abril de 2019, a redução real do volume de vendas foi de 14,9%. O que as notas fiscais eletrônicas estão indicando é que, no mês passado, houve um ponto de inflexão da curva, que voltou a ser ascendente. Essa tendência terá que ser confirmada pelos dados deste mês.

O gráfico da Receita Federal sobre as vendas semanais (soma das vendas diárias na semana) mostra uma recuperação gradual nas últimas semanas do mês passado. Por esse indicador, o ponto mais baixo ocorreu em meados de abril. “A terceira semana de abril foi o valor mais baixo do ano”, explicou Tostes. A partir daí, inicia-se um aumento gradual, com o pico sendo atingido na última semana de maio. “Em maio, já voltamos ao patamar de março”, disse.

O comércio eletrônico viveu uma situação peculiar. Em vez de cair durante a pandemia, cresceu. E muito. Em março ele aumentou 20,4%, em termos reais, na comparação com o mesmo mês de 2019.

Quando tudo estava despencando em abril, as vendas eletrônicas subiram 17,2% na comparação com o mesmo mês do ano passado. Em maio, o crescimento dessas vendas ainda foi mais explosivo: 40,7%. “Não houve crise nesta modalidade de comércio”, constatou o secretário.

Ele observou ainda que, em maio, todas as regiões do Brasil mostraram recuperação no ritmo de vendas. “As quantidades de notas emitidas, que vinham em declínio em abril, em maio inverteram a tendência e subiram, em todas as regiões”, observou.

Após as medidas de contenção e quarentena adotadas em todo o Brasil, todas as regiões apresentaram queda do volume diário de vendas em abril, na comparação com março. A menor redução foi da região Sul (12,0%) e a maior foi da região Sudeste (22,6%). Em maio, na comparação com abril, todas as regiões apresentaram crescimento de vendas.

É difícil sustentar que as notas fiscais eletrônicas em maio, por si só, já mostrem uma recuperação robusta e sustentável da economia. Elas parecem indicar que as vendas reagiram favoravelmente aos estímulos do governo. O consumo foi alavancado pelo auxílio emergencial de R$ 600 concedido aos trabalhadores informais e todos os aposentados tiveram antecipação de seu décimo terceiro salário, para citar apenas duas medidas adotadas.

Mas os estímulos serão suficientes para garantir uma retomada consistente? O governo está comemorando, principalmente, o fato de que a crise não se aprofundou em maio, como alguns acreditavam que iria acontecer. Houve, na verdade, uma recuperação, que pode ser um alento para o futuro.

Tudo dependerá, e não podia ser diferente, do êxito da abertura da economia. Alguns especialistas consideram que a abertura do comércio e da indústria em algumas regiões do país está sendo feita de forma precipitada, pois a epidemia ainda não teria atingido o seu pico. Se ocorrer um novo surto de contaminação pelo coronavírus, o país poderá voltar a uma nova etapa de distanciamento social e a recuperação que se inicia poderá ser abortada.


Maria Cristina Fernandes: Mourão rima, mas não é a solução

Sem interlocução com partidos, de costas para a sociedade e para seu próprio estamento, vice se coloca, com seus ataques, para fora do tabuleiro

O vice-presidente da República deu início ao mandato do presidente Jair Bolsonaro como alvo número 1 do gabinete do ódio. Identificado como pretendente ao cargo, passou a ser tratado pelos filhos do presidente e seus acólitos como traidor em potencial e inimigo a ser abatido em todas as suas movimentações.

Hamilton Mourão nem parecia o general insubordinado que, mesmo punido, continuou a desobedecer o estatuto dos militares. Cultivou relações com empresários, partidos e até sindicatos, como a face civilizada de um governo cujo titular sempre demonstrou desapreço pela liturgia e pela missão constitucional da qual foi investido pelo eleitor. Acossado, se retraiu.

A bordo de um avião da FAB, passou a percorrer o país em palestras nas associações comerciais do interior para manter os motores em funcionamento sem o escrutínio da imprensa ou do gabinete do ódio.

Voltou à cena, primeiro com o artigo em que se apresentava como um vendedor de seguro para o titular. Mirou nos governadores e acertou todas as instituições. Um velho quatro estrelas diria a um ministro do Supremo: se parece difícil lidar com um capitão desabalado é porque ele ainda não topou com o general que o secunda.

Em novo artigo em “O Estado de S. Paulo”, o vice dobrou a aposta, desta vez, contra os manifestantes que foram às ruas no domingo e voltarão no próximo. A estes, que portavam faixas em defesa da democracia, denominou-os de baderneiros, extremistas, depredadores e criminosos. Voltou-se até contra “um ministro do STF”, que começa com Celso e termina com Mello, como “intelectualmente desonesto”.

Àqueles que ocupam a Praça dos Três Poderes nos fins de semana conclamando intervenção militar, agredindo enfermeiros em atos de solidariedade a colegas mortos e brandindo símbolos do ódio supremacista americano contra o Supremo Tribunal Federal, o vice limitou-se a denominar de portadores de “exagero retórico”.

Mourão se coloca como porta-voz não autorizado das Forças Armadas ao defendê-las da partidarização, mas acaba por atiçar os fantasmas da intervenção com a carta da baderna. Ao fazê-lo, distancia-se ainda mais de seus colegas da ativa que têm colecionado dissabores pela insistência com a qual Bolsonaro e seus ministros militares os empurram para a praça pública.

Com o artigo, Mourão se coloca como representante maior dos VIPs (valentes, inteligentes e patriotas), categoria em que os generais da ativa colocam os colegas que passam para a reserva e, sem tropas a comandar, se põem a ditar as ordens para a República.

À exceção de vozes solitárias como o ex-ministro e general Carlos Alberto dos Santos Cruz, tem faltado, à farda, apoio para que se mantenha longe das ruas, como o fez, nos Estados Unidos, o secretário de Defesa.

Mark Esper se manifestou ontem publicamente contra o uso da lei do fim do século 18 (“Insurrection Act”) para colocar a Guarda Nacional na repressão às manifestações de rua contra a violência policial que resultou na morte do ex-segurança George Floyd. Em vídeo que circula nas redes sociais, soldados da Guarda Nacional, depois de ouvirem o apelo de uma manifestante (“marchem conosco e nos protejam”), posam para uma foto com o grupo que os cerca.

Em artigo publicado no início desta semana na “The Atlantic”, Mike Mullen, que foi comandante do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas americanas, nos governos Bush e Obama, também se insurgiu contra o uso de seus ex-companheiros de farda para reprimir movimentos que têm sua solidariedade: “Os cidadãos não são nossos inimigos e nunca devem sê-lo”.

No Chile, que tem sido invocado por Bolsonaro desde as manifestações estudantis do ano passado, como exemplo de país em que as Forças Armadas, convocadas, agiram na repressão aos movimentos sociais, o que aconteceu foi exatamente o inverso.

Sebastián Piñera conseguiu arrancar um estado de sítio do Congresso e, durante duas semanas, as Forças Armadas foram para as ruas numa atuação sem violência em contraposição ao cassetete policial que vigorara até ali. Com o fim do prazo da medida, os militares voltaram pra casa mas os manifestantes, não.

