valor
Ribamar Oliveira: Ala liberal perde substância no governo
Privatizar estatais e fazer reformas sempre foi difícil no Brasil
O que há de mais significativo na saída de duas importantes autoridades do Ministério da Economia, nesta semana, é que elas fazem parte da mesma ala liberal que procura, desde o início, montar uma agenda modernizadora e liberalizante para o atual governo. A saída deles cria interrogações sobre o futuro, pois indica um esvaziamento e perda de substância desse pensamento ideológico dentro do governo.
O momento da saída foi muito ruim, pois o ministro Paulo Guedes enfrenta uma disputa interna com as alas militar e política do governo, que querem um programa de investimento em obras de infraestrutura como estratégia para sair da crise econômica provocada pela pandemia.
Guedes está praticamente sozinho dentro do governo na defesa do teto de gastos da União, quando até o filho mais velho do presidente da República diz que ele precisa arrumar “um dinheirinho” para aumentar os investimentos públicos. O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) se esquece que “um dinheirinho” o ministro da Economia até pode arrumar, o que ele não conseguirá é abrir um espaço no teto de gastos para fazer os investimentos que o primogênito de Jair Bolsonaro deseja.
Duas coisas espantam nesse episódio. A primeira foram as razões alegadas pelos assessores de Guedes para os pedidos de demissão. O secretário especial de Desestatização, Salim Mattar, disse ao ministro que “é muito difícil privatizar, que o ‘establishment’ não deixa fazer privatização, que tudo é muito emperrado, que tem que ter um apoio mais definido e decisivo”. O secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Paulo Uebel, queixou-se, segundo relato de Guedes, que “a reforma administrativa está parada”.
As razões apresentadas parecem ingênuas. Uma rápida olhada na história recente do Brasil vai mostrar que privatizar estatais nunca foi tarefa fácil, desde que o ex-presidente João Figueiredo criou o primeiro programa brasileiro de desestatização, no início da década de 1980. De lá para cá, houve muitos avanços importantes nessa área, como a privatização do grupo Telebrás. Mas outras iniciativas foram paralisadas por interesses conhecidos, como é o caso do grupo Eletrobras, que está para ser privatizado desde o governo do ex-presidente Michel Temer e não se consegue.
Ao contrário do que pensam alguns, não são apenas os partidos de esquerda e os sindicatos que se mobilizam contra as privatizações. Os integrantes dos partidos que fazem parte do chamado Centrão também gostam de ocupar cargos bem remunerados nas estatais. As estatais foram, até passado recente, usadas para fazer negócios escusos, que beneficiaram grupos políticos. Muitos ainda as veem como fonte para obtenção de vantagens ilícitas.
O caso das reformas estruturais, como a administrativa, não é diferente. Se Uebel fosse político saberia das dificuldades para aprovar no Congresso Nacional mudanças que tiram privilégios ou afetam pretensos direitos ou interesses constituídos. Vale lembrar, por exemplo, que a reforma tributária é discutida no Congresso há pelo menos 30 anos, sem avançar.
No livro “Por que é difícil fazer reformas econômicas no Brasil?”, lançado neste ano, o economista Marcos Mendes enumera uma série de questões que dificultam as mudanças. Uma delas é o sistema político-eleitoral, que complica a formação de maiorias parlamentares. No caso do governo Bolsonaro, em que o presidente nem sequer tem partido, o problema é ainda maior. Outros obstáculos citados por Mendes são os conflitos entre os Poderes, uma Constituição muito detalhista, uma baixa coesão social e um país muito grande, com expressivas desigualdades regionais.
Mattar e Uebel achavam que desta vez seria fácil fazer as privatizações e as reformas, apenas porque consideram que elas são o melhor caminho para o avanço do país? Seria ingenuidade acreditar que sem base política ampla no Congresso é possível aprovar medidas que exigem três quintos dos votos de deputados e senadores.
Para fazer as reformas e as privatizações, é necessário também vontade política do presidente da República. A saída de Mattar e Uebel indica que eles concluíram que Bolsonaro já não tem vontade de fazer um forte programa de privatização, a toque de caixa, nem de encarar os desafios de uma reforma administrativa.
Outra coisa que causou espanto foram as palavras de Guedes sobre o teto de gastos. “Os conselheiros do presidente que o estão aconselhando a pular a cerca e a furar o teto vão levar o presidente para uma zona sombria, uma zona de impeachment, de irresponsabilidade fiscal”, disse o ministro. Com a frase, Guedes não apenas tornou pública a disputa dentro do governo em torno desta questão, como lembrou ao presidente que crise fiscal pode levar à sua destituição, como aconteceu com a ex-presidente Dilma Rousseff.
O ministro Paulo Guedes rejeitou a proposta de “seguro-receita” para os Estados durante a pandemia, feita no PLP 149, de autoria do deputado Pedro Paulo (DEM-RJ, que chegou a ser aprovada pela Câmara. Por pressão de Guedes, o Senado fez outro projeto, que resultou na lei complementar 173, fixando um teto de R$ 60,15 bilhões a serem repassados aos governos estaduais e prefeituras para cobrir perdas de arrecadação.
O resultado foi que o tiro saiu pela culatra. Os dois primeiros repasses aos Estados feitos pelo Tesouro superaram as perdas que eles tiveram com o ICMS. “Eu avisei que isso ia acontecer”, disse Pedro Paulo, em conversa com o Valor. “O PLP era muito mais lógico tecnicamente e seria mais barato, eficiente e justo do que a LC 173”, afirmou. “Com os dados reais de queda de arrecadação do ICMS e ISS, vemos que o Tesouro gastará R$ 20 bilhões a mais do que seria necessário e de forma absolutamente desigual”, disse.
Pedro Paulo informou que encaminhou ontem uma Proposta de Fiscalização Financeira e Controle (PFC) ao Tribunal de Contas da União (TCU) solicitando a fiscalização desses recursos para evitar que sejam aplicados em ações não relacionadas à pandemia, cobrando responsabilidade e devolução à União.
Maria Cristina Fernandes: Um técnico prestigiado
Guedes age para elevar o preço de sua demissão
Às 8h45 desta quarta-feira o presidente Jair Bolsonaro fez um textão no Facebook. Reiterou compromisso com privatizações, justificou as dificuldades em viabilizá-las, reafirmou o “norte” da responsabilidade fiscal e do teto de gastos e disse ver com naturalidade a saída de colaboradores.
Agiu como o presidente do clube que sai a público, 15 minutos antes do início do jogo, para dizer que o técnico está prestigiado. A torcida captou. Dólar e juro abriram em queda, mas sem debandada. Estava claro, porém, que se protelara uma situação insustentável. O desfecho tarda porque, além de o técnico resistir a sair, não há substituto à mão.
Na véspera, Paulo Guedes, depois de se reunir com Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, Casa que abriga 52 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, espicaçou. Disse que os “conselheiros” do presidente, ao lhe sugerirem “pular a cerca e furar o teto”, facilitariam a abreviação de seu mandato.
O ministro da Economia, que acabara de receber os pedidos de demissão dos secretários Salim Mattar (Desestatização e Privatização) e Paulo Uebel (Desburocratização, Gestão e Governo Digital), parecia estar fazendo uma ameaça velada ao presidente. Se o objetivo da gastança é a reeleição, o mandato pode acabar antes da chance de ser renovado. Foi o que disse.
Agiu como se acreditasse que o presidente só tivesse o mercado, do qual fala como fiador, a sustentá-lo. Parte do pressuposto de que Bolsonaro já perdeu a classe média e está a caminho de também ficar desprovido do apoio dos mais pobres com o fim do auxílio emergencial de R$ 600. O ministro valeu-se da saída de Mattar e Uebel para tentar enquadrar o presidente. Mostrou-se um “trader” que além de ganhar a parada tem que se exibir como vitorioso.
E, de fato, a oposição do presidente da Câmara à prorrogação da calamidade pública e o alerta do TCU em relação às pedaladas dos créditos extraordinários levaram o governo a recuar da intenção de alocar R$ 35 bilhões nas mãos dos ministros “obreiros”, Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) e Tarcísio Freitas (Infraestrutura).
Sem a calamidade, voltarão a valer a responsabilidade fiscal e a regra de ouro, normas que seriam descumpridas pela alocação que acabou reduzida para R$ 4 bilhões. O desfecho foi vitória de Guedes que, insatisfeito, quis também espicaçar com a ameaça de impeachment.
O comportamento do ministro da Economia o isolou no governo. No início da semana o presidente foi testemunha de uma pesada troca de acusações entre Guedes e Marinho. Sem a calamidade pública, o governo terá que encontrar espaço para criar o Renda Brasil e permitir que as estatais voltem a investir dentro do orçamento. Missão que embaralha até o mais agressivo dos “traders”.
Ao negar apoio à extensão da calamidade, Maia parece atuar pelo reequilíbrio de forças no governo pró-Guedes. Só que não. Sem o "orçamento de guerra", Bolsonaro terá dificuldade de manter seus novos aliados do Centrão. A cena do final do dia, quando voltou a reiterar compromisso fiscal ao lado de ministros e parlamentares, vai ficar como um retrato na parede.
A pretexto de cumprir sua cartilha liberal, Maia embaralhou a articulação política de Bolsonaro e dificultou seu jogo na eleição para a mesa da Câmara. Fez de Guedes o ministro vitorioso de um governo em chamas.
Num uniforme de bombeiro que não lhe cai bem, Guedes foi incapaz de evitar que o fogo cruzado ultrapassasse as fronteiras do Palácio. Nas entrevistas que deu ao longo do dia, Mattar não apenas disse que as estatais eram foco de corrupção, como expôs a ferida da Casa da Moeda.
