Valor Econômico
Maria Cristina Fernandes: Bolsonaro pode perder corrida pelo dinheiro para governadores
Presidente se mostrou no encontro como um aliado arrependido do trumpismo
Dezessete chefes de Estado e a presidente da Comissão da União Europeia falaram antes do presidente Jair Bolsonaro na Cúpula dos Líderes pelo Clima. O presidente do país “detentor da maior biodiversidade do planeta”, como Bolsonaro definiu o Brasil, começou a falar quase duas horas depois de a conferência virtual ter começado. E não pôde, a exemplo de Angela Merkel (Alemanha), Emmanuel Macron (França), Ursula Leyen (UE) e Cyril Ramaphosa (Africa do Sul), saudar, com uma estocada da boa diplomacia, a volta dos Estados Unidos, anfitrião do encontro, ao esforço contra o aquecimento global.
Os americanos voltaram ao Acordo de Paris um mês depois da posse do presidente Joe Biden e três anos e sete meses depois de o ex-presidente Donald Trump tê-lo denunciado. Os líderes europeus e da África do Sul não deixaram passar a oportunidade de lembrar Biden do passado muito recente do país que agora se arvora à liderança global do ambientalismo na tentativa de reconquistar um viés de “superioridade moral” perdido na era Trump. Bolsonaro, porém, não pôde fazer o mesmo porque, de todos os 40 chefes de Estado convidados para a conferência, foi o mais estreito aliado de Trump.
E foi assim que o presidente brasileiro se mostrou no encontro. Como um aliado arrependido do trumpismo, incapaz até mesmo de adotar a linha de outros infratores das metas ambientais, como o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau. No comando de um país que, a exemplo do Brasil, não cumpriu o que havia acordado no Acordo de Paris, em 2015, Trudeau colocou o combate ao aquecimento global como prioridade que secunda o enfrentamento da covid-19. Como a pandemia nunca foi sua prioridade, Bolsonaro preferiu centrar seus esforços numa única mentira, a do empenho nacional pela redução dos gases do efeito-estufa.
Os argumentos foram os mesmos apresentados na carta enviada, na semana passada, ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. A carta parece ter sido tão pouco convincente que o presidente americano esperou a vez de David Kabua, presidente das Ilhas Marshall, país minúsculo do Pacífico que tende a desaparecer pelo avanço dos oceanos, mas não Bolsonaro. Biden deixou a sala da conferência virtual antes de o brasileiro começar a falar. A mensagem brasileira foi mais ponderada do que as da era Ernesto Araújo, mas distorce a responsabilidade do país pela emissão de gases estufa, traça meta de redução baseada numa pedalada (para trás) sobre as conquistas anteriores e comemora a matriz limpa do parque energético como feito de seu governo.
A conferência deixou claras as dificuldades de Bolsonaro em limpar a imagem do Brasil depois da devastação e do desmonte das instituições de fiscalização promovidas por seu governo. Por razões inversas, Biden também pisou em ovos em seu discurso, que abriu a conferência. Ciente de que uma parte importante do eleitor americano rejeita o discurso ambiental, falou mais em emprego do que em clima. Ancorou a necessidade de mudar a matriz energética do país com o desenvolvimento de novas tecnologias como meio para a geração de emprego. O temor do eleitorado se estende ao mercado. À tarde, de volta à tela, mal acabara de falar da necessidade do esforço conjunto para o financiamento das ambiciosas metas ali traçadas, as bolsas despencaram, alarmadas com aumento de impostos.
O presidente chinês, Xi Jiping, citado por Merkel, Macron e pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, em função dos esforços na pauta ambiental que precedem os dos EUA, também tratou de seus interesses sem subterfúgios. Ao enfatizar o multilateralismo, deixou claro que as conquistas não decorrerão do novo protagonismo americano mas do conjunto das nações. Xi insiste em se apresentar como liderança dos países em desenvolvimento propugnando o reconhecimento dos esforços que estes têm feito no sentido de buscar o desenvolvimento sustentável.
Todos os chefes de Estado exibiram esforços maiores do que aqueles que têm sido efetivamente feitos. E todos se comprometeram com metas ambiciosas para 2030 a serem acordadas na conferência das Nações Unidas sobre o clima, em Glasgow, em novembro. Nenhum deles, porém, enfrenta descrédito tão grande sobre a distância a ser percorrida entre os esforços e as metas quanto Bolsonaro.
O primeiro teste se dará no acesso ao fundo de US$ 1 bilhão, mobilizado a partir da coalizão de EUA, Noruega e Reino Unido e de empresas como Amazon, Airbnb, Bayer, Nestlé, Unilever, Boston Consulting Group, McKinsey, Salesforce e GKS (ver reportagem na página A5). É um dinheiro a ser destinado para o mundo inteiro e não apenas para o Brasil como desejava o Palácio do Planalto. E até mesmo os governos subnacionais estarão elegíveis. Como o pagamento se dará por meio de resultados, e não antecipadamente para armar a Guarda Nacional, como desejava o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, as chances de o governo federal são mais reduzidas do que, por exemplo, as do Consórcio Amazônia, que reúne os nove Estados da região.