O presidente chileno insistiu em nova incursão militar nas ruas de Santiago mas, desta vez, os comandantes se recusaram a acatar suas ordens. Não estavam dispostos a pôr em risco o prestígio reconquistado a duras penas junto à sociedade ao longo das três décadas passadas desde a sangrenta ditadura chilena.

A recusa levou Piñera a recuar, pedir desculpas à população e aceitar um acordo com os partidos que levou à convocação de um plebiscito, adiado pela pandemia, que vai decidir sobre a convocação de uma Assembleia Constituinte.

O papel ao qual as Forças Armadas brasileiras têm sido forçadas a colocariam na contramão da história, a isolariam do mundo e, ao contrário do contexto do golpe de 1964, até de seus vizinhos e da própria sociedade. É a pandemia que impede que os signatários dos manifestos marchem ao lado das torcidas de futebol. Se as Forças Armadas se orgulham de terem golpeado a Constituição em 1964 para defender a marcha em defesa de Deus, da família e da propriedade, desta vez estariam ao lado de quem?

O presidente está seguro no cargo enquanto os partidos não se puserem de acordo em relação à alternativa de poder. É esta, na verdade, a razão de fundo para as dificuldades da grande frente anti-Bolsonaro. O vice-presidente é a opção constitucional para comandar o país em caso de impeachment, mas se força para fora do jogo ao tomar posições mais elaboradas mas tão inconsequentes quanto a do capitão e fortalece saídas como a cassação da chapa pelo TSE, que opõe quatro votos a 57 milhões.

Sem entrada nos partidos, sem interlocução com o empresariado que extrapole os viciados corredores da Fiesp, de costas para a sociedade e para seu próprio estamento, Mourão parece tentar se viabilizar junto ao que restou de apoio ao presidente, o bolsonarismo raiz, o mesmo do qual sempre foi vítimas. Se não deu com Cosme, aqui está Damião. Nem um nem outro. Se governar como escreve, Mourão pode até fazer rima, mas deixa de ser uma solução.


Andrea Jubé: Os dois gigantes que movem a política

Autoridades veem risco de confrontos e até black blocs

Se estivesse vivo, o professor Emilio Mira y López identificaria na realidade nacional pelo menos dois dos “quatro gigantes da alma”, que ele radiografou no clássico da psicologia universal: o medo e a ira. O Brasil é hoje um país dominado pelo temor do coronavírus, da ruína econômica, da ruptura democrática, e tudo isso embalado pelo ódio político, que amplia a turbulência e gera insegurança.

Num momento em que o amor e o respeito à pátria são invocados para legitimar despautérios, como discursos autoritários e ataques às instituições democráticas, vem à tona a atualidade da obra de Mira y López escrita em 1947, depois que o autor, filho de um médico militar, vivenciou duas grandes guerras mundiais e lutou contra o franquismo na Espanha.

“O ódio político é extremamente devastador porque pode invocar para satisfazer-se, a cada momento, o sagrado prestigio da pátria. Assim, basta acusar o vizinho odiado de ser “traidor da pátria” para que sobre ele caiam os anátemas dos que são incapazes de dar a essa palavra um valor variável, em função do marco em que é empregada”.

Professor de psicologia e psiquiatria da Universidade de Barcelona, Mira y López, publicou um estudo cientifico pioneiro das três emoções primárias do homem: o medo, a ira e o amor. Ele as classifica como as três grandes reações neuropsicológicas, que somadas à força repressiva do meio social - o dever - formam os “quatro gigantes da alma”, título da obra, uma referência intelectual nos anos 50 e 60.

É nesse cenário em que o medo e a ira movem a política nacional que as convocações nas redes sociais para a realização de novos atos em defesa da democracia no próximo fim de semana, inclusive na Esplanada dos Ministérios, acenderam o alerta entre as forças de segurança da Presidência da República e do Distrito Federal.

Autoridades do alto escalão receiam confrontos entre apoiadores e opositores do governo. Numa análise ampliada, o temor é de que a tensão política, num cenário de crise sanitária e alto desemprego, desemboque em convulsão social, com saques e depredação de patrimônio.

Alvo de ameaças - ele e seus pares do Supremo Tribunal Federal - o ministro Gilmar Mendes alertou que é preciso “combater o discurso do ódio” para evitar que o pior se concretize. “Tememos que essa violência verbal se convole em violência física, isso não é bom para o país, independentemente de quem seja o alvo”, alertou em entrevista à GloboNews.

É nesse contexto que não foi ao acaso o conselho do presidente Jair Bolsonaro ontem aos seus apoiadores para que não repetissem os atos no fim de semana. “Estão marcando no domingo um movimento né, deixem [os opositores] sozinhos”.

O acirramento da radicalização política nos últimos anos, agravado num cenário de pandemia e crise econômica, transformou o Brasil em uma panela de pressão prestes a explodir. De um lado, o país ultrapassou a marca de meio milhão de infectados pelo coronavírus, com quase 30 mil vítimas, segundo dados oficiais. Em paralelo, a pobreza parece avançar na mesma velocidade da pandemia. A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) diz que os desempregados somam 12,8 milhões de brasileiros - o mesmo que a população inteira da cidade de São Paulo.

Esse somatório de perdas - de vidas humanas, de emprego, de esperança -, tendo como pano de fundo a ameaça democrática, torna-se um campo fértil para a revolta popular.

Por meio do Centro Integrado de Operações (Ciop), que reúne 29 órgãos do Distrito Federal, a Secretaria de Segurança Pública vem monitorando as manifestações de apoiadores de Bolsonaro aos domingos, há mais de um mês, na Praça dos Três Poderes. Sem oposição, os atos têm sido pacíficos, embora questionáveis pela violação ao decreto que proíbe aglomerações.

Fontes da secretaria ressalvam que há um impasse legal, que autorizaria os protestos, seja de que lado forem, porque a Constituição Federal assegura o direito de manifestação. É essa prerrogativa constitucional que estará em debate caso a Justiça seja acionada para proibir os protestos do próximo fim de semana para evitar confrontos.

Vários cenários estão sendo analisados pelas forças de segurança federal e dos Estados para evitar atos de violência no próximo fim de semana. Um dos temores é o ressurgimento de grupos radicais como os “black blocs”, responsáveis por ações violentas nas manifestações de 2013.

Outro receio envolve a eventual prisão da ativista Sara Winter, apoiadora do presidente, que fez ameaças públicas ao ministro do STF Alexandre de Moraes e é investigada pela Polícia Federal. Há dúvidas se a sua detenção teria o efeito de advertência para conter os excessos dos demais ativistas, ou acirraria os ânimos dos bolsonaristas.

Outro temor é de que os protestos antirracistas que ocorrem há uma semana nos Estados Unidos - e ganharam ampla cobertura da imprensa brasileira -, contra o assassinato de George Floyd, estimulem os protestos nacionais.

No limite, há quem arrisque que restará ao governador Ibaneis Rocha (MDB) imitar o seu antecessor, Rodrigo Rollemberg (PSB), que ergueu um muro de dois quilômetros de extensão nos gramados da Esplanada para dividir os grupos adversários no impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e evitar as vias de fatos entre os dois grupos.

Mira y López ficou conhecido como o “teórico da liberdade”: exilado após a luta contra o regime de Franco, ele viveu nos Estados Unidos, Argentina e Uruguai, até radicar-se no Brasil, onde faleceu em 1964, em plena ruptura democrática.