Poucos fracassos no programa de privatizações são tão representativos. A venda da Casa da Moeda foi incluída numa medida que o Congresso deixou caducar para a grande satisfação do presidente do PTB, Roberto Jefferson, hoje um dos mais ferrenhos aliados de Bolsonaro e rei da Casa da Moeda desde o Mensalão, que o condenou na justiça, até hoje.
Além de perder sucessivos colaboradores - desde o início do governo, além de Mattar e Uebel, saíram Marcos Cintra (Receita Federal) Mansueto de Almeida (Secretaria do Tesouro), Caio Megale (Diretoria de Programas da Secretaria Especial da Fazenda), Marcos Troyjo (Secretaria de Assuntos Internacionais) e Rubem Novaes (Banco do Brasil) - Guedes não ampliou as alianças na Esplanada.
O ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, por exemplo, mais preocupado em fomentar a guerra entre Bolsonaro e a imprensa, não tem tido participação nas conversas para fazer caber o Renda Brasil no Orçamento de 2021.
Guedes tampouco conta com os ministros militares do Palácio, hoje aliançados com Marinho e Freitas, em torno de propostas onde se enxergam não apenas uma via para a reeleição como também a manutenção das estatais e dos projetos do Ministério da Defesa.
Neste bloco não se encontra o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno Ribeiro, cujas diferenças com seus colegas ficaram claras na reportagem de Mônica Gugliano na “Piauí”. Entusiasta de primeira hora da campanha bolsonarista, o general se fiava na dupla Sergio Moro/Paulo Guedes para fazer crer que se tratava de um governo liberal de combate à corrupção.
Hoje o ministro vê seus colegas generais aliançados com os personagens que inspiraram sua composição “Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão” e não se anima a cerrar fileiras na guerra contra Guedes. Trata-se, porém, menos de entusiasmo com o Pró-Brasil do que de uma adesão de peso à causa do ministro da Economia.
Numa tentativa de romper esse isolamento, Guedes buscou ontem, junto ao Tribunal de Contas da União, soluções para conseguir abrigar tanto o Renda Brasil quanto os investimentos das estatais sob o teto de gastos.
Tenta recompor a unidade do governo. A esta altura, porém, ecoa Filipão ao final do primeiro tempo do jogo contra a Alemanha na Copa de 2014. Para o segundo tempo, o Congresso se mobiliza pelas reformas tributária e administrativa. Ambas, a pretexto de convergir com o ministro Paulo Guedes, aumentam a cizânia no setor privado e entre servidores e militares. Trazem, no entanto, a oportunidade de o Congresso posar como reformista frente a um governo que não se entende. Foi-se o tempo, porém, que o 7x1 era a lembrança mais amarga. A derrota, com muito mais dígitos, hoje se conta em vidas.
Fernando Exman: A pandemia como oportunidade eleitoral
Falta de regras para a campanha permite arbitrariedades
Será uma experiência única e, lamentavelmente, inesquecível para as atuais gerações. A eleição municipal foi adiada de outubro para novembro devido à pandemia e por esta será marcada.
As curvas de contaminação a serem observadas no fim do ano são uma incógnita, assim como os potenciais índices de abstenção. Mesmo assim, pré-candidatos já conjecturam como podem levar vantagem sobre adversários. Partidos definem suas estratégias. Traçam cenários de como o vírus pode influenciar não só a atual disputa, mas também a correlação de forças políticas para os próximos anos.
Foi neste clima que ocorreram as discussões sobre a conveniência de se adiar ou não as eleições. Num primeiro momento, muitos dirigentes partidários se posicionaram mais em defesa dos interesses de suas próprias legendas do que preocupados com a saúde dos eleitores. Gostariam, na verdade, de poder adiar para o ano que vem as eleições e que seus correligionários permanecessem no comando das prefeituras até o fim do estado de calamidade.
O plano fracassou. Integrantes das cúpulas do Judiciário e do Legislativo logo impuseram, como condição para que as discussões avançassem, que os mandatos dos atuais prefeitos, vices e vereadores não fossem estendidos. Temia-se a criação de um precedente perigoso, num ambiente radicalizado e com atores relevantes da cena política defendendo, sem pudor, o desrespeito à institucionalidade.
Esse risco extremo parece ter ficado para trás, mas não deve ser esquecido. Os números de infecções e mortes, por outro lado, fazem-se cada vez mais presentes no dia a dia do eleitor. Impedem que se esqueça a periculosidade do novo coronavírus.
São pouquíssimos os municípios que não registram casos de covid-19. Menos de 2% do total, segundo um dado recente do Ministério da Saúde, uma realidade que não deve ser desprezada na hora do voto.
No entanto, definido o novo calendário pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nada mais natural que partidos e parlamentares passassem a se debruçar sobre o tabuleiro. Por isso é de chamar a atenção um levantamento recente do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) sobre o número de pré-candidatos entre deputados federais e senadores.
De saída, segundo o documento, há 123 congressistas no páreo - 121 deputados e 2 senadores. A tendência é de uma diminuição desse total, mas hoje ele supera a média histórica de 94 candidaturas de parlamentares em eleições municipais.
Os dados da série do Diap começaram a ser coletados no pleito de 1992. Em 2016, 81 deputados e 2 senadores entraram na corrida municipal. Os números de 2012 somaram 87 deputados e 5 senadores. A eleição que eleva a média é a de 1996, quando 121 congressistas concorreram aos cargos de prefeito ou vice-prefeito - 117 deputados e 4 senadores.
Alguns fatores explicam esse aumento de interesse. O fim das coligações proporcionais, por exemplo, faz com que os partidos cogitem lançar “figurões” capazes de puxar votos em suas chapas. As capitais são as principais opções das pré-candidaturas dos parlamentares.
São Paulo e Rio de Janeiro são os Estados com o maior número de interessados, com respectivamente 15 e 14 nomes. Em seguida, aparecem Paraná, Minas Gerais e Bahia, com 9 pré-candidatos em cada uma dessas unidades da federação.
Neuriberg Dias do Rêgo, analista político do Diap, elenca outros aspectos. Existe também uma maior disponibilidade de recursos para os parlamentares custearem as campanhas, aponta: além do chamado fundão eleitoral, o fato de as emendas ao Orçamento terem se tornado impositivas mudou a dinâmica do jogo.
Elas viraram um ativo valiosíssimo em tempos de crise econômica e restrição fiscal. Armas poderosas para fazer política na ponta, movimentar a economia local e promover os próprios congressistas ou seus aliados.
Muitos dos pré-candidatos no Congresso tentarão aproveitar a polarização ou a onda que alçou ao poder policiais, religiosos e representantes da chamada nova política. Acreditam poder influenciar as disputas em bases eleitorais estratégicas para as eleições majoritárias de 2022 ou, no mínimo, terem mais facilidades para concorrer à reeleição. Entre os partidos, os destaques do levantamento do Diap são PT (14 pré-candidatos), PSL (12) e PSB (12).
Contudo, Neuriberg Dias do Rêgo diz acreditar que o número de pré-candidaturas tende a refluir para a média histórica nas próximas semanas. O levantamento será atualizado e, claro, concluído quando as candidaturas definitivas forem registradas no TSE, no fim de setembro.
Apesar da novidade para os eleitores de agora, esta não será a primeira vez que eleições ocorrem durante uma crise sanitária de tamanha magnitude.
A gripe espanhola, de 1918, também impactou as eleições daquele ano. Os registros da “Agência Senado” apontam, segundo discursos feitos à época, queixas sobre o baixo comparecimento dos eleitores. Uma das mais notórias vítimas da gripe espanhola no Brasil foi o próprio presidente eleito, Rodrigues Alves, que nem chegou a tomar posse. Uma outra eleição fora de época foi realizada.
Hoje, esta saída não está sobre a mesa. Mas parece inevitável que outra característica do pleito de novembro comece a ganhar peso: a falta de definição de um padrão nacional para as campanhas em meio à pandemia.
A intenção do Tribunal Superior Eleitoral é deixar que Estados e municípios definam como se darão os eventos de rua e os comícios, o que converge com a postura da Justiça de delegar para os entes subnacionais a regulamentação dos comportamentos de distanciamento social. Também pode fazer sentido, quando se pondera a extensão do território nacional e suas especificidades. Mas vem a ser tudo o que um governador ou um prefeito pode querer para eventualmente influenciar a campanha, limitando-a ou ampliando seu alcance, de acordo com seus objetivos políticos. A segurança dos eleitores pode ficar novamente em segundo plano.
Falta de regras para a campanha permite arbitrariedades
Será uma experiência única e, lamentavelmente, inesquecível para as atuais gerações. A eleição municipal foi adiada de outubro para novembro devido à pandemia e por esta será marcada.
As curvas de contaminação a serem observadas no fim do ano são uma incógnita, assim como os potenciais índices de abstenção. Mesmo assim, pré-candidatos já conjecturam como podem levar vantagem sobre adversários. Partidos definem suas estratégias. Traçam cenários de como o vírus pode influenciar não só a atual disputa, mas também a correlação de forças políticas para os próximos anos.
Foi neste clima que ocorreram as discussões sobre a conveniência de se adiar ou não as eleições. Num primeiro momento, muitos dirigentes partidários se posicionaram mais em defesa dos interesses de suas próprias legendas do que preocupados com a saúde dos eleitores. Gostariam, na verdade, de poder adiar para o ano que vem as eleições e que seus correligionários permanecessem no comando das prefeituras até o fim do estado de calamidade.
O plano fracassou. Integrantes das cúpulas do Judiciário e do Legislativo logo impuseram, como condição para que as discussões avançassem, que os mandatos dos atuais prefeitos, vices e vereadores não fossem estendidos. Temia-se a criação de um precedente perigoso, num ambiente radicalizado e com atores relevantes da cena política defendendo, sem pudor, o desrespeito à institucionalidade.