Por meio um plano chamado “Recuperação Verde da Amazônia Legal”, os governadores apresentaram projetos como apoio na certificação de produtos sustentáveis para acesso aos mercados nacional e internacional, incentivo à pecuária intensiva, redução de carbono nas atividades de mineração e fomento ao turismo ecológico. Os desembolsos se dão mediante averiguação, por consultores independentes, do desempenho acordado. Depois de carregar sozinho o fardo da herança trumpista na cúpula, Bolsonaro ainda corre o risco de ser ultrapassado, em casa, pelos governadores, no acesso ao dinheiro.
Maria Cristina Fernandes: Mentiroso e cínico
Se falhar na Cúpula do Clima, Bolsonaro se vitimizará com floresta e vacina
A quem interessar possa na turma de censores da Lei de Segurança Nacional, ele tem 84 anos, uma única dose da vacina da AstraZeneca e usa os dois atributos para definir a participação do presidente Jair Bolsonaro na Cúpula de Líderes sobre o Clima.
Ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) e ex-ministro do Meio Ambiente, Rubens Ricupero até aceita que o estrago poderia ser maior se Ernesto Araújo ainda fosse o chanceler. Não acredita, porém, que a mudança no tom convença o mundo na conferência virtual promovida pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a partir de hoje.
Para sustentar a primeira de suas adjetivações, Ricupero baseia-se na análise, feita pelo “Observatório do Clima”, da carta enviada pelo presidente Jair Bolsonaro para Biden. O aludido compromisso brasileiro com o combate à mudança do clima e com o desenvolvimento sustentável é desmontado em duas tacadas:
O desmatamento na Amazônia teve a maior elevação percentual do século em 2019 (34,5%) e, em 2020 o Brasil liderou, mais uma vez, a destruição de florestas primárias do mundo. É esse desmatamento, mais do que o uso de combustíveis fósseis, que leva o país a ter a quinta maior participação mundial para o efeito estufa;
A exemplo do que aconteceu no Orçamento, a nova proposta de redução na emissão de gases está baseada numa pedalada. O governo elevou o nível de emissões de 2005 em 700 milhões de toneladas para que possa atingir a meta de 43% de redução em 2030 emitindo 400 milhões de toneladas de gás carbônico a mais do que havia prometido.
Fundamentada a mentira, vem o cinismo. É um atributo adquirido. Bolsonaro não foi o único a fazer vista grossa ao desmatamento, mas foi o primeiro a defendê-lo. Só mais recentemente, diz Ricupero, a necessidade de salvar a imagem do Brasil, do ministro Ricardo Salles e a sua própria, mudou o discurso sem mexer na prática.
É com esse cinismo que reclama US$ 1 bilhão para pagar diárias a policiais da Força Nacional de Segurança. Não apenas despreza o desmonte de órgãos de fiscalização como o Ibama, como ainda cria um subterfúgio para o fato de que o Brasil, longe metas de redução de desmatamento, tem acesso vetado aos R$ 2,9 bilhões doados pela Noruega e pela Alemanha adormecidos no Fundo Amazônia no BNDES.
Como este binômio da mentira e do cinismo já correu o mundo, o embaixador aposta que o presidente não vai convencer ninguém. Até porque Estados Unidos, China, Reino Unido e União Europeia vão anunciar metas mais ambiciosas para amarrar os compromissos a serem acordados em Glasgow, em novembro, quando acontece a 26ª Conferência do Clima das Nações Unidas. Se as águas de março não foram suficientes para evitar que se registrasse o pior desmatamento deste mês dos últimos dez anos, é de se esperar que depois da seca que está por começar a coisa só piore.
O Brasil não é o único a chegar com o zoom embaçado na conferência de hoje. A Austrália e o Canadá, diz Ricupero, também estão aquém das metas acordadas no acordo de Paris, de 2015. Nenhum deles, porém, tem um governo que dependa tanto de uma recauchutagem em sua imagem externa. A repercussão da carta de Bolsonaro a Biden já mostrou que não vai dar. De Greta Thunberg aos senadores americanos que alertaram Biden sobre as pretensões bolsonaristas, passando pelo #ForaSalles que mobilizou as redes sociais no Brasil ao longo do feriado, reina o ceticismo.
Se Biden quer lustrar seu mandato, interna e externamente, com um certo ideário de “liderança moral” em pautas como meio ambiente e democracia, Bolsonaro se vale do discurso recauchutado para tentar sobreviver. Não abre mão do que Ricupero chama de agro-lumpen, essa base de madeireiros, grileiros e garimpeiros que, ao contrário do que diz o governo, não devastam porque são pobres mas porque querem ficar mais ricos. Estimativa do “Observatório do Clima” indica que o hectare desmatado pode custar até R$ 2 mil. A devastação brasileira não é uma soma de pequenas áreas mas o ajuntamento de blocos de 100 hectares para cima.
Mal-sucedido, Bolsonaro não capitulará. Vai se valer do cerco mundial para reforçar o discurso de vitimização que ainda ecoa entre seus seguidores. A cartada ambiental na política externa é uma boia de salvação na qual o presidente tenta se agarrar para não ser engolfado por uma conjuntura interna cada vez mais incontrolável. Ao entregar o Orçamento para o Congresso estraçalhar sem ganhar alívio concreto na Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, Bolsonaro mostrou uma cartucheira com pouca munição.
