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Andrea Jubé: A briga de poder que travou a educação

Divisão na base tumultua sucessão no MEC

A base de apoio ao presidente Jair Bolsonaro transformou-se em uma miscelânea formada por militares, ideológicos (seguidores do escritor Olavo de Carvalho), evangélicos e políticos tradicionais ligados ao Centrão, representantes da “velha política”.

Essa base difusa e cujos interesses colidem internamente não pode ser receita de sucesso de nenhum governo. O exemplo mais evidente de que esse cabo de guerra interno conturba mais a gestão já atolada em problemas é a rocambolesca sucessão no Ministério da Educação (MEC).

A pasta que por definição deveria ser o coração de qualquer governo sério é, desde o início da gestão, palco de embates turbulentos entre militares e olavistas. Agora os políticos do Centrão entraram na briga.
A rejeição por duas vezes consecutivas do nome do secretário de Educação do Paraná, Renato Feder, para o comando da pasta expôs o aliado e gerou ruído desnecessário com o Centrão, num momento em que Bolsonaro ainda não cimentou a base no Congresso.

Feder era referendado pelo PSD, por meio do governador do Paraná, Ratinho Jr., e do ministro das Comunicações, Fábio Faria, e ainda pelos empresários ligados à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Mas a intervenção da ala ideológica, com o reforço da bancada evangélica, tumultuou a escolha e abriu novas fissuras na base.

Em paralelo, verificou-se que a passagem abreviada de Carlos Alberto Decotelli pelo cargo resultou de uma escolha pautada pelo improviso e açodamento. A equipe competente falhou na checagem do currículo do quase doutor.

O improviso tem se revelado a tônica da gestão. Em outro exemplo, não houve falha de checagem, mas, sim, de atenção: Bolsonaro soube somente depois de assinar a nomeação que o novo ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), José Levi, havia sido secretário-executivo do então ministro da Justiça, Alexandre de Moraes.

Em outro capítulo da novela da sucessão no MEC, um dos nomes mais reconhecidos até agora entre os cotados para a pasta, o reitor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e ex-presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Anderson Correia, teria sido rejeitado porque pediu carta branca para nomear a própria equipe, segundo informou uma fonte palaciana.

Para isso, Correia teria que demitir nomes caros à ala ideológica, como o secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim, discípulo de Olavo, ou até mesmo apadrinhados do Centrão, como o presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Marcelo Lopes da Ponte, que foi chefe de gabinete do presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI).

“O MEC, assim como o governo, é uma composição de forças”, explicou à coluna um empresário da área de educação. Ele afirma que ninguém receberá o ministério de porteira fechada, porque os olavistas, os militares e os políticos do Centrão e da bancada evangélica reivindicam seus quinhões.

A contragosto dos militares, desde o começo o MEC esteve sob o controle de discípulos de Olavo: primeiro, Ricardo Vélez Rodríguez, depois, Abraham Weintraub. Decotelli era um perfil que não romperia com o olavismo, mas buscaria uma postura não radical para dialogar com os militares, os evangélicos e os políticos.

A briga interna no MEC explica a alarmante rotatividade na pasta, que exigiria em teoria um mínimo de estabilidade para implantação e eficiência das políticas públicas. Somente pela presidência do FNDE - espécie de “tesouraria” do ministério - já passaram quatro nomes em um ano e meio - um gestor a cada quatro meses. O orçamento do órgão para este ano é de cerca de R$ 30 bilhões.

O primeiro gestor do fundo foi justamente Decotelli, que ficou de fevereiro a agosto de 2019. Foi sob a gestão dele que a Controladoria-Geral da União (CGU) viu inconsistências em um edital liberando R$ 3 bilhões para a compra de 1,3 milhão de computadores.

Em agosto, Decotelli foi afastado do cargo para dar lugar ao advogado Rodrigo Sergio Dias, indicado pelo DEM de Rodrigo Maia. Na ocasião, Decotelli foi remanejado para a Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação, onde estava quando foi nomeado ministro em 25 de junho.

Voltando ao FNDE, Rodrigo Dias ficou quatro meses no cargo, até ser exonerado em dezembro, em meio a atritos de Bolsonaro com Maia. Em seu lugar, entrou a diretora de Ações Educacionais, Karine Silva, funcionária de carreira. Karine ficou quase sete meses no cargo. Saiu no começo de junho, para dar lugar a Marcelo Ponte, indicado de Ciro Nogueira, e quarto gestor do fundo.

Com igual rotatividade é a Secretaria-Executiva, segundo posto na hierarquia da pasta, e que desde o início foi disputada por militares e olavistas. O primeiro titular foi Luiz Antônio Tozi, que ficou pouco mais de dois meses. Depois dele, Vélez chegou a anunciar dois nomes que nunca assumiram.

Em 29 de março, o tenente-brigadeiro Ricardo Machado Vieira tomou posse, contemplando os militares, mas ficou menos de 15 dias. Em 10 de abril, assumiu Antônio Paulo Vogel, atual secretário-executivo, que entrou com Weintraub e continua no cargo.

Também com alta rotatividade, a Secretaria de Educação Básica já teve quatro titulares em 18 meses: Tânia Almeida, de janeiro a março de 2019; seguida de Alexandro Souza, que ficou até abril; nesse mês, entrou Janio Macedo, que ficou um ano na função; em abril de 2020 entrou Ilona Becskeházy, hoje cotada para o cargo de ministro.

Enquanto as diversas alas se enfrentam por nacos de poder no MEC, é no mínimo simbólico que um nome resista incólume: o secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim, ex-aluno de Olavo, e cotado para o ministério, é o único nome entre os secretários que assumiu em janeiro de 2019 e sobreviveu a todas as mudanças. Pelas demais secretarias, passaram pelo menos dois ou três nomes. Ponto para os olavistas.


Gustavo Loyola: A prioridade do emprego

Faz todo sentido reformar os programas sociais do governo e caminhar na direção de sua unificação

O IBGE divulgou recentemente a pesquisa Pnad Covid que busca monitorar as condições do mercado de trabalho após a eclosão da pandemia da covid-19. Seus resultados são muito preocupantes.

Considerando o trimestre encerrado em maio, a pesquisa indica uma redução de 7 milhões de pessoas ocupadas em relação ao mesmo período de 2019. No momento, dos 170 milhões de brasileiros em idade de trabalhar, somente 83,7 milhões (49,3%) estão ocupados, segundo estimativas da instituição. Os números mais recentes do Caged vão igualmente na mesma direção. No trimestre encerrado em maio, houve uma perda de cerca de 1,5 milhão de empregos formais.

Vale recordar que no período anterior ao surgimento da covid-19, o mercado de trabalho ainda não havia se recuperado completamente do choque recessivo de 2015-2016. Vinha apresentando alguma reação, mas de maneira lenta, até porque a economia brasileira cresceu apenas cerca de 1% ao ano no triênio 2017-2019, ainda longe de se recuperar da forte queda do PIB em 2015 e 2016. Os números do Caged indicam que, no quinquênio 2015-2019, houve a perda de 1,7 milhão de vagas formais no mercado de trabalho.

Ou seja, dois impactos de alto poder destrutivo atingiram o mercado de trabalho, no curto período de apenas seis anos. A consequência dessa catástrofe em dose dupla tem sido o aumento generalizado da pobreza, não apenas pelo desemprego em si, mas também pelo aumento da informalidade no mercado de trabalho. Foram perdidos praticamente todos os avanços que o país havia obtido na década anterior, no que tange à melhora dos indicadores de renda.

Nesse contexto, trava-se no momento uma discussão sobre a necessidade de reforçar os mecanismos de transferência de renda para as famílias mais pobres, para além das medidas emergenciais que corretamente foram adotadas como resposta aos efeitos da pandemia do novo corona vírus. A ideia de se estender uma ampla rede de proteção às famílias mais vulneráveis é obviamente meritória e necessária, mas é preciso evitar a adoção de medidas voluntaristas e desarticuladas que trazem o risco potencial de favorecer quem não deve ser favorecido e de deixar de fora quem necessita da proteção do governo, além de sobrecarregar ainda mais as já depauperadas finanças públicas, caso em que o populismo triunfaria sobre a racionalidade econômica.

O caminho para se evitar más decisões de políticas públicas em relação ao tema da erradicação da pobreza e da melhora dos indicadores sociais do país exige uma abordagem holística que envolva não apenas as características e o volume das transferências diretas de renda pelo governo às famílias mais pobres, mas também a estrutura tributária do país, a composição e qualidade da despesa pública - notadamente em educação e saúde - e a existência de políticas conducentes a um ambiente de negócios propício ao crescimento econômico e à geração de emprego e renda.