Ele não se conformava com a radicalização política, porque para ele esse ódio esbarrava na essência da atividade política, que deveria ser “modelo de tato, compreensão e respeito ao ser humano”. Sua conclusão foi de que o ódio político remonta à tendência do homem, “desde sua mais remota ancestralidade”, a ambicionar o poder, “não para servir, mas para dele se servir”.


Bruno Carazza: 70 contra 30

Impasse estatístico imobiliza e leva o país ao confronto

Em 11 de outubro de 2013, poucos meses após as manifestações de rua que sacudiram o país, o Datafolha foi a campo para mapear o perfil ideológico dos brasileiros. Naquele momento, 29% dos entrevistados consideravam que possuir uma arma deveria ser um direito de todo cidadão para se defender da violência e 46% acreditavam que a pena de morte seria a melhor punição para indivíduos que cometessem crimes graves.

O mesmo levantamento ainda indicava que 33% associavam a pobreza à preguiça de quem não queria trabalhar. E 26% defendiam que a homossexualidade deveria ser desencorajada por toda a sociedade.

Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 porque soube como ninguém captar o sentimento da maioria do eleitorado quanto à corrupção revelada pela Lava-Jato, à enorme recessão de 2015/2016 e aos temores gerados por um eventual retorno do PT ao poder.

O que muita gente esquece de levar em conta - ou teima em não reconhecer - é que a chegada do ex-capitão ao Palácio do Planalto foi a vitória, sobretudo, de uma parcela de 25% a 30% da população que comunga plenamente com sua visão conservadora e autoritária - um contingente expressivo de pessoas que defendem o uso da força militar para manter a ordem, prega a defesa da “moral e dos bons costumes” e é contrária às políticas de proteção social e redistribuição de renda.

Decorrido um terço de seu mandato, Bolsonaro perdeu o apoio de boa parte dos 57,8 milhões de eleitores que o elegeram em novembro de 2018 - seja porque não entregou o crescimento econômico espetacular prometido por Paulo Guedes, pela saída de Sergio Moro acusando-o de interferir na Polícia Federal em favor dos filhos ou ainda pela sua flagrante incapacidade de gestão em meio à grave crise do coronavírus. Se um mês após a posse 40% dos brasileiros consideravam seu governo ótimo ou bom, a última pesquisa realizada pela XP/Ipespe revelou que sua aprovação minguou para o patamar de 26%.

Em 13 de março de 2017, praticamente 18 meses antes de ser eleito presidente da República, Jair Bolsonaro deu uma entrevista à “Folha de S.Paulo”. Naquela ocasião, o então deputado afirmou duas vezes que iria indicar militares para metade dos cargos nos ministérios. E ao ser questionado sobre os processos que respondia por incitação ao crime de estupro e injúria, declarou: “Não é a imprensa nem o Supremo que vão falar o que é limite para mim”.

Da mesma forma que o presidente não mudou sua concepção sobre a democracia desde que foi investido no cargo mais importante do país, existe um eleitorado-raiz que continua firme e forte defendendo o presidente. Independentemente do contexto, entre 20% e 30% dos brasileiros concordam com a conduta de Bolsonaro, seja no que diz respeito à sua atuação no combate ao coronavírus (20% a consideram ótima ou boa), à avaliação do vídeo da reunião ministerial (30% de aprovação), à oferta de cargos ao Centrão (20% apoiam a guinada no discurso do presidente) ou à declaração de que “o povo armado não é escravizado” (24% concordam com a afirmação).

Nos últimos dias ganhou força nas redes sociais a hashtag #somos70porcento, tentando mobilizar a população contra o governo sob o argumento de que a maioria (resultante da soma dos percentuais que avaliam a atual gestão como regular, ruim ou péssima na maioria das pesquisas) discordam das principais políticas conduzidas por Bolsonaro.

Durante o fim de semana, o recém-criado Movimento Estamos Juntos também se valeu da estatística para pressionar Bolsonaro. Seu manifesto, assinado por políticos, artistas e personalidades de diferentes posições ideológicas, afirma que “somos a maioria e exigimos que nossos representantes e lideranças políticas exerçam com afinco e dignidade seu papel diante da devastadora crise sanitária, política e econômica que atravessa o país”.

Com o acirramento da situação política e social, estamos paralisados por um impasse entre os 30% de bolsonaristas radicais e os 70% de rivais, críticos e insatisfeitos com sua administração.

De um lado, mesmo contando com a adesão das Forças Armadas e das suas milícias virtuais, Bolsonaro não dispõe de uma base social capaz de garantir sucesso incondicional numa eventual ruptura institucional, como ocorreu em 1964. Basta lembrar que, naquela época, o golpe militar contou com a contribuição ou a complacência de boa parte da imprensa, da classe política, do empresariado e da população em geral - situação que nem de longe se assemelha ao Brasil de 2020.

Da mesma forma, muito dificilmente os autoproclamados 70% de oposição conseguiriam apear o presidente do poder nas atuais condições. Em primeiro lugar, Bolsonaro, como qualquer outro político, jamais renunciaria ao poder tendo um apoio cego e irrestrito de 30% das pessoas. Também é pouco provável que o Congresso tenha disposição de levar até o fim um processo de impeachment com um presidente com essa base de sustentação: só para se ter uma ideia, Fernando Collor e Dilma Rousseff foram processados quando suas aprovações tinham se esvaído para o nível de 10%. Por fim, um processo de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão no Tribunal Superior Eleitoral como decorrência do processo de “fake news” geraria uma forte resistência do 1/3 que aprova cada ato e declaração seus.

As manifestações e confrontos ocorridos no sábado e no domingo são um prenúncio do caminho sombrio que poderemos trilhar caso os extremos não sejam contidos. Com uma pandemia ainda fora de controle e tendo à frente uma recessão econômica sem paralelos em nossa história, os riscos de uma convulsão social se potencializam.

Com o país caminhando perigosamente à beira do precipício, as lideranças dos Poderes Legislativo e Judiciário, das Forças Armadas e da Procuradoria-Geral da República precisam ter equilíbrio para evitar que, em busca de emparedar ou garantir o poder a Bolsonaro, acabem empurrando o Brasil para a barbárie.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Humberto Saccomandi: Epidemia deve levar a aumento de impostos

Países terão déficit público recorde. Essa conta terá de ser paga

Governos por todo o mundo estão fazendo esforços hercúleos para conter a devastação causada pela epidemia de covid-19 na economia e na saúde. Nunca se gastou tanto em tempos de paz. Passado o pior dessa crise, a ressaca fiscal deverá resultar igualmente desafiadora.

Será difícil escapar de uma onda de aumento de impostos para reajustar as contas públicas. Haverá muita movimentação nesse sentido nos próximos meses. E esse processo de alta da carga fiscal, se não bem conduzido, pode gerar tensão social, política e mais dano econômico.

Neste momento de guerra ao coronavírus, os governos estão aumentando incrivelmente os seus gastos, de um modo que é até difícil de controlar, para financiar o setor de saúde e para ajudar empresas e pessoas que perderam faturamento e renda.