O levantamento que a CPI fará sobre atos e atitudes que marcaram o desleixo de seu governo com a vacinação receberá dele a mesma resposta que se anuncia para os parceiros internacionais que se mantêm incrédulos em relação à sua conversão verde. Da mesma maneira que buscará convencer seus eleitores de que o Brasil ocupa a rabeira dos países que menos imunizaram sua população porque o mundo não vende vacina ao país, ficará tentado a usar a cartada do complô mundial contra o Brasil.
Tome-se, por exemplo, a declaração da vice-presidente americana Kamala Harris de que se, no passado, se fizeram guerras por óleo, as próximas o serão por água. Mas enquanto a contenda amazônica era com o presidente francês, Emmanuel Macron, ficava mais fácil para o presidente tentar sensibilizar "seu Exército". Com os americanos, a brincadeira de forte apache na foz do rio Amazonas é tiro n'água.
Mais do que enquadrar o Brasil na nova ordem climática mundial, os Estados Unidos avançam sobre a maior fonte de divisas externas do país. A China importou 85% a menos da soja brasileira em relação a março do ano passado. Foi o patamar mais baixo de venda neste mês em quatro anos. Enquanto isso, os Estados Unidos tiveram uma alta nas vendas do grão para a China de 320% no mesmo período.
Pode ser apenas o reequilíbrio de uma situação que foi muito favorável ao Brasil ao longo de toda a pandemia, período em que a China descumpriu acordo que prevê aumento nas compras de produtos agrícolas dos EUA. Mas se a uma economia estagnada, com desemprego e inflação em alta, se somar uma perda de divisas do único setor que tem-se mantido incólume à tragédia nacional, o #ForaSalles já não vai mais dar conta de quem tem que sair.
Maria Cristina Fernandes: Contra CPI, Bolsonaro ameaça sócios
São 90 dias regulamentares, mas a única certeza sobre a CPI da Pandemia é de que ninguém sabe quando esta termina. Ainda não está composta, mas já produziu, sobre o Senado, o ajuntamento de duas de suas três forças. Os que querem o cargo do presidente Jair Bolsonaro uniram-se àqueles que se contentam com sua caneta. É a junção dessas duas forças que esticará a CPI até 2022. A pauta vai muito além da incúria bolsonarista na pandemia ou de sua consequência para os Estados. O que estará em jogo é a ocupação do governo, do Judiciário e do próprio Senado.
A CPI já começou a se definir pelo parto. A anexação das duas propostas foi resultado do jogo duplo que marcou a gestão do ex-presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), colocou o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) no cargo e continua a operar no varejo da sustentação bolsonarista na Casa, a um alto custo para o erário, como se viu no relatório do Orçamento do senador Márcio Bittar (MDB-AC).
Com os governadores e prefeitos na roda, ainda que de forma mitigada, os aliados de Bolsonaro que hoje comandam o Senado lhe deram a chance de barganhar o avanço da investigação sobre seu governo. Foi esta a porta que se abriu com a possibilidade de serem investigados não apenas o labirinto das verbas federais nos Estados como a alocação de recursos das emendas parlamentares nos municípios. Ambas passam pelas planilhas da Secretaria de Governo, ocupada até outro dia pelo ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos.
A CPI ainda avançará sobre as brasas que restaram nas relações entre Ramos e o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Ontem o Ministério Público Federal no Amazonas adiantou-se à CPI e denunciou Pazuello por improbidade administrativa decorrente da crise de oxigênio naquele Estado. O processo correrá em primeira instância e pode levar à primeira condenação dos generais do governo. Com um adendo: Pazuello ainda está na ativa.
Com este caldeirão sob fervura, o presidente jogou com a ameaça de implodir a sociedade nada anônima em que se transformou seu governo. O sucesso de sua estratégia dependerá não apenas da composição da CPI mas dos senadores que virão a ocupar a relatoria e a presidência. A meta é reproduzir a CPI dos Correios, tida até hoje como aquela que produziu mais resultados, mas o cenário parece interditado pela força governista na Casa.
Aberta no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, esta CPI entregou a relatoria à oposição. Depois daquela comissão, os parlamentares descobriram meios para assar o porco sem queimar a cabana e os inquéritos mais efetivos passaram para o Ministério Público. A dupla Pacheco-Alcolumbre, estreante na matéria, tenta controlar a labareda mas, uma vez instalada, é a CPI quem manda.
No voto de ontem, respaldado por nove de seus pares, o ministro Luis Roberto Barroso sugeriu que as manobras protelatórias estarão sob a vigilância do Supremo: não cabe ao Senado definir se e quando a CPI será instalada, apenas como procederá, se por videoconferência, presencialmente ou por ambos os meios.
É o MDB o partido que hoje mais se arvora a tomar assento num cargo de comando da CPI e, a partir dele, ganhar terreno. Em 36 anos desde a redemocratização, o MDB mandou no Senado ao longo de 30. Perdeu para o DEM em 2019, graças a uma aliança de Alcolumbre com o grupo lavajatista do Senado. Dois desse grupo são os primeiros signatários das CPIs fundidas na Casa. O senador Eduardo Girão (Podemos-CE), autor do requerimento de ampliação do escopo, continua a gravitar sob a mesma órbita, e o senador Randolfe Rodrigues (Psol-AP) aliançou-se com o MDB.
O senador Renan Calheiros (MDB-AL) foi convidado ao Palácio do Planalto na próxima semana numa operação que visa a tornar palatável, para o presidente, sua escolha para um dos cargos da CPI. A ambição emedebista não se restringe aos domínios do DEM no Senado, mas também sobre o governo.