Ninguém duvida que a economia brasileira voltará a crescer após o profundo vale atingido no segundo trimestre deste ano com o fechamento compulsório da economia como resposta à pandemia. A discussão que importa é se o país conseguirá voltar a crescer de forma sustentada e suficiente para gerar empregos e provocar resultados positivos sobre a distribuição de renda, e a redução da pobreza, fato que não ocorreu no triênio que se seguiu imediatamente à crise recessiva dos anos 2015-2016.

Desse modo, mantém-se imprescindível a reforma do Estado brasileiro, em suas várias dimensões. O sistema tributário precisa ser simplificado e se tornar menos regressivo. O gasto público deve perder sua rigidez, abrindo espaço para políticas mais efetivas e focadas na oferta de serviços de qualidade à população. A intervenção estatal no domínio econômico, quando necessária, não deve significar sobrecarregar a sociedade com um emaranhado de normas e regulamentos que prejudicam a economia e induzem a comportamentos oportunistas. E assim por diante. Nesse contexto, faz todo sentido reformar os programas sociais do governo e caminhar na direção de sua unificação.

Portanto, seria um grave erro abandonar a agenda de reformas que vinha sendo discutida no Congresso antes do aparecimento da covid-19. Ao contrário, os efeitos deletérios da crise pandêmica sobre a parcela mais vulnerável da sociedade brasileira tornaram ainda mais urgente sua aprovação para que haja o rápido retorno da confiança aos agentes econômicos, favorecendo o aumento do investimento e da produção. Além disso, não se deve esquecer que as consequências do esforço fiscal requerido no combate à pandemia - que vai levar o déficit primário a se situar na vizinhança dos 10% neste ano - exigem urgência na adoção de algumas das medidas postas em discussão em 2019.

Vale alertar ainda que o grande risco com que o Brasil se defronta no momento é o de que a tragédia provocada pela pandemia sirva de pretexto para a adoção de medidas que, travestidas de programas de socorro às populações carentes, não sejam nada mais do que peças de populismo econômico, cujos malefícios a América Latina experimenta há décadas.

*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do BC do Brasil, é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo


Bruno Carazza: ‘O povo’ contra Zuckerberg

Redes sociais enfrentam resistência regulatória

Durante a segunda metade da década de 1990, a internet se popularizou e um mundo de possibilidades parecia se abrir. O índice Nasdaq, a bolsa de valores onde a maioria das pequenas e médias empresas de tecnologia emitiam seus títulos, saltou de 1.288,37 em janeiro de 1995 para 7.092 pontos cinco anos depois, quando nos demos conta de que o mundo não havia acabado por causa das profecias religiosas e nem pelo bug do milênio. Mas logo depois a bolha pontocom estourou.

Uma série de motivos levou a uma forte desvalorização das ações de empresas de tecnologia, como o aperto monetário promovido pelo Fed entre 1999 e 2000, a conscientização dos investidores de que muitas daquelas startups não tinham fôlego para transformar em lucros as promessas miraculosas de valorização e escândalos corporativos em que empresas forjavam seus resultados para atrair novos aportes de recursos.

A primeira menção ao Facebook nas páginas do Valor Econômico foi numa reprodução de uma reportagem da BusinessWeek que tratava justamente do renascimento das empresas do Vale do Silício. O texto trazia uma lista de novas firmas que poderiam ser alvo de aquisições pelas gigantes da época, como Microsoft, HP, SAP e (veja só!) Yahoo. Nele, especulava-se que “o site Facebook, especializado em confraternização de estudantes universitários, poderia ser atraente para uma empresa como a News Corp”.

Mark Zuckerberg e seus colegas de quarto em Harvard haviam lançado o TheFacebook em 4 de fevereiro de 2004. Quando o Valor publicou essa matéria, em setembro de 2005, a empresa havia acabado de perder o “The”, e o que se viu nos anos seguintes foi a pequena “rede social de estudantes” passar de caça a predadora, lançando-se numa sequência de aquisições de mais de 80 negócios, sendo as mais famosas o Instagram (2012) e o WhatsApp (2014).
Movimento similar foi realizado pelas outras quatro tech giants (Google, Microsoft, Apple e Amazon), que deglutiram criações promissoras como YouTube, Skype, Waze, LinkedIn, Picasa e GitHub. Somando essas incorporações aos produtos desenvolvidos internamente, esses conglomerados controlam hoje a forma como nos informamos, comunicamos, consumimos e até mesmo nos movimentamos por aí.

No mês passado Cielo e Facebook anunciaram ao mercado que pretendem lançar no Brasil uma ferramenta de pagamento diretos por meio do WhatsApp. Mas a associação entre a empresa líder em operações por cartões (com 40% do “market share” nacional) com o principal aplicativo de mensagens do mundo (que possui mais de 120 milhões de usuários ativos só no Brasil) foi suspensa preventivamente pelo Cade e pelo Banco Central - embora na última semana o órgão de defesa da concorrência tenha revisto provisoriamente sua posição.

Na queda de braços entre empresas e órgãos reguladores, são bilhões de reais em jogo e um dilema de princípios e objetivos de política econômica: de um lado, promessas de comodidade e facilidade para o usuário, com a possibilidade de realização de transações por um meio simples e acessível por todas as classes sociais; de outro, a preocupação em preservar o ambiente concorrencial, garantir a eficiência do sistema de pagamentos.

Esta não é a única frente de batalha do Facebook. Depois das acusações de quebra de privacidade e fornecimento de dados para a consultoria Cambridge Analytica desenvolver estratégias eleitorais para políticos como Donald Trump, a empresa de Zuckerberg agora é o principal alvo do movimento #StopHateForProfit. Uma mobilização de organizações sociais questiona o Facebook e outras mídias de serem lenientes com o discurso de ódio e o extremismo, em troca de cliques e tempo de tela de seus usuários. Sensibilizadas pela repercussão, grandes anunciantes como Pfizer, Microsoft, Starbucks e Unilever suspenderam a compra de espaço nas redes sociais durante o mês de julho numa tentativa de forçá-las a rever seus algoritmos e melhorar a política de moderação de comentários.

Aqui no Brasil, além dos ecos dessa mobilização nos Estados Unidos, há a discussão em torno do projeto de lei das “fake news”. De autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e batizada com o pomposo nome de Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, a proposta acabou de ser aprovada no Senado e deve mobilizar os debates nas próximas semanas.

A leitura do artigo 3º do projeto revela o quão complexo é esse assunto. Afinal de contas, é virtualmente impossível equilibrar, na letra fria da lei, princípios e direitos tão fluidos e muitas vezes conflitantes como liberdade de expressão, respeito às preferências políticas individuais, privacidade, acesso universal aos meios de comunicação e informação e transparência.

Na sua essência, o projeto amplia a responsabilidade dos provedores de redes sociais (como Facebook, Instagram, Twitter, TikTok etc) e de mensagens privadas (WhatsApp, Telegram e Messenger, entre outros) em relação a identificação dos titulares das contas, restrições à atuação dos famosos “bots” que amplificam o alcance de mensagens e criação de procedimentos para a retirada de conteúdos ofensivos.

Enquanto a pandemia acelera uma tendência que já parecia irreversível de inserção dos negócios e das relações profissionais no mundo virtual, o projeto de lei nº 2.630/2020 determina que os provedores dos serviços devem limitar o envio de mensagens e adotar políticas de transparência quanto aos conteúdos impulsionados e à veiculação de publicidade. E nestes tempos em que os políticos elegem as redes sociais como o fórum para se comunicar com eleitores e representados, medidas ainda mais restritivas são direcionadas à propaganda política.

Não há dúvidas de que nossa vida se tornou bem fácil com o advento das maravilhas desse mundo tecnológico. Mas à medida que nossos relacionamentos, negócios e expressões políticas acontecem predominantemente no ambiente virtual, mais difícil se torna equilibrar interesses, objetivos e princípios divergentes - é alto o preço que temos de pagar por esse admirável mundo novo.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Claudia Safatle: Na economia o pior já passou, diz o governo

Para os economistas oficiais, as projeções do FMI estão erradas

Para os economistas do governo, as projeções do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial para o nível de atividade do país este ano estão simplesmente “erradas”. O FMI divulgou, na revisão do World Economic Outloock, uma queda de 9,1% do PIB e o Bird calculou em 8% a recessão no Brasil. Os técnicos do FMI consideraram uma retração de 0,6% no Produto Interno Bruto (PIB) para cada semana de isolamento social, mais que o dobro do estimado pelo Ministério da Economia (- 0,27%) e por um período maior do que o preconizado pelos economistas locais.

Nas contas do Fundo Monetário, depois do tombo levado pela atividade econômica doméstica, que atingiu o fundo do poço em abril, não haveria praticamente nenhuma recuperação, segundo o relato de assessores da área econômica que estiveram com os enviados do Fundo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, qualificou os prognósticos do FMI de “chute”.