Esse risco extremo parece ter ficado para trás, mas não deve ser esquecido. Os números de infecções e mortes, por outro lado, fazem-se cada vez mais presentes no dia a dia do eleitor. Impedem que se esqueça a periculosidade do novo coronavírus.
São pouquíssimos os municípios que não registram casos de covid-19. Menos de 2% do total, segundo um dado recente do Ministério da Saúde, uma realidade que não deve ser desprezada na hora do voto.
No entanto, definido o novo calendário pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nada mais natural que partidos e parlamentares passassem a se debruçar sobre o tabuleiro. Por isso é de chamar a atenção um levantamento recente do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) sobre o número de pré-candidatos entre deputados federais e senadores.
De saída, segundo o documento, há 123 congressistas no páreo - 121 deputados e 2 senadores. A tendência é de uma diminuição desse total, mas hoje ele supera a média histórica de 94 candidaturas de parlamentares em eleições municipais.
Os dados da série do Diap começaram a ser coletados no pleito de 1992. Em 2016, 81 deputados e 2 senadores entraram na corrida municipal. Os números de 2012 somaram 87 deputados e 5 senadores. A eleição que eleva a média é a de 1996, quando 121 congressistas concorreram aos cargos de prefeito ou vice-prefeito - 117 deputados e 4 senadores.
Alguns fatores explicam esse aumento de interesse. O fim das coligações proporcionais, por exemplo, faz com que os partidos cogitem lançar “figurões” capazes de puxar votos em suas chapas. As capitais são as principais opções das pré-candidaturas dos parlamentares.
São Paulo e Rio de Janeiro são os Estados com o maior número de interessados, com respectivamente 15 e 14 nomes. Em seguida, aparecem Paraná, Minas Gerais e Bahia, com 9 pré-candidatos em cada uma dessas unidades da federação.
Neuriberg Dias do Rêgo, analista político do Diap, elenca outros aspectos. Existe também uma maior disponibilidade de recursos para os parlamentares custearem as campanhas, aponta: além do chamado fundão eleitoral, o fato de as emendas ao Orçamento terem se tornado impositivas mudou a dinâmica do jogo.
Elas viraram um ativo valiosíssimo em tempos de crise econômica e restrição fiscal. Armas poderosas para fazer política na ponta, movimentar a economia local e promover os próprios congressistas ou seus aliados.
Muitos dos pré-candidatos no Congresso tentarão aproveitar a polarização ou a onda que alçou ao poder policiais, religiosos e representantes da chamada nova política. Acreditam poder influenciar as disputas em bases eleitorais estratégicas para as eleições majoritárias de 2022 ou, no mínimo, terem mais facilidades para concorrer à reeleição. Entre os partidos, os destaques do levantamento do Diap são PT (14 pré-candidatos), PSL (12) e PSB (12).
Contudo, Neuriberg Dias do Rêgo diz acreditar que o número de pré-candidaturas tende a refluir para a média histórica nas próximas semanas. O levantamento será atualizado e, claro, concluído quando as candidaturas definitivas forem registradas no TSE, no fim de setembro.
Apesar da novidade para os eleitores de agora, esta não será a primeira vez que eleições ocorrem durante uma crise sanitária de tamanha magnitude.
A gripe espanhola, de 1918, também impactou as eleições daquele ano. Os registros da “Agência Senado” apontam, segundo discursos feitos à época, queixas sobre o baixo comparecimento dos eleitores. Uma das mais notórias vítimas da gripe espanhola no Brasil foi o próprio presidente eleito, Rodrigues Alves, que nem chegou a tomar posse. Uma outra eleição fora de época foi realizada.
Hoje, esta saída não está sobre a mesa. Mas parece inevitável que outra característica do pleito de novembro comece a ganhar peso: a falta de definição de um padrão nacional para as campanhas em meio à pandemia.
A intenção do Tribunal Superior Eleitoral é deixar que Estados e municípios definam como se darão os eventos de rua e os comícios, o que converge com a postura da Justiça de delegar para os entes subnacionais a regulamentação dos comportamentos de distanciamento social. Também pode fazer sentido, quando se pondera a extensão do território nacional e suas especificidades. Mas vem a ser tudo o que um governador ou um prefeito pode querer para eventualmente influenciar a campanha, limitando-a ou ampliando seu alcance, de acordo com seus objetivos políticos. A segurança dos eleitores pode ficar novamente em segundo plano.
Sergio Lamucci: O teto e as armadilhas das contas públicas
Mexer no teto pode piorar a percepção de risco fiscal, mas uma atitude rígida demais pode paralisar serviços públicos, sem enfrentar a expansão dos gastos obrigatórios
O cenário para as contas públicas em 2021 está marcado por incertezas. Há pressão para mudanças no teto de gastos, o mecanismo que limita o crescimento de despesas não financeiras da União. O movimento vem tanto de fora quanto de dentro do governo, como lembra Ricardo Ribeiro, analista político da MCM Consultores. Para ele, “a flexibilização do teto não é certa, embora a probabilidade seja crescente”.
O desejo de políticos e ministros fora da equipe econômica de destinar mais recursos para obras públicas e para programas sociais alimenta a pressão. Além disso, há também os problemas causados pelo desenho do teto e por uma correção muito baixa do limite de despesas para 2021.
A situação fiscal é delicada. Com o aumento de despesas para combater os efeitos da pandemia e a perda de receitas devido ao tombo da atividade, a dívida bruta subirá neste ano para a casa de 95% do PIB, tendo partido de 75,8% do PIB em 2019, um nível que já era muito mais elevado do que o da média dos emergentes.
Para grande parte dos especialistas em contas públicas, é preciso começar um processo de ajuste fiscal mais forte já em 2021. Sem isso, argumentam, os juros baixos não vão se sustentar. O risco país pode subir, o câmbio pode se desvalorizar muito e os juros futuros podem aumentar, tornando inviável manter baixa a Selic. Cumprir o teto seria decisivo para reforçar o compromisso fiscal.
No meio político, porém, crescem as pressões pela flexibilização. Em entrevista para “O Globo”, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, defendeu mais investimentos em infraestrutura básica, principalmente no Norte e no Nordeste. Para Ribeiro, da MCM, “levar água, saneamento e moradia ao Nordeste e engordar o Bolsa Família, transformando-o no Renda Brasil, são argumentos poderosos a favor dos apelos” destinados ao ministro da Economia, Paulo Guedes, por Marinho e pelo senador Flavio Bolsonaro - em entrevista a “O Globo”, o filho do presidente disse “Paulo Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho para a gente dar continuidade a essas ações [obras paradas] que têm impacto social e na infraestrutura
Para Ribeiro, “a pressão pelo ‘dinheirinho’ adicional é crescente e tende a ficar mais volumosa quando, ao fim de agosto, o projeto de lei orçamentária da União for enviado ao Congresso”. O envio da proposta “provocará, muito provavelmente, uma chiadeira generalizada no Congresso e dentro do governo, pois o aperto orçamentário de 2021 ficará escancarado”, diz ele. “Há evidente apoio político à ideia, dentro e fora do governo. E se Jair Bolsonaro fosse totalmente avesso à ideia já teria enquadrado Rogério Marinho”, escreve Ribeiro, observando, porém, que “Paulo Guedes, Rodrigo Maia [o presidente da Câmara dos Deputados] e o receio da reação negativa do mercado ainda são barreiras poderosas à flexibilização”.
A pressão, como se vê, não é pequena. Além disso, problemas do teto colaboram para o questionamento do mecanismo. A regra tem méritos, tendo sido fundamental para melhorar as expectativas quanto à trajetória das contas públicas de longo prazo. Ele permitiu um ajuste gradual, sem que fosse necessário uma consolidação fiscal abrupta. Mas o teto também tem defeitos. O principal problema fiscal do país é a rigidez do Orçamento, marcado pelo crescimento contínuo de despesas obrigatórias, como aposentadorias e gastos de pessoal. O governo tem liberdade para manejar menos de 10% dos gastos. A reforma da Previdência reduz o ritmo de expansão dos gastos com aposentadorias, mas não o interrompe. Também é crucial enfrentar a elevação das despesas de pessoal.
Na emenda do teto, estão previstos gatilhos a serem acionados em caso de descumprimento do mecanismo, com medidas que impedem reajuste dos salários dos servidores e restringem a criação de cargos, por exemplo. A questão é que, por um erro de redação, não se consegue acioná-los. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) não pode conter despesas que ultrapassem os limites do teto, como lembra Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI). Os gatilhos não podem entrar em vigor pelo envio de um projeto que preveja o estouro do teto, ainda que isso leve à elaboração de um orçamento irrealista, com um corte muito expressivo de despesas discricionárias (como custeio da máquina e investimentos).
Para 2021, o teto aumentará apenas 2,13%, porque essa foi a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) nos 12 meses até junho de 2020. Para cumpri-lo, será necessário espremer mais os gastos discricionários. O problema é que essas despesas poderão ficar abaixo do limite que compromete o funcionamento da máquina pública, estimado em R$ 89,9 bilhões pela IFI. Com isso, pode haver uma paralisação de atividades do setor público, além de um corte ainda mais drástico dos investimentos, sem a adoção de medidas verdadeiramente necessárias para controlar a expansão de despesas obrigatórias, como os gastos com pessoal.
Para Salto, é preciso encontrar uma saída para descumprir o teto e fazer com que os gatilhos sejam acionados, preservando a regra. Há dois anos, o governo Michel Temer, em conversas com o Tribunal de Contas da União (TCU), chegou a uma saída para o descumprimento da “regra de ouro”, que impede a emissão de dívida para pagar despesas correntes. “Esse precedente permite imaginar uma saída similar para o teto que possibilite não jogar no lixo os gatilhos ali previstos”, diz ele. Salto estima que acionar os gatilhos previstos na emenda do teto garantiria um ajuste de algo como 0,5 ponto percentual do PIB em dois anos, “dando tempo e fôlego para o Executivo e o Congresso encontrarem uma solução definitiva”. Para ele, “o essencial é ter claro que o problema do crescimento da despesa continua posto e precisará ser sanado”.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial do governo contempla o disparo dos gatilhos no caso de descumprimento da “regra de ouro”, mas a aprovação demandaria tempo e capital político, num momento em que as discussões tendem a se concentrar na reforma tributária.
