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César Felício: O caminho de Canossa

Nunca Bolsonaro pareceu tão perto da normalidade

“A cobra vai fumar”. Essa era a mensagem nas redes sociais de várias contas bolsonaristas na noite do dia 16. Durante a manhã e a tarde daquela terça-feira, deputados, empresários e militantes virtuais haviam sido alvo de operações de busca e apreensão, no âmbito dos inquéritos que correm no STF.

O neobolsonarista Roberto Jefferson quis se mostrar bem informado: “Nossas sondagens indicam que o presidente Bolsonaro está há muitas horas reunido com o Gabinete de Segurança Institucional. Assunto GLO. Artigo 142. Deus nos abençoe a espantar os urubus”, escreveu no Twitter.

À medida que avançaram as horas, pulularam imagens de onças bebendo água, fogo de artilharia sendo preparado e imagens de um reloginho marcando tic tac. Todos pintados para a guerra, de prontidão, esperando o toque do clarim para dispararem em louca cavalgada. A defesa do presidente - sentiam - era a defesa de si mesmos, porque o presidente não deixaria seus diligentes soldados ao relento. São uma equipe.

A quarta-feira 17 começou, portanto, com a sensação de que algo muito grave ia ser anunciado pelo presidente. Logo na porta do Alvorada, Bolsonaro pôs essas esperanças por terra. Falou que estava chegando a hora de botar as coisas no devido lugar, mas deixou claro: “Eu não vou ser o primeiro a chutar o pau da barraca”.

Foi uma maneira bastante clara, para quem quis entender, que o ocorrido na véspera, por iniciativa do Supremo contra seus apoiadores, não havia sido um chute no pau da barraca. Na sequência, o presidente foi dar posse a Fábio Faria no Ministério das Comunicações, em companhia de Rodrigo Maia e Dias Toffoli, um pouco antes de o Supremo decidir por 9 a 1 que o inquérito sobre as “fake news” é legal.

Como já escreveu algumas vezes no Twitter Carlos Bolsonaro, tirem suas próprias conclusões. A quinta-feira 18 foi o dia da demissão de Weintraub do Ministério da Educação e da prisão de Queiroz.
A partir daí, é interessante observar o trabalho dos bolsonaristas em administrar as expectativas da sua militância de base. Um bom termômetro são as postagens e respostas do deputado Helio Lopes no Twitter.

Lopes perde só para Eduardo Bolsonaro em intimidade com o presidente na Câmara dos Deputados. Mas é um bolsonarista que fala pouco para fora. Em público, não entra em caneladas com adversários, busca realçar a agenda positiva do seu ídolo e dialoga sem parar com a base.

“Ninguém disse que seria fácil”, escreveu no dia da queda de Weintraub. “A distância entre a largada e a chegada é grande”, comentou. “Desistir não é uma opção” e “é importante que tenhamos fé” foram comentários feitos no sábado. “Tudo vai melhorar, mas isso demanda tempo”, “a mudança não se dará do dia para a noite” e “não podemos perder a esperança” foram outras mensagens. É conversa de quem está cedendo, e cedendo muito.

Nunca Bolsonaro pareceu tão perto de se dobrar ao modelo de um presidente normal. Em 1077, o imperador Henrique IV foi ao castelo de Canossa para encontrar-se com o papa Gregorio VII e pedir a reversão da sua excomunhão. Ir a Canossa passou a ser um jargão na política para se referir a certos rituais de expiação que um governante precisa cumprir. Talvez seja o que ocorre agora.

Clima e pandemia
A pandemia impacta a equação climática no planeta, conforme atesta o engenheiro Carlos Nobre, o mais renomado cientista brasileiro que se dedica ao tema. Há, evidentemente, menos queima de combustíveis fósseis e emissão de poluentes. Nas primeiras semanas do isolamento, houve uma queda de até 50% da poluição urbana em algumas cidades. Nobre estima que em 2020 a queda global de gases que contribuem para o efeito estufa poderá chegar a 8%.

O Brasil, contudo, é um relativizador dos efeitos paradoxalmente benéficos da catástrofe mundial. Aqui, essa emissão tende a aumentar em 2020, pela ação do desmatamento na Amazônia. O país governado por Bolsonaro, com o auxílio luxuoso de um Ricardo Salles, se converterá portanto em uma grande exceção. “No Brasil, 70% das emissões são da atividade agropastoril e do desmatamento”, comenta.

A tendência começou em 2015, quando a crise econômica do governo Dilma afrouxou a fiscalização dos órgãos ambientais. Agravou-se em 2016 por uma seca mais intensa que o normal. Houve ligeiro refresco nos dois anos seguintes e em 2019 subiu com força. “A única variável relevante é a guinada política que o país teve”, diz Nobre.

Se graças ao Brasil a redução global de queima de gases influencia menos a questão climática, é perturbador quando se pensa no que pode acontecer no sentido inverso, ou seja: na forma como modificações no meio ambiente podem produzir pandemias.

Zoonoses tendem a aparecer em situações de desequilíbrio ecológico, em que espécies de animais antes distantes fazem migrações. Convivências inesperadas com microorganismos antes isolados passam a acontecer.

Nobre não é biólogo e não sabe explicar porque a Amazônia ainda não originou nenhuma epidemia com capacidade global de propagação, mas alerta que a perturbação do bioma pode gerar consequências imprevisíveis. A Amazônia possui a maior coleção de microorganismos do mundo e é uma incógnita como essa fauna irá se adaptar à mudança de suas condições de vida.

Nas regiões polares, submetidas ao degelo das calotas, o campo é vasto para se projetar cenários catastróficos, em função do acúmulo de desequilíbrios.

O cientista lembra que Hollywood produziu bom entretenimento no passado fantasiando as consequências catastróficas que existiriam caso dinossauros reaparecessem, por algum fator disruptivo na lei natural. O perigo, contudo, está nos vírus e bactérias de milhares de anos atrás.

Eles estão congelados em camadas de terreno de forma permanente, que devem descongelar se a temperatura se aquecer. São camadas conhecidas como “permafrost”. Animais de grande porte extintos há várias eras não reviverão, mas a volta da atividade de vírus e bactérias de outros tempos é bastante factível. E não há resposta sobre o que estes microorganismos poderão provocar voltando à atividade.


Cristiano Romero: Brasil: o destino de nunca ser liberal

Aqui, liberalismo e liberal são palavras demonizadas

Uma das palavras mais demonizadas do nosso vocabulário é "liberalismo". Sim, o vocábulo, porque, no fundo, não importa discutir seu significado real, a ideia, a doutrina ou o modelo de funcionamento de uma economia. Na Ilha de Vera Cruz, mesmo nas universidades, lócus por definição do debate de ideias, não se vai muito longe na discussão do tema. Ora, por quê? Porque o liberalismo econômico, nos ensinam os livros didáticos desde a tenra infância, é coisa de capitalista selvagem, empresário malvado e banqueiro usurpador, assim como de duas categorias cuja existência, para os anti-liberais, dispensa adjetivos: os investidores da bolsa de valores e os investidores estrangeiros.

A história nos conta por que somos assim, desde as capitanias hereditárias, a forma encontrada pelo já decadente reino de Portugal de ocupar esta imensa "ilha", antes que alguém o fizesse.

"Descoberta" em 1500, Cabrália só começou a ser realmente colonizada 34 anos depois, quando D. João III dividiu o território à régua _ sem levar em consideração os acidentes geográficos que costumam demarcar cidades, Estados e até países _ em 15 capitanias. Como o reino estava falido, cada área foi concedida a um donatário que tivesse recursos para ocupar e administrar a sua área, que não lhe pertencia, mas a Portugal.

A ocupação era urgente porque franceses vieram aos baldes, nas três primeiras décadas de existência da América Portuguesa, depenar a vasta Mata Atlântica para extração de pau-brasil, madeira resistente usada na fabricação de móveis, instrumentos musicais e, ainda, no tingimento (vermelho) de tecidos. Antes das capitanias, funcionaram as feitorias, um monopólio concedido pelo reino português aos exploradores e comercializadores de pau-brasil. Mais adiante, em 1550, os franceses tentaram tomar a pulso parte da Ilha de Vera Cruz do domínio português…

Os donatários das capitanias começaram a desenvolver a lavoura de cana de açúcar e a produção de açúcar, principal produto da colônia dali em diante e por mais de dois séculos. Ali, criou-se a ignomínia que nos caracteriza como sociedade: a escravização de indígena e de africanos. No tempo das feitorias, os índios faziam o trabalho pesado de derrubar as árvores de pau-brasil, mas, em troca, recebiam bugigangas europeias dos feitores. Era um tipo de escravidão, mas esta só foi posta em prática oficialmente com o início do plantio de cana-de-açúcar. À medida que o cultivo da cana foi avançando, o tráfico de africanos escravizados na colônia de Portugal nas Américas cresceu exponencialmente. Como se sabe, apenas em 1888, quase quatro séculos depois, a escravidão foi abolida no Brasil, o último país do Novo Mundo a fazer isso. Tarde demais.

Este país habitado hoje por 210 milhões jamais conseguiu superar as capitanias hereditárias (cartórios), as feitorias (monopólios), a escravidão (a forma mais perversa de não se reconhecer no outro, obstáculo intransponível para o florescimento de uma nação). Grosso modo, esses elementos sempre estiveram presentes na forma como nossa economia funciona. A história nos ensina que grupos específicos, minoritários quando comparados ao conjunto da população, dividem entre si os sempre parcos recursos do Estado.