Os governos estão sofrendo ainda com uma queda sem precedentes da receita. A atividade econômica desabou, e a arrecadação de impostos caiu junto. Além disso, os programas de socorro incluem medidas de alívio fiscal. Muitos países adiaram o recolhimento de impostos ou reduziram seu valor. Possivelmente, parte desses impostos nunca serão pagos.

Assim, a pressão imediata por mais gastos combinada com a queda na receita está gerando uma situação fiscal explosiva, que é generalizada. A maioria dos países deve ter déficit público recorde neste ano. A África do Sul já prevê déficit acima de 10% do PIB. Cingapura prevê mais de 15%, projeção que também já se vê no Brasil. Nos EUA, o Escritório de Orçamento do Congresso prevê déficit neste ano de US$ 3,8 trilhões, quase quatro vezes os US$ 984 bilhões do ano passado, atingindo cerca de 18% do PIB.

Há muita dúvida quanto à duração da epidemia e o dano adicional que ela ainda pode causar, o que dificulta antecipar quanto os governos ainda terão de gastar. Também há dúvidas sobre a intensidade da recuperação pós-epidemia. Quanto mais rápida e forte ela for, mais receita fiscal vai gerar, ajudando assim no ajuste das contas públicas. Mas se essa retomada for lenta, o ajuste fiscal será mais demorado. O Reino Unido, por exemplo, prevê que o déficit fiscal do país só cairá abaixo de 5% do PIB após 2024.

Não sabemos direito também como será a demanda social no pós-epidemia. Certamente haverá pressão para fortalecer os sistemas de saúde, especialmente a preparação para epidemias. Além disso, muitos países estão adotando temporariamente programas de distribuição de renda. Pode ser difícil retirá-los subitamente. A Espanha, por exemplo, anunciou que quer criar um programa permanente de renda mínima. Outros países estão avaliando isso. Ou seja, os gastos públicos explodiram, a receita caiu e é incerto que essa dinâmica possa ser corrigida rapidamente.

Parte dessa conta que se avoluma está sendo paga com impressão monetária, direta ou indiretamente, como por meio de programas de flexibilização quantitativa. Nesse caso, os BCs financiam os governos por meio da compra indireta de títulos públicos, no mercado secundário, como faz o Banco Central Europeu. Boa parte da conta, porém, vai virar dívida.

Países com mais solidez econômica e financeira têm maior credibilidade e podem lidar melhor com um aumento expressivo da dívida pública. Mas a maioria, não. Isso implica o risco grande de uma crise da dívida, principalmente nos países emergentes. Estes, para financiar suas dívidas, se verão compelidos pelos mercados a ao menos indicar um caminho de ajuste nas suas contas públicas

Mas todos terão de lidar com essa dívida, cedo ou tarde. E a dinâmica das contas sugere que será difícil evitar um aumento de impostos. Muitos países já estão discutindo isso. A Comissão Europeia também deixou claro que buscará mais impostos - inclusive inéditos impostos europeus - para financiar o seu plano de recuperação da União Europeia, de € 750 bilhões.

“A dívida pública vai crescer. Essa dívida uma hora terá de ser paga. E como é que se paga? Com impostos, não há outro modo”, disse ontem o ex-presidente da Comissão Europeia José Manuel Durão Barroso, em webinar promovido pelo Fundação Fernando Henrique Cardoso. “Vai ter a dívida pública a pagar, o que exige maior taxação”, completou, a respeito a aumento do papel do Estado decorrente da epidemia.

“Vamos sair [dessa crise] muito endivididos”, disse Fernando Henrique Cardoso no webinar. Ele acha que os governos estão corretos em “jogar dinheiro” neste momento, mas “a dívida vai aumentar” e “o custo disso será pago nos próximos anos”, afirmou. “Precisaremos de mais taxação para redução da dívida.”

Mas quais impostos elevar? Aumentar quanto? Por quanto tempo? Essa discussão complexa deverá crescer à medida que os países forem saindo da situação de emergência da pandemia. Se não for encaminhada com habilidade, pode gerar um corrosivo conflito distributivo, sobre como dividir a conta.

As maiores fontes de arrecadação dos governos são os impostos sobre a renda e sobre o consumo. Mas subir muito o imposto de renda das empresas, num momento em que muitas delas estarão tentando sair do coma induzido pela crise, pode ser contraproducente. Taxar muito mais o consumo também é arriscado, pois as economias já estão com a demanda deprimida. Elevar o imposto de renda da pessoa física, possivelmente dos mais ricos, deverá ser uma opção.

Essa pressão de maior taxação dos mais ricos deve crescer, já que a crise tende a aumentar ainda mais a desigualdade, que já vinha em alta nas últimas décadas.

Há outras ideias sendo discutidas, como o imposto sobre fortunas, a taxação das gigantes digitais (que pagam menos impostos que as demais empresas), ampliar a taxação sobre ganhos financeiros ou até o imposto sobre transações financeiras. No Brasil, o governo já ventila ressuscitar a CPMF.

A Comissão Europeia propôs ainda uma taxa sobre o plástico (que incentivaria a redução do consumo), ampliar a taxação de emissões de carbono e um controverso imposto de importação que seria cobrado de produtos vindos de países que não cumprem metas de reduzir as suas emissões. Isso pode gerar uma nova onda protecionista.

FHC alertou que “as pessoas precisam acreditar que o dinheiro [dos impostos] não é para aumentar o tamanho do Estado, mas para reduzir a dívida pública”. E Durão Barroso alertou que é importante “que o Estado não atinja um peso que possa prejudicar a inciativa privada” Não é um processo fácil de tocar.


Monica de Bolle: A reabertura inevitável e fatal

O Brasil, que longe está de poder reabrir sem risco, começará a fazê-lo a partir da semana que vem. Teremos mais meses de tragédia pela frente, e, para completar o quadro, a economia não será poupada

O Brasil tem quase 400 mil casos de Covid-19. Já é o segundo no mundo depois dos Estados Unidos. As mortes continuam a subir, os recursos hospitalares já estão no limite, acima do limite, ou muito próximos do limite, a depender da localidade. O fator de contágio, o que os epidemiologistas chamam de R0, permanece acima de 1: provavelmente bem acima de 1, a julgar pelas conhecidas subnotificações e testagem para lá de insuficiente. Com o fator de contágio acima de 1, a epidemia recrudesce no instante em que o isolamento social começa a ser relaxado. Por esse motivo, os países europeus que estão reabrindo lentamente sua economia só o fazem porque o R0 está, hoje, abaixo de 1. Para mantê-lo nesse patamar sem vacinas, será preciso um enorme esforço dos governos, a readequação dos locais de trabalho, uma mudança de comportamento.

São Paulo anunciou a reabertura para o dia 1º de junho. Aqui em Washington, DC, onde moro, a reabertura gradual só será considerada — considerada, não feita — no dia 8 de junho.

Mas voltando ao Brasil. Tenho acompanhado, sob sugestão de amigos infectologistas aqui nos Estados Unidos, este site. Nele há projeções sobre o curso da epidemia no Brasil, bem como as estimativas de óbitos por Covid-19. Desde março, as projeções para o país têm se confirmado. Caso se confirmem para junho e julho, em meados de junho teremos 50 mil óbitos e em meados de julho o número chegará à catastrófica marca dos 100 mil, patamar em que estão os EUA. A diferença é que, nos EUA, as medidas de isolamento ainda estão em vigor em várias partes do país, mesmo que a curva epidemiológica tenha melhorado. O Brasil haverá de suspendê-las muito antes do ponto mais ou menos seguro (segurança absoluta sem vacina é algo que não existe).