Mexer no teto pode piorar a percepção de risco fiscal, colocando em xeque os juros baixos. Uma atitude rígida demais, porém, pode paralisar serviços públicos essenciais e jogar o investimento para níveis ainda mais baixos, sem que o crescimento das despesas obrigatórias seja de fato enfrentado. Escapar dessas armadilhas será crucial para garantir a sustentabilidade fiscal e permitir a recuperação da atividade, num país que registra desde 2014 um desempenho econômico horroroso.
César Felício: 100 mil mortos
Bolsonaro abdicou de liderança e passou a fatura
No limiar dos 100 mil óbitos da covid-19 e dos 3 milhões de casos da pandemia, que deve ser transposto no sábado, o Brasil vive a sua pior guerra, no sentido literal ou figurado, desde sua independência. A hecatombe atual guarda semelhança com episódios já muito distantes no tempo, como a gripe espanhola e a onda de fome que assolou o Nordeste na seca de 1877.
Um observatório para se contemplar a desgraça é o portal da transparência do registro civil, uma iniciativa dos cartórios. Segundo o portal, houve em 2020, no período entre 16 de março e 6 de agosto, um total de 507.097 óbitos por causas naturais. No mesmo período, em 2019, foram 474.287.
A razão evidente é a covid-19 e a Síndrome Respiratória Aguda Grave, responsáveis por uma em cada cinco mortes registradas no período - cerca de 90% da soma de 98.985 casos correspondem à doença provocada pelo coronavírus (88.298).
Ainda que quase a metade desta cifra seja compensada pela queda do número de anotações de causas mortis que podem ser atribuídas ao vírus, como septicemia e pneumonia - elas somaram 165 mil no período em 2019 e agora somam 119 mil- há alguma defasagem nos dados, o que sugere que a situação presente é algo mais grave do que aparece. Pela lei, o falecimento de uma pessoa precisa ser comunicado às autoridades em 24 horas e a lavratura do atestado de óbito deve ser feita em cinco dias. O envio do dado para a central nacional deve ser feito em mais oito dias. Com a pandemia, alguns Estados dilataram este prazo em até dois meses. Ou seja, esta fotografia é piso, e não teto. É incontroverso que está morrendo mais gente este ano do que em 2019.
A catástrofe no Brasil, à qual o mundo se curva em números absolutos, não é a pior do continente em termos proporcionais. É uma observação que pode refletir alguma condição excepcional do brasileiro ou apenas a debilidade dos nossos registros estatísticos, uma vez que é impossível atribuir o fenômeno à gerência governamental que está sendo feita em relação à crise. De acordo com o jornal chileno “La Tercera”, entre 1º de maio e 29 de julho uma em cada três mortes no Chile estava relacionada à covid-19, sendo que na região metropolitana de Santiago esta cifra subia à metade. Em magnitude de mortes, no entanto, os dois países se equivalem. A população chilena é dez vezes menor que a brasileira. Multiplicado por este fator, o número de óbitos lá é semelhante ao daqui.
Desde o início da crise, do ponto de vista político, o presidente Bolsonaro abdicou do papel de liderança no enfrentamento do vírus e busca transferir a fatura. A crise caiu no colo dos governadores a quem se cobra a responsabilidade pelas consequências econômicas das quarentenas e a quem se transforma as políticas emergenciais de compras para a saúde em casos de polícia, de maneira justificada ou não. O caso do secretário de Doria é mais um, é banal. Nesse contexto, Bolsonaro é apenas uma pessoa que sai atrás de uma ema com uma caixinha de cloroquina.
A pandemia deixará cicatrizes no Brasil, mas está sendo driblada pelo bolsonarismo. O presidente não está em situação absolutamente segura, pode perder a reeleição de 2022, pode até se inviabilizar no Congresso, mas nada disso deverá ter relação com a macabra contabilidade cotidiana da peste que assola o mundo.
O futuro
“Com a pandemia, o futuro saiu do circuito. Ninguém está olhando para frente”, observou em conversa com esta coluna o ex-deputado federal Saulo Queiroz, fundador do PSDB e do PSD, antigo hierarca do DEM, o que se convencionava chamar antigamente de uma velha raposa felpuda.
Queiroz refere-se a um problema para o qual o mundo partidário deve acordar no próximo ano. As coligações proporcionais estarão proibidas em 2022. O universo político está polarizada. É um erro tomar pelo valor presente o estrondoso fracasso dos organizadores do Aliança Pelo Brasil em coletar assinaturas para a criação da nova sigla. A hora decisiva será em 2021, em que os acólitos do presidente serão impulsionados pelo projeto de poder claro que significa a continuidade bolsonarista.
Do outro lado, o PT tem uma longa história de sobrevivência no isolamento, ganhando ou perdendo eleições. No meio do caminho estarão siglas como DEM, PSDB, Cidadania, PDT, PSB que, ou se aglutinam em torno de candidaturas viáveis, ou perecerão. Na janela partidária do começo de 2022, deputados de partido sem projeto de poder irão medir quem passa na peneira do voto sem coligação. Quantos deputados poderá eleger o DEM, concorrendo sem parceria? E o PCdoB? O furacão que passará pela janela partidária não será trivial.
No meio do vendaval o futuro presidente da Câmara, a ser eleito em fevereiro, será um ativo estratégico. O biênio final de uma legislatura costuma ser mais tenso que o inicial por se misturar com a sucessão no Palácio do Planalto.
Não é por acaso que a sucessão de Rodrigo Maia está em muito antecipada ao normal. “Já é o assunto do dia nos corredores”, diz um dos pretendentes ao cargo, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), para quem há o risco importante da disputa travar a agenda da Casa.
“A Câmara hoje está dividida em três terços: Bolsonaro, Rodrigo Maia e oposição. Impeachment está fora de cogitação e quem se une a um bloco derrota o outro”, diz Ramos. Como somente Maia pode se combinar tanto a um bloco como a outro, ele tende naturalmente a fazer seu sucessor.
Ramos não crê que um tema polêmico como a reforma tributária seja concluido na Câmara ainda antes da eleição de novembro, sobretudo se estiver vinculado com a nova proposta do governo de renda básica. Ainda assim, não subestima a capacidade de Maia de ditar o processo.
Sem candidato natural à presidência, os partidos de centro poderão ter no comando da Câmara dos Deputados uma reserva de poder, que poderá ser muito útil, inclusive, para mudar as regras da eleição de 2022. Há quem pense que a formação de uma nova sigla poderia aprumar o caminho. Queiroz tem pronta a minuta de uma consulta ao Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da norma que impediu que um novo partido possa receber uma fatia do fundo partidário equivalente ao total de deputados que ele consiga atrair.
Armando Castelar Pinheiro: A sedução do autoritarismo
A defesa da democracia nas potências centrais por vezes justificou o apoio a regimes autocráticos
A decisão parecia clara: dado meu fraco desempenho nas mesas, o Poker for Dummies sugerido por um amigo no WhatsApp era a escolha sensata. Prevaleceu, porém, o desejo de ler o recém-lançado livro de Anne Applebaum, "Twilight of democracy: the seductive lure of authoritarianism" (Doubleday, 2020). Não me arrependi.
Applebaum aborda a crise das democracias liberais de forma complementar ao feito por autores como Manuel Castells. Como discuti aqui há dois anos, Castells usa uma abordagem mais marxista, falando da perda de legitimidade das elites políticas, por conta do aumento da desigualdade de renda, dos escândalos de corrupção e da percepção de captura das instituições pelas elites (glo.bo/33q0SpZ).
É como se as condições tivessem mudado e a decisão racional dos cidadãos fosse questionar a democracia, por entender que essa não está mais voltada a buscar o interesse do cidadão mediano.
Applebaum, por sua vez, foca no lado menos racional da cidadania, nas emoções, nos vieses cognitivos. Mais ao ponto, seu foco é o distanciamento entre a centro-direita, na qual se auto-situa, e a extrema direita e, em especial, os intelectuais que dão apoio a governos de direita com viés mais ou menos autoritário, vários dos quais eram amigos ou conhecidos da autora. A passagem desses personagens, que Applebaum cita nominalmente, de amigos para ex-amigos é usada por ela para caracterizar esse distanciamento, ocorrido ao longo dos últimos 20 anos.
Para Applebaum, a maior ameaça à democracia liberal vem do risco de mais países mergulharem no autoritarismo, sob a influência de grupos de extrema direita (e esquerda) que recorrem a dois instrumentos principais. Um é a moderna tecnologia da informação, via redes sociais, que permitem identificar os temas que interessam e preocupam cada eleitor, enviando a cada um mensagens sob medida, feitas para dar medo e/ou raiva. Uma sensibilização que explora o conhecimento desenvolvido nas últimas décadas em áreas como neurociência, psicologia, marketing e Economia Comportamental. A Cambridge Analytics, ator central no referendo do Brexit e na eleição de Trump, é um dos exemplos citados nessa área.
O outro instrumento é a criação de narrativas, muitas vezes calcadas em fake news. É aqui que entram os intelectuais. Ao criticá-los, Applebaum se ancora no livro de Julien Benda, La Trahison des Clercs (em português, A Traição dos Intelectuais, Ed. Peixoto Neto). Nesse livro, lançado em 1927, Benda critica intelectuais que abraçaram ideologias totalitárias - comunismo, nazismo, fascismo - e se alinharam a líderes autoritários, defensores de um nacionalismo belicoso e excludente. Ao assim fazer, esses intelectuais contribuíram para legitimar esses movimentos e seus líderes. Fizeram isso, então como agora, argumenta Applebaum, por interesse financeiro, para se projetarem e por inveja de outros mais bem sucedidos.