A tradução moderna e contemporânea do modelo de formação econômica e política está, por exemplo, no poder autóctone da burocracia estatal _ que, isolada em Brasília, goza de privilégios, como o direito absoluto à estabilidade no emprego, e toma decisões em seu próprio benefício ao arrepio da sensatez e da opinião de quem lhe paga os salários. Revela-se, também, na manutenção sob o guarda-chuva do Estado de um sem-número de empresas estatais, periodicamente flagradas malversando recursos públicos em prol de interesses de empresas privadas.

Nossa herança maldita se manifesta na inaceitável tolerância do Estado com a existência de monopólios e de setores com elevado grau de concentração. Este não só provoca ineficiências na economia como um todo, mas representa também uma ameaça à própria democracia. Nos regimes democráticos, têm enorme vantagem sobre os outros os detentores de poder econômico e informação. Esses ativos são comumente usados nas disputas de poder e não raramente de maneira desonesta. A razão disso é simples: a posse dessas vantagens gera assimetrias que podem desequilibrar a luta política e, assim, fragilizar a democracia.

O atraso secular se traduz, ainda, na concessão, pelos governantes, de uma miríade de incentivos fiscais (que reduzem a capacidade da União, dos Estados e municípios de investir onde são mais necessários, ou seja, em educação e saúde) a grandes companhias, que têm acesso a crédito bancário e ao mercado de capitais. Ao mesmo tempo, é negada aos pequenos empreendedores e empresas qualquer forma de ajuda. Ao contrário das grandes companhias, as pequenas têm que buscar crédito no mercado, onde os juros são muito mais altos.

Por, não se deve esquecer que a nossa (de)formação histórica aparece, com nitidez desconcertante, na convivência cínica das elites (todas) com vergonhosos indicadores de violência (60 mil homicídios por ano), pobreza (50 milhões de miseráveis), desigualdade (1% da população detém 28,3% da renda, enquanto os 50% mais pobres ficam com 13,9%) e de qualidade da educação (no país onde se destacam tantos especialistas nessa área, entra ano, sai ano, e nossos adolescentes ocupam sempre as últimas colocações do Pisa, programa da OCDE que mede e compara o desempenho de estudantes de dezenas de nações em provas de matemática, ciências e língua pátria.

Nada disso tem qualquer relação com o liberalismo econômico. É justamente o oposto. Na verdade, neste imenso pedaço de terra, ideias liberalizantes jamais frutificaram. Não há liberais de verdade por aqui. No fundo, o liberalismo - concebido por Milton Friedman - é uma utopia. A saga continua…


Fernando Exman: Militares, política e o caso de Cincinnatus

Congresso debate relação entre Forças Armadas e governo

Pode sair do Congresso Nacional uma solução para o problema que, ao lado dos esforços de combate ao novo coronavírus, muito tem preocupado o oficialato. Pelo menos duas propostas de emenda constitucional podem amenizar os danos causados à imagem das Forças Armadas pela correlação feita, na opinião pública, entre os militares e o governo.

A ideia, ainda em fase inicial de tramitação e que pode ganhar impulso se for objeto de acordo entre os líderes partidários, é resguardar o caráter de instituições de Estado das Forças Armadas. Em uma eventual brecha na agenda legislativa voltada à retomada econômica no pós-pandemia, esse pode ser um debate positivo a ser levado adiante pelo Parlamento. O país ganhará, se demonstrar ter maturidade civilizatória para discutir esse tema sem enfrentar novas turbulências institucionais. Perderá quem quer trocar a farda pelo terno e a gravata, sem enfrentar uma transição profissional em definitivo.

Por isso a proposta de autoria da deputada federal Perpétua Almeida (AC), líder do PCdoB na Câmara, chama a atenção. Ex-assessora especial e ex-secretária de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa, a deputada mantém contato com seus antigos interlocutores na caserna, enquanto coleta as assinaturas necessárias para protocolar a PEC. Antes um gesto trivial no cotidiano do parlamentar, agora a subscrição de projetos é eletrônica e enfrenta novas complexidades por causa do trabalho remoto e da pandemia.

A PEC, contudo, está pronta. Alteraria o artigo 37 da Constituição, que trata da administração pública: para exercer cargos de natureza civil nos três níveis da federação, o militar da ativa com menos de dez anos de serviço teria que se afastar da atividade. Se ele contasse mais de dez anos de serviço, passaria automaticamente para a inatividade no momento da posse. A deputada tem um ponto: dificilmente um militar que retornasse ao quartel não faria política ou deixaria de ser identificado com o governo para o qual serviu, caso assumisse um posto de comando.

Essa é base do texto a ser protocolado com objetivo de lançar um debate e que já desperta curiosidade nos quartéis. Nas discussões do relatório, explicou ela, devem ser detalhadas algumas exceções. Cargos na estrutura do Ministério da Defesa ou funções de Estado não exigiriam que seus eventuais ocupantes deixassem as Forças Armadas, por exemplo.

O deputado Alencar Santana Braga (PT-SP) propôs uma emenda constitucional com teor semelhante, mas neste caso alterando o artigo 142. É este o capítulo que trata especificamente das Forças Armadas e que lamentavelmente passou a estar no centro das turbulências institucionais.

Os danos à imagem dos militares já são palpáveis. Pesquisas de opinião pública captam queda na aprovação das Forças Armadas, até então acostumadas a baterem sucessivos recordes nos índices de confiança da população desde a redemocratização. As redes sociais também se mostraram um ambiente hostil para os perfis oficiais dessas organizações, que passaram a receber críticas em suas postagens tanto de eleitores do presidente quanto da oposição. Bolsonaristas reclamam da falta de apoio das Forças ao presidente, enquanto outros tantos se queixam justamente de uma suposta adesão do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ao projeto político que venceu a eleição em 2018 e até chegou a entusiasmar segmentos da caserna.

Até parecia que poderia haver uma simbiose, mas desde o início do governo é crescente o desconforto da cúpula militar. Essa insatisfação chega hoje a patamares elevadíssimos, devido à conclusão de que representantes dos dois extremos da polarizada política nacional passaram a usar as Forças como elemento de suas narrativas. Não há expectativa de arrefecimento das tensões.

Nesse ambiente, dizem oficiais da ativa, não se verá posicionamentos públicos dos comandantes em relação à atuação dos Três Poderes ou do Ministério Público. Mas existem dois possíveis caminhos no horizonte e eles não são excludentes entre si.

O primeiro é as Forças manterem um foco absoluto em garantir o sucesso do combate à pandemia de covid-19, missão complexa, desafiadora e inédita para esta geração de oficiais. No Exército, desde a Copa do Mundo realizada no Brasil não se via uma atuação de todos os Comandos em conjunto todos os dias. Com a diferença de que desta vez a jornada tem sido muito mais longa e tortuosa, mas capaz de demonstrar à população a importância de se ter organizações militares preparadas para um emprego rápido e eficaz em períodos de crise.

A outra possibilidade colocada à mesa em conversas reservadas seria o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, e o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, acelerarem a ida para a reserva. Ramos sinalizou à corporação que assinaria a papelada em breve, um gesto que estaria, na visão de colegas, mais condizente com seu papel de articulador político do Palácio do Planalto.

Na caserna, espera-se também que Pazuello deixe o Ministério da Saúde tão logo execute a missão emergencial que lhe foi designada ou então também tome o rumo à reserva, caso decida permanecer na função depois de superado os piores momentos da pandemia. Afinal, observam, Pazuello já é general de divisão e, por pertencer ao Serviço de Intendência, não teria mesmo como obter as quatro estrelas almejadas pelos integrantes das carreiras que podem chegar ao posto de general de Exército.

Se as discussões legislativas não avançarem com celeridade, restará mesmo aos oficiais tentarem convencer seus pares sobre o impacto que uma decisão individual pode ter sobre o todo.

Nesse esforço, podem surgir argumentos contemporâneos, como as pesquisas de opinião sobre a imagem das Forças, mas também os exemplos históricos. Um clássico é o caso do general romano Lucius Quinctius Cincinnatus, que foi convocado para resolver uma crise e, cumprida a missão, teve a oferta de permanecer no poder e na política. Preferiu voltar para casa e administrar sua fazenda.


Andrea Jubé: Começam as baixas na caserna

Prisão de Queiroz amplia desconforto no Exército

Apesar de esforços de vários atores em várias frentes para arejar a cena política, a prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), aumentou a tensão em todos os ambientes, inclusive em uma das bases mais caras de Jair Bolsonaro: as esposas dos oficiais militares.

Uma evidência do derretimento da popularidade do presidente é a progressiva perda de apoio nesse segmento, refletida nos vários grupos de WhatsApp em que as mulheres dos oficiais da ativa e da reserva trocam impressões sobre os fatos políticos. A prisão de Queiroz e as circunstâncias que a envolveram provocaram uma debandada nesse grupo, inclusive de defensoras obstinadas do presidente.

Nem a saída do ex-juiz Sergio Moro do governo nem a postura negacionista de Bolsonaro sobre a pandemia - e a indiferença diante das mais de 50 mil vítimas fatais da covid-19 - haviam espantado essas apoiadoras.

Mas o esconderijo no escritório do advogado Frederick Wassef, que não saía dos dois palácios, Planalto e Alvorada, é visto como um detalhe estarrecedor. Ainda que Wassef tenha deixado a defesa do senador, até ontem suas digitais estavam lá, próximas da família, e suas declarações para tentar blindar o presidente são consideradas artificiais.