A decisão de reabrir tomada pelo governador de São Paulo revela dois problemas espalhados pelo país. De um lado, há grande pressão sobre os governadores, tanto por parte do presidente da República quanto de alguns empresários. De outro, a verdade mais desastrosa dessa epidemia: se a população não adere às medidas de distanciamento, seja por qual motivo for, elas pouco adiantam para frear o estrago do vírus e derrubam a economia como se não houvesse medida alguma. Não temos ainda muitos dados ou indicadores sobre o impacto da epidemia na economia brasileira, mas o que há revela um quadro devastador.

Segundo dados recém-divulgados pelo Caged, em março e abril o país perdeu mais de 1 milhão de empregos formais. Esses empregos estão majoritariamente concentrados nos setores de serviços e comércio, que empregam muitas pessoas de baixa renda. Ou seja, os mais de 1 milhão de vagas formais destruídas certamente afetaram desproporcionalmente aqueles que recebem os menores salários, aumentando a desigualdade e a necessidade de uma rede de proteção social mais forte. Os dados deixam em evidência a necessidade de prorrogar o auxílio emergencial, o que, nesse momento, o governo reluta em fazer. Apenas para contextualizar, essa perda de vagas formais em dois meses é significativamente maior do que as perdas registradas nos dois anos de recessão histórica, 2015 e 2016. O estado que mais perdeu empregos? São Paulo, seguido do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.

Diante dessa calamidade e das dificuldades de levar a cabo o distanciamento social necessário, seja por interferências do governo federal, seja por motivos diversos que orientam o comportamento da população, seja porque há uma parcela muito expressiva da população brasileira que não pode ficar em casa, a decisão de reabrir será prematura. O debate sobre saúde versus economia? Esse continua a não existir. O que ocorrerá no país é que mais vidas serão perdidas. Teremos mais meses de tragédia pela frente. E, para completar o quadro, a economia não será poupada, ao contrário do que alguns empresários, parte do mercado financeiro e membros da equipe econômica acreditam. Rumamos para o pior dos cenários, a não ser que, por um passe de mágica — dado que, ministro da Saúde não temos — comecemos a testar em larguíssima escala e aprendamos a fazer o rastreamento de contatos da noite para o dia.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Claudia Safatle: Dúvidas sobre a solvência da dívida

A situação é extremamente dramática, diz o economista Edmar Bacha

A saída para a economia, no período pós- pandemia, é retomar a agenda de reformas com foco na solvência da dívida interna. A dívida bruta como proporção do PIB terá uma escalada, saindo de 75,5% para a casa dos 90% do PIB este ano. Os sinais já são inquietantes. A dívida mobiliária teve resgate líquido de R$ 240 bilhões nos primeiros quatro meses do ano e os prazos dos títulos estão se encurtando.

Essa preocupação ficou clara durante o debate ontem, na Câmara, entre os economistas Arminio Fraga, Ilan Goldfajn, ambos ex-presidentes do Banco Central, Ana Paula Vescovi, ex-secretária do Tesouro Nacional, e Edmar Bacha, um dos responsáveis pelo Plano Real.

Será importante, também, redesenhar os programas sociais para focá-los em quem realmente precisa da ajuda do Estado. A crise da covid-19 mostrou que é necessário fazer o ajuste de forma “justa”, salientou Vescovi.

O auxílio emergencial de R$ 600 que teria, segundo dados oficiais, atingido cerca de 38 milhões de brasileiros que não tinham qualquer ajuda estatal, deverá ser prorrogado por mais um par de meses, em menor valor. Em um novo formato, ele poderia transformar-se em um programa de renda básica como resultado de mudanças, inclusive, no seguro-desemprego.

O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), deixou, durante o debate, uma informação relevante: Hoje a grande discussão que divide o governo é se a retomada da economia terá que ser feita com base em investimentos públicos ou se deve-se priorizar o investimento privado. Essa é uma divisão que sempre se apresenta nos momentos mais graves de crise, a despeito da absoluta falta de recursos do Tesouro Nacional para investir.

“A situação é extremamente dramática”, disse Bacha, para quem o país enfrenta uma “depressão” econômica. Ele chamou a atenção para pautas que devem ser evitadas tais como tabelamento dos juros ou elevação impostos, conforme proposta que tramita no Senado, de elevar para 50% a alíquota da CSLL cobrada dos bancos, para não se abrir a porta para uma “crise bancária”. E assinalou a importância de se fazer uma distribuição de renda no país sem que para isso tenha que haver “guerra ou revolução”. Os demais participantes concordam com a premência de uma redução das desigualdades e veem possibilidades de investimentos atrativos em saneamento e em infraestrutura, desde que as regras do jogo sejam bem definidas e respeitadas.

Para Ilan, já se sabe que a pandemia da covid-19 será mais longa e terá maior custo do que se imaginou no início da crise e, portanto, “não é hora de grandes gastos em obras públicas”. Segundo ele, há duas questões que merecem atenção: o auxílio emergencial e que a oferta de crédito chegue às pequenas empresas.

Ilan também condenou duas propostas que circulam no governo: a emissão de moeda para financiar o aumento do gasto decorrente da pandemia; e a venda de reservas cambiais com o mesmo propósito. Não há emissão sem custo e se há 20% do PIB em reservas cambiais, do lado do passivo há 20% do PIB em dívida, salientou.

Lembrou ainda que os depósitos remunerados, que permitiriam a emissão de moeda remunerada, são parte de propostas que tramitam no Congresso à espera de aprovação.

Arminio, avisou que olharia “o copo meio cheio” e viu saídas a partir de um ajuste fiscal que ele calcula em torno de 8 pontos percentuais do PIB, que não será feito da noite para o dia. “O Brasil vai ter que fazer escolhas” que, se não forem bem feitas, o futuro será a repetição “dos piores momentos do passado elevado ao cubo”.

Uma das reformas que todos os participantes colocam como prioritária é a do Estado, ou administrativa, para que o horizonte do gasto com pessoal corrija a despesa de cerca de 14% do PIB, hoje menor apenas do que a da África do Sul. Há outras como a tributária e a patrimonial e questões menos tangíveis, como confiança do investidor no país e segurança jurídica dos contratos. Para recuperar a confiança é preciso estabilidade institucional.

Ana Paula Vescovi mostrou a situação das contas públicas antes e depois da pandemia. Fica claro que o país estava em processo de ajuste fiscal, mas foi pego ainda em condições extremamente frágeis.

A pandemia vai elevar em 7 pontos percentuais o déficit primário do governo central. As contas no critério nominal vão encerrar o ano com déficit de 16,3% do PIB, ou R$ 1,12 trilhão, e a dívida bruta saltará para 94,2% do PIB este ano e para 102,8% do PIB em 2028. Os cálculos pressupõem obediência à lei do teto de gastos.

Pequenas empresas
O governo espera que o Programa de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Pronampe) esteja sendo oferecido pelo sistema bancário a partir de segunda-feira. O programa destina às microempresas cerca de R$ 15,9 bilhões com prazo de 36 meses e custo de taxa Selic mais 1,25%.