A Secretaria de Política Econômica (SPE) do ministério continua apostando em uma recessão próxima a 4,7%. No Banco Central, a última revisão do Produto Interno Bruto (PIB) aponta para um desempenho pior: queda de 6,4% este ano. Ambos, contudo, convergem no entendimento de que o pior já passou e buscam nos dados de alta frequência as informações que sustentam a avaliação de que a economia já começou a reagir.

“Em relação ao que se esperava em abril, que eram dados muito ruins, eles estão vindo só ruins”, pontuou um dos secretários do ministério, para deixar claro que apesar de alguma perspectiva melhor não há razão para grandes comemorações. Isso é o que estariam mostrando as informações sobre emissão de nota fiscal e de vendas no cartão, dentre outras.

Os demais indicadores que chamam a atenção dos técnicos da área econômica e que apontam para o início de um processo de retomada da atividade, embora esta ainda esteja bem abaixo do período pré-pandemia, são:

Emplacamento de veículos: depois de uma retração de mais de 70% entre fevereiro e abril, o número de veículos emplacados em maio e junho aumentou, respectivamente, 12% e 84%, ajustados os efeitos sazonais. O dado desagregado revela forte aumento no emplacamento de caminhões, superando em junho os patamares pré-crise, segundo informações da Fenabrave (Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores).

Consumo de energia elétrica: após recuar 16%, em meados de abril confrontado com igual período do ano passado, o consumo de energia aumentou nas últimas semanas, segundo informações do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico). Dados do fim de junho indicam que o consumo se encontra apenas 5% abaixo de igual período de 2019. “O dado é volátil, e apresenta heterogeneidade regional, mas a tendência é robusta: há uma melhora consistente nesse indicador nas últimas semanas”, atestam os economistas oficiais.

Faturamento do varejo (ICVA -Indice Cielo do Varejo Ampliado): o faturamento nominal do varejo teve queda de mais de 50% no fim de março, quando começou o isolamento social. É possível notar, porém, uma recuperação nas últimas semanas. Na ultima semana de junho constata-se um recuo de 24% em relação a período comparável antes da pandemia. “Há diferenças setoriais importantes, mas os dados sugerem recuperação consistente em diversos setores”, asseguram os técnicos.

Dados de mobilidade do Google: o Google elaborou um relatório para identificar os impactos que a pandemia da covid-19 causou no distanciamento social e nas tendências de mobilidade. A base de comparação é um valor médio das cinco semanas entre o dia 3 de janeiro e 6 de fevereiro de 2020 (pré-pandemia). Os últimos dados disponíveis são do dia 27 de junho e apontam uma melhora expressiva na mobilidade para locais de trabalho e mercearia e farmácia. “Já os dados de varejo e recreação são mais heterogêneos por região e encontram-se em patamares ainda baixos”, ponderam.

A SPE elaborou um indicador proprietário que sintetiza os dados do Google e revela que após recuar aproximadamente 55% em abril, o indicador encontra-se atualmente próximo de 30% negativos.

Confiança empresarial: depois de passar por uma queda de mais de 40% entre março e abril, a confiança voltou a subir, informa a Fundação Getúlio Vargas (FGV). Os meses de maio e junho mostraram avanço de 8.2% e 19.1% na margem, respectivamente, com ajuste sazonal.

Incerteza econômica: o indicador da FGV começou a recuar na margem em maio (-9.6%) e junho (-8.8%), depois de acumular uma alta de 83% no período entre o início da pandemia e abril. Mesmo com as quedas, a incerteza continua elevada.

A ampliação, por mais dois meses, do auxílio emergencial para os trabalhadores informais, desempregados e microempreendedores individuais (MEI) e o impacto dessa ajuda na expansão da massa salarial, assim como o aumento da oferta de crédito para as médias, pequenas e microempresas, devem ajudar na retomada da atividade.

O auxílio deverá ser pago em três parcelas de R$ 500, R$ 400 e R$ 300 e vai disputar o peso dessa renda no PIB com o risco fiscal que o gasto com esses pagamentos traz embutido.

Entre os economistas oficiais não há grandes esperanças de que os bancos em geral vão se engajar, efetivamente, em conceder crédito para o universo de micro e pequenas empresas - cujo risco de falência aumentou muito nesta crise - apesar das garantias asseguradas pelo Tesouro Nacional. Até agora, apenas a Caixa, por ser um banco 100% estatal, está operando com a linha do Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte).

Do ponto de vista do comportamento do PIB é melhor um abre e fecha do comércio de bens e serviços, pautado pela evolução da doença, do que manter um estrito isolamento social em que funcionam somente supermercados e farmácias.


César Felício: Algo precisa ser feito

“Fake News” ameaçam destruir a vida em sociedade

Com todos os atropelos que traz à privacidade do cidadão, o projeto de lei aprovado pelo Senado esta semana e apelidado de “Lei das Fake News” poderá ser melhor para a democracia do que não fazer coisa alguma. A chance dele vingar, contudo, é muito pequena, quase nula, dada a forma como passou.

Os que criticam a proposta munidos de boa fé deveriam se sentir motivados a apresentarem uma alternativa política plausível ao parecer do senador Angelo Coronel. Pode ser que ainda o façam, já que há discussões na Câmara que devem levar a uma revisão profunda do projeto. A ver.

Não há pior situação do que a atual, em que o fenômeno das “fake news” corrompe o sistema democrático não apenas no plano institucional, enganando legiões na hora do voto, mas no universo de direitos: a convivência entre diferentes é minada e até questões que afetam a sobrevivência da espécie, como o combate à pandemia ou a preservação do meio ambiente, têm o debate desvirtuado.

O direito à privacidade e à liberdade de expressão não pode se sobrepor a regras que garantam a existência da vida em sociedade. É o paradoxo de Karl Popper: a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância.

O debate sobre o projeto produziu até o momento uma coalizão tão insólita quanto involuntária. Combatem a proposta tanto expoentes do libertarianismo digital quanto os ferrabrazes do bolsonarismo, muitos dos quais alvos do inquérito que cursa no Supremo Tribunal Federal.
Faltou ao Senado a percepção de que era preciso negociar mais o texto para se desmanchar esta frente. Transferir a responsabilidade de fazer esta negociação para a casa revisora - no caso em questão a Câmara - e levar a voto a proposta com tamanho grau de dissenso foi um erro, porque vai atrasar a tramitação no Legislativo já que, alterado, o texto terá que voltar para o exame dos senadores.

Os fomentadores de “fake news”, os que fazem da mentira um método de ação política, jogam nesta questão com o tempo. Enquanto o impasse permanecer, a liberdade de expressão e o direito à privacidade estarão resguardando um mundo paralelo que prega contra vacinas, diz que o desmatamento não aumentou, que não houve ditadura militar, que a Lava-Jato foi uma conspiração do governo americano, que há um plano da China para dominar o pensamento acadêmico brasileiro e por aí vai. E esses são os exemplos mais suaves, porque o que corre nas redes sociais é mais pesado: vai na pessoa física, visa destruir o oponente, desmoralizando-o.

Veterano no acompanhamento da cena política, o presidente do Conselho Científico do Ipespe, Antonio Lavareda, mostra-se alarmado. “O Brasil soube administrar bem a corrupção no sistema eleitoral. Com todos os problemas que acarretou a nova norma, a proibição de doação de empresas a candidatos conteve o problema. Agora o vírus que ameaça à política está nas redes sociais. É melhor pecar por excesso do que ceder a um principismo ingênuo.” Em resumo, “o risco que as fake news representam impõem o sacríficio de algumas liberdades. Não há direito absoluto”, comenta.

O debate a ser feito, portanto, é até que ponto deve-se abrir mão de determinados direitos (privacidade e liberdade de expressão) para a preservação social. Esta é a dimensão da decisão que a Câmara deve encaminhar.

A polarização política muito potencializada pelas redes já cobrou a fatura no filtro que o brasileiro busca ao se informar. A internet tornou-se a porta da entrada da informação, sem ter os mecanismos de autocontrole que existem em todas as plataformas tradicionais de mídia.

Segundo uma pesquisa comparada da Reuters em parceria com a Universidade de Oxford, com 2.058 entrevistas, feitas entre janeiro e fevereiro deste ano, nada menos que 43% dos pesquisados no país preferem ler notícias de fontes que compartilhem o seu ponto de vista. Nos Estados Unidos, onde a penetração da internet é maior e a polarização política é enorme, a proporção é de 30%. No Reino Unido, 13%.

Já os que preferem ler noticias imparciais no Brasil somam 51%, ante 65% na Itália e 80% na Alemanha. Entre 2013 e 2020, o percentual que se informa por meio do jornal impresso recuou de 50% para 23% e pela televisão caiu de 75% para 67%. Já os que consomem notícias por redes sociais subiram de 47% para 67%. Fica patente que o Brasil é uma terra fértil, em que se plantando tudo dá.