Outra convicção do grupo de mensagens das esposas é de que mais do que um auxiliar, Queiroz era um personagem do entorno do presidente, frequentador de churrascos e pescarias da família. Em um dos primeiros episódios em que se viu obrigado a esclarecer esses laços, Bolsonaro teve de responder por que Queiroz depositou um cheque de R$ 24 mil na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Um general que viu algumas das mensagens trocadas entre elas assegura que até “o grupo mais radical sumiu”. Os grupos de mensagens das esposas dos oficiais antecipam tendências, diz este general.

É uma análise sem dúvida empírica. Mas em 2018, antes dos institutos de pesquisas e dos analistas políticos, as trocas de mensagens nesses grupos já indicavam a vitória de Bolsonaro.

Se o presidente amarga as primeiras baixas no estrato feminino da caserna, generais da ativa afirmam que a prisão de Queiroz acentuou o desconforto da cúpula com a persistente vinculação do governo ao Exército.

A imagem mais clara desse vínculo para o grupo do comandante Edson Leal Pujol é a permanência de dois generais da ativa no primeiro escalão: os ministros Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Eduardo Pazuello, da Saúde.

É com esse pano de fundo que a cúpula militar espera que nesta semana, em que o Alto Comando do Exército está reunido para definir promoções e analisar a conjuntura, o ministro Ramos finalmente anuncie a sua transferência para a reserva.

Há 15 dias, Ramos anunciou a aposentadoria, mas não falou em data. Na próxima semana ele completará um ano como general da ativa em um cargo civil, para desassossego de Pujol.

Quanto o general Braga Netto, ainda na ativa, tomou posse como ministro-chefe da Casa Civil, para assumir a gerência do governo, em menos de um mês formalizou sua transferência para a reserva.

Aposentando a farda, entretanto, Ramos perde a oportunidade de ser indicado para a próxima vaga para o Superior Tribunal Militar (STM), que será aberta no segundo semestre de 2022, com a aposentadoria compulsória do ministro Luís Carlos Gomes Mattos.

A cúpula da caserna, entretanto, distingue a situação de Ramos e Pazuello. Ambos ainda têm um ano e meio na ativa para galgar outros postos na carreira. Mas há uma leitura de que como general de Exército, Ramos atingiu o topo da carreira - acima, só o posto de Pujol.

Enquanto Pazuello, oficial de intendência (especializado em tarefas administrativas ou logísticas), teria a prerrogativa de buscar outras colocações porque como ministro interino da Saúde estaria cumprindo missão das mais espinhosas, sem chance de deserção.

Mas se há o desconforto com o vínculo direto do governo Bolsonaro com o Exército, a cúpula militar também não está satisfeita com as recorrentes insinuações de que tentariam um golpe militar, tampouco com o que classificam como excessos de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

Foi por esse motivo que o ministro do STF Gilmar Mendes pediu a audiência com o comandante do Exército na semana passada. A reunião foi salutar, mas a conversa nem de longe foi conclusiva.

Os generais reconhecem os excessos de Bolsonaro, mas da mesma forma enumeram episódios em que a seu ver, os ministros do STF teriam extrapolado.

O episódio mais recente que irritou os generais foi a declaração do ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, de que a nomeação de militares para vários cargos era a “chavização” do governo. “Ele praticamente nos chamou de bandidos”, indignou-se um general da ativa.

Outro gesto considerado desrespeitoso é atribuído ao decano do STF, Celso de Mello. ele incluiu no mandado para ouvir Ramos e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, a advertência de que se não comparecessem na data agendada para a oitiva, estariam sujeitos “como qualquer cidadão à condução coercitiva ou debaixo de vara”. Eles seriam ouvidos sobre a acusação de Moro da suposta interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal.

“Bolsonaro tem excessos, mas o Supremo está fora da casinha, o tribunal está politizado há muito mais tempo”, ressaltou um general.
A cúpula do Exército avalizou a declaração de Ramos à revista “Veja” de que os militares não cogitam nenhum golpe, mas a oposição não pode esticar a corda. O entendimento na cúpula da caserna é de que as instituições devem ser preservadas: o Judiciário, o Legislativo e o Executivo.

Investigações e processos que mirem o presidente e algum de seus familiares devem seguir o curso normal, sem açodamentos nem ardis. A reiteração do que a cúpula classifica como excessos será compreendida como cutucar a onça com vara curta. E a onça está dormindo com um olho aberto.


Valor: Carta de ex-ministros chama governo de ‘anticientífico’

Ex-titulares do Meio Ambiente apelam a governadores e prefeitos, STF e PGR por ações para conter a destruição de biomas e as ameaças a indígenas e quilombolas

Por Carolina Freitas, Valor Econômico

SÃO PAULO - Nove ex-ministros do Meio Ambiente brasileiros lançaram uma carta aberta em que denunciam o governo Jair Bolsonaro como “anticientífico”. Eles apelam a governadores e prefeitos, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e à Procuradoria-Geral da República (PGR) por ações para conter a destruição de biomas e as ameaças a indígenas e quilombolas.

O documento é assinado por Carlos Minc, Edson Duarte, Gustavo Krause, José Carlos Carvalho, Izabella Teixeira, Marina Silva, Rubens Ricupero, Sarney Filho e José Goldemberg.

“Vivemos inédito momento histórico de aviltamento e ameaça à democracia, de parte do próprio poder Executivo por ela constituído”, afirmam os ex-ministros. “A omissão, indiferença e ação anticientífica do governo federal transformaram o desafio da covid-19 na mais grave tragédia epidemiológica da história recente do Brasil, causando danos irreparáveis à vida e saúde de milhões de brasileiros.”

Os ex-ministros cobram do procurador-geral da República, Augusto Aras, a análise de denúncias de crime de responsabilidade supostamente cometidos pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles e evoca ainda a responsabilidade do STF de fazer cumprir os princípios constitucionais de “preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado” e da “independência entre os Poderes”.

Abaixo, a íntegra do documento:

“Carta Aberta do Fórum de Ex Ministros do Meio Ambiente do Brasil em Defesa da Democracia & Sustentabilidade

Vivemos inédito momento histórico de aviltamento e ameaça à democracia consagrada na Constituição de 1988 de parte do próprio poder Executivo por ela constituído.

A omissão, indiferença e ação anticientífica do governo federal transformaram o desafio da covid-19 na mais grave tragédia epidemiológica da história recente do Brasil, causando danos irreparáveis à vida e saúde de milhões de brasileiros. A tragédia seria ainda maior não fosse a ação de Estados e Municípios, apoiados pelos poderes Legislativo e Judiciário.

A sustentabilidade socioambiental está sendo comprometida de forma irreversível por aqueles que têm o dever constitucional de garanti-la. A destruição dos Biomas brasileiros avança em taxas aceleradas que não se registravam há mais de uma década, com aumentos expressivos de desmatamentos na Amazônia, no Cerrado e na Mata Atlântica, enquanto os órgãos ambientais e s normas federais são sistematicamente desmantelados. Povos indígenas, comunidades quilombolas e populações tradicionais veem crescer de modo exponencial as ameaças aos seus territórios e às suas vidas.

A degradante reunião de 22 de abril passado é o retrato fiel desse desgoverno, com horas dedicadas a ofender e desrespeitar de maneira abjeta os demais poderes do Estado, sem uma palavra de comando para o enfrentamento da crise econômica ou superação da crise ‘pandêmica’.

A única menção à pandemia, feita pelo ministro do Meio Ambiente, não se destinou a estabelecer conexões entre a agenda da sustentabilidade e os desafios na saúde e na economia, mas, inacreditavelmente, para se aproveitar do sofrimento geral em favor dos nefandos interesses que defende. Na ocasião, confessou de público o que pode caracterizar crime de responsabilidade, por desvio de função e poder, ao revelar o verdadeiro plano em execução por este governo que é ‘passar a boiada’ sobre a legislação socioambiental aproveitando o ‘momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID’. Causa indignação e espanto que a proposta não merecesse reprimenda em nome do decoro, nem reparo dos presentes, em defesa da moral e da honra.

Responsáveis durante décadas pela política ambiental desde a redemocratização do país, criamos este Fórum para demonstrar que a polarização e radicalização promovidas pelo governo podem e devem ser respondidas com a união e colaboração entre pessoas de partidos e orientações diferentes fiéis aos valores e princípios da Constituição.

Como ex-ministros do Meio ambiente nossa responsabilidade específica se consubstancia na valorização e preservação do meio ambiente e no desenvolvimento sustentável. Aprendemos, porém, pela dura experiência com o atual governo, que quando a democracia, a liberdade e a Constituição são ameaçadas e/ou violentadas os primeiros valores sacrificados são os relativos ao meio ambiente e aos direitos humanos.

Sem Democracia forte, não haverá sustentabilidade.

Sem sustentabilidade, não haverá futuro para nenhum povo.