Os juros que foram aprovados pelo Congresso são tabelados, portanto, em 4,25% ao ano. De antemão, assessores do Ministério da Economia já vislumbram a contrariedade dos bancos privados em operar com essa linha de crédito, pois alegam que 4,25% não seria suficiente para cobrir os custos operacionais. Além do preço, o sistema privado também deverá temer o risco de crédito. Para o dinheiro chegar nas microempresas é bastante provável que a Caixa tenha que ser, mais uma vez, acionada.

Privatização
Começou a tramitar no Congresso Nacional o projeto de lei nº 2.715, que suspende qualquer privatização por 12 meses após o fim do período de calamidade pública. De autoria do depurado Enio Verri, (PT-PR), o projeto tem o apoio da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae) e de diversas outras entidades sindicais. A suspensão das privatizações até 2022 se justificaria pelas atuais condições de mercado, segundo argumentam os seus defensores. Para o presidente da Fenae, Sérgio Takemoto, porém, “a Caixa e as demais empresas públicas estão comprovando, especialmente nesta crise, o quanto elas são imprescindíveis para o país”.Está na fila da privatização a Caixa Seguridade e a empresa de Loterias.


Cristiano Romero: Por que caçoamos da própria desgraça?

No Brasil, o debate é interditado por quem não quer mudança

Uma das maneiras mais eficazes - e desonestas - de interditar um debate é atribuir simploriedade às ideias do interlocutor, enquadrá-las num "slogan" pejorativo e, assim, promover sua incompreensão no imaginário histórico e coletivo de uma sociedade. De fato, muitas vezes, a artimanha usada para sabotar o debate é mais engenhosa do que a iniciativa dos que pretendem enriquecê-lo. E, desta forma, as sociedades não progridem.

A Ilha de Vera Cruz é, possivelmente, a maior vítima desse perverso "controle" de ideias. Aqui, o passado não acaba nunca, a mistificação costuma prevalecer sobre a lógica e a ciência, o que está visivelmente errado não se muda porque, simplesmente, a maioria dos viventes, diz-se, não aceita. E, assim, fazemos vistas grossas para o anacronismo e banalizamos nossas tragédias.

Um exemplo inaceitável de banalização cotidiana: 60 mil brasileiros vão morrer assassinados neste ano. Sessenta mil cidadãos vão perder suas vidas em 2020 porque é esta uma estatística macabra. Há alguns anos é esse o número de pessoas marcadas para morrer neste país. O perfil médio dos assassinados é de jovens entre 17 e 24 anos, aqueles que, nas nossas famílias, nessa idade estão estudando ou iniciando sua brilhante carreira profissional.

A estatística, esta implacável, nos envergonha e humilha, como a perguntar: "Ei, vocês, como sociedade, não vão fazer nada para acabar com isso?".

Brasileiro deve odiar estatística porque essa maldita ciência nos lembra, todo santo dia, o que somos como sociedade. Pois é. Por que o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) teve a pachorra de nos inscrever no PISA, exame que avalia a qualidade da educação por meio de provas feitas por estudantes de 15 anos em três disciplinas (leitura, matemática e ciências). Aplicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o "maldito" PISA faz um ranking do desempenho de 80 países (36 integrantes da organização e 44 associados, isto é, que pediram para participar do programa).

A cada dois anos, desde 2000, o Pisa nos informa que nossos estudantes vão muito mal nas provas. O que o teste revela não deve ser embaraçoso para nossos adolescentes, mas, sim, para nossa sociedade, que aceita conviver com esse vexame há décadas, séculos, desde o início dos tempos.

No último exame do Pisa, realizado em 2018, nossos alunos ficaram abaixo da média da OCDE nas três disciplinas. Ficamos na 57ª posição em leitura, 70ª em matemática e na 66ª em ciências entre os 80 países avaliados. Em 2018, a pontuação média em leitura do exame foi de 487 pontos. Em matemática e ciências foi de 489 pontos. O Brasil ficou com 413 pontos em leitura, 384 em matemática e 404 em ciências.

Os habitantes têm o hábito de fazer piada da própria desgraça. Gostamos, por exemplo, de fazer troça dos atentados terroristas que nossos jovens cometem contra a língua portuguesa em seus exames, que circulam na internet para nos fazer rir da própria desgraça. A bordo de nossos carros, lemos nas ruas e estradas anúncios escritos à mão, repletos de erros de português. Novamente, achamos graça, embora, apenas, hoje em dia, apenas alguns de nós percebam que, na placa onde se lê "aluga-se apartamentos", o idioma sofre de maus tratos.

O desconforto para quem se incomoda com tudo isso está no fato de quase ninguém, neste imenso pedaço da Terra habitado por 210 milhões de pessoas, importar-se com o assunto, principalmente, quem tem consciência da mazela. Nos jornais, diariamente vemos economistas e empresários se queixando da baixa produtividade da nossa economia, especialmente, da baixa qualidade da nossa mão de obra. Nessas horas, o tom usado para tratar de nosso problema secular é severo, sem espaço para piadas. Isso indica que nossas elites intelectual e econômica, oxalá, reconhecem o problema, mas por que a situação não muda?

Um outro caso, quase anedótico, de mistificação que se faz contra o debate de ideias diz respeito à própria OCDE. A entidade foi criada em 1960 por um grupo de nações ricas da Europa, além dos Estados Unidos. É uma organização multilateral, mas não tem o mesmo caráter do FMI ou do Banco Mundial. Só entra para o clube quem é convidado.

O que faz a OCDE? A principal missão da instituição é estabelecer boas condutas em várias áreas para as nações que a integram. Quem as segue ganha um selo internacional que lhes garante, entre outras vantagens, baixo custo creditício no mercado internacional. No Brasil, aplicamos à OCDE a pecha de “clube dos ricos”, uma forma rasa de não haver a chance de entrarmos para o grupo.

Na próxima coluna, trataremos do chamado “Consenso de Washington”, cujas preceitos foram interditados pelo debate nacional como se fossem algo maléfico para o país, a saber:

1.Disciplina fiscal. Altos e contínuos déficits fiscais contribuem para a inflação e fugas de capital;

  1. Reforma tributária. A base de arrecadação tributária deve ser ampla;
  2. Taxas de juros. Os mercados financeiros domésticos devem determinar as taxas de juros de um país. Taxas de juros reais e positivas desfavorecem fugas de capitais e aumentam a poupança local;
  3. Taxas de câmbio. Países em desenvolvimento devem adotar uma taxa de câmbio competitiva que favoreça as exportações tornando-as mais baratas no exterior.
  4. Abertura comercial. As tarifas devem ser minimizadas e não devem incidir sobre bens intermediários utilizados como insumos para as exportações.
  5. Investimento direto estrangeiro. Investimentos estrangeiros podem introduzir o capital e as tecnologias que faltam no país, devendo, portanto ser incentivados.
  6. Privatização. As indústrias privadas operam com mais eficiência porque os executivos possuem um “interesse pessoal direto nos ganhos de uma empresa ou respondem àqueles que tem.” As estatais devem ser privatizadas.
  7. Desregulação. A regulação excessiva pode promover a corrupção e a discriminação contra empresas menores com pouco acesso aos maiores escalões da burocracia. Os governos precisam desregular a economia. Direito de propriedade.
  8. Os direitos de propriedade devem ser aplicados. Sistemas judiciários pobres e leis fracas reduzem os incentivos para poupar e acumular riqueza.