Eleição
A eleição deste ano tem tudo para entrar para a história política brasileira como uma completa anomalia, não apenas por ser a primeira a acontecer em novembro desde 1989. O palanque eletrônico se converterá no único possível. A campanha se desenrolará em clima de absoluto desinteresse, porque é incontroverso que a pandemia monopoliza a atenção. De quebra, passou a vigorar a regra que proíbe coligações eleitorais, o que estimula os partidos a lançarem chapa completa nos grandes centros.

Para Lavareda, a televisão volta a ter um papel central no processo político, mais do que exerceu em 2018, com a população confinada em suas casas. “Isso vai acontecer não apenas por causa do horário eleitoral, mas porque a TV ganhou credibilidade com a pandemia.”

Bolsonaro não terá partido, mas será impossível o bolsonarismo não estar presente na disputa. No cardápio das opções locais, haverá o candidato que vai procurar colar na imagem do presidente para captar a simpatia de seus irredutíveis apoiadores. E os seguidores do presidente estabelecerão suas afinidades eletivas.

Dificilmente, contudo, a nacionalização da eleição será uma marca este ano. A campanha em confinamento tolhe a oposição aos prefeitos. Se o administrador local conseguir driblar a penúria financeira, - algo que ficou mais fácil, com a negociação estabelecida no Congresso - as chances de superar os problemas causados pela catástrofe sanitária são grandes. Largam em grande vantagem.


Ribamar Oliveira: O QE tupiniquim está limitado

Descuido na redação da PEC deixou de excluir operação do BC do teto de gastos

Durante a atual situação de calamidade pública decretada pelo Congresso Nacional, em virtude da pandemia de covid-19, o Banco Central terá um poder muito grande de intervenção nos mercados. Por meio da emenda constitucional 106, promulgada em maio desse ano, o BC foi autorizado a comprar e a vender títulos de emissão do Tesouro, nos mercados secundários local e internacional, e os ativos, em mercados secundários nacionais no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos.

Na aquisição dos ativos, o BC dará preferência aos títulos emitidos por microempresas e por pequenas e médias empresas. A única condição é que os ativos tenham classificação em categoria de risco de crédito no mercado local equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos uma das três maiores agências internacionais de classificação de risco e preço de referência publicada por entidade do mercado financeiro credenciada pelo BC.

O objetivo de todo esse poder que os representantes do povo brasileiro deram ao BC foi para que ele evite uma depressão econômica no Brasil, adotando uma política monetária flexível que, durante a monumental crise financeira de 2008/2009 ficou conhecida como QE - sigla para o termo em inglês “Quantitative Easing”.

Como, naquela crise, a taxa de juros nos países desenvolvidos já estava próxima a zero (negativa, em termos reais), o uso dos juros pelos Bancos Centrais para regular a atividade econômica já não tinha efeito. Alguns deles passaram, então, a comprar grande quantidade de títulos bancários no mercado financeiro e de capitais e de títulos dos seus próprios governos negociados no mercado secundário. Por meio desse mecanismo, os BCs injetaram uma quantidade imensa de moeda na economia, evitando, com isso, uma depressão mundial.

Com a EC 106, o Congresso Nacional deu poderes ao BC para que faça o mesmo, se isso for necessário, para evitar que a economia brasileira entre em depressão. O problema é que, da forma como está sendo operacionalizada, a política do QE tupiniquim ficou limitada.

Quando anunciou as regras e diretrizes do seu programa de compras, o BC informou que as aquisições de títulos privados teriam impacto no resultado fiscal primário. Cada compra elevaria o déficit deste ano e a venda reduziria o déficit. A tese apresentada pelo BC foi que a compra de ativo privado afeta a dívida líquida do setor público (DLSP) e, portanto, o resultado primário.

A dificuldade da tese do BC é que uma despesa primária precisa transitar pelo Orçamento da União, pois um gasto não pode ser executado sem que esteja autorizado pela lei orçamentária. Assim, o governo teria que enviar ao Congresso um pedido de crédito suplementar ao Orçamento para acomodar a despesa com a compra de títulos privados pelo BC, informaram fontes governamentais ao Valor.

A questão é que uma despesa primária está, necessariamente, submetida ao teto de gastos da União, a menos que tenha sido excluída do limite por determinação constitucional. Por um descuido de quem redigiu a chamada PEC do Orçamento de Guerra, que deu origem à EC 106, a despesa do BC com a aquisição de títulos privados não foi excluída do teto.

Para contornar esse problema, bastaria que o presidente Jair Bolsonaro editasse uma medida provisória abrindo um crédito extraordinário no Orçamento, acomodando, assim, a despesa do BC. Pela EC 95/2016, que instituiu o teto, os créditos extraordinários estão excluídos do limite da despesa. Mas, na MP, o presidente teria que dizer o valor do crédito e informar como a despesa seria custeada.

Este é um problema sério, advertiu o consultor da Câmara dos Deputados Antônio D’Ávila Carvalho Júnior, em entrevista ao Valor. Ele disse que o Banco Central vai emitir moeda para comprar os títulos privados e observou que esse aumento do passivo (monetário) do BC “não é, conceitual e legalmente, uma receita orçamentária”. Para ele, inserir tal receita no Orçamento seria inconstitucional.

D’Ávila foi um dos auditores do Tribunal de Contas da União (TCU) que investigaram as “pedaladas fiscais” realizadas no governo da ex-presidente Dilma Rousseff. Ele disse que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) determina que apenas as despesas relativas a pessoal e encargos sociais, custeio administrativo e os investimentos do BC devem integrar a lei orçamentária anual.

O consultor afirmou também que o teto de gastos não pode limitar a atuação do Banco Central, quando se trata de emissão de moeda, não interessando se a operação possa ser ou não classificada pelas estatísticas fiscais como despesa primária. Ou seja, a emenda de teto de gastos não tem qualquer influência/limitação/restrição no que tange à política monetária.

D’Ávila discorda da interpretação apresentada pelo Banco Central de que a compra de ativos privados altera a DLSP, ou seja, o resultado primário do setor público. Para ele, os títulos privados a serem adquiridos atendem aos critérios estabelecidos pelas estatísticas fiscais para serem registrados como um ativo na dívida líquida do setor público.

O consultor observou ainda que o BC saberá os valores de mercado dos papéis no momento em que for adquiri-los. “Uma debênture no valor de R$ 1.000 e que seja avaliada como BB- será adquirida, por exemplo, por R$ 200. Essa deverá ser a quantia a ser entregue pelo BC ao detentor do título e esse será o valor do ativo a ser registrado nas estatísticas fiscais”, explicou. Por isso, para ele, não haverá variação na DLSP, ou seja, no resultado primário.

D’Ávila considera que a operação de compra de títulos privados pelo BC é de natureza monetária, deve ficar fora do Orçamento, por mandamento constitucional e não se submete ao teto de gastos, ainda que possa ser classificada pelo BC, em suas estatísticas fiscais, como uma despesa primária.

Enquanto essa questão de contabilidade pública não for solucionada, o BC não poderá comprar títulos privados e o QE tupiniquim estará limitado. Só poderá comprar títulos do Tesouro negociados no mercado secundário.


Maria Cristina Fernandes: Os sócios do vírus

Ninguém a desejava, mas há quem se beneficie da pandemia

A pandemia do coronavírus matou, em quatro meses, 60 mil brasileiros, o que deixa o país na condição de vice-campeão mundial em número de vítimas. No mesmo período, o Brasil acumulou mais de 28 milhões de desempregados e desalentados.

O vírus, no entanto, não fez apenas vítimas. Ao longo desse tempo, angariou também muitos sócios. Ninguém desejava a pandemia, mas há quem mais do que sobreviver, está a tirar vantagem dela. Na política e na economia, as desigualdades pregressas só se acentuam com as medidas governamentais.

A queda de juros, por exemplo, melhora a vida de todo mundo, mas beneficia muito mais a das grandes empresas que, em condições de emitir debêntures (dívidas) com taxas mais baixas do que aquelas que vigoravam antes da pandemia, se capitalizam não necessariamente para investir agora, mas para largar na frente quando a atividade voltar. Até porque da sucessão de reformas trabalhistas pré-pandemia às medidas provisórias mais recentes, as empresas puderam reduzir custos trabalhistas.

Mas não são apenas as medidas do governo que produzem sócios do coronavírus, mas a falta delas. O presidente Jair Bolsonaro se elegeu, em grande parte, não para mudar o Estado mas para dizimá-lo. A covid-19 mobilizou as atenções e facilitou a tarefa em áreas como o meio-ambiente, como tão bem traduziu Ricardo Salles na reunião ministerial de 22 de abril. Um mês depois, os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostraram que o ministro escancarou a passagem da boiada, com um aumento de 55% no desmatamento no primeiro quadrimestre do ano em relação ao mesmo período de 2019.