Diante do exposto, solicitamos:

  • aos Ministros do Supremo Tribunal Federal que velem pelo cumprimento efetivo dos princípios constitucionais de preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo ‘essencial’ à sadia qualidade de vida assim como pela independência entre os Poderes;
  • aos membros do Congresso Nacional para que, sob a coordenação dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, assegurem o controle dos excessos e omissões do Poder Executivo Federal, não permitindo a tramitação e aprovação de Projetos de Lei e Medidas Provisórias que fragilizem ou promovam retrocessos na legislação socioambiental;
  • aos Governadores e Prefeitos que, diante da situação criada pela ausência de liderança e ação prejudicial do Presidente da República, sigam firmes no enfrentamento responsável da pandemia usando de todos os recursos disponíveis, garantindo transparência máxima na divulgação dos dados e promovam políticas públicas de conservação ambiental e desenvolvimento sustentável, bloqueando a escalada de destruição de nossos Biomas;

E - ao Procurador-Geral da República, que adote as medidas jurídicas cabíveis de forma firme e tempestiva para barrar iniciativas de estímulo à degradação do meio ambiente, promovidas pelo governo federal, assim como cumpra o compromisso constitucional de examinar com imparcialidade e presteza as denúncias de crimes de responsabilidade potencialmente cometidos pelo ministro do Meio Ambiente de acordo com representações protocoladas a esta PGR durante a Semana do Meio Ambiente.

Fazemos um apelo em favor de uma urgente união nacional em defesa da Constituição e da edificação de um Brasil à altura das aspirações do povo brasileiro por uma Nação plenamente Democrática, Plural e Sustentável.

Brasília 10 de junho de 2020.

Respeitosamente,
Carlos Minc, Edson Duarte, Gustavo Krause, José Carlos Carvalho, Izabella Teixeira, Marina Silva, Rubens Ricupero, Sarney Filho, José Goldemberg”


Cristiano Romero: A história dos naufrágios mostra que a âncora é fiscal

Saída de Mansueto expõe fragilidade de Paulo Guedes

Quem conhece o economista Mansueto Almeida sabe que ele impôs apenas uma condição para continuar à frente da Secretaria do Tesouro Nacional, a que cuida do dinheiro da Viúva: ter o apoio absoluto do chefe, o ministro da Economia, Paulo Guedes. Mansueto não chegou ao ministério com Guedes, nem mesmo com os dois chefes anteriores - Henrique Meirelles (ministro da Fazenda de maio de 2016 a abril de 2018) e Eduardo Guardia (de abril a dezembro de 2018). Sua primeira passagem pela Fazenda se deu na segunda metade da década de 1990, quando, muito jovem, trabalhou na Secretaria de Política Econômica, na ocasião chefiada por José Roberto Mendonça de Barros.

Foi um privilégio para o promissor técnico do Ipea estar, na hora certa, no centro de comando da economia brasileira. Aquela era a primeira equipe econômica pós-lançamento, em julho de 1994, do real. O ministro era Pedro Malan, e o presidente do Banco Central, Pérsio Arida. Apesar do sucesso inicial do plano, quando a inflação caiu de 47,43% em junho daquele ano para 6,84% em julho e 1,71% em dezembro, a turma levou um susto logo após a vitória, em primeiro turno, do candidato Fernando Henrique Cardoso (PSDB), pai do Real, na corrida presidencial.

Em novembro, o México, sempre o primeiro a mostrar as falhas do receituário usado pelos países latino-americanos a jusante, enfrentou crise cambial e quebrou. Naquele momento, a maioria dos países em desenvolvimento adotou âncoras cambiais (regimes de câmbio fixo) para estabilizar os preços. Como a inflação americana, em dólar, já era muito baixa, as economias atrelavam a taxa de câmbio à moeda dos Estados Unidos. Na Europa, a referência era o marco alemão, que, depois, veio a se tornar o euro.

O câmbio fixo, de fato, nocauteia a inflação. Mas, com o tempo, se nada é feito para aumentar a produtividade e se as contas públicas não se equilibram, o regime se torna frágil como as teses dos terraplanistas. O incremento da produtividade ajuda a produzir mais com menos, o que, por sua vez, contém os custos (a inflação).

Para que a produtividade cresça, é necessário educar a população e treinar bem a mão de obra; ter um sistema tributário simplificado, menos oneroso para as empresas e que não avance tanto sobre a atividade econômica, pelo menos não enquanto o país ainda estiver se desenvolvendo; produzir tecnologia de ponta e facilitar a entrada em nosso mercado de bens de capital modernos, entre outros esforços.

Países como Brasil, México e Argentina têm, por várias razões, produtividade bem inferior à dos EUA e da Alemanha, por exemplo, em quase todos os setores - no agronegócio e em alguns segmentos da siderurgia, a produtividade brasileira supera a americana, mas são exceções à regra. Logo, manter a taxa de câmbio em linha com a flutuação do dólar não é algo sustentável por muito tempo.

No fundo, a âncora das âncoras é de natureza fiscal porque, se o governo gasta muito mais do que arrecada, diminui a poupança disponível para financiar o investimento privado e em algum momento eleva a carga tributária para pagar as contas. Essa pressão sobre a sociedade acaba por gerar baixo crescimento do PIB e inflação.

Para conter a alta dos preços, os bancos centrais aumentam os juros e, num regime de câmbio fixo, isso atrai fluxos de dólares, movimento que, por seu turno, aprecia a taxa de câmbio, isto é, valoriza a moeda nacional em relação ao dólar. Ora, isso diminui a competitividade da economia, uma vez que fica mais caro exportar e, assim, alcançar novos mercados. Por outro lado, o dólar mais fraco estimula as importações, que têm dois efeitos: ao baratear o produto importado, faz as empresas nacionais comprarem máquinas e equipamentos mais modernos, o que na prática lhes dá um ganho de capital; por outro lado, a exposição do mercado doméstico a produtos estrangeiros bem mais baratos, sem que as empresas tenham as mesmas condições de competir, desnacionaliza setores inteiros, tornando o país muito dependente de fornecedores internacionais.

Mantido esse esquema por muito tempo em economias que não conseguem realizar reformas que façam crescer a produtividade, o país começa a acumular déficits crescentes nas contas externas, o que leva o investidor estrangeiro a duvidar da capacidade daquela nação de honrar suas dívidas com o exterior. Nesse momento, os mais acautelados começam a bater em retirada, forçando o governo local a jogar os juros na lua com o objetivo de convencer os investidores a manterem seus dólares aqui.

Como a situação vai se tornando insustentável em vários flancos, embora todos relacionados ao problema da Viúva, isto é, ao déficit público, "hedge funds" (fundos que buscam retornos altíssimos para o capital investido) veem nessa enorme fragilidade a oportunidade de fazer bons lucros. Estes resultam de ataques especulativos às moedas, que, se bem-sucedidos, provocam crises cambiais num curto espaço de tempo.

Quando estudamos as crises passadas, tendemos a achar que elas são de natureza cambial porque este é o sinal visível da turbulência. Com as maxidesvalorizações da moeda, todos ficamos mais pobres da noite para o dia - não só mais pobre em relação a outros países, mas, sim, aqui mesmo, em Cabrália. A gênese de toda crise, porém, está no Tesouro, cujo chefe em Brasília, Mansueto Almeida, avisara no domingo que está de malas prontas. Um mau sinal porque, se ele só deixaria o cargo em caso de falta de apoio do chefe, não se tenha dúvida: esta é a razão da partida de Mansueto, um dos maiores especialistas do país em finanças públicas.

O México assombrou a equipe do Real porque nosso plano caminhava para ancorar-se no dólar por meio de um regime de câmbio fixo. O curioso é que, nos primeiros seis meses do plano, o câmbio flutuou. Como o Banco Central dispunha de um volume razoável de reservas cambiais para conter ataques especulativos e havia excesso de liquidez nos mercados globais, a flutuação se deu para baixo, criando a falsa sensação de que a nossa moeda era mais forte que o dólar. Mas, em março de 1995, no início do primeiro mandato, adotou-se o câmbio fixo.

O México caiu em 1994 e, em 1997, feito dominó, sucumbiram várias economias asiáticas, os antigos "tigres". Depois, vieram Rússia, Brasil e Argentina. A história continua…


Fernando Exman: Soa o temido alarme - O inverno está chegando

Ministério da Saúde preocupa-se com avanço do vírus no Centro-Sul

Às 18h44 do sábado, pontualmente, começa uma nova etapa da missão do ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello. É o horário oficial do início do inverno de 2020, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). O momento a partir do qual as atenções da pasta no combate ao novo coronavírus precisarão se voltar cada vez mais para o Centro-Sul do Brasil.

O inverno é um período aguardado com preocupação pelos antecessores do general e que se principia num momento em que as relações do presidente Jair Bolsonaro com os governadores - dos Estados destas e de outras regiões - se deterioram a cada dia.

No governo, acredita-se que o Supremo Tribunal Federal (STF) exagerou na liberdade dada aos entes subnacionais para a condução das políticas de isolamento social. À natural briga por recursos e autonomia nos gastos emergenciais, somou-se uma discussão de natureza político-eleitoral entre o chefe do Executivo e governadores.

Cenário hostil para Pazuello, um militar da ativa, e também para o próximo secretário do Tesouro Nacional, Bruno Funchal, um técnico especialista no trato com os Estados e os municípios. Ambos ganharão importância na tentativa de construção de uma interlocução mais saudável na federação, sobretudo se as preocupações com os efeitos do inverno em relação ao avanço da pandemia se comprovarem corretas.

Pouco se sabe sobre qual será o comportamento da moléstia no inverno do hemisfério Sul. Historicamente, observa-se o aumento de casos de gripe e doenças respiratórias durante os meses mais frios do ano. As pessoas tossem mais, espirram e se aglomeram em ambientes fechados. Locais propícios ao contágio, os quais, aos poucos, começam a ser frequentados novamente pelos mais incautos.