Fernando Exman: Falta educação na Pasta da Militância

Setor tem desafios urgentes a enfrentar na pandemia

O Ministério da Educação mantém-se fiel à tradição, no governo Jair Bolsonaro, de protagonizar crises políticas. A gestão de uma pasta fundamental para o desenvolvimento do país começou mal, avançou mandato adentro de forma trôpega e, durante a pandemia, apequenou-se.

O setor tem diversos desafios a enfrentar. Muitos deles se tornaram urgentes, mas outros poderiam ter sido resolvidos há tempos.

Os potenciais problemas da pasta tornaram-se perceptíveis já no período de transição, no fim de 2018. Militares e acadêmicos que formulavam seu planejamento estratégico foram surpreendidos quando Ricardo Vélez Rodríguez entrou no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) como um professor pouco conhecido e saiu como o indicado para ocupar a função de ministro de Estado. A vaga era entregue à ala ideológica que formava a base eleitoral do presidente recém-eleito, criando severos obstáculos à execução do plano programado pelos técnicos que integravam este grupo setorial da campanha eleitoral.

Não demoraria para que Vélez caísse. Mesmo assim, o cargo permaneceu sob influência do grupo que passou a usar a política externa, além das áreas de direitos humanos e da educação, para manter militantes bolsonaristas mobilizados em defesa de um governo com cada vez mais frentes de batalha nos campos político e jurídico.

Não foi à toa que estas três áreas foram expostas, com a divulgação do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril.

O episódio colocou o titular do Ministério da Educação, Abraham Weintraub, no epicentro das turbulências hoje existentes entre o Executivo, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Legislativo. Ele chegou a se manifestar com tanta eloquência na reunião que o presidente pediu mais engajamento de outros ministros citando seu exemplo, mas de “forma mais educada um pouquinho”. Weintraub colocou-se aos presentes como militante e nada do que falou poderá ser reproduzido em livros infantis.

O resultado não poderia ser mais preocupante para um gestor com diversos assuntos a despachar com os outros Poderes. A capacidade de articulação institucional de Weintraub é, hoje, uma nulidade. A notícia positiva para ele, por outro lado, é que justamente essa disposição para o enfrentamento foi que o manteve, pelo menos até agora, no cargo.

No fim de 2019, sua demissão era dada como certa por auxiliares do presidente. Bolsonaro precisou negar que estaria planejando mudar novamente o comando da Educação, sempre com o argumento de que gestões anteriores teriam deixado o Brasil pessimamente posicionado no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Antes de exonerá-lo, ponderava, seria justo dar crédito e condições para o ministro trabalhar.

E resultados é o que se espera neste momento em que a pandemia pode gerar graves danos para o ensino, para a vida de pais, mestres e alunos, além de também afetar a solvência de empresas do setor.

A reação inicial do governo até que foi ágil. O Planalto enviou ao Congresso um pedido para que fosse reconhecida a situação de calamidade pública em meados de março. No primeiro dia de abril foi editada uma medida provisória voltada especificamente para a área da educação durante a pandemia.

A MP flexibiliza o calendário escolar para garantir que os alunos tenham acesso a todas as horas-aula relativas aos 200 dias letivos exigíveis pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ou seja, 800 horas anuais, mesmo que de forma remota.

O Executivo reconheceu, na MP, a gravidade da covid-19 e os potenciais riscos das inevitáveis aglomerações que ocorreriam nas creches, escolas e universidades. Mas, desde então, outros gestos do Ministério da Educação e do próprio presidente não corroboraram com essa visão.

Bolsonaro tentou articular com o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), que colégios cívico-militares encabeçassem um movimento de retorno às atividades. A ideia não foi adiante.

Também falhou o plano do ministro de evitar o adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). As discussões sobre o assunto passaram a ser conduzidas diretamente entre a Câmara e o presidente.

O titular da pasta também tem sido alijado das discussões sobre outro tema que angustia o setor e gestores locais: o financiamento da educação. Uma proposta de emenda constitucional estabelecendo um novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica precisa ser aprovada e regulamentada ainda neste ano, pois o atual Fundeb vale apenas até dezembro.

Deputados gostariam de aumentar a participação do governo federal no financiamento da educação básica, mas prefeitos ouviram uma proposta da equipe econômica que acabaria por não contemplar totalmente o setor. A ideia seria privilegiar a destinação de verbas para a saúde, por causa da pandemia. Em outras palavras, renovar o fundo como ele é hoje sem carimbar os recursos. As prefeituras poderiam adquirir testes para covid-19, respiradores e outros equipamentos médico-hospitalares, em vez de comprar material escolar. Não há acordo ainda. A educação ficaria, novamente, em segundo plano.

Cabe ao poder central coordenar as ações do setor público e da iniciativa privada. Será um erro deixar que pais e alunos considerem 2020 um ano letivo perdido, mesmo que o futuro profissional dos estudantes ainda esteja nublado.

À medida do possível e dependendo das limitações e especificidades de cada local, métodos de ensino remoto e de reposição do conteúdo perdido precisam ser objeto de total atenção do governo federal. O retorno às salas de aula também precisará ocorrer de forma ordenada e seguindo diretrizes sanitárias. Cada Estado ou município terá que saber o momento certo de fazê-lo. Voluntarismos vindos do ministério ou do Palácio do Planalto não contribuirão nesse processo, sobretudo se forem apenas para manter a militância aquecida. Misturar a situação atual com as discussões sobre a polêmica educação domiciliar, uma bandeira bolsonarista, tampouco parece ser boa ideia.


Andrea Jubé: “Eu usaria ‘fake news’ como uma arma”

Senado vota no dia 2 projeto que tenta frear “fake news”

“Fake news” e armas de fogo estão na ordem do dia, no contexto da pandemia e da reunião ministerial de 22 de abril, na qual o presidente Jair Bolsonaro exclamou que deseja armar a população. “Por isso que eu quero que o povo se arme!”

Parecem temas estranhos entre si, mas são como duas paralelas, que se encontram no infinito, porque o potencial letal das “fake news” equipara-se ao das armas de fogo.

A metáfora é do lobista americano Jack Burkman: “Eu usaria ‘fake news’ como uma arma. Os alemães e os britânicos usam armas químicas, e você vai fazer o quê? Não quer dizer que goste, mas tem que fazer”, explicou o apoiador de Donald Trump, no documentário “Depois da verdade: desinformação e o custo das ‘fake news’”, que estreou recentemente na plataforma de streaming HBO.

“Usei ‘fake news’ (…) existem consequências terríveis potencialmente, mas e daí? É o que eu digo: e daí?”, questionou Burkman, evidenciando o grau de impunidade em torno do tema. (Vê-se que o famigerado “E daí?” não é monopólio da política nacional).

A fala de Burkman abre o filme do diretor Andrew Rossi, vencedor do Emmy, que revela a letalidade da disseminação de conteúdo falso. O caso mais emblemático retratado no filme se deu durante a campanha de Trump em 2016: o Pizzagate, que envolveu um point badalado em Washington, frequentado por políticos, jornalistas, e famílias descoladas.