Para a autora, a extrema direita sempre esteve lá, mas antes passava despercebida, pois se aliava à centro-direita e ao centro no combate à União Soviética e ao comunismo. A queda do Muro de Berlim acabou com essa aliança. Isso só não ficou claro antes por conta dos ataques de 11 de Setembro e as guerras que vieram em seguida.
O livro foca em Polônia, Hungria, Inglaterra, Espanha e Estados Unidos, apenas resvalando no Brasil, quando fala do uso das novas tecnologias nas eleições de 2018. Porém, é fácil ver que muito da discussão se aplica ao Brasil, como o enfraquecimento dos partidos tradicionais de centro, o uso de fake news, a tentativa de enfraquecer as universidades, a imprensa, o legislativo e o judiciário.
Também por aqui temos o que Applebaum chama de “whataboutism”, que segundo ela era uma tática de retórica soviética que consistia em responder às críticas acusando o interlocutor de hipocrisia. Um exemplo é a entrevista de Trump em que ele elogia Putin e o entrevistador provoca: “Mas ele é um assassino”, e Trump retruca: “Existem muitos assassinos. Você pensa que seu país é tão inocente?”. Entre nós, vejo isso no “Edaísmo”, as respostas com o “E daí?”.
O livro analisa, denuncia, mas não oferece remédios. Ele encerra em tom esperançoso, falando do sentimento pan-europeu dos jovens da região. Parece incongruente com a análise feita antes. Do meu lado, saí acreditando mais na reeleição de Trump e mais preocupado com a moldura intelectual dada à nova ordem mundial.
Esta me pareceu a principal ausência do livro, que, apesar de bem atual, a ponto de falar da pandemia da covid, não cita o conflito EUA x China. A autora entende que o fim da aliança entre centro e extrema-direita enfraquece a democracia liberal e, portanto, é mais um elemento que contribui para por um fim à ordem mundial iniciada por Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Mas, e o que vem depois? Me pergunto, por exemplo, se a nova guerra fria será conduzida para restabelecer a aliança à direita, como parece estar sendo, e Applebaum parece desejar, e o que isso trará para países como o Brasil. Afinal, na guerra fria do século XX, a defesa da democracia nas potências centrais por vezes justificou o apoio a regimes autocráticos no mundo em desenvolvimento. E os quase cem anos que vão do caso Dreyfus à queda do Muro foram muito divisivos e violentos também por aqui.
*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ
Fernando Exman: Politizar vacina é negativo para o país
Brasil se posiciona na corrida global contra a covid-19
O governo definiu seu lado na corrida global pela vacina contra a covid-19. Fez uma análise técnica e optou por associar-se ao projeto desenvolvido pela Universidade de Oxford, que foi licenciado para a farmacêutica britânica AstraZeneca e terá a Fiocruz como parceira.
A notícia é capaz de produzir um relativo alívio psicológico à população, em meio à certeza de que nos próximos dias será alcançada a assombrosa marca de 100 mil vítimas do coronavírus no país. Por outro lado, poderá conturbar novamente as relações político-federativas, se essa agenda não for conduzida com moderação.
O presidente Jair Bolsonaro deve evitar a tentação de politizar o assunto. A vacina é esperada por milhões de famílias, por empresas e investidores que aguardam as condições necessárias para a retomada das atividades. Apenas a massificação de uma ou mais vacinas garantirá previsibilidade aos agentes econômicos.
Só ela permitirá o retorno completo de trabalhadores e consumidores às ruas em segurança, sem o risco de sistemas de saúde entrarem em colapso. Por isso está em curso uma corrida mundial protagonizada tanto por empresas quanto por governos. A imprensa americana aponta risco político semelhante por lá.
Segundo o jornal “The New York Times”, cientistas de dentro e de fora das agências oficiais temem que o presidente Donald Trump aumente a pressão para que autoridades sanitárias aprovem uma vacina contra a moléstia no máximo até outubro. Um mês antes do pleito nacional, quando o presidente buscará a reeleição.
Nos EUA, a vacina pode servir de trunfo político para um presidente que relativizou os riscos representados pelo novo coronavírus e, agora com dificuldades na disputa, parece tentar se reposicionar no debate e melhorar sua imagem entre os eleitores. Aqui, a controvérsia apresenta nuances. Tem como pano de fundo a rivalidade entre Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria.
O presidente também menosprezou o vírus. A área técnica, contudo, tinha uma estratégia traçada desde o início do ano e logo definiu que não entraria para valer na corrida pelo desenvolvimento de uma vacina própria.
O plano desenhado ainda na gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta foi preparar o parque tecnológico brasileiro para produzir em massa alguma das vacinas a serem desenvolvidas no exterior, assim que ela estivesse pronta e testada.
Essa visão tem como fundamento a certeza de que, embora legítimos, os esforços para a produção de uma vacina “made in Brazil” poderiam deixar o país para trás no combate à pandemia e desperdiçar recursos públicos durante uma grave crise econômica.
Os números mostram que essa opção estratégica foi racional. Hoje há, segundo o Ministério da Saúde, 231 vacinas contra covid-19 sendo desenvolvidas no mundo. Dessas, 33 já estão em fase clínica - etapa em que a testagem começa em seres humanos e são feitas análises de segurança e em grandes grupos de amostragem.
É um momento essencial para que os pesquisadores obtenham as informações mais concretas sobre a segurança de se massificar essas vacinas. Os Estados Unidos têm 58 vacinas em desenvolvimento. Dessas, 6 em fase clínica de testagem. A China possui um total de 32 projetos desenvolvidos, sendo 11 em fase clínica.
O Canadá conta com 16, mas apenas 1 em fase adiantada. O Reino Unido dispõe de 2 vacinas em fase clínica de teste de um total de 9, enquanto a Rússia tem 1 uma em estágio mais avançado e outras 7 em fase pré-clínica.
O Brasil tem 6 vacinas em desenvolvimento, mas nenhuma dessas em fase clínica de pesquisa. Autoridades do governo gostam de dizer que a vacina Oxford/AstraZeneca está na fase mais adiantada de testes com seres humanos.
Citam, inclusive, o reconhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto a esse estágio. E aqui cabe um registro: valem-se justamente do respaldo de um organismo internacional tão criticado por integrantes do próprio Executivo, principalmente pela ala ideológica e antiglobalista da administração federal.
Pode ser um sinal positivo de despolitização do tema. O governo também considerou a garantia de acessar a vacina de forma segura, eficaz e rápida, além da possibilidade de fortalecer o complexo industrial e a transferência de tecnologia.
A medida provisória que tratará do assunto irá prever recursos para pagar a AstraZeneca e, também, investir no Instituto Tecnológico em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos). Outro ponto positivo, ainda de acordo com integrantes do Executivo, é o Brasil poder participar da atual etapa de pesquisa clínica. Isso permitirá que se verifique como o produto interage com o clima local e reage na população brasileira, a qual tem as suas especificidades e características genéticas.
Mesmo assim, na semana passada Bolsonaro ironizou, nas redes sociais, a parceria conduzida pelo governo de São Paulo com a China para a produção de uma outra vacina. O Instituto Butantan, de São Paulo, também mantém conversas com a Rússia no mesmo sentido e com a declaração o presidente acabou por alimentar os questionamentos que já vinham sendo feitos por seus apoiadores na internet. “Se fala muito da vacina da covid-19. Nós entramos naquele consórcio lá de Oxford.
Pelo que tudo indica, vai dar certo e 100 milhões de unidades chegarão para nós. Não é daquele outro país não, está OK, pessoal? É de Oxford”, afirmou o presidente. Os apoiadores foram além, escrevendo nas redes que paulistas serviriam de cobaia para uma vacina chinesa.
A politização dessas tratativas destoa do status das relações que o Ministério da Saúde conseguiu construir nos últimos meses com Estados e municípios. A pasta tem garantido que insumos e equipamentos cheguem para todas as administrações locais de acordo com suas necessidades, mesmo que governadas por adversários de Bolsonaro.
É esse o relato elogioso que secretários estaduais, municipais e também parlamentares estão fazendo chegar ao Planalto - um apoio que dá tranquilidade ao presidente na sua decisão de manter o general Eduardo Pazuello como ministro interino da Saúde.
Andrea Jubé: A conquista do Nordeste
Para o senador Ciro Nogueira, Bolsonaro vai tomar o eleitor de Lula
O eleitor nordestino ganhou fama de clientelista, de quem troca voto por benefícios sociais, como o Bolsa Família. Na verdade, entretanto, políticos experientes sabem que o eleitor nordestino é cabra astuto, que cobra explicação de quem de repente muda de lado.
Pois o senador Ciro Nogueira (PP-PI), que foi aliado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do PT no Piauí por quase 20 anos, teve de se justificar depois de ciceronear Jair Bolsonaro no périplo nordestino na quinta-feira.
Um dia depois das agendas com Bolsonaro no Piauí e na Bahia, Ciro publicou em sua conta no Twitter: “Há um velho provérbio chinês de muita sabedoria: o sábio pode mudar de opinião. O ignorante, nunca”.
Na postagem mais lúdica, o senador apelou para o cearense Belchior: “Você não sente nem vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer. O que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo. E precisamos todos rejuvenescer”.
Com Bolsonaro, Ciro “rejuvenesceu” politicamente mais uma vez, porque antes de se tornar aliado de Lula, integrou os quadros do ex-PFL, hoje DEM, na era Fernando Henrique Cardoso.
O senador, que é presidente nacional do PP, afirmou à coluna não ter dúvidas de que Bolsonaro conquistará o eleitorado de Lula no Nordeste. Quando esgotar o auxílio emergencial de R$ 600 na pandemia, que catapultou a popularidade de Bolsonaro na região, Ciro acredita que o futuro Renda Brasil impedirá a debandada deste novo eleitor, porque será maior que o Bolsa Família, embora inferior aos atuais R$ 600.