O Brasil titubeou na hora de iniciar o isolamento social. Agora que no hemisfério Norte diversos países já estão podendo retomar as atividades e apresentam temperaturas mais altas, acredita-se que o mesmo movimento pode ser executado por aqui. Essa decisão pode agradar a empresários e ao governo federal, embora pareça ser precipitada e capaz de produzir consequências desastrosas.

Pelo que se viu até agora, o combate ao coronavírus se tornou um assunto sobre o qual quem diz ter certezas absolutas parece estar mal informado ou deliberadamente agindo com má fé. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) vem sendo inconstante, para regozijo dos antiglobalistas.

Representantes da OMS já alertaram que uma nova onda de contágio poderia ocorrer na Europa durante o inverno, depois afirmaram que ainda não há qualquer evidência científica sobre o impacto da covid-19 em diferentes estações, a despeito de o vírus da Influenza sempre apresentar um salto de infecções durante esta estação. O comportamento da doença no inverno do hemisfério Sul ainda é, portanto, desconhecido.

Por isso é positiva a crescente preocupação do Ministério da Saúde com o que ocorrerá nos Estados do Sul e do Sudeste de sábado até o início da primavera, na última quinzena de setembro.

Na visão da atual gestão do Ministério da Saúde, os dados de infecções e mortes refletem as especificidades do Brasil: as regiões Norte e Nordeste seriam historicamente impactadas pelas crises respiratórias relacionadas ao hemisfério Norte, enquanto os maiores efeitos das gripes nas regiões Sul e Sudeste ocorrem durante os meses de junho, julho e agosto. Ou seja, no inverno.

Os balanços da pandemia refletiriam, então, essa dinâmica. De fato, hoje a incidência da covid-19 é relativa e assustadoramente maior nas regiões Norte e Nordeste, onde a taxa de contaminação é de respectivamente 1.001,3 e 570,9 por 100 mil habitantes. A média do Brasil é 439,3. Já o índice de mortalidade também é superior nessas duas regiões, principalmente no Ceará, Pernambuco, Alagoas, Maranhão, Amazonas, Pará e Amapá.

As exceções a essa regra são os dois maiores centros urbanos do país - as capitais e regiões metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Isso levou a taxa de mortalidade da região Sudeste a superar a média nacional, de 21,5 óbitos por 100 mil habitantes, com um índice de 23,5. Para se ter uma ideia, nas regiões Sul e Centro-Oeste, as taxas de mortalidade chegam a 3,2 e 5,3, respectivamente, ante 44,2 por 100 mil habitantes no Norte e 25,5 no Nordeste.

Os dados justificam o receio no Ministério da Saúde com a deterioração da situação no Centro-Sul, diante de um fator desconhecido como a chegada do inverno.

No nível técnico, as conversas de representantes do governo federal com os Estados até que vão muito bem, obrigado. Há contatos diários da pasta da Saúde com governadores, secretários estaduais e municipais, e gestores hospitalares, num monitoramento cotidiano sobre o comportamento da pandemia e as necessidades na ponta.

O problema é quando as discussões vão ao nível político. A ala ideológica do governo chegou a insinuar que as estatísticas estaduais estavam sendo manipuladas para prejudicar a imagem do governo federal. Os governadores de São Paulo e do Rio são vistos como inimigos. E o governador do Espírito Santo está na lista de oposicionistas.

Também no Sul a relação do Palácio do Planalto com os governadores não é das melhores, excluindo o caso do Paraná. O Rio Grande do Sul é governado por um tucano. Santa Catarina elegeu um candidato do PSL que se tornou alvo de bolsonaristas em pouquíssimo tempo de mandato, por querer implementar uma regra segundo a qual o ICMS poderia variar dependendo do volume de agrotóxicos usados por agricultores. Aliados próximos de Bolsonaro no meio empresarial também pressionam o governador catarinense pela reabertura das atividades.

Como diz um governador, havia três caminhos a seguir desde o início da crise: a negação, a omissão e a ação. Ele e seus colegas acreditam que o presidente já passou da fase de negação e da omissão, estando agora dedicado ao terceiro tipo citado. O problema, apontam, é que seria a uma ação voltada a colocar a população contra os gestores não alinhados. Os ventos frios do inverno podem ser propícios à disseminação da covid-19 e também do vírus do ódio na política.


Andrea Jubé: Os “constituicidas” de Jair Bolsonaro

Incentivadores de ataque ao Judiciário trabalharam no governo Bolsonaro

São quatro minutos e quinze segundos de impropérios, enquanto uma saraivada de fogos de artifício simula um bombardeio ao Supremo Tribunal Federal (STF). O narrador que faz parte do grupo bolsonarista “Os 300 do Brasil” desafia as autoridades e instituições: “Brasília, 13 de junho, 21 e 30 horas. Na frente dos bandidos do STF… Isso aí [os disparos de fogos] é pra mostrar pra eles e pro GDF bandido que não vamos arregar”.

O apoiador do presidente Jair Bolsonaro provoca: “notaram que o ângulo dos fogos está diferente da última vez?” Os fogos estão apontados para a sede do tribunal. “Tá entendendo o recado?” Em seguida, desfia uma sequência de insultos do mais baixo calão ao presidente do STF, Dias Toffoli, e aos ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia: “seu cabeça-de-ovo, seu Toffoli medíocre, sua vampira Cármen Lúcia, Lewandowski, seu bosta, Gilmar Mendes, seu bosta”.

É singular, senão espantoso, que pelo menos dois integrantes do “Os 300 do Brasil” tenham tido vínculo oficial com o governo. A líder Sara Fernanda Giromini, conhecida como Sara Winter, presa ontem pela Polícia Federal, é ex-servidora comissionada do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Renan Sena, detido e liberado no domingo pela Polícia Civil do Distrito Federal, e suspeito de ser o narrador desse vídeo, é ex-funcionário terceirizado da mesma pasta. Sara é investigada nos inquéritos das Fake News e sobre o financiamento dos atos antidemocráticos.

A violência e ousadia dos ataques não têm precedentes nos 129 anos de história do STF. Em 1964, o presidente da Corte, Álvaro Ribeiro da Costa, alertou que se ministros fossem cassados, fecharia o tribunal e entregaria as chaves ao porteiro do Palácio do Planalto. Então o presidente Castello Branco editou o Ato Institucional n. 2 que ampliou de 11 para 16 os integrantes, recompondo as forças do tribunal. As cassações viriam quatro anos depois, com o AI-5 - com cuja reedição acenou o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) - que depôs Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima.

O ex-presidente do STF Carlos Ayres Britto afirma que um atentado com tal nível de insolência contra o STF é o primeiro no regime democrático, enquanto as cassações se deram num estado de exceção. “Um ataque desse atrevimento é inédito”, disse o ex-ministro à coluna. Ele classifica a ofensa como uma “predação institucional constituicida, tal a gravidade do atentado à Lei Maior do Brasil”.

O jurista vê a Corte e o Parlamento nos últimos meses “sob contínuo e concreto atentado, em rota de colisão frontal com a Constituição, no mais intolerante propósito de instauração de um quadro de desordem civil”. Mas pondera que pelo menos esse quadro de desordem “está circunscrito a um grupelho sem a menor consistência representativa de povo em sentido jurídico-político, um reduzido aglomerado de pessoas em estado de desespero ante a solidez das instituições democráticas”.

Enquanto o STF, acrescenta, é uma dessas “vitoriosas instituições democráticas - não pelo voto popular, mas pela sua função de zelar imperativamente pela democracia, e para isso dispõe do poder, não de governar, mas de impedir o desgoverno”.

Ocorre, entretanto, que em meio às ações do Supremo para impedir a expansão do desgoverno, o atentado do último sábado interrompeu os esforços dos últimos dias para apaziguar as cúpulas do Executivo e do Judiciário e distensionar a conjuntura.

A temperatura política vem aumentando progressivamente desde o fim de abril, quando o ministro Alexandre de Moraes impediu a nomeação de Alexandre Ramagem para a direção-geral da Polícia Federal. Bolsonaro protestou: “Chega de interferência, queremos independência verdadeira dos três Poderes”.

Depois, um despacho de Celso de Mello consultando a Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre busca e apreensão do celular de Bolsonaro jogou gasolina na fogueira, ensejando a nota do ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), sobre as “consequências imprevisíveis” para a nação.

Em novo foco de incêndio, Moraes autorizou no fim de maio a operação da PF que mirou aliados de Bolsonaro no âmbito do inquérito das Fake News, que teria como um dos alvos o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). Bolsonaro esbravejou: “Acabou, porra! As coisas têm limite”.

Quatro dias depois, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, visitou Moraes em sua residência em São Paulo. Um dia depois, num aceno de conciliação, Bolsonaro, Azevedo e mais dois ministros prestigiaram, ainda que virtualmente, a posse de Moraes no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Moraes é um dos três votos do STF na Corte Eleitoral, que analisa oito pedidos de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão.

Embora tumultuada, a tentativa de diálogo entre os Poderes estava em curso, mas os ataques ao STF e, em reação, a prisão de Sara Winter, jogaram por terra as chances de continuidade do esforço de entendimento entre os litigantes.

Ontem foi Bolsonaro quem esticou a corda - para usar a expressão do ministro Luiz Eduardo Ramos. Em entrevista à BandNews TV, o presidente disse que está sendo “complacente demais” com decisões judiciais, e avisou que militares como ele “jamais aceitaríamos intervenção [do Judiciário] para derrubar um presidente eleito”. Esse tom incendiário foi um aceno às suas bases, que estão inflamadas com a prisão da líder ativista e de outros seguidores, e também um recado velado ao TSE, em meio ao desdobramento dos processos de cassação de seu mandato.