Nas selvas urbanas da periferia a ausência de uma política de segurança pública também facilitou a sociedade entre o vírus e a letalidade policial. Com menos circulação de pessoas nas ruas, os policiais ganharam, finalmente, o ansiado excludente de ilicitude do bolsonarismo. O Rio teve o abril de maior letalidade policial dos últimos 18 anos. Em São Paulo, as mortes em conflitos com a presença de policiais cresceu mais de 50%. A pandemia facilitou o cumprimento do ideário bolsonarista "na dúvida, atire". Mas isso não impediu que o Centrão se valha da situação para pressionar por mais um cargo de primeiro escalão no governo, a Pasta da Segurança Pública.

Durante a pandemia, o bloco não apenas se acercou de órgãos cujos gastos têm impacto direto nas prefeituras, como FNDE e Funasa, como se aproximou do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, recentemente desfiliado do PSDB e titular de outro manancial de obras, e avançou para aumentar seu domínio sobre agências reguladoras.

Uma delas, a Agência de Vigilância Sanitária, é uma das maiores chanceladoras da carteirinha de sócios da pandemia. É sobre a Anvisa que os atravessadores de respiradores superfaturados fazem pressão contra o licenciamento de aparelhos baratos desenvolvidos nas universidades. É a agência também que chancela a licença para a comercialização, nas farmácias, de um dos embustes da pandemia, os testes rápidos. Tão caros quanto ineficientes, os testes fizeram a festa de algumas indústrias farmacêuticas, sócias da tragédia desde o apogeu da cloroquina.

Se as sessões remotas adotadas na pandemia permitiram a aprovação de projetos importantes para a sobrevivência de milhões de brasileiros, como o auxílio emergencial, tem também favorecido a concentração de poder nas mãos do Centrão. Em decisões cada vez mais monocráticas, os líderes decidem a pauta e controlam as votações remotas com possibilidades restritas de debate ou obstrução. Se o cerco dos milicianos sobre o presidente da República aumenta o cacife do bloco, é pela condução da pauta remota de votações que seus líderes exercem redobrado poder.

O repique da covid-19 no Distrito Federal já arrisca prolongar ainda mais o funcionamento remoto do Congresso. O governador Ibaneis Rocha, um dos primeiros a adotar medidas restritivas, liberou a cidadela do poder antes da hora e possibilitou um novo pico que hoje ocupa nove de cada 10 leitos de UTI privados. Ibaneis não se mostra disposto a arredar o pé para a abertura total do Distrito Federal no início de agosto, mas o repique pode impedir que o Congresso Nacional o faça.

Com a consultoria do ex-ministro da Saúde, Henrique Mandetta, já se estudavam as medidas para o retorno, com a presença facultativa dos parlamentares do grupo de risco, medição de temperatura e sem confirmação digital do voto. O adiamento das sessões presenciais, porém, não prejudica o Centrão. Na verdade, até ajuda.

Com as sessões remotas, as comissões e os conselhos de ética da Câmara e do Senado não funcionam. Com isso, se contêm as pressões para que sejam analisadas as representações lá protocoladas contra Eduardo e Flávio Bolsonaro. Com o adiamento se evitaria que a retomada dos trabalhos no Supremo Tribunal Federal em agosto, tenha repercussão nas Casas. É depois do recesso que o STF deve mandar voltar para a primeira instância o processo que investiga a rachadinha no gabinete do ex-deputado estadual Flávio Bolsonaro.

Foi na casa de um dos expoentes do Centrão, o deputado e ex-ministro Marcos Pereira (Republicanos-SP), que representantes do bloco e os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, receberam o senador Flávio Bolsonaro, o mais afável e mais encrencado dos filhos do presidente. Na versão de um dos participantes, a ideia era mostrar ao presidente da República que não havia predisposição, entre os comensais, contra seu primogênito. Só faltou Flávio Bolsonaro sair de lá com um cartão de visitas de cada um: “Guardiões de seu mandato”.

Até as eleições municipais é assim que pretendem se fazer valer. Até lá, além da prorrogação do auxílio emergencial, vão tratar de arrancar dos cofres públicos dinheiro suficiente para prefeitos e vereadores inundarem a campanha de cestas básicas. É pelo assistencialismo, outro acionista desta tragédia, que o Centrão pretende fazer a festa da situação.

Passadas as eleições, contados mortos, feridos e desempregados, terá chegado a hora de a assembleia de acionistas decidir se o presidente Jair Bolsonaro ainda deve se manter na condição de sócio majoritário desta pandemia.


Fernando Exman: O frágil armistício entre as instituições

Destino de Flávio Bolsonaro entra no radar dos Poderes

O destino político do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) entrou de vez na agenda do Legislativo e do Judiciário. Nos últimos dias, virou assunto de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), integrantes do Ministério Público e parlamentares. Sob a ótica governista, ataca-se o “filho 01” para atingir o presidente da República e desestabilizar o Executivo. Defendê-lo, portanto, é também proteger o próprio governo.

Essa visão transformou as apurações sobre denúncias de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, um caso paroquial que revela algumas das tristes características da política brasileira, numa matéria capaz de afetar a relação entre os três Poderes. Num cenário extremo, até prejudicar o atual momento de relativa estabilidade institucional.

Brasília vive hoje um período de trégua. Um armistício há tempos demandado pelos aliados e auxiliares mais experientes do presidente, mas que só ganhou forma depois da prisão de Fabrício Queiroz.

O ex-assessor do senador foi encontrado no interior de São Paulo há cerca de duas semanas. Estava na casa do advogado Frederick Wasseff, que é ligado à família Bolsonaro e fazia a defesa do parlamentar no caso das chamadas “rachadinhas” da assembleia fluminense.

O primogênito do presidente da República é investigado pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa por supostos desvios de salários de funcionários de seu gabinete quando era deputado estadual. Não foi condenado e, portanto, mantém a ficha limpa. Pode insistir no discurso de que querem atacá-lo para atingir seu pai e o governo, apesar das incertezas relacionadas ao caso.

Ainda estão turvas as explicações de Wasseff sobre as motivações que o levaram a manter Queiroz sob seus cuidados pessoais, longe da sociedade e mais longe ainda dos olhos dos investigadores. Estão mais nítidos, por outro lado, os sinais emitidos pela esposa de Queiroz, que está foragida, de que poderia ter interesse em fazer uma delação premiada.

O episódio alterou o comportamento do presidente. Ele tem evitado contatos com a imprensa e com os apoiadores que insistem em esperá-lo na portaria do Palácio da Alvorada. Dias antes da prisão de Queiroz, pessoas não alinhadas ao governo foram ao local até então ocupado apenas por bolsonaristas para contestá-lo - uma moda que tinha tudo para pegar e gerar seguidos constrangimentos ao chefe do Executivo, diante da prisão do antigo aliado.

Se a sua disposição para o embate público diminuiu, aumentou nos bastidores o empenho de Bolsonaro para recompor as relações com as cúpulas do Parlamento e do Judiciário. E é justamente no Supremo Tribunal Federal (STF) onde o presidente e seu grupo político-familiar encontram hoje maior imprevisibilidade.

Enquanto deputados e senadores se esforçam para votar um projeto de lei que busca combater a disseminação de “fake news” a contragosto do governo, o STF já foi além e identificou entre aliados do presidente alguns dos responsáveis pelo financiamento e pela publicação de mensagens de ódio e notícias falsas na internet. Um outro inquérito em andamento na Corte também alcançou apoiadores de Bolsonaro quando se foi procurar quem estava por trás da realização de atos antidemocráticos.

Já a Justiça Eleitoral começou a julgar as ações que, em tese, podem levar à cassação da chapa vitoriosa da eleição de 2018. Independentemente do resultado desses julgamentos, algum recurso acabará sendo protocolado no STF.

Todos esses fatores já estavam no cálculo do presidente e o preocupavam. Agora, no entanto, o cenário se agravou.

Não tardou para que o caso de Flávio chegasse ao Supremo. Na segunda-feira, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) pediu que seja revertida a decisão do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) que concedeu foro privilegiado ao senador. A demanda é que ele volte a ser julgado pela primeira instância, o que já teve ressonância entre os integrantes da Corte que mantêm a visão segundo a qual a prerrogativa de foro deve ser aplicada apenas a crimes cometidos durante o exercício do mandato e relacionados às funções desempenhadas.

O caminho de Flávio parece um pouco mais fácil no Congresso, onde o governo está tendo sucesso em construir uma base aliada e tem poder de barganha para atingir seus objetivos com mais facilidade quando está disposto a negociar.