Os ministros políticos da gestão Bolsonaro são ou foram deputados: Flávia Arruda (Secretaria de Governo), João Roma (Cidadania), Onyx Lorenzoni (Secretaria Geral da Presidência), Teresa Cristina (Agricultura) e Fabio Faria (Comunicações). A ambição primeira dos senadores é o Ministério das Minas e Energia, foco histórico de disputa entre MDB e DEM. Contra todos, Bolsonaro reforça a ala ideológica do governo. Não apenas tirou o almirante Flávio Rocha da Secretaria de Comunicação, como mantém o ex-ministro Ernesto Araújo como entreposto entre si e o novo chanceler, Carlos França.
O Senado, porém, também ganhará força na queda de braço que hoje antagoniza a Câmara e o ministro da Economia, Paulo Guedes. A instalação da CPI eleva o preço de quaisquer das decisões de Bolsonaro sobre o Orçamento. As ambições no Senado estendem-se ainda à vaga do ministro Marco Aurélio Mello no Supremo Tribunal Federal. O passado lavajatista do preferido de Bolsonaro, o advogado-geral da União André Mendonça, o condena no Senado.
A operação, porém, tem três obstáculos. O primeiro é que o posto de governista-mor de Alagoas está hoje ocupado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O segundo é que a ampliação do escopo colocou todos os governadores sob a mira da CPI, entre os quais o de Alagoas, Renan Filho (MDB). E, finalmente, o terceiro é que a nomeação de Renan para um cargo na CPI deixaria em maus lençóis dois de seus correligionários, os líderes do governo no Senado, Fernando Bezerra (PE) e no Congresso, Eduardo Gomes (TO).
Quem quer que ambicione o cargo de relator ou presidente na CPI se transformará num pivô do cenário de 2022. A dominância do MDB fortaleceria o partido na disputa pela vice do PT. Em meio às disputas intestinas, um presidente menos imiscuído, como o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), seria uma solução tão desejável quanto improvável.
No pior das hipóteses, às pilhas de cadáveres se juntarão os áudios de whatsapp, comuns entre integrantes deste governo, que a CPI não custará a obter. É a espetacularização da tragédia que vai entrar no ar. Ambas poderiam ter sido evitadas se a apuração das responsabilidades tivesse começado junto com a incúria.
Cristiano Romero: Erro capital
Por que sociedade não reconhece erros do II PND e avança?
Um dos temas mais quentes do debate nacional, desde sempre, é entender por que o país fracassou e continua fracassando. O diabo é quando aparece alguém sustentando que não houve fracasso algum, afinal, temos uma das maiores economias do planeta. Aos ufanistas é imperativo lembrar que, nesse quesito, estamos em plena derrocada. O Produto Interno Bruto (PIB) do país a que chamamos de Brasil há dez anos era o 6º do mundo, agora é o 12º. Ademais, o que significa para as dezenas de milhões de pobres e miseráveis deste território viver, do jeito que vivem, numa das 20 maiores economias?
O ex-ministro da Fazenda Pedro Malan pronunciou uma das frases mais geniais da história da Ilha de Vera Cruz: "No Brasil, até o passado é incerto". Malan, que ocupou o cargo de ministro nos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002), referiu-se na ocasião a decisões que a Justiça tomara, revendo integralmente o teor de leis e de jurisprudências firmadas pelo próprio Poder Judiciário.
O axioma de Malan é aplicável, também, a muitos outros aspectos da vida nacional. Um exemplo é justamente o debate, que já deveria ter sido concluído há décadas, quanto ao porquê do nosso fracasso econômico recente. Antes que o leitor pense que a coluna se refere ao desastre que vivemos desde 2014, quando se iniciou a maior e mais profunda recessão de nossa história, não é isso.
A referência aqui é à "mãe de todas as crises", aquela que ficou conhecida como a crise da dívida externa, cujo marco temporal foi 1982, mas que, na verdade, se instaurou entre nós pelo menos dois anos antes, quando foi deflagrada a segunda crise do petróleo.
De forma bem resumida, um rápido contexto. Por causa da primeira crise do petróleo, em 1973, o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) decidiu "isolar" o Brasil dos flagelos provocados pela alta do petróleo. A economia vivia os estertores do chamado "milagre econômico" (1967-1973), período em que cresceu a taxas superiores a 10% ao ano. Diante do aumento vertiginoso dos preços do petróleo _ o país importava na época 85% do óleo que consumia _, várias nações foram obrigadas a fazer ajustes para se adequar àquela realidade.
Geisel não foi eleito presidente pelo voto popular, mas agiu exatamente como se tivesse sido. Estávamos numa ditadura, que, instaurada desde 1964, passava por seu pior momento do ponto de vista de sua "popularidade". Filhos da classe média _ e esta deu apoio crucial ao golpe militar dez anos antes _ estavam morrendo nos porões da ditadura, que, desde 1968, com a assinatura do Ato Institucional nº 5, ampliaram-se ao incluir as polícias estaduais no aparato de repressão do regime.