O líder do PSD, senador Otto Alencar, que faz política na Bahia há 40 anos, e integra a base de apoio ao PT no Estado, discorda do colega de parlamento.
Os votos da região, que representa quase 27% do eleitorado, decidem eleições. Os nordestinos deram votação recorde ao PT no segundo turno em 2018: 20,2 milhões do total de 47,4 milhões dos votos de Fernando Haddad. No Piauí de Ciro Nogueira, Haddad obteve 77% dos votos válidos.
“Só porque ele montou a cavalo, colocou um chapéu de vaqueiro, e distribui um auxílio que vai acabar ele vai ser o rei do Nordeste?”, questionou Alencar à coluna.
O líder do PSD ainda tripudiou, observando que Bolsonaro colocou o chapéu de vaqueiro, que ganhou do presidente da Embratur, Gilson Machado Neto, ao contrário.
O deputado João Roma (Republicanos-BA), que integrou a comitiva de Bolsonaro na visita a Campo Alegre de Lourdes, na divisa da Bahia com o Piauí, minimizou: “ali no meio da confusão não deu para o presidente vestir o chapéu com tranquilidade”.
Alencar observa que Bolsonaro foi a Campo Alegre de Lourdes inaugurar uma nova etapa de um sistema de abastecimento de água, que o governador Rui Costa, do PT, havia inaugurado há dois anos. Acrescenta que as outras obras que Bolsonaro inaugurou na região - um trecho da Transposição do Rio São Francisco, no Ceará, e o aeroporto de Vitória da Conquista, na Bahia - foram iniciadas nos governos do PT.
Otto Alencar duvida que Bolsonaro expanda sua força eleitoral na região sem o apoio dos governadores, que ataca dia e noite. Mesmo na pandemia, com o fechamento do comércio e das fábricas, a popularidade dos governadores continua alta.
Pesquisas internas do PT mostram o governador Rui Costa com até 80% de aprovação popular em algumas regiões. Contudo, as mesmas sondagens indicam o aumento da popularidade de Bolsonaro no interior, principalmente após o início do pagamento do auxílio.
Os R$ 600, sobretudo em cidades do sertão nordestino, representam uma pequena fortuna nas casas de quem ficava dias sem comer. E embora esta quantia tenha sido definida pelo Congresso, é Bolsonaro quem leva a fama de benfeitor.
Reportagem do Valor mostrou que a proporção de pessoas vivendo abaixo da linha de extrema pobreza nunca foi tão baixa em pelo menos 40 anos, desde o começo do pagamento do auxílio em junho, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas.
Otto Alencar rechaça a imagem de clientelismo do eleitor nordestino. “Isso [o auxílio] é pouco diante do que Lula fez na Bahia, como cinco universidades federais, 30 escolas técnicas, dezenas de obras de abastecimento de água no interior, mais de 560 mil ligações elétricas domiciliares no interior”, enumerou. “Essa renda mínima de cinco, seis meses vai apagar isso tudo?”
O deputado João Roma associa o crescimento da popularidade de Bolsonaro na região ao pagamento do auxílio. Mas ponderou que isso virou um “dilema”, porque o governo não poderá arcar com essa quantia por muito tempo. É incerto o destino deste eleitor após o fim do auxílio.
Saia justa
Bolsonaro prometeu viajar pelo país uma vez por semana. Mas a três meses das eleições municipais, em plena pandemia, com a tensão eleitoral à flor da pele, o presidente terá que evitar saias justas como o ocorrido em Campo Alegre de Lourdes.
No município de 30 mil habitantes, o prefeito da oposição (um “comunista”!) impediu uma adversária, filiada ao Republicanos, partido que abrigou o senador Flávio Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro, de se aproximar do presidente.
O prefeito Doutor Enilson, do PCdoB, candidato à reeleição, barrou o acesso da futura adversária nas urnas, Eurâny Mangueira, à área reservada atrás do palanque, por onde Bolsonaro passaria ao fim do evento para cumprimentar aliados e apoiadores.
O deputado João Roma, correligionário de Eurâny, tentou solucionar o imbróglio, informando o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, que o nome dela constava da lista de convidados. Mas para evitar mais barulho, ficou por isso mesmo. E em vez de cumprimentar a aliada, Bolsonaro dividiu o palanque com o “comunista”.
O episódio soa pitoresco, mas ilustra a inabilidade da equipe presidencial. É prudente que não se repita, especialmente em palcos maiores, se Bolsonaro não quiser dois anos antes implodir alianças para 2022.
Alex Ribeiro: Encurtamento da dívida deixa país vulnerável
Súbita mudança de humor dos mercados é risco para estratégia de emitir títulos públicos de curto prazo
Dois ex-presidentes do Banco Central alertaram, nos últimos dias, para os riscos da tendência de encurtamento do prazo da dívida pública, num ambiente de muita incerteza sobre a manutenção do teto de gastos, a principal âncora fiscal do país. O Tesouro Nacional pode até ganhar algum tempo emitindo títulos públicos de curto prazo, mais baratos. Mas ficará cada vez mais vulnerável a uma súbita mudança de humor dos mercados.
Arminio Fraga, da Gávea Investimentos, citou um número que sintetiza o perigo: pelo andar da carruagem, o Tesouro terá que captar no mercado o equivalente a 46% do Produto Interno Bruto (PIB) em 12 meses, para rolar os títulos que vencem no período, para pagar os juros da dívida e para bancar o altíssimo déficit primário do governo.
O fantasma é um eventual repeteco do que aconteceu em 2002, quando o próprio Arminio chefiava o BC. Os investidores se tornaram mais relutantes em financiar o governo, diante das dúvidas sobre o compromisso do então candidato Luis Inácio Lula da Silva com a austeridade fiscal. “O governo não conseguia vender papéis que venciam em 2003”, disse, referindo-se ao ano em que começaria o novo governo. A bomba só foi desarmada quando Lula se comprometeu a manter o ajuste das contas públicas.
O economista Affonso Celso Pastore explicou a dinâmica que tem empurrado o Tesouro para o encurtamento da dívida. Hoje, a taxa que o Tesouro paga para se financiar no curto prazo está entre 2% e 3% ao ano, enquanto que nas captações de dez anos paga algo como 7% ao ano. A diferença entre a taxa de curto prazo e a de longo prazo, de cerca de 4,5 pontos percentuais, representa justamente o risco fiscal.
A perspectiva é que a dívida bruta supere 100% do PIB e, até agora, o governo Bolsonaro não mostrou claramente como pretende manter o teto de gastos. Do ponto de vista do Tesouro, argumentou Pastore, faz sentido e é totalmente sensato captar no curto prazo, pagando juros menores. Com isso, reduz o custo implícito da dívida pública. Os juros que o Tesouro paga na dívida são um componente importante nos cálculos da dinâmica da dívida. A desvantagem é que o Tesouro fica com um perfil de dívida desfavorável, com vencimento em um prazo mais curto.
“Se isso for temporário, não tem muita importância”, afirmou ele, “Se isso se estender ao longo do tempo e você tiver um aumento de riscos, o Tesouro vai ter que seguir resgatando os títulos longos e colocando títulos curtos.” Para ele, o acúmulo desse risco é um alerta importante “para que o governo tenha juízo e retorne ao teto de gastos”. Os dados divulgados pelo Tesouro nos últimos dias mostram como o encurtamento da dívida pública vem ocorrendo de forma acelerada.
De dezembro para junho, o prazo médio da dívida baixou de 3,83 meses para 3,68 meses. Há pouco tempo atrás, o prazo médio da dívida era de 4,5 anos. Mas essa estatística deixa de fora a atuação do Banco Central por meio das operações compromissadas, que são operações de curtíssimo prazo que impactam a dívida bruta. No primeiro semestre, o déficit primário do governo central ficou em R$ 417,241 bilhões, em grande medida devido aos gastos extras e perda de arrecadação com a pandemia. Com forte volatilidade nos mercados, não foi possível ao Tesouro levantar dinheiro para financiar esses gastos. Desse déficit primário, apenas R$ 3,374 bilhões foram bancados com a emissão de dívida. A maior parte foi financiada por meio de operações compromissadas. Uma outra parte foi pela emissão de moeda, já que a população passou a demandar mais dinheiro em espécie na pandemia. No caso das compromissadas, não foi um financiamento direto do BC ao Tesouro. O Tesouro sacou dinheiro da conta única para pagar despesas e, em seguida, a autoridade monetária enxugou o excesso de dinheiro em circulação.
Do ponto de vista da dívida bruta, porém, faz pouca diferença. O débito aumentou e ficou com prazo mais curto. Os operações compromissadas de curtíssimo prazo subiram de 13% do PIB para 19% do PIB, enquanto que a dívida mobiliária subiu de 50,7% do PIB para 52,8% do PIB.
Na prática, o que aconteceu durante o primeiro semestre, num período de grande estresse, foi parecido com as operações de expansão quantitativa feitas por países desenvolvidos. O Banco Central ajudou a encurtar o prazo da dívida pública, tirando um pouco de pressão da curva de juros futuros. A diferença é que, no caso atual, o dinheiro para resgatar títulos do Tesouro veio da conta única. O Tesouro tem um bom fôlego para fazer essas operações, se necessário, já que a conta única tinha um saldo de R$ 997 bilhões em junho. Além disso, o Tesouro vai receber do BC um reforço dos lucros com operações com as reservas internacionais. Mas, se o quadro se prolongar e não houver recursos na conta única, em tese o Banco Central poderá comprar diretamente títulos em mercado, com os poderes que foram conferidos por uma emenda constitucional.