Bolsonaro decidiu abrir as portas do governo para os partidos do Centrão. Emissários do Executivo também já não se preocupam mais em esconder que o governo tentará, sim, influenciar as eleições para presidente da Câmara dos Deputados e do Senado, pois quer aliados fiéis à frente das Casas Legislativas.

As disputas ocorrerão apenas em fevereiro do ano que vem, mas os pré-candidatos já se movimentam. Terão diversos testes à frente durante votações de interesse do governo e precisarão dar demonstrações de combatividade para proteger Bolsonaro e sua família.

O tratamento dado aos filhos do presidente é um critério que será observado no Palácio do Planalto, onde até agora não há motivos para queixas. Flávio não foi incomodado pelo Conselho de Ética do Senado e a tendência é que assim continue, caso não ocorra um considerável agravamento da sua situação no âmbito do processo na Justiça. O colegiado é presidido por um aliado do presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que foi eleito com apoio do governo e precisará continuar com esse respaldo para alterar a Constituição se quiser concorrer a um novo mandato.

Na Câmara, diversos pré-candidatos à presidência, todos eles influentes em suas bancadas e entre correligionários do Senado, prestigiaram Flávio Bolsonaro em um jantar promovido recentemente por seu partido para demonstrar o apoio que o Centrão lhe dará nesta fase difícil da vida.

Espera-se a mesma eficiência do governo na articulação para a aprovação de projetos que continuem a reduzir os efeitos da crise e construam uma agenda de saída para o pós-pandemia. Isso se a trégua durar.


Sergio Lamucci: O derretimento da demanda privada

Garantir uma trajetória fiscal sustentável será essencial para manter os juros em níveis baixos, um trunfo decisivo para a retomada

O primeiro semestre chega ao fim com a certeza de que 2020 vai registrar o maior tombo do Produto Interno Bruto (PIB) da história brasileira, e com muitas dúvidas sobre as perspectivas de recuperação da atividade. Há grande incerteza sobre a reação de famílias e empresas, muitas das quais vão sair machucadas da crise, num cenário marcado pela resposta desastrosa do governo federal à pandemia da covid-19 e pelo relaxamento prematuro do isolamento social por vários Estados e municípios. Além disso, o cenário político segue outra fonte de incerteza.

As medidas para combater os efeitos da doença levarão a uma forte piora das contas públicas, necessária num quadro de forte retração da economia, mas que terá de ser enfrentada a partir do ano que vem. O déficit primário deve superar 10% do PIB, e a dívida bruta tende a encostar em 100% do PIB. Será preciso retomar o ajuste fiscal a partir de 2021, obviamente não de modo abrupto, mas de maneira a indicar a sustentabilidade das contas públicas. Com isso, os juros poderão continuar baixos, o que será essencial para estimular a demanda e facilitar a dinâmica do endividamento do setor público e do setor privado, como ressalta o economista-chefe da corretora Tullett Prebon, Fernando Montero.

Em suas análises, Montero tem afirmado que o baque na economia não decorre tanto da perda de rendas na pandemia que, “ao contrário, são mais que substituídas por despesas e transferências públicas financiadas com endividamento público”. Segundo ele, “foi a propensão ao gasto privado - o consumo e o investimento - que derreteu, antes que sua renda”. É claro que há muitos casos de perda de renda durante a crise, mas Montero avalia que o tamanho total da expansão de despesas e transferências é superior a essa queda. “Haverá aumento no endividamento líquido de parte da sociedade, que gastará mais que sua renda. Mas haverá outra parte que gastará menos.”

Montero considera que o aumento do déficit primário (não inclui gastos com juros) vai injetar mais dinheiro na economia do que a crise vai subtrair. Segundo ele, o déficit primário do setor público consolidado deverá sair de R$ 64 bilhões nos 12 meses até março para cerca de R$ 800 bilhões nos 12 meses até dezembro. “Isso comporta de abril a dezembro de 2020 uma piora de R$ 736 bilhões em relação a esses meses de 2019”, observa ele. “Esse é o adicional de gastos e transferências líquidas de rendas públicas no remanescente deste ano.” No mesmo período, o PIB nominal deverá cair R$ 373 bilhões. Com isso, a política fiscal injetará R$ 736 bilhões a mais de gastos e rendas líquidas nos três últimos trimestres de 2020 em relação a 2019, num PIB nominal que cairá algo como metade disso.

Para Montero, “a retração não é um problema primordialmente de oferta, que derruba a renda dos trabalhadores, levando consigo o seu consumo; fosse isso, os programas emergenciais resolveriam”. Economia, diz ele, é circulação. “No pós-pandemia, o que a política econômica precisa retomar é a propensão a gastar.”

Essa conjuntura não vai registrar apenas a maior queda histórica do PIB, mas também a maior e mais rápida piora fiscal, escreve Montero. “A combinação diz respeito a uma quebra na demanda privada interna a todas as luzes atroz. A economia vai demorar a recuperar essa demanda privada e, pior, precisará fazê-lo com a retirada desse fortíssimo estímulo fiscal.” Esse é o tamanho do desafio, que não pode prescindir do ajuste das contas públicas a partir de 2021, segundo Montero. “Mas é precisamente esse vento de frente, vindo da necessidade de ancorar o fiscal, que abre o espaço e a necessidade de continuar testando os limites da política monetária”, acrescenta. Ele vê espaço para os juros, hoje em 2,25% ao ano, caírem para 1,5%. E, para que as taxas sigam em níveis baixos, será preciso retirar os estímulos fiscais.

Na visão de Montero, o melhor retrato para o resultado primário está nas contas do secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, cuja estimativa de um corte contratado de despesas em 2021, “em obediência ao teto de gastos, deve já alcançar os R$ 400 bilhões”. Para sair do buraco, serão necessárias políticas agressivas de juros e de crédito, assim como a retomada da agenda de reformas, avalia ele. “À medida que as âncoras fiscais se sustentem, o espaço e a necessidade para menos juros crescem muito”, diz Montero, reiterando que “a política monetária poderá não ser a condição suficiente, mas será absolutamente a condição necessária”. Para ele, estratégias alternativas de retomada que questionem essas âncoras fiscais, hoje resumidas especialmente no teto de gastos, precisariam compensar os impactos das incertezas sobre a curva de juros e o risco-país, o que exigiria “promessas de multiplicadores fiscais poderosíssimos, difíceis de enxergar”. Ou seja, aumentos de despesas públicas teriam que provocar um efeito muito forte sobre a economia para contrabalançar os impactos negativos sobre os juros futuros e os prêmios de risco.

A saída da crise será complicada, a começar pelo fato de a reabertura precoce da economia poder levar ao recrudescimento da doença, exigindo a adoção de novas medidas rigorosas de isolamento mais à frente. O desemprego deve subir com força e muitas empresas de menor porte tendem a quebrar, por não conseguir acesso ao crédito.

Tornar permanente o auxílio emergencial de R$ 600 por mês é insustentável, mas ele deve ser estendido por alguns meses com valores menores, e há discussões para a adoção de um programa de transferência de renda mais amplo que o Bolsa Família, uma medida bem-vinda. Seria importante financiá-lo com o fim de subsídios e com a tributação maior da renda dos mais ricos, mas não é uma tarefa politicamente simples.

A política fiscal não terá como ser expansionista em 2021. O teto de gastos, que limita o crescimento das despesas da União, é um mecanismo que pode ser aperfeiçoado, mas mexer nele agora traz riscos que podem ser contraproducentes. O investimento público caiu para níveis muito baixos, que não cobrem nem a depreciação do estoque de capital do setor público. É importante encontrar espaço para aumentá-lo, enfrentando a rigidez dos gastos obrigatórios, como os de pessoal. Mas o investimento público não vai crescer com força de uma hora para outra, por causa da dificuldade de execução de projetos pelo setor público e dos limites do orçamento. Garantir uma trajetória sustentável para as contas públicas será essencial para manter os juros em níveis baixos, um trunfo decisivo para a retomada, ainda que não seja suficiente, como diz Montero.


Bruno Carazza: Os números estarão certos desta vez?

Temporada de pesquisas nos EUA favorece Biden

George Gallup chegou a Madison Avenue muito antes de Donald Drapper, o fictício publicitário da aclamada série Mad Men. Aos 31 anos ele foi contratado para ser diretor da agência Young and Rubicam, levando para o centro criativo da publicidade em Nova York o seu revolucionário método de aferir a opinião pública por meio de levantamentos por amostragem.

Gallup aplicava suas técnicas para medir a efetividade de anúncios e comerciais de produtos em jornais, revistas e rádio, mas naquele ano (1932) resolveu fazer um experimento familiar. Sua sogra, Ola Babcock Miller, iria se candidatar a um cargo em Iowa, e o estatístico começou a realizar algumas pesquisas de opinião para aferir suas chances. Ela acabou vencendo, pegando carona na onda democrata de Franklin Roosevelt, com suas propostas para tirar o país da Grande Depressão - e Gallup percebeu que estava diante de uma grande oportunidade de negócios.