Os anos de chumbo (1968-1975), como ficou conhecido o período mais autoritário da ditatura, coincidiram com o auge do "milagre". Este fato dificultou sobremaneira a defesa das liberdades e, portanto, a volta da democracia, interrompida em 1964 com a deposição ilegal do presidente João Goulart. Por outro lado, o regime militar começava a enfrentar naquele momento a sua crise hegemônica. Duas razões concorriam para isso.
A primeira foi o desgaste, junto à classe média, provocado pelo combate violento, principalmente com o uso da tortura, a grupos de guerrilha que decidiram pegar em armas para combater o regime e também a opositores políticos e da sociedade civil. Aquilo coincidiu com os primeiros impactos da crise do petróleo de 1973 na economia nacional, que, em meio a pressões inflacionárias, começou a desacelerar o ritmo de expansão.
Diante desse quadro, Geisel optou pela solução populista. O cálculo era o de que, se optasse pelo ajuste da economia, o regime perderia ainda mais apoio político e isso seria perigoso.
Numa democracia, governos são obrigados a fazer ajustes em duas situações: por causa do advento de uma crise internacional _ que, não nos iludamos, sempre nos atingirá _ ou decorrente de barbeiragens cometidas pelo próprio governo num dado momento, obrigando-o a corrigir o rumo de suas políticas. Do ponto de vista político, é melhor enfrentar crises externas porque estas, pode-se alegar, não estão sob o controle de nações como a nossa.
No caso de uma ditadura, a história mostra que esse tipo de regime tem seu ciclo e, portanto, sempre termina, e muitas vezes de forma ruinosa e violenta para todos os envolvidos _ ditadores e população. Ditaduras acabam porque os animais não sabem viver sem liberdade, o que, no caso do bicho homem, ser proibido de ir e vir é sinônimo de morte, uma vez que, dotado de inteligência, sabe o que é viver enclausurado.
As ditaduras, mesmo as longevas, e a "nossa" derradeira durou 21 anos, podem chegar ao fim de duas maneiras: por meio de um acordo que assegura uma transição pacífica no retorno à democracia ou de por meio de movimentos revolucionários, onde prevalecem a violência e o revanchismo (talvez, uma expressão mais branda para isso seja "aplicação da Justiça" com o objetivo de apuração de crimes cometidos durante o regime de exceção e aplicação respectiva de penalidades previstas nas leis).
Preocupado em como seria uma transição de regime em meio a uma crise econômica, Geisel lançou, com sua equipe econômica, o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). O objetivo era isolar o país dos efeitos da primeira crise do petróleo. O programa trancou a economia brasileira a sete chaves para "protegê-la" da concorrência estrangeira, fundou dezenas de empresas estatais, exponenciou o endividamento externo para financiar um sem-número de projetos de desenvolvimento e expandiu a dívida pública com o mesmo objetivo.
Com o II PND, Geisel traçou a longa transição "pacífica" do regime. Militares e torturadores envolvidos até o pescoço na repressão à ditadura não queriam ser julgados pelo novo regime e, assim, não o foram. É a política, estúpido!
Em 1979, veio a segunda crise do petróleo e, três anos depois, o II PND desmonta-se como um castelo de cartas. Mas, inúmeros aspectos daquele modelo econômico (um deles, o fechamento da economia), seguem mantidos porque, o que é espantoso, parte expressiva da opinião pública ainda não chegou à conclusão do mal que ele faz ao país.
Fernando Exman: Bolsonaro tenta refundar o governo
Executivo tem responsabilidade no aumento da miséria
O Supremo Tribunal Federal (STF) eclipsou os planos do presidente Jair Bolsonaro de refundar o governo a partir da recente reforma ministerial.
Acreditava-se, dentro do Executivo, que depois de mudanças na cúpula da Saúde essa nova configuração no primeiro escalão pudesse dar tempo suficiente ao governo para promover um rearranjo na base e construir os alicerces de uma aliança voltada à reeleição. Melhorariam também as relações com militares e com a comunidade internacional, ao passo que se tentaria dar novo impulso à coordenação entre as pastas com a troca na Casa Civil.
Problemas mais urgentes seriam também atacados. Uma preocupação dentro do governo é, por exemplo, com uma possível escalada da violência decorrente do crescimento da miséria, embora o próprio combate à fome tenha sido negligenciado.
Surgiram, então, as duas recentes decisões disparadas do STF. A primeira foi de autoria do ministro Luís Roberto Barroso, que instou o Senado a criar a CPI da pandemia. Dificilmente o governo não sairá alvejado da comissão parlamentar de inquérito, mesmo que ela amplie o seu escopo para investigar eventuais irregularidades ocorridas nos Estados e municípios que receberam recursos federais.
São amplos os instrumentos que os parlamentares terão para abespinhar Bolsonaro. Afinal, CPIs podem quebrar sigilos fiscais, telefônicos e bancários. Na história recente, muitas comissões foram instaladas e em nada resultaram. Mas tantas outras buscavam informações sobre determinados assuntos e, ao obterem dados sigilosos, tropeçaram em revelações mais preciosas.
Cabe também aos estrategistas do Planalto avaliarem o custo-benefício - além dos riscos - de se adiar a instalação da CPI da pandemia para o fim do ano. Esse é um movimento capaz de levar à sobreposição do plano de trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito ao calendário eleitoral.
O segundo petardo levou a assinatura da ministra Rosa Weber. Na segunda-feira, a poucas horas de os decretos presidenciais que ampliam o acesso a armas e munições começarem a valer, ela sustou trechos da nova regulamentação tão aguardada pela ala armamentista que apoia o governo.