Um economista com longa experiência no Tesouro diz que uma dívida pública curta é sempre um problema, principalmente em um cenário de deterioração fiscal, dívida crescente e juros historicamente baixos. “Em 2002, o Tesouro teve que vender títulos pós-fixados de três meses com prêmios crescentes”, lembra. O Brasil tem alguns atenuantes importantes, como uma baixa participação de estrangeiros no financiamento da dívida e falta de opções de investimentos para investidores institucionais. Na época da hiperinflação, o governo conseguia rolar a dívida no overnight, mas pagava juros de 3% ao dia.
Agora, com os juros em 2,25% ao ano, o Tesouro já não tem a mesma facilidade de vender títulos pós-fixados.
O argumento de Arminio e Pastore é que o encurtamento do prazo da dívida pública pode ser uma estratégia para ganhar tempo enquanto são tomadas as medidas de ajuste fiscal. Mas esse tempo não pode ser desperdiçado. As medidas que podem sustentar o teto de gastos, como a PEC Emergencial e a reforma administrativa, parecem totalmente fora das prioridades do governo e do Congresso. Ao contrário, são muitas as forças para flexibilizar o teto de gastos.
Bruno Carazza: Sobre homens e bichos
O simbolismo do valor do dinheiro nas cédulas e na música brasileira
“A renda da tua saia vale cinco mil réis”, dizia o primeiro verso musical gravado no Brasil. Composto por Xisto Bahia e cantado por Manuel Pedro dos Santos (Bahiano), o lundu “Isto é Bom” foi lançado pela Casa Edison em 1902. A presença de uma referência monetária no registro fonográfico mais antigo do país seria o prenúncio de uma longa e conflituosa relação do brasileiro com a inflação, cantada em verso e prosa na MPB.
Se na virada dos 1800 para os 1900 cinco mil réis compravam o tecido para uma saia, quase 40 anos depois um vestido custava vinte vezes mais, conforme reclamam Noel Rosa e Vadico num samba de 1934: “Você me pediu cem mil réis / pra comprar um soirée”. Nascida no ano seguinte, uma canção de Candeia dá a exata medida da desvalorização da moeda brasileira naquelas primeiras décadas do século XX ao utilizá-la como referência de seu desprezo pela amada que o traiu: “Não vales mil réis”.
Tanto foi assim que Getúlio Vargas, em 1942, sepultou o padrão monetário que o Brasil herdou de Portugal e instituiu o cruzeiro. Numa época em que ainda não vigia o princípio da impessoalidade, Getúlio colocou o seu próprio retrato na nota de dez (!). Foi em vão. O desenvolvimentismo a qualquer custo, levado às últimas consequências com a Brasília de JK, aliado à insegurança institucional do período, corroeram o valor da moeda. Já no governo Castelo Branco, um ingresso para um brinquedo num parque de diversões custava centenas, como nos contam os mutantes Rita Lee e Arnaldo Baptista: “400 cruzeiros / velhos compram com medo / das mãos do bilheteiro / as entradas do trem fantasma”.
Para colocar ordem na economia, Roberto Campos e Octávio Bulhões levaram a cabo a mais completa reforma econômica já implementada no Brasil. Criaram o Banco Central, reformularam o sistema financeiro e instituíram uma revolucionária reforma tributária (com IVA e tudo há mais de 50 anos). Entre inúmeros outros avanços eles ainda cortaram três zeros do cruzeiro e lançaram o “cruzeiro novo” em 1967 - que, por determinação do novo ditador de plantão, Médici, voltou a se chamar só “cruzeiro” em 1970.
Uma nova família de cédulas foi lançada em 1972, e já na ressaca do “milagre brasileiro” e com nossa economia totalmente arruinada após os choques do petróleo, no final de 1978 saiu uma nota que até hoje ainda é referência no linguajar popular. Trazendo novamente o retrato de José Maria da Silva Paranhos, o barão do Rio Branco, a cédula de Cr$ 1.000 marcou época e foi motivo de uma engraçadíssima canção lançada por Nelson Gonçalves em 1982: “O Barão”.
Composta pelo veterano sambista Klecius Caldas e seu filho Fernando Pennafort, a música fazia troça de figuras que estamparam nosso papel-moeda nos tempos de Vargas (“Seu Cabral, Tiradentes, Santos Dumont / Já valeram dinheiro no tempo bom”) e, com a economia do período militar já fazendo água, caçoava: “Seu barão, o que que há com o senhor, que era o tal nos tempos do imperador? / A carestia tão cruel liquidou o seu papel / Alta do dólar, alta da libra / Vai o cruzeiro pro beleléu”.
Veio a redemocratização, e as expectativas de que o “dragão da inflação” seria domado logo se evaporaram em meio a uma montanha-russa de planos econômicos heterodoxos e trocas de moedas.
“Perplexo” é como o brasileiro se sentia naquela época, conforme cantaram em 1989 os Paralamas do Sucesso: “Mandaram avisar / agora tudo mudou / eu quis acreditar / outra mudança chegou”.
“Fim da censura, do dinheiro, muda nome, corta zero / Entra na fila de outra fila pra pagar”. Entre 1985 e 1994 nós convivemos com cinco moedas (cruzeiro, cruzado, cruzado novo, cruzeiro novamente e ainda o cruzeiro real) e até chegarmos finalmente ao real os valores do dinheiro brasileiro foram divididos por 2,75 trilhões para facilitar as contas em meio à espiral inflacionária.
De Sarney a Itamar, dezenas de personagens valorosos de nossa história se sucediam em cédulas que logo não tinham mais valor algum. Pela ordem foram JK, Rui Barbosa, Oswaldo Cruz, Villa-Lobos, Machado de Assis, Portinari, Carlos Chagas, Drummond, Cecília Meireles, Augusto Ruschi, Rondon, Carlos Gomes, Vital Brazil, Câmara Cascudo e Anísio Teixeira. Ao final já faltavam personalidades, e teve que se recorrer à efígie da República e a tipos populares como o gaúcho e a baiana.
Em 1993, no auge do descontrole inflacionário, ministros da Fazenda não chegavam a durar um mês no cargo, e é desse período a cédula de maior valor nominal da história brasileira: Cr$ 500.000 (meio milhão!). Trazendo na face o escritor Mário de Andrade, nada traduz melhor como foi o processo hiperinflacionário brasileiro: o verso “e então minha alma servirá de abrigo”, impresso logo acima do valor de 500 mil, foi extraído do mesmo poema que começa com “eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta”. Mais Macunaíma, impossível!
O filósofo Renato Janine Ribeiro, que já ocupou este espaço, certa vez escreveu sobre o simbolismo da escolha do nome e das estampas da nova moeda. O “real” seria uma promessa e uma profissão de fé de que daquela vez o controle da inflação seria para valer, enquanto os animais da nossa fauna representavam um dos poucos ativos dos quais os brasileiros tinham orgulho e que ainda possuía valor no exterior: a natureza.
Quem esteve nos bastidores da criação do real dá uma explicação menos poética para a escolha: não havia tempo para se imprimir uma família inteira de novas notas em tão pouco tempo, e os técnicos da Casa da Moeda propuseram utilizar desenhos para os quais já havia modelos para serem utilizados. Faz sentido: o beija-flor da nota de um real era quase igual a outro que já havia aparecido no anteverso dos 500 cruzados novos com o naturalista Augusto Ruschi.
De uma forma ou de outra, lá se vão 26 anos em que a bicharada ocupa nossas carteiras, uma grande conquista para uma história monetária tão turbulenta. Mas a inflação de 423,9% desde janeiro de 1995 já levou à extinção do beija-flor e agora faz surgir, na nota de R$ 200, o lobo-guará - que sirva de alerta para os incertos tempos pós-pandêmicos que nos aguardam.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”
Ribamar Oliveira: O menor investimento da série histórica
Mira das alas política e militar está agora direcionada ao teto de gastos
O governo vive um drama. A pandemia da covid-19 provocará uma brutal recessão neste ano, com queda da economia brasileira de 4,7% no cenário mais otimista. No próximo ano, não haverá espaço fiscal para a execução de um grande programa de investimento que estimule a retomada da atividade econômica, como querem alguns no governo. Por causa do teto de gastos da União, instituído pela emenda constitucional 95/2016, a proposta orçamentária que será encaminhada ao Congresso até o fim do próximo mês, prevê o menor nível de investimento da União da série histórica.
Dependendo do cenário que os técnicos adotem, as chamadas despesas discricionárias (que incluem os investimentos e os gastos para a manutenção da máquina administrativa federal) deverão ficar entre R$ 90 bilhões e R$ 100 bilhões em 2021, ante um valor de R$ 120 bilhões previsto para este ano.
As estimativas oficiais para as despesas não foram fechadas, pois alguns itens do gasto ainda estão indefinidos. Não é possível saber, por exemplo, se o Congresso derrubará o veto do presidente Jair Bolsonaro à prorrogação da desoneração da folha de salários de alguns setores da economia. Só este item poderá aumentar ou diminuir o espaço no teto em cerca de R$ 6 bilhões.
Em 2014, a União registrou investimentos (incluindo inversões financeiras) de 1,3% do Produto Interno Bruto (PIB), o nível mais alto da atual série histórica do Tesouro Nacional, que tem registro de dados abertos desde 2007. A partir daquele ano, os investimentos começam a cair, atingindo 0,7% do PIB em 2017. No ano passado houve um aumento para 0,8% em virtude, principalmente, dos aportes de capital feitos pelo Tesouro na Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron), o que foi feito fora do teto de gastos.
É conhecido de todos o embate que está sendo travado nos bastidores do governo em torno da estratégia para a retomada da economia, no pós-pandemia. A ala militar, tendo o ministro-chefe da Casa Civil, general Braga Netto, como seu principal representante, e a ala política, em que desponta o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, diante das limitações do teto de gastos, adotaram uma estratégia que previa a edição de medida provisória abrindo um crédito extraordinário de R$ 35 bilhões, neste ano, para investimentos em infraestrutura.