Nas eleições presidenciais seguintes veio a sua consagração. Uma revista popular na época, a The Literary Digest, enviou 10 milhões de formulários para seus assinantes pedindo que eles respondessem em quem votariam: no presidente Roosevelt ou no republicano Alf Landon. 2,27 milhões responderam à enquete e, quatro dias antes da eleição, a revista anunciava que o desafiante Landon venceria com 57,1% dos votos.

George Gallup trilhou um caminho diferente. Sua equipe foi a campo e, consultando apenas 50.000 pessoas, chegou à conclusão de que Roosevelt seria reeleito. Ao abrirem as urnas, Gallup tinha razão: Roosevelt venceu, arrebatando 62% dos votos.

A façanha de Gallup ao prever o resultado das eleições presidenciais americanas tinha explicação. Apesar de se apoiar numa amostra muito grande, a pesquisa da Literary Digest sofria de dois problemas graves. O primeiro é que, ao se basear apenas nas respostas de seus assinantes, sua enquete deixava de fora o imenso contingente de desempregados da crise de 1929 - havia, portanto, um viés de seleção a favor de respondentes mais ricos. Mais do que isso, os respondentes tinham que se dirigir aos correios para enviar o formulário de volta à revista, somente aqueles mais motivados participaram e, assim, a amostra não era aleatória.

Ao conduzir sua pesquisa com técnicas modernas de amostragem, Gallup provou que era possível obter resultados muito mais confiáveis a um custo consideravelmente menor - bastava desenhar corretamente uma amostra que refletisse a composição da população em relação às suas principais características de distribuição geográfica, renda, idade e assim por diante.

A partir de então o instituto Gallup reinou absoluto por muitas décadas, expandindo seus negócios para diversos países. Essa trajetória, porém, também teve seus fracassos retumbantes.

No pleito de 1948, Gallup aferiu 45 dias antes da eleição que o presidente Harry Truman seria derrotado pelo republicano Thomas Dewey por uma diferença de 46,5% a 38%. Baseando-se na experiência passada de que os eleitores decidem seus votos logo após as primárias e as convenções dos partidos, Gallup descartou a possibilidade de uma virada no placar às vésperas da votação.

Fiando-se na opinião de Gallup e de outros analistas políticos, o jornal pró-republicano Chicago Daily Tribune chegou a estampar na primeira página, no dia seguinte à eleição, a manchete “Dewey derrota Truman”. Contados os votos, Truman venceu por 49,6% a 45,1% - e sua foto sorridente, segurando a capa do jornal que anunciou equivocadamente a sua derrota, entrou para a história das eleições americanas.

E então chegamos a 2016. Ainda há controvérsia sobre as razões do fracasso dos institutos de pesquisas em prever a vitória de Trump. Algumas hipóteses são quase consensuais. A primeira delas é que, como em 1948, muitos eleitores decidiram seu voto na última hora, e os levantamentos não conseguiram captar esse movimento.

Também contribuiu para o erro uma taxa de comparecimento à votação mais alta do que a média histórica entre os republicanos, ao mesmo tempo em que aconteceu o contrário entre os apoiadores de Hillary Clinton - é sempre bom lembrar que as eleições nos EUA são voluntárias e ocorrem em dias úteis. Por fim, os institutos falharam ao não ajustar suas amostras para levar em conta as diferenças de escolaridade do eleitorado, uma clivagem que foi muito mais acentuada em 2016.

A praticamente quatro meses das eleições, está aberta a temporada de pesquisas para tentar descobrir quem ocupará a Casa Branca a partir de 20 de janeiro de 2021. Na última semana, o jornal NYTimes publicou seus primeiros resultados, mostrando uma expressiva liderança de 14 pontos percentuais entre Joe Biden (com 50% das intenções de voto) e o presidente Trump (36%).

Além de ter ampliado a margem de apoio em redutos tradicionalmente dominados pelos democratas (como negros, latinos e jovens), Biden parece estar roubando importantes fatias de eleitores que foram decisivos para a vitória de Trump em 2016, como brancos com baixa escolaridade, idosos e moradores dos chamados swing states - aqueles sem uma inclinação partidária definida e que, no último pleito, fecharam com Trump por uma pequena margem, como Michigan, Flórida, Pensilvânia, Wisconsin, Arizona e Carolina do Norte.

A revista inglesa The Economist, por sua vez, divulgou um modelo que combina levantamentos de intenção de votos e diversos indicadores econômicos para estimar as probabilidades de vitória de cada candidato. Com dados atualizados diariamente, a publicação concluiu que o apoio a Biden começou a subir em meados de março e hoje atinge uma surpreendente taxa de 90% de chance de derrotar Trump em 04 de novembro. Os dados deixam claro que a gestão da crise da covid-19 e a reação aos protestos contra a discriminação após o assassinato de George Floyd têm pesado bastante na popularidade de Trump.

Há poucos meses ninguém poderia imaginar que o mundo viraria de ponta a cabeça por causa de um vírus; extrapolar esses resultados para novembro, portanto, seria uma temeridade. Mas, como Gallup diria, quando um político analisa os resultados de pesquisa, ele está ouvindo as visões das pessoas. E, neste momento, a maioria dos americanos parece estar se afastando de Donald Trump.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Humberto Saccomandi: Uma epidemia de ódio ameaça EUA e Brasil

O ódio político pode afetar a economia pois leva ao impasse

Cuidado com a sua raiva. Raiva do presidente Jair Bolsonaro, do PT, do STF, do MST, da mídia, do movimento LGBT, dos ambientalistas, do seu colega evangélico, do seu primo que pede intervenção militar. A raiva política, que parece ter o efeito positivo de ressaltar nossas convicções e/ou indignações, provavelmente está trazendo prejuízos a todos. É um epidemia para a qual não existirá vacina tão cedo.

Essa é, adaptada ao Brasil, a tese de Steven Webster, professor de Ciências Políticas na Universidade de Indiana (EUA), que lancará em setembro o livro "American Rage", a raiva americana. Há uma extensa literatura recente que tenta lançar luz sobre o crescente fenômeno da polarização política nos EUA. Webster disse ao Valor que se concentrou nas consequências sistêmicas.

Para ele, a raiva ao oponente político virou a força dominante da política americana. E essa extrema polarização está destruindo a confiança das pessoas nas instituições, o que leva a um governo disfuncional, ameaça a democracia e causa prejuízos à economia. Isso parece ocorrer no Brasil também.

A disfunção ficou evidente na reação catastrófica dos dois países, na área da saúde, à epidemia. Para os apoiadores de Donald Trump/Bolsonaro, a cloroquina era uma solução, apesar da evidências científicas de que o medicamento não funciona. Os presidente não buscaram políticas de consenso nem colaboração com os Estados. Agora, ambos ignoram a disparada no número de casos.

Sempre houve raiva política na história dos EUA. O que há de novo nos últimos 25 anos, diz Webster, é a extensão da raiva dos americanos e a frequência com que eles estão dispostos a expressá-la.

Ele atribui isso a três fatores principais: um é o casamento da identidade partidária com a identidade racial, cultural ou ideológica. “Cada vez mais os republicanos são o partido dos brancos, e os democratas são uma coalizão multiétnica. Essa diferente composição influencia as políticas que os partidos acabam defendendo.”

Os outros dois fatores são: as mudanças na mídia, com a importância crescente da mídia explicitamente partidária; e as novas tecnologias de internet, que facilitam a expressão do ódio. É mais fácil ser agressivo com alguém numa rede social, sentado no sofá de casa, do que fazê-lo socialmente, num bar.

“Trata-se cada vez mais de um jogo de soma zero. Minha vitória é a sua derrota, e vice-versa. Houve uma transição de eu perceber que há pessoas que discordam de mim para eu achar que essas pessoas são oponentes a serem derrotados”, diz Webster. “A raiva leva as pessoas a enxergar os outros pela lente da política, e não como pessoas, numa espécie de desumanização política. Os apoiadores do outro lado são vistos cada vez mais como uma ameaça ao bem-estar do país e até como menos inteligentes.”

Essa polarização pela raiva não foi criada nem por Trump nem por Bolsonaro. Ela os precedeu e é provável que continuará depois deles. Mas ambos deliberadamente a fomentam e se nutrem dela.

Webster diz que os dois principais partidos americanos mudaram e rumam para os extremos. Mas ele condivide a teoria da polarização assimétrica, isto é, que os republicanos foram mais para a direita do que os democratas para a esquerda. E, para se justificarem, precisam tentar colar no oponente a pecha de extremista. Trump repete todo dia que os democratas foram tomados por radicais. No Brasil, qualquer um que se oponha a Bolsonaro vira instantaneamente socialista ou comunista.