Os decretos dividem a base eleitoral do presidente. Enquanto atiradores, caçadores e colecionadores esperavam uma postura até mais agressiva de Bolsonaro na flexibilização da regulação do setor, evangélicos se mantém contra qualquer investida nesta seara. É um tema delicado, mas do qual o chefe do Executivo demonstra que não abrirá mão.
Nesse caso, será interessante ver como o advogado-geral da União, André Mendonça, tentará se equilibrar entre a missão de defender os pontos de vistas do chefe e ainda sim ter o apoio das igrejas para ser o indicado “terrivelmente evangélico” à próxima vaga do STF. O caminho mais fácil que ele terá para percorrer acabará sendo a fundamentação segundo a qual a maioria da população já se manifestou em 2005 contra a proibição da comercialização de armas e munições e ainda hoje mantém majoritariamente essa posição.
Mendonça já precisou advogar sobre esse tema quando comandou a AGU pela primeira vez, antes de ser nomeado ministro da Justiça. Sua recolocação na posição original foi, inclusive, um dos lances centrais da estratégia de refundação executada no fim do mês passado.
O substituto, Anderson Torres, foi alçado do posto de secretário do Distrito Federal justamente em meio ao temor no governo de que a crise sanitária, depois de se tornar uma crise socioeconômica, possa ganhar os contornos de uma crise de segurança pública.
Torres é delegado da Polícia Federal e possui experiência na área, além de bom trânsito no meio político. Em seu discurso de posse, destacou que a Justiça e a Segurança Pública são a espinha dorsal da paz e da tranquilidade da nação, principalmente em meio a uma crise sanitária mundial com impactos na economia e na qualidade de vida dos cidadãos. Ele sublinhou que se deve garantir o “ir e vir sereno e pacífico”, para então emendar: “A Segurança Pública foi uma das principais bandeiras da sua eleição e ela voltará a tremular alta e imponente”. Foi um discurso direcionado ao setor, mas também para os agentes políticos.
Já a nomeação da deputada Flávia Arruda (PL-DF) pode ter o condão de manter Bolsonaro próximo do próprio PL e do PP, de onde o presidente pode tirar seu candidato a vice e garantir mais tempo de televisão para a campanha.
Bolsonaro gosta de dizer que foi eleito sem dinheiro e tempo de propaganda em 2018. Mesmo assim, até seus aliados concordam com a tese de que sua eleição resultou de uma conjunção de fatores de difícil reedição. O campo adversário busca se fortalecer nas redes sociais. E o presidente pode precisar se expor em debates e ter mais tempo de TV para defender as realizações de seu governo.
Até agora, porém, a reforma ministerial ainda não conseguiu acabar com a desarticulação crônica da administração federal, origem de grande parte dos desgastes sofridos pelo Executivo. O impasse relacionado ao Orçamento deste ano, por exemplo, é uma dessas turbulências gestadas dentro do próprio Executivo.
A preocupação de Bolsonaro com a possibilidade de o aumento da miséria provocar distúrbios sociais também se remete, em parte, a essas divergências internas.
É preciso pontuar que o governo demorou muito para editar uma medida provisória e estabelecer o novo benefício emergencial. Milhões de brasileiros receberão um auxílio emergencial menor e muito mais tarde do que suas famílias podem suportar. Os saques em dinheiro só terão início em maio. Quem nasceu em dezembro só poderá colocar as mãos no dinheiro em junho, e as últimas parcelas estão previstas para setembro. Isso não tem nada a ver com o que o STF decidiu sobre a autonomia dos entes subnacionais para combater a pandemia nem com as medidas de isolamento adotadas por governadores ou prefeitos. Os demais Poderes não podem ser culpados pela morosidade e desarticulação do Executivo.
Pedro Cafardo: Autocrítica é coisa rara no país dos infalíveis
Tática mais comum é mudar o discurso e eventualmente a prática, mas admitir equívocos somente “en passant”
Só há uma pessoa infalível no mundo, o papa Francisco. Assim mesmo, esse dogma, estabelecido para os papas em 1870 pelo Concílio Vaticano I, vale apenas para os católicos e com uma ressalva: a infalibilidade se restringe a matérias relativas à fé e à moral (costumes).
No Brasil, porém, a infalibilidade parece ter aplicação mais ampla. Políticos quase sempre se negam a admitir erros e a fazer autocrítica. É inevitável voltar a esse tema, já abordado aqui um ano atrás, porque o culto à infalibilidade se espalha à direita e à esquerda.
O caso clássico desse culto, pelo qual o partido tem sido seguidamente cobrado, é o do PT, cujos governos tiveram muitos acertos, mas também cometeram muitos erros. Lula e o PT até hoje não assumiram formalmente a responsabilidade pelos desvios do Mensalão e do Petrolão. Dilma nunca admitiu suas falhas na condução da política econômica nem sua omissão no combate à corrupção na Petrobras. Lula, ressuscitado politicamente pelo Supremo, continua a tergiversar sobre o tema.