A avaliação dessas alas do governo é que os R$ 35 bilhões seriam o mínimo necessário para dar um “empurrão” na economia, que, no próximo ano, ainda não estará inteiramente reaberta por causa do receio das pessoas ao coronavírus. O uso do expediente do crédito extraordinário seria uma forma de driblar o teto de gastos, pois ele não é computado no limite das despesas da União.
A proposta do crédito extraordinário de R$ 35 bilhões chegou a ser discutida na Junta de Execução Orçamentária (JEO), na semana passada. O ministro Braga Netto defendeu uma consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) sobre o uso de crédito extraordinário para fazer investimentos e sobre a legalidade de deixar os restos a pagar dessas despesas para 2021, segundo fontes governamentais.
Os titulares da JEO são o ministro-chefe da Casa Civil e o ministro da Economia, Paulo Guedes, que se opôs à proposta do crédito extraordinário, cuja autoria é atribuída ao ministro Rogério Marinho. São vários os argumentos da área econômica contrários à medida. Em primeiro lugar, os integrantes da equipe lembram que a Constituição estabelece que os créditos extraordinários só podem ser utilizados em casos de urgência, relevância e imprevisibilidade. Se os investimentos que seriam executados já estivessem no Orçamento, não se poderia alegar imprevisibilidade, pois suas dotações seriam apenas aumentadas.
Além disso, é considerado normal deixar restos a pagar de um ano para o outro, mas o que a área econômica acha que o Tribunal de Contas da União não aceitaria é deixar “restos a executar”, ou seja, deixar para 2021 investimentos que não foram sequer iniciados neste ano. “Isso não seria razoável”, afirmou uma fonte.
Há também o fato de que os R$ 35 bilhões do crédito extraordinário seriam obtidos por meio de emissão de títulos públicos, aumentando o endividamento e o déficit primário, em um país em que o setor público está com suas contas no vermelho desde 2014. A avaliação dos técnicos é que o sinal para o mercado seria muito ruim, mesmo porque não existe garantia de que os investimentos a serem feitos trariam efetivamente benefícios ao crescimento econômico.
Diante da posição intransigente do ministro Paulo Guedes contra o crédito extraordinário, as alas militar e política voltam-se, agora, contra o teto de gastos. Neste caso, o movimento foi alimentado pela própria área econômica, que, na discussão do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), chegou a propor que uma parte dos recursos do fundo, que está fora do teto de gastos, fosse direcionada ao Renda Brasil, o novo programa social que está sendo alinhavado pelo governo.
As pressões contra o teto, no entanto, encontram resistência também de Guedes, que vê o mecanismo como a âncora fiscal do país e acredita que alterá-lo agora, antes de fazer as reformas necessárias na economia, seria um desastre. Ninguém duvida, na área econômica, que o fim do teto de gastos teria reflexo imediato nas expectativas do mercado, com elevação das taxas de juros.
Há um entendimento também entre as autoridades de que não será possível manter o teto, da forma como está redigido, além de 2022. A estratégia é aprovar as reformas (tributária e administrativa, além dos marcos regulatórios de vários setores) antes disso.
De olho na inflação
O governo só conseguirá cumprir o teto de gastos em 2021, sem um aperto ainda maior, se o índice de inflação que corrigiu o limite das despesas for maior do que o índice que reajustará o salário mínimo e algumas despesas obrigatórias. O teto foi corrigido em 2,13%, enquanto o mercado e o Ministério da Economia projetam alta para o IPCA e o INPC abaixo desse índice.
Maria Cristina Fernandes: O Centrão virou um Congressão
Criação da renda básica permitiu a Maia ampliar o Centrão à esquerda e criar um Congressão
A miséria atingiu o menor patamar das últimas quatro décadas no momento em que a economia tem o maior derretimento da história. A necessidade de amparo a milhões de desassistidos pela pandemia é tão imperativa quanto insustentável é mantê-lo sem atividade econômica. O racha do Centrão é a disputa pela arbitragem da porta de saída desta distopia.
A saída, por enquanto, dá num beco. A proposta do governo é de um imposto sobre transações eletrônicas, uma espécie de CPMF com uma base ampliada pela digitalização da economia durante a pandemia. O Congresso não quer saber de aumentar imposto, embora seja crescente o interesse em encontrar uma maneira para perpetuar o auxílio emergencial, a verdadeira poção mágica que o presidente Jair Bolsonaro tanto procurou na cloroquina.
Vice-líder do governo, Silvio Costa Filho (Republicanos-PE) encomendou uma pesquisa numa cidade de 20 mil habitantes do agreste pernambucano, região petista por excelência e governada por uma aliança entre PSB e PT. Antes do auxílio, Luiz Inácio Lula da Silva registrava lá 75% de aprovação e Bolsonaro, 82% de rejeição. Hoje a aprovação do ex-presidente caiu para 44% e a rejeição do atual, para 42%.
O que vale, diz o deputado, é o último favor. Na ausência de empregos, é neste elixir que o Congresso está agarrado não apenas para atravessar as eleições municipais, mas para o segundo biênio bolsonarista. Ainda que esta renda básica com a qual se renomeará este Bolsa Família encorpado dê sobrevida a Bolsonaro, não há hoje viabilidade para que qualquer partido se oponha à sua implementação.
É pela “pedalada assistencialista” que a relação entre Executivo e Congresso pode ser repactuada. Ainda não há uma equação que abrigue a poção mágica do bolsonarismo nos limites fiscais, mas há alguma boa vontade no Congresso para encontrá-la, até porque este governo, ao contrário daquele da outra presidente pedaleira, converge na agenda de manter o Ministério Público e a Polícia Federal sob rédea curta, além do ex-ministro Sérgio Moro fora do jogo eleitoral.
Ao liderar o desembarque do DEM e do MDB do Centrão, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), aposta na reforma tributária em tramitação na Casa como uma oficina desta porta de saída. O presidente desta comissão e autor da proposta de emenda constitucional de reforma tributária que mais avançou na Casa, deputado Baleia Rossi (MDB-SP), é um dos cotados da extensa nominata de candidatos à sua sucessão.
O fim do recesso do judiciário inviabilizou a última chance de qualquer liminar que abrigasse mudança nas regras do jogo na sucessão das mesas do Congresso para permitir a recondução dos atuais presidentes. Em plenário cheio, ainda mais numa Corte em transição de comando, a acolhida de um casuísmo do gênero parece inviável.
Seria o caminho mais curto para transformar o Congresso Nacional numa Assembleia Legislativa do Amapá ou do Rio de Janeiro. Desmoralizaria quaisquer esforços de o STF se opor a desatinos presidenciais, em quarentena por ora, mas suscetíveis a uma reinfestação a qualquer momento.
Somem-se aí os erros cometidos pelo deputado Arthur Lira (PP-AL) que, subitamente transformado em interlocutor preferencial de Bolsonaro no Congresso, cresceu os olhos e antecipou sua pré-candidatura à cadeira de Maia antes de aparar as arestas que cercam seu nome.
A condição de réu no Supremo em ação penal por corrupção impõe um selo de desqualificação a um parlamentar que pretende ocupar a segunda vaga na linha sucessória da Presidência da República. Ainda mais porque o deputado não goza das mesmas prerrogativas que permitiram ao senador Renan Calheiros (MDB-AL) articular, no Supremo, uma saída que, ao mesmo tempo o manteve na presidência do Senado, em 2016, e o excluiu da sucessão na República.
A desconfiança em relação às chances de Lira emplacar o cargo levaram o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto a lançar pontes com o DEM, por meio do ex-líder Elmar Nascimento (BA), um dos mais discretos pré-candidatos. Fez ainda com que o presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira (SP), outro postulante, tomasse distância. O único imperativo que, de fato, importa, para os partidos é não ficar de fora da mesa diretora. São esses cargos que lhes dão condições de operar. Para isso, se compõem com quem for preciso.
O racha foi a saída para manter o Centrão unido. Sem DEM e MDB, o bloco não existe. São esses partidos que lhe permitem ter acesso às antessalas do PIB nacional. Sob Rodrigo Maia, porém, o bloco vai além. Virou um Congressão. Isso ficou patente não apenas no acachapante quórum de renovação do Fundeb como também na distribuição de tarefas-chave na Casa.
Ao mesmo tempo em que entregou a uma deputada do PP do Piauí, Margarete Coelho, a missão de coordenar um texto para modernizar o SUS, Maia deu asas ao protagonismo do deputado João Campos (PE), filho do ex-governador Eduardo Campos, e maior aposta do PSB no seu Estado, na discussão do projeto de renda básica.
Assim como o Centrão abrigou-se no Bolsa Família do lulismo, a esquerda vai buscar um lugar à sombra na renda básica do bolsonarismo. Seu avanço no Nordeste não poderia ser melhor exemplificado do que pela recepção que Bolsonaro terá hoje no sertão da Bahia, maior Estado governado pelo PT no país. O presidente retomará suas viagens pós-convalescença com a inauguração de uma adutora em Campo Alegre de Lourdes, município governado por Enilson Macedo, do PCdoB, partido do governador Flávio Dino, pré-candidato da esquerda em 2022 mais enturmado com o centro.
O desafio de Maia é agregar o apoio que tem em toda a esquerda, inclusive no PT, ao nome que vier a escolher. Se em sua primeira disputa pelo cargo, em 2017, o presidente da Câmara só garantiu o apoio do seu próprio partido, na véspera, e do PSDB, no dia da eleição, não dá para esperar que, desta vez, a coisa se resolva com brevidade.
A única aposta que dá pra fazer é que o presidente da República terá que repartir sua poção mágica com mais gente. Se vai dar pra todo mundo e vai render até 2022 é outra história.