Em paralelo ao contra-ataque do presidente, Carlos Bolsonaro também atirou e o alvo foi o vice-presidente do STF, Luiz Fux, que esclareceu em liminar que o artigo 142 da Constituição não confere às Forças Armadas um “poder moderador”. Menos de 24 horas depois dos fogos contra o STF, Carlos publicou um vídeo em que o ex-ministro José Dirceu chama Fux de “charlatão” por supostamente tê-lo assediado até obter a nomeação para a Corte. “E aí, STF, de boas?”, provocou Carlos.


Pedro Cafardo: Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa

Classe dominante sabia o que esperar de Jair Bolsonaro quando o elegeu

O título acima, em latim, não precisa de tradução. Vem de uma reza tradicional da Igreja Católica, o “Confiteor” (Eu confesso), na qual o fiel reconhece seus erros perante o Criador.

A prática do mea culpa é rara no Brasil. O PT foi e ainda é muito cobrado para fazer autocrítica e reconhecer erros cometidos durante os anos em que esteve no poder, nos governos Lula e Dilma. Nunca os reconheceu, nunca pediu desculpas.

Há hoje, no Brasil, uma extensa lista de entidades e pessoas que precisam fazer o mea culpa pela escolha de 2018, quando a disputa democrática oferecia pelo menos seis ou sete candidatos melhores que o eleito.

Políticos influentes se omitiram na campanha eleitoral e deram um “dane-se” ao país. Oportunistas, muitos deles se elegeram governadores e deputados na sombra do candidato presidencial e agora viraram casaca como se nunca o tivessem apoiado, sem uma palavra de arrependimento e desculpas. Empresários só pensaram no próprio quintal e passaram a aceitar “qualquer um” desde que não fosse do PT. Igrejas se animaram com o tom conservador e as ideias retrógradas. Juízes e procuradores influenciaram o voto sem demonstrar constrangimento. Jornalistas olharam para a economia e acharam que Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, com sua política liberal, poderia consertar o país. Mesmo que o presidente continuasse andando por aí propagando teorias bizarras, feito criança inconsequente.

Jornalistas, portanto, não podem fugir de suas responsabilidades. Muitos dos que hoje ferozmente expõem as atrocidades presidenciais deveriam reler com distanciamento crítico o que escreveram no passado recente. Julgaram que, uma vez eleito, o presidente não iria se aventurar no autoritarismo. Que as instituições impediriam aventuras desse tipo e consideraram histéricas pessoas que se mostravam temerosas. É possível mesmo que a sociedade organizada consiga evitar o avanço autoritário para uma ditadura, mas o custo será elevado. Já está sendo.

Na hora de assumir responsabilidade por erros, é instrutivo observar o mapa das votações no segundo turno das eleições de 2018. Está lá, em verde e vermelho, uma impressionante divisão do país em dois: o rico e o pobre. Quanto mais rico, mais verde, e, quanto mais pobre, mais vermelho. Em São Paulo, o Estado mais rico, Bolsonaro venceu em 631 dos 645 municípios. No Nordeste, a região mais pobre, ele perdeu em 98% dos municípios. A faixa verde se estende desde Rondônia, Mato Grosso e Goiás, áreas do próspero agronegócio, até o sul de Minas, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, as regiões mais industrializadas do país. A vermelha domina o Norte e o Nordeste.

Está claro que a escolha do presidente foi responsabilidade das elites brasileiras, do agronegócio à indústria, passando evidentemente pelo setor financeiro. Não há clichê esquerdista algum nessa afirmação que usa a palavra “elites”. Foram, sim, os mais ricos e teoricamente bem informados que elegeram ou trabalharam com mãos e mentes pela eleição do atual presidente. Precisam agora fazer mea culpa.

Ao escolher Bolsonaro, a classe dominante sabia que ele se juntaria ao conservadorismo de Trump, que adotaria comportamento hostil em relação à China, maior parceiro comercial do Brasil, que daria uma banana para as causas ambientais, que desprezaria os povos indígenas, que poria ideologia conservadora nas escolas, que incentivaria a homofobia e o uso de armas pela população, que tiraria recursos da cultura, que a contragosto apoiaria o arrocho fiscal recessivo, que flertaria com o autoritarismo antidemocrático.

O atual presidente tem muitos e graves defeitos, mas também uma qualidade: nunca mentiu sobre suas intenções autoritárias. As elites só não sabiam, mas poderiam desconfiar, que ele adotaria uma política tão desastrosa na área da saúde. Nem que o país enfrentaria a infeliz coincidência de ser liderado por alguém que despreza a ciência e promove a morte em meio a uma pandemia nunca vista em cinco gerações.

Por que o Brasil elegeu um cidadão que agora obriga brasileiros a lutar feito leões para manter a democracia? Por que o eleitorado foi tão incompetente a ponto de minar seu próprio terreno com bombas que agora exigem tempo e energia para a sua desativação?

Assustados, heróis da campanha das “Diretas já” dos anos 1980 emergem da aposentadoria para alertar os mais jovens sobre o perigo iminente. A batalha ideal de hoje seria pela saúde, pelo crescimento econômico, pela distribuição de renda, pela educação universal e por outras causas sociais que possam melhorar a vida dos brasileiros. Mas não, 35 anos depois de ter derrubado a ditadura, cá está novamente a nação lutando para salvar sua democracia.

Males da deflação
Mudando de assunto, se o grande e generoso jornalista Alberto Tamer (1932-2013) estivesse vivo, certamente escreveria sobre deflação. O Brasil experimentou, nos dois últimos meses, duas deflações, de 0,31% em abril e de 0,38% em maio. Tamer morou em Paris por uma década na passagem do século e tinha sempre especial atenção para os males da deflação francesa, principalmente por seu efeito recessivo. Não é preciso ser economista para observar, costumava dizer, que quando um país vive em deflação o consumo desaba, pela simples razão de que as pessoas, na expectativa de que os preços vão baixar no futuro, adiam suas compras de produtos não essenciais.

No Brasil, onde a maior ameaça foi sempre o dragão da inflação, ninguém parece preocupado com deflação, até porque é considerada passageira, decorrência da pandemia. Mas se Tamer aqui estivesse certamente soltaria os cachorros para alertar o país sobre os males dessa “inflação negativa”. Em um momento como este, ela é uma overdose recessiva.

*Pedro Cafardo é editor-executivo do Valor


Maria Cristina Fernandes: Democracia remota blinda Congresso

Sob deliberação remota há quatro meses, parlamentares terceirizaram ao STF o enfrentamento com o Executivo e agora se preparam para enfrentar pressão redobrada pelo impeachment

A aprovação do projeto que transfere terras da União para os Estados de Roraima e Amapá, antigos territórios federais, arrancou vivas tanto do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), integrante da turma que morde o bolsonarismo, quanto do seu principal artífice, o presidente da Casa, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), capitão da banda que assopra.

O dueto de antagonistas conterrâneos foi interrompido pelo senador Jean Paul Prates (PT-RN). Votara a favor da iniciativa, mas denunciava a manobra que havia levado todos a retirar projetos prioritários de pauta em função do acordo para apenas colocar em votação remota o que estivesse relacionado à doença: “Ou a gente muda a regra ou cumpre a regra. Isso não tem absolutamente nada a ver com a covid”.

Não era a única queixa do senador. Prates reclamou ainda que os colegas que pediam para falar “pela ordem” deviam ser colocados para o fim da fila de quem se inscreveu para falar os três minutos regulamentados pela norma da votação remota.

O procedimento, comum nos apartes parlamentares, virou uma guerra no plenário virtual. O presidente do Senado, cuja contemporização com o bolsonarismo rendeu, além da transferência de terras, benesses como um hospital de campanha federal no Amapá, prometeu resolver o rolo dos apartes, mas não disse palavra sobre os jabutis da pauta.

Quatro meses depois, os procedimentos adotados pelas mesas da Câmara e do Senado para manter os trabalhos em funcionamento durante a pandemia se transformaram num poço de controvérsias. Se todos concordam que as sessões remotas foram a saída possível para manter as deliberações do Congresso, sobram divergências em relação ao poder redobrado dos presidentes, do colégio de líderes e até dos burocratas das mesas diretoras.

Os presidentes das Casas e os colégios de líderes definem a pauta, abrem a sessão e depois de manifestações parlamentares de três minutos, os projetos são votados. Se houver acordo com os líderes, o projeto entra em regime de urgência, o que não permite qualquer obstrução. Nos chats, foi aos funcionários que os parlamentares passaram a dirigir pedidos desesperados de que querem se fazer ouvir.

Apesar de ter como objetivo o bloqueio dos mais de 40 pedidos de impeachment que lá se acumulam, as negociações do governo com os parlamentares do Centrão também tiveram como pano de fundo o poder redobrado dos líderes partidários na nova dinâmica.

Paralelamente, a oposição, além de perder poder de manobra, também não tem como se articular para reagir ao governo.

Os grupinhos que tradicionalmente se formam para articular, dentro e fora do plenário, as votações e encaminhamentos, estão inviabilizados. Se os parlamentares decidirem fazer uma chamada coletiva para discutir um projeto, paralelamente à sessão, correm o risco de perder a votação.

A discussão dos projetos também perdeu qualidade técnica porque nem sempre é fácil para o parlamentar manter conversas paralelas com os consultores legislativos durante a sessão. No plenário físico é mais fácil saber a quem se deve ou não prestar atenção. No virtual, o parlamentar que se descuidar pode acabar perdendo o encaminhamento de um projeto.