O tucanato jamais fez mea culpa sobre erros na gestão do PSDB no governo Fernando Henrique. Incensado pelos acertos, como a estabilização promovida pelo Plano Real, os tucanos nunca admitiram o equívoco na sua política cambial, responsável pela quebra do país e por destruição de indústrias. Quando FHC deixou o governo, em 2002, o Brasil estava insolvente, com uma dívida de US$ 30 bilhões no FMI, só quitada no primeiro governo Lula. Nunca se admitiu também a escancarada compra de votos para a aprovação da emenda da reeleição, em 1997. Tampouco houve mea culpa quando, contra seus próprios princípios, o PSDB bloqueou medidas fiscais propostas ao Congresso pelo ministro Joaquim Levy, em 2015.
No mês passado, o ex-juiz Sérgio Moro foi considerado parcial pelo Supremo Tribunal Federal na condução do processo e na condenação do ex-presidente Lula. Moro, em nota, afirmou ter “tranquilidade em relação aos acertos” de suas decisões nos processos da Operação Lava-Jato. E acrescentou: o Brasil “não pode retroceder no combate à corrupção”. Na verdade, uma coisa nada tem a ver com a outra. O Brasil não pode mesmo retroceder nessa matéria, mas o ex-juiz, diante de evidências e de uma decisão do STF, também não tem como negar sua conduta irregular.
No país dos infalíveis, a tática é mudar o discurso e eventualmente a prática, mas admitindo equívocos “en passant”. O governador de São Paulo, João Doria, virou casaca em relação a Jair Bolsonaro, depois de se eleger com apoio do “Bolsodoria”. Com o avanço da pandemia e a aproximação do período eleitoral, passou a ser o mais feroz crítico do presidente. O PSDB paulista nunca fez pedido formal de desculpas pelo apoio a Bolsonaro, e Doria admitiu superficialmente o erro, mas também sem se desculpar. O mesmo se deu no Rio Grande do Sul, onde o candidato do PSDB, Eduardo Leite, se elegeu em 2018 em parceria com o bolsonarismo e agora adota posição fortemente crítica ao presidente, como se nada tivesse a ver com a eleição dele.
No mês passado, um ano depois da chegada da pandemia ao país, Bolsonaro rendeu-se às críticas e lançou o até agora inoperante comitê de combate à covid-19. Mudou o discurso ao deixar sua postura de defesa da economia e disse: “Vida em primeiro lugar”. Em declaração anterior, ele debochou de mortos ao dizer que o Brasil não pode ser um “país de maricas”. Também promoveu aglomerações e andou sem máscara.
Nenhuma palavra de autocrítica a essas posições foi dita pelo presidente. Ele mudou um pouco o discurso e seguiu a vida, mantendo a crítica ao isolamento social e a defesa do tratamento precoce para a covid-19 com um conjunto de medicamentos sem eficácia comprovada.
Os políticos em geral têm dificuldades para admitir seus erros. Mas não é assim em toda a parte. A chanceler da Alemanha, Angela Merkel, havia anunciado um rigoroso esquema de quarentena de 1º a 5 de abril, no feriado da Páscoa. O planejamento, porém, foi falho e questionado por pela sociedade alemã. E Merkel não só voltou atrás: admitiu o erro como sendo só dela, embora tivesse tomado a medida em conjunto com 16 governadores. Aqui, Bolsonaro aproveitou o mea culpa de Merkel para dizer que isso confirmaria sua atuação para impedir o fechamento de atividades não essenciais e preservar a economia. Perdeu a chance de usar o exemplo para admitir seus erros dizendo que até a Merkel errou nesta pandemia.
A própria imprensa tem dificuldade de fazer autocrítica. O Grupo Globo, ao qual pertence o Valor, por exemplo, fez a sua em relação ao posicionamento no início do regime militar de 1964. Outros grandes veículos de imprensa nunca reviram, em editoriais, apoios como o dado a Fernando Collor em 1989, que levou o país ao desastre. E mesmo à aceitação de Jair Bolsonaro, pela crença de que a política liberal de Paulo Guedes, na Economia, compensaria as posições externadas em seus conhecidos discursos de ódio e de apoio à ditadura militar e a torturadores. Como os políticos, a imprensa muitas vezes muda o discurso, passa a criticar ações e políticos que antes sustentava com elogios ou omissão, mas não admite ter cometido erros nem pede desculpas.
Em dois raros exemplos recentes, mas após erros menores, Doria pediu escusas por ter viajado a Miami, de férias, em plena pandemia e o governador do Rio, Claudio Castro, se desculpou por promover festa de aniversário e aglomeração de pessoas.
A recente carta em defesa da democracia, assinada por seis presidenciáveis, foi muito bem-vinda. Mas o Brasil inteiro sabe o que eles fizeram no “verão passado”. Quase todos apoiaram Bolsonaro, direta ou indiretamente, em 2018. Ou foram ingênuos politicamente, porque o presidente nunca escondeu seu viés antidemocrático, ou malévolos: apertaram o botão do “dane-se” para ver o circo pegar fogo. Não podem agora, quando o país arde em chamas, se fingir de inocentes e formar uma frente democrática sem uma alentada autocrítica e um formal pedido de desculpas. Sem isso, dificilmente conquistarão a confiança do eleitor, seja este um bolsominion arrependido, seja um petista decepcionado.
Andrea Jubé: CPI testa casamento de Bolsonaro
Presidente dependerá mais do Centrão em 2022
Os manuais de biologia definem a simbiose como a relação entre duas espécies em que uma, ou ambas, se beneficiam da união. Se apenas uma das partes se favorece, o enlace descamba para o parasitismo.