“O ódio político pode afetar a economia porque leva ao impasse. Se os eleitores estão com raiva do partido rival, isso cria o incentivo para as autoridades eleitas não façam acordos com membros do outro partido. E sem esse entendimento suprapartidário, é difícil enfrentar grandes questões nacionais”, disse.

O Medicare, o programa de saúde público para pessoas com mais de 65 anos, criado em 1965, no governo do democrata Lyndon Johnson, só passou no Congresso dos EUA graças ao voto favorável de 13 senadores republicanos, pois 7 senadores democratas votaram contra. Quando o Obamacare, seguro saúde compulsório com ampla participação privada, foi aprovado em 2010, nenhum deputado ou senador republicano votou a favor. Trump não conseguiu derrubar o programa, mas o desidratou. Com isso, dezenas de milhões de americanos enfrentam agora a epidemia sem plano de saúde.

Nem todo o mundo é assim, claro. A Dinamarca aprovou nesta semana um ambicioso plano de cortar as emissões de carbono em 70% até 2030. A proposta teve o apoio de mais de 95% do Parlamento. Os principais lobbies empresariais defendem o plano, ainda que ele possa levar a um aumento de impostos para financiar a conversão energética.

No Brasil e nos EUA, esse consenso é impossível. Temas de ambiente e aquecimento global foram colocados no escaninho da esquerda. Viraram não-assunto para a direita. Do mesmo modo, limitar a imigração é tema ignorado pela esquerda, apesar de ser demanda legítima de parte da população.

O candidato democrata, Joe Biden, pode não alimentar o ódio na sua campanha, mas ele quase não precisa disso, pois boa parte do país já tem tanta raiva de Trump e só a presença do presidente nas eleições já basta. “E é muito provável que grupos democratas explorem essa raiva.”

Ainda que a raiva possa ajudar os democratas nas eleições, ela é um risco à democracia, diz Webster. “Quanto mais os EUA ficarem polarizados, mais difícil se tornará manter a democracia. A democracia requer confiança, fazer concessões, um equilíbrio delicado, cada vez mais raro.”

Há saída para essa epidemia de ódio? “Espero, mas sou pessimista”, diz Webster. “Acho que será preciso algo grande e que afete todo o país para fazer as pessoas deixarem de lado a sua natureza partidária. Há evidência de que, quando algo as fazem se enxergar como americanos, e não democratas ou republicanos, isso reduz a hostilidade. Foi o que ocorreu no 11 de Setembro. A confiança no governo aumentou, o presidente George W. Bush teve a sua maior aprovação e muita gente trabalhou junto para um objetivo comum. É difícil saber se isso é factível sem que algo terrível aconteça. E ninguém deseja um ataque terrorista.”

Ele recomenda conter a raiva. “Uma dose de raiva é bom, pois eleva a participação na politica. Precisamos de uma quantidade saudável de raiva, não demais”.

*Humberto Saccomandi é editor de Internacional


Claudia Safatle: Crédito começa a chegar às microempresas

Até agora só a Caixa conseguiu liberar R$ 308 milhões de crédito

A avaliação do governo é de que ele, finalmente, começou a entregar os créditos prometidos no início da pandemia, para sustentar milhões de micro e pequenas empresas durante a crise da covid-19. E isso se deve, sobretudo, ao efetivo início do Pronampe (Programa Nacional de Apoio as Microempresas e as Empresas de Pequeno Porte), linha de financiamento equivalente a 30% do faturamento da empresa no ano passado, para capital de giro, ao custo de Selic mais 1,25% ao ano. O universo é o de empresas com faturamento de até R$, 4,8 milhões por ano.

Na verdade, porém, apenas a Caixa já está operando com essa linha de crédito. “O Banco do Brasil é mais lento e o Itaú, Bradesco e Santander estão em fase final de arrumação para operacionalizar os procedimentos com esse público que não é o deles”, segundo disse um assessor do Ministério da Economia que está acompanhando o dia a dia dessas operações para se certificar de que o crédito está chegando ao tomador final.

“Nas nossas previsões, até o dia 15 de julho estarão todos os interessados operando com o Pronampe”, acredita essa mesma fonte, que monitora com lupa a atuação principalmente dos cinco maiores bancos do país.

Há, de fato, uma fase de adaptação até à elaboração dos novos modelos de contratos onde as garantias deixam de ser dadas pelo cliente e passam a ser assumidas integralmente pelo Tesouro Nacional, mediante o FGO - o Fundo Garantidor das Operações.

O fundo foi capitalizado pela União nesta semana em cerca de R$ 15,9 bilhões. E a taxa de juros que passa a ser de cerca de 0,3% ao mês e deixa de ser os 2% a 3% ao mês das linhas próprias das instituições financeiras para as micro e pequenas companhias.

O Pronampe somado à linha de crédito para empresas “âncoras”, do BNDES, e ao Programa Emergencial de Acesso ao Crédito com garantia integral do FGI - Fundo Garantidor de crédito de Investimentos, também do BNDES, devem representar quase R$ 300 bilhões em oferta de crédito para as micro, pequenas e médias empresas.

Foi exatamente esse universo das micro e pequenas empresas que a Caixa havia definido como estratégico para suas operações desde o ano passado e, em poucos dias, conseguiu “botar no ar” a linha de crédito do Pronampe.

Segundo o vice presidente de Negócios de Varejo da Caixa, Celso Leonardo Barbosa, do dia 17 até ontem, a instituição havia fechado 6.500 contratos no valor de R$ 308 milhões que já foram depositados nas contas das empresas. Além disso, tem 5.700 contratos no valor de R$ 310 milhões, em fase final de negociação sejam os empreendedores clientes da Caixa ou não. A previsão inicial da Caixa é de atender a demanda de até R$ 3 bilhões mas, se for necessário, ela aportará mais recursos para esse fim.

Criado pela lei 13.999 de 19 de maio, o Pronampe já nasceu com a necessidade de adiar por mais 90 dias o prazo de contratação que se encerraria no fim de julho. Portanto, a linha de crédito estará em vigor até outubro.

O quadro atual de interesses do sistema financeiro em contratar crédito com as micro e pequenas empresas, até quarta feira, era o seguinte: 21 instituições manifestaram intenção de aderir ao programa. Dessas, no entanto, apenas oito iniciaram o pedido de adesão, três instituições concluíram testes para operacionalização (Caixa, Itaú e Bancoob) e 2 formalizaram adesão ao programa (Caixa e Itaú). Até ontem porém, só a Caixa havia contratado operações com garantia do FGO.

Esse é um mundo novo para os bancos tradicionais que gostam mesmo é de ter na sua clientela grandes empresas que podem despejar garantias em eventuais contratos de financiamentos. Para colocar o Pronampe em pé, o governo teve que capitalizar os fundos garantidores (FGO e FGI) e dar um jeito de assumir integralmente o risco de crédito para micro, pequenas e médias empresas.

Feito isso, o sistema financeiro está tendo que reavaliar suas premissas de análise de risco e ampliar as hipóteses de tamanho das empresas em seus portfólios. E não é raro um ou outro banco pedir ajuda da Caixa para lidar com essa nova clientela.

Isso leva o mais liberal dos liberais a defender a existência de um banco estatal com funções sociais para os momentos de crise aguda.

E reforça, ao mesmo tempo, a postura do ministro da Economia, Paulo Guedes, que na famosa reunião ministerial do dia 22 de abril, entre uns e outros desatinos cometidos pelos participantes, defendeu a privatização do Banco do Brasil que, afinal, é um bicho híbrido e, como tal, não justifica sua porção estatal.

Quando o Comitê Gestor do Simples Nacional prorrogou o prazo para o pagamento dos impostos federais, o fez por até 180 dias. Os Estados e municípios, no entanto, prorrogaram por somente 90 dias o pagamento do ICMS e do ISS, de forma que dia 20 de julho serão cobradas as parcelas relativas à abril.

O assessor especial do Ministério da Fazenda, Guilherme Afif Domingos, telefonou para o secretário de Fazenda do Estado de São Paulo, Henrique Meirelles, que é o porta voz dos governos estaduais nessa questão, para saber porque eles não pensam em ampliar a prorrogação dos impostos por mais 90 dias, Meirelles tergiversou, dizendo que essa não era a proposta dos demais governadores etc. e tal.

Afif interpretou tal posicionamento como uma maneira de os Estados da federação tentarem obter mais alguma vantagem da União em troca de uma nova prorrogação.

“Eles pararam a atividade econômica nos seu Estados e agora querem cobrar impostos dos microempresários! Querem o quê? Incentivar a inadimplência?”, indagou Afif, que pautou sua vida pública em defesa dos micro, pequenos e médios empresários.

“Isso aí é moeda de chantagem. Eles querem usar os microempresários para ver se tiram uma vantagem a mais da União”, disse ele.