“As discussões muitas vezes se dão depois da votação”, queixa-se a senadora e presidente da CCJ do Senado, Simone Tebet (MDB-MS).

Foi o que aconteceu na votação do projeto de ajuda aos Estados, quando o senador José Serra (PSDB-SP) acabou só tendo oportunidade de falar três horas depois que a votação já havia se encerrado. “Não dá para achar que, ao colocar sua posição em rede social o parlamentar esgota a discussão. A defesa de posições, a contestação e o debate se dá em plenário”, diz a presidente da CCJ.

É difícil encontrar, no Congresso Nacional, quem negue a mitigação da democracia remota. Foi essa a razão de o mecanismo ter enfrentado resistências no mundo inteiro. No Reino Unido foi aprovado em abril, mas se limitou a regulamentar sessões para discussão de temas relativos à pandemia, não votações. Sem reuniões deliberativas desde então, o Parlamento britânico tenta retomar as sessões 100% presenciais, mas enfrenta a resistência dos integrantes mais velhos em comparecer.

Nos Estados Unidos, onde a Câmara também adotou sessões remotas, as deliberações foram permitidas contra o voto de 189 deputados (e 217 a favor). As regras, no entanto, exigem que o voto seja dado em plenário por um representante do parlamentar devidamente autorizado a fazê-lo. A resistência dos republicanos ao sistema se deve à percepção de que se trata de um instrumento de força nas mãos da presidente da Casa, a deputada democrata Nancy Pelosi, que estaria a suprimir o debate e os espaços de contestação.

Desde o início do funcionamento do Sistema de Deliberação Remota no Brasil, os entraves à negociação confirmam, em grande parte, os temores mundo afora em relação ao sistema. Na votação do projeto de lei de ajuda aos Estados e municípios, um parlamentar quis tirar o destaque a uma emenda, já contemplado por um colega, e foi impedido pelo presidente da Casa. “Ligue para ele, deputado”, disse Rodrigo Maia, sugerindo que o colega colocasse a sessão no “mute” para negociar com o colega por telefone.

Maia não abriu mão da presença na Câmara. Enquanto comanda os trabalhos, o presidente da Casa, conhecido por não largar o celular, também troca mensagens com os deputados, registradas nas notas taquigráficas, mandando-os tirar o microfone da função mudo ou se valer do ícone com um aceno para pedir uma questão de ordem.

No Senado, o chat das sessões virtuais é conduzido pela secretária-geral-adjunta da mesa diretora, identificada nas notas taquigráficas apenas como SGM Adjunta, que passa quase todo o tempo domando os incautos. “Senadora Soraya [Thronicke], para se inscrever basta ‘levantar a mão no sistema’”, recomendou a funcionária numa sessão do dia 16 de abril. Oito minutos depois, a senadora bolsonarista do Mato Grosso do Sul, que continua no PSL, ainda não havia descoberto onde ficava a mãozinha virtual.

Câmara e Senado também adotaram meios distintos para regulamentar o trabalho remoto. O presidente da Câmara aprovou, em plenário, uma resolução com as normas. O do Senado se limitou a baixar um ato da mesa diretora. No Congresso, valeu o modelo do Senado e passou a ser regulado por um ato da mesa. Ambas as Casas desenvolveram um aplicativo que o parlamentar pode baixar ou acessar o Zoom para ter acesso. Depois que foram identificadas falhas de segurança, as duas Casas passaram a adotar uma senha enviada apenas meia hora antes de seu início. Maia conduz as sessões da própria mesa da Câmara, enquanto Alcolumbre o faz de uma sala no Prodasen, a Secretaria de Tecnologia da Informação do Senado. Para validar o voto, o parlamentar deve se colocar frente à câmera do computador.

O Sistema de Deliberação Remota tem se restringido ao plenário. “É nas comissões onde, de fato, se dá o processo legislativo. Como são poucas as sessões, as matérias chegam cruas ao plenário”, diz o consultor legislativo do Senado, Luiz Alberto dos Santos. “Foi a saída possível para o Congresso, mas acaba atrofiando seu papel. É nas comissões, por exemplo, onde são realizadas as audiências públicas, onde se dá a interlocução com a sociedade”, confirma o deputado Silvio Costa Filho (PE), primeiro vice-líder do Republicanos.

Há um acordo tácito para que as deliberações remotas não sejam alvo de judicialização. Nem todos os pressupostos desse acordo, no entanto, são cumpridos. A ausência de sessões deliberativas nas comissões ampliou as brechas para a inclusão de temas não relacionados à proposição original das medidas provisórias, os chamados “contrabandos”. O Supremo havia imposto um limite para isso determinando que as MPs só seriam levadas ao plenário depois de apreciação pela comissão mista. Com a pandemia, a restrição caiu por terra.

No Senado, durante a votação sobre as novas atribuições do Banco Central na operação de títulos no mercado, a mesa diretora acabou chancelando o acolhimento de uma emenda de mérito sob a roupagem de “emenda de redação”. O quiproquó acabou no Supremo.

Outro acordo rompido foi o de que, durante o trabalho remoto, nenhuma emenda constitucional seria votada. Abriu-se exceção para a votação do “Orçamento de Guerra”, que deu plenos poderes para o Executivo nos gastos relativos à pandemia.

Nem o ato da mesa do Senado nem o projeto aprovado pela Câmara estabeleceram prazo para o funcionamento remoto, mas tanto Maia quanto Alcolumbre já se comprometeram com o retorno do trabalho presencial em julho.

A extensão do trabalho remoto tem preservado os presidentes das duas Casas tanto das pressões pelo andamento das representações contra os filhos do presidente, o deputado Eduardo (sem partido-SP) e o senador Flávio (sem partido-RJ), no Conselho de Ética, quanto do acolhimento de um dos mais de 40 pedidos de impeachment já protocolados.

É mais confortável para os comandantes do Congresso terceirizar o embate com o Executivo para o Judiciário, até porque o presidente da República tem sido agressivo na atração de parlamentares para sua base de apoio. A pressão para que o Congresso entre na briga, no entanto, só cresce. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) se valeu do Twitter para deixar pública sua pressão: “É imperioso retomar as sessões presenciais. Com distanciamento, votação em gabinetes, poucos assessores, mas com a tribuna aberta. Precisamos engrossar o respaldo ao Judiciário”. Preservado da covid-19 pelas sessões remotas, o Congresso está com os dias contados para ser contaminado pela disputa em torno da abreviação do bolsonarismo.


Andrea Jubé: ”O PSDB não foi solidário”

Prefeito cobra guinada do PSDB para a oposição

Segundo Nelson Rodrigues, em frase que atribuiu a Otto Lara Resende, “o mineiro só é solidário no câncer”. Parafraseando a dupla, em algumas situações, o político não será solidário nem no câncer.

Era maio de 2001, e o presidente Fernando Henrique Cardoso tentava barrar a criação de uma comissão parlamentar de inquérito para investigar casos de corrupção em seu governo. Para isso, incumbiu o então líder do governo no Congresso, deputado Arthur Virgílio (PSDB-AM), de articular o cancelamento da sessão em que seria lido o requerimento de criação da CPI mista.

FHC precisava ganhar tempo para retirar as assinaturas de apoio à investigação. Segundo o Datafolha, 84% da população apoiava a instalação da CPI para apurar as denúncias do senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA). Mas o adiamento da sessão também implicou o cancelamento da homenagem ao governador de São Paulo, Mário Covas (1930-2001), ícone tucano, falecido havia dois meses por causa de um câncer - mal que aflige seu neto, o prefeito Bruno Covas (PSDB).

Virgílio ponderou que a homenagem deveria ser mantida, porque a CPI não iria prosperar, e a viúva de Covas, Dona Lila (1933-2020) havia se deslocado a Brasília exclusivamente para a sessão no Senado.

“A CPI não tinha fato determinado”, relembra Virgílio. “O requerimento tinha uns 22 itens, cada um ia lá e acrescentava um novo: o ACM colocou um item para investigar o [presidente do Senado] Jader Barbalho, o Jader colocou outro para investigar o ACM, eu coloquei um para investigar desvios do PT no FAT [Fundo de amparo ao Trabalhador], qualquer tribunal ia suspender uma maluquice daquelas, mas preferiram suspender a homenagem ao Covas”, lamentou o tucano à coluna, 19 anos depois.

Cancelada a sessão, uma comitiva de sete tucanos se espremeu em um carro oficial com espaço para cinco para se dirigir ao hotel e comunicar a viúva que a homenagem fora cancelada. Segundo Virgílio, ele acabou incumbido de encará-la sozinho. Ela estava acompanhada no hotel do filho Mário Covas Neto (hoje vereador em São Paulo pelo Podemos) e da filha Renata, mãe de Bruno Covas.
Virgílio conta que ouviu de uma viúva altiva e indignada que não tinha raiva dele, porque lhe restou desempenhar o papel que sempre sobrava para Covas. “Imagino que você tenha chegado com mais tucanos, mas ou eles ficaram no carro, ou foram embora; não tiveram coragem de subir para falar comigo. Quando todo mundo se escondia, o Covas botava a cara pra bater”, ouviu de Dona Lila.

Quatro anos depois, Virgílio narra que novamente sobrou pra ele colocar a cara a tapa sozinho em novo episódio constrangedor para o partido. Ele era líder do PSDB no Senado em 2005, quando o então prefeito de João Pessoa (PB), Cícero Lucena (PSDB), foi preso por denúncias de fraude em licitações. Segundo Virgílio, o PSDB fretou um jato que levaria uma comitiva de tucanos para se solidarizarem com o correligionário. Ao fim, por decisão dos companheiros, ele foi e voltou sozinho.