A falsa notícia de que a pizzaria Comet Ping Pong era a sede de um esquema orquestrado pela adversária de Trump, a democrata Hillary Clinton, espalhou-se pelas redes e ganhou contornos cada vez mais absurdos. No local, existiria um porão onde crianças seriam estupradas e mantidas como reféns. Pelo delivery, mediante um código, as pessoas receberiam crianças no lugar de pizzas em seus apartamentos.

Perto da eleição, Hillary encostou em Trump, abalando os nervos dos republicanos. Um deles - Edgar Maddison Welch, 28 anos, pai de duas filhas - resolveu dirigir 550 quilômetros, da Carolina do Norte até Washington, na companhia de um fuzil AR-15, determinado a resgatar os “reféns” do Comet Ping Pong.

Armado com o fuzil, um revólver e uma faca, Welch entrou sem atirar na pizzaria, porque a prioridade era localizar o esconderijo e libertar as vítimas. Enquanto ele se ocupava com a busca frenética, os funcionários puderam ajudar os clientes a fugir até a chegada das viaturas, em tempo hábil de impedir a tragédia.

O episódio ilustra como a desinformação e as teorias da conspiração impactam a política, com reflexos na vida do cidadão comum. Na eleição americana, verificou-se que o conteúdo falso teve mais engajamento do que o verdadeiro. A falsa notícia do apoio do Papa Francisco a Trump teve 961 mil engajamentos.

A invenção de que Hillary operaria um esquema de abuso infantil remonta à acusação de que o então candidato do PT à Presidência Fernando Haddad iria distribuir mamadeiras com o formato de pênis em creches e escolas da rede pública. A ficção teve intensa repercussão no eleitorado evangélico, prejudicando o petista nesse segmento.

A preocupação com a expansão das “fake news” e os seus reflexos no pleito municipal deste ano fez o Congresso apressar o passo para votar uma norma regulamentando o tema. A meta é evitar a reincidência de danos causados em 2018, ou ao menos atenuá-los. Co-autor do projeto, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) diz que há críticas à velocidade de análise da matéria, pautada para o dia 2 de junho no plenário virtual do Senado, mas que neste caso, é preciso agilidade.

“Estamos no meio de uma pandemia e a desinformação pode matar pessoas. Também teremos daqui a pouco um novo ciclo eleitoral, e não podemos chegar lá com as redes de desinformação e ‘fake news’ em ação”, justificou.

O projeto é de autoria do gabinete compartilhado que Vieira mantém com os deputados Tábata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES) e introduz regras que se adequam ao Marco Civil da Internet, mas colocam freios à disseminação das notícias falsas.

Um dos dispositivos limita o número de encaminhamentos de mensagens nos aplicativos de conversas no período eleitoral. Durante a propaganda eleitoral ou nas situações de emergência ou calamidade pública (como a pandemia da covid-19), o número de encaminhamentos de uma mesma mensagem fica limitado a no máximo um usuário ou grupo.

O projeto está sendo debatido com a sociedade civil, e a partir das críticas de que alguns dispositivos configurariam censura, haverá alterações. A ideia é prever que o autor da publicação considerada falsa seja notificado previamente antes que o provedor a remova.

Em março, Facebook, Twitter e Instagram removeram postagens de Bolsonaro com críticas ao isolamento social - principal política mundial de enfrentamento ao coronavírus. Em um dos vídeos removidos, o presidente dizia que o país ficará imunizado quando 70% forem infectados, e que um remédio contra o coronavírus já seria uma realidade, sem apresentar comprovação dos dados.

O senador diz que haverá comoção em torno da definição de “fake news”: o que será a opinião do autor da postagem, ou a replicação de conteúdo falso. No caso da cloroquina, ele observa que não pode ser considerada “fake news”, porque alguns profissionais de saúde recomendam a sua utilização no tratamento da covid-19. Mas divulgá-la como remédio eficaz seria propagar conteúdo falso.

No mundo político, vigora a percepção de que Bolsonaro foi eleito na esteira de um movimento político que tem a desinformação no centro de sua estratégia. A denúncia chegou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que pautará os pedidos do PT de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão nas próximas semanas, conforme informou o Valor. A propagação criminosa e sistemática de “fake news” é investigada, em paralelo, pelo Supremo Tribunal Federal e pela CPI Mista do Congresso.


Na reunião de 22 de abril, Bolsonaro avisou: “Eu tô fora de eleições municipais”. Foi a resposta ao ministro Paulo Guedes, que afirmou que é preciso reeleger o presidente. “Mas o presidente tem que pensar daqui a três anos. Não é daqui a um ano não”, alertou.


Pablo Ortellado: Menor e mais radical

Enquanto bolsonarismo prepara ruptura, instituições respondem com notas de repúdio

Não importa para qual pesquisa olhemos, Datafolha, XP ou Atlas Político, o apoio popular ao presidente Bolsonaro está diminuindo. Desde que a crise do coronavírus despontou, em março, o apoio ao presidente decai, ainda que lentamente, enquanto a oposição a ele aumenta. No mesmo período, porém, o bolsonarismo vai ficando mais extremado, com desafios abertos à ordem constitucional —ou seja, a um só tempo está ficando mais isolado e mais radical.

No infame vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, chama a atenção o motivo que Bolsonaro dá para a usual conclamação à população se armar: não é mais para que os homens de bem se defendam dos bandidos, mas para que se defendam dos candidatos a ditadores, prefeitos e governadores que estariam trancando os cidadãos em suas residências. No dia seguinte à reunião, Sergio Moro assinou portaria efetivamente aumentando a quantidade de munição que quem tem porte ou posse de armas pode comprar.

Os protestos anti-instituições pedindo o fechamento do Congresso e do STF agora se tornaram regulares aos domingos, com a participação cativa do presidente e de seus ministros. Grupos paramilitares ou que defendem a ação das Forças Armadas começam a aparecer em todas as partes: são os paraquedistas com Bolsonaro que vieram à manifestação do dia 17 de maio, o acampamento dos 300 de Sara Winter, os tomadores de cloroquina do acampamento “Fora Doria” na Alesp ou os formados na turma de 1971 da Academia Militar das Agulhas Negras que anunciam uma guerra civil.

Nos canais bolsonaristas no YouTube e nos grupos de WhatsApp, tudo o que se vê são discursos do tipo “o povo no poder por intermédio das Forças Armadas”. Segundo esse discurso, uma ordem genuinamente democrática consagraria uma precedência da demanda direta do povo sobre as instituições de representação. Esse povo, para que não reste dúvida, são os bolsonaristas que fazem acampamentos, carreatas e descumprem o distanciamento social —embora minoritários, se veem como uma vanguarda ou como uma essência da vontade popular.

Nos desdobramentos de junho de 2013, a Lei de Segurança Nacional foi mobilizada para perseguir e prender “perigosos” adolescentes que quebravam vidros de bancos. Agora que grupos políticos e paramilitares se organizam em plena luz do dia para derrubar as instituições, com apoio do Poder Executivo, nossos democratas respondem com inócuas notas de repúdio. O braço do Estado é forte e bruto contra os fracos, mas débil e incapaz contra as verdadeiras ameaças à ordem democrática.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.