Atual prefeito de Manaus, Arthur Virgílio relembrou os dois episódios para afirmar que se sentiu abandonado pelo PSDB, que não se manifestou oficialmente sobre as ofensas que o presidente Jair Bolsonaro dirigiu a ele e ao governador de São Paulo, João Doria, na reunião ministerial de 22 de abril. Bolsonaro chamou os dois caciques tucanos de “bosta”.

“Já estou tão acostumado”, tripudiou, ressalvando que recebeu telefonemas de apoio do próprio Doria e do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), a quem se refere como “irmão”.

“Faltou solidariedade, o partido tem que estar junto das pessoas que foram atacadas. Se for acusação grave, a pessoa tem que se explicar. Mas uma pessoa injuriada, chamada do que o sujeito [Bolsonaro] me chamou, do que chamou o Doria, e o partido não se ofende?”

Lembrado que o PSDB tem um representante no primeiro escalão do governo Bolsonaro, Virgílio cobrou atitude solidária do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. “E isso [os insultos] não mexeu com o Marinho? Dois companheiros de partido atingidos desse jeito, e ele prefere prestar os bons serviços a esse governo?”

Há 31 anos no partido - três vezes prefeito de Manaus, ministro, deputado e senador, líder da bancada - Virgílio diz que não vê “compatibilidade” entre o PSDB que sonha e o que está no governo Bolsonaro. Ele acha que o partido deve pedir a Marinho que se licencie ou se desfilie para continuar no cargo. “O PSDB tem razões históricas para não manter vínculo com alguém que defende a tortura, o Mário Covas foi cassado [pelo AI-5]”.

O prefeito tem concedido entrevistas a agências e veículos internacionais sobre o impacto do coronavírus no Amazonas e as consequências do descontrole da pandemia para os índios. Ele receia que a segunda onda da epidemia virá com a força de um “massacre”, mas não vê a reedição das cenas dramáticas da abertura de covas coletivas em Manaus, quando a capital promoveu até 167 enterros em um dia.

Ele assegura que a Prefeitura atravessará a pandemia do ponto de vista financeiro com “tranquilidade”, mas com “intranquilidade” do ponto de vista social por causa do quadro recessivo da economia. Ele preparou os cofres para uma queda de arrecadação de até 30%, a folha de pagamento está garantida, formou um colchão de R$ 1,6 bilhão para investimento em obras de mobilidade e saneamento.

Rescindiu contratos de locação para abrigar três secretarias em um mesmo prédio, cortou cargos comissionados e reduziu em 25% contratos de fornecedores.

Com assento na Executiva tucana, acha que a realidade da pandemia não comporta um debate sobre o impeachment de Bolsonaro, mas que o PSDB terá de se posicionar mais à frente. “Falar disso agora só serve para tumultuar mais o quadro”. Ele ressalta que se o PSDB não der uma “guinada de 180 graus” e fizer oposição dura ao governo, vai se tornar um partido irrelevante e não disputará pra valer as eleições.

Conta que amigos até lhe recomendaram deixar o PSDB, e migrar para o Novo, mas ele critica a legenda, que recusa filiados com mandato. “E quem foi eleito pelo Novo e conquistou um mandato, agora terá que sair? Porque se mandato conspurca, o filiado já foi conspurcado”.


Bruno Carazza: De João 8:32 ao art. 211 do Código Penal

Bolsonaro se parece cada vez mais com aqueles que criticava

Todo-poderoso da economia cubana desde a revolução socialista, Ernesto Che Guevara foi escolhido por Fidel Castro para comandar o Banco Central (1959-1961) e depois o recém-criado Ministério das Indústrias (1962-1967). No final de 1963, a diretoria executiva do Fundo Monetário Internacional enviou a Cuba uma carta denunciando o descumprimento de uma série de obrigações, entre elas o não fornecimento de dados sobre balanço de pagamentos e estatísticas financeiras e monetárias desde julho de 1961. Incomodada com as cobranças por maior transparência sobre a evolução da economia do país, a ditadura caribenha retirou-se do FMI em 2 de abril de 1964.

Quem assistiu à premiada série “Chernobyl” se lembra das imensas dificuldades enfrentadas pelo cientista Valery Legasov (interpretado por Jarred Harris) na sua tentativa de implementar um plano de mitigação das consequências do acidente nuclear. Temendo a repercussão negativa, tanto em termos internacionais quanto no apoio popular ao regime comunista, o governo soviético demorou não só a admitir a ocorrência do desastre, mas também em reconhecer sua gravidade. Até hoje não há um consenso sobre o número de mortes decorrentes do “acidente” - as estimativas variam de dezenas a milhares.

As denúncias sobre interferências no Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) - o IBGE da Argentina - remontam ao falecido presidente Néstor Kirchner. As acusações, que iam da falta de transparência à descarada manipulação de dados, tiveram continuidade nos mandatos subsequentes de sua esposa Cristina Kirchner. Chegou-se até mesmo a interromper o cálculo do índice de pobreza da população, sob a justificativa de que isso “estigmatizaria” as pessoas.

No Brasil, após perder apoio político e popular, Dilma Rousseff sofreu impeachment ao ficar demonstrado que o Tesouro Nacional mascarava artificialmente a situação de nossas contas públicas - as famosas “pedaladas fiscais”.

Em fevereiro deste ano, a morte de Li Wenliang causou revolta na população chinesa. Tendo sido um dos primeiros a identificar o surgimento de um novo tipo de coronavírus em Wuhan, o médico foi alvo de uma investigação da polícia por espalhar notícias falsas na internet. Hoje se sabe que a falta de transparência das autoridades locais na divulgação de alertas sobre o surto de Sars-Cov-2 foi determinante para o vírus se espalhar pelo mundo.

No início da pandemia de covid-19, fez sucesso nas redes sociais um meme que apresentava o número de mortos pelo coronavírus na Coreia do Norte. A contagem era a seguinte: 1, 0, 1, 0, 1, 0… A piada fazia alusão à ditadura de Kim Jong-um, capaz não apenas de ocultar as informações sobre a evolução da epidemia em seu território, como também de executar os contaminados para evitar a disseminação da doença. Brincadeiras à parte, a Coreia do Norte é hoje o único país para o qual não existem dados sobre a quantidade de casos e óbitos no site da Organização Mundial da Saúde (OMS).

No fim de maio, tanto a Universidade Johns Hopkins, que produz um dos mais reputados levantamentos de dados sobre a covid-19, quanto a organização Human Rights Watch denunciaram a Venezuela de Nicolás Maduro por maquiar as estatísticas. “Em um país onde os médicos não têm água nem para lavar as mãos nos hospitais, onde o sistema de saúde colapsou totalmente, onde há superlotação em favelas e cadeias, não nos parece crível o país só registrar mil infectados e dez mortos”, disse o diretor da HRW para as Américas, José Miguel Vivanco. Segundo os dados de ontem, os números oficiais eram de 2.316 contaminados 22 mortos.

Já houve candidato no Brasil que se elegeu com o slogan “50 anos em 5”, outro tinha uma vassoura como símbolo. Em tempos mais recentes, foram usados “gente em primeiro lugar”, “sem medo de ser feliz” e “mais mudanças, mais futuro”. Mas Jair Bolsonaro inovou ao adotar um versículo bíblico como mote de sua campanha: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.

Paradoxalmente, desde o início de seu mandato, o presidente se esforça em impedir que a verdade venha à luz. No primeiro mês de seu governo, editou um decreto ampliando a possibilidade de se classificar documentos públicos como secretos e ultrassecretos - que, felizmente, foi derrubado pela Câmara dos Deputados. No início da pandemia, uma medida provisória tentou suspender a tramitação de pedidos de informações amparados por lei - e desta vez quem impôs um freio ao ímpeto obscurantista foi o STF.

Incomodado com a fiscalização e as críticas da imprensa, Bolsonaro recorreu à velha tática petista de destinar dinheiro público para alimentar blogs e sites pelegos, assim como canais de televisão de pouca audiência e muito puxa-saquismo. Tentando asfixiar financeiramente parte da imprensa que não é condescendente com seus atos, tentou proibir que órgãos públicos assinassem determinados jornais e publicou medida provisória dispensando a publicação de balanços de empresas em periódicos de grande circulação - e novamente foi barrado pelo Judiciário.

Incapaz de gerenciar as graves crises econômica e de saúde pública causada pelo coronavírus, Bolsonaro resolveu agora brigar com os dados. Ao omitir o acumulado de casos e óbitos e retirar do ar a ferramenta que apresentava os microdados da evolução da doença, o governo cobre o país de trevas no momento em que milhares de pessoas morrem diariamente pela pandemia, enquanto governadores, prefeitos e empresas buscam uma saída para a retomada das atividades.

Confiança é um dos ativos mais valiosos com os quais um governante pode contar. Ao ocultar os cadáveres da pandemia, Bolsonaro não apenas prejudica a gestão da crise, como também enterra a credibilidade internacional da nação, construída a duras penas ao longo de décadas - que o diga o longo processo para sermos aceitos na OCDE.

Acuado e buscando governar apenas para aqueles que cegamente lhe apoiam, Bolsonaro a cada dia se parece mais com os tiranetes esquerdistas e autoritários que seus eleitores sempre criticaram.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”