Aplicando-se a biologia à política, a controversa CPI da pandemia colocará à prova o casamento do Centrão com o governo Jair Bolsonaro, e o tempo definirá a natureza dessa também relação simbiótica: mutualismo, comensalismo, ou, num cenário de esgarçamento dos laços - diante de eventual corrosão da popularidade presidencial -, parasitismo.
O apogeu dessa relação materializou-se na nomeação da deputada Flávia Arruda, do PL do Distrito Federal, para a Secretaria de Governo. A CPI que investigará responsabilidades do governo federal - mas também de governadores e prefeitos - na condução da pandemia colocará à prova a solidez do enlace e a habilidade da ministra estreante.
Se o Centrão tomar para si as rédeas da investigação, centrando fogo sobre os governadores, que entraram na mira graças à articulação de Bolsonaro, essa relação tende a se fortalecer, com a provável expansão dos domínios do bloco no governo, e fragilizando os militares.
Nessa hipótese, uma fonte miliar, com trânsito no Palácio do Planalto, vê até mesmo o ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, velho amigo de Bolsonaro, com a cabeça a prêmio, se o presidente for obrigado a reafirmar os laços com o Centrão em um “recasamento” - que aliás, está na moda.
Esse raciocínio parte da necessidade de Bolsonaro ratificar a aliança com o Centrão no ano que vem para a campanha da reeleição. “São os políticos que têm bagagem para conduzir o processo eleitoral, não os militares”, argumenta a fonte militar.
A mesma fonte observa que os três ministros palacianos - Fábio Faria (Comunicações), Onyx Lorenzoni (Secretaria-Geral), e Flávia Arruda (Secretaria de Governo) -, são pré-candidatos aos governos de seus Estados, respectivamente, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, e Distrito Federal. Faria é contabilizado como palaciano, porque despacha em dois gabinetes: no Bloco R da Esplanada, e no Planalto.
“Os políticos vão querer estar com o Planalto na mão. E o Bolsonaro precisará nessa hora dos políticos, não dos militares”, prossegue a fonte militar. “Dos militares, o general Braga Netto [novo ministro da Defesa] vai tomar conta. Por isso, o general Ramos terá dificuldade de ficar na Casa Civil”, conclui.
É nesse pano de fundo, com o propósito de ter o governo em mãos, verbas e cargos, que o Centrão vai para a CPI da Pandemia com a faca nos dentes, determinado a blindar o governo com um time de atacantes. O ponta-de-lança é o presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), aliado de primeira hora do Planalto. Ele tem na mira, o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), ex-aliado, que tentará apear do poder no pleito de 2022.
Mas será uma briga de profissionais, e cada sessão da CPI lembrará uma final de campeonato. Quatro vezes presidente do Senado, e líder da maioria, Renan Calheiros (MDB-AL) demarcou o espaço dos times no campo: a oposição será majoritária, com pelo menos seis dos 11 integrantes. Ele calcula que se o PSDB e o PSD indicarem quadros independentes, como Tasso Jereissati (CE), e Otto Alencar (BA), respectivamente, o bloco da oposição poderá somar até oito dos 11 votos.
O MDB só escalou profissionais: Renan e o líder da bancada, Eduardo Braga (AM). Como a maior bancada do Senado, os emedebistas invocam a prerrogativa de indicar o presidente ou o relator. “Depois que o Bolsonaro ajudou a esmagar o MDB nas urnas, só podemos fazer oposição ao governo”, vociferou Renan à coluna.
Um problema lateral é que o Centrão é um parceiro inconstante. Endossou ao lado de Davi Alcolumbre (DEM-AP) e Rodrigo Maia (DEM-RJ) a criação da outrora temida CPI mista das “fake news”, emplacando na vice-presidência o deputado Ricardo Barros (PP-PR. Como a política muda como as nuvens, meses depois, Barros virou líder do governo na Câmara. Quando (e se) a CPMI for retomada, Barros será um aliado na direção do colegiado.
Um dos autores do mandado de segurança para que a CPI da Pandemia seja instalada, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) acredita que o presidente Rodrigo Pacheco (DEM-MG) fará a leitura do requerimento hoje, abrindo prazo para as indicações dos integrantes do colegiado. Ele aposta na fusão dos requerimentos de investigação do governo federal, e dos governadores e prefeitos. “Não vejo dificuldade para isso, podemos trabalhar com subrelatores”, descomplica. Vieira não acredita que o Supremo Tribunal Federal module a liminar de Luís Roberto Barroso para retardar a instalação do colegiado para o fim da pandemia.
Renan acrescenta que a ampliação da investigação para governadores e prefeitos já é consenso, e não será obstáculo à instalação do colegiado. Ele duvida que Pacheco continuará protelando a CPI. “Não acredito que ele continuará pagando o preço desse desgaste, ele está se tornando cúmplice desse morticínio”.
Em 2005, Renan presidia o Senado quando teve de acatar determinação do STF para instalar a CPI dos bingos. A decisão partiu do então decano da Corte, Celso de Mello, que abriu o precedente hoje invocado por Barroso. Mello registrou em seu voto que as comissões de inquérito são direitos das minorias porque “as maiorias não precisam de CPIs”.
Na biologia, é o “comensalismo” que mais evoca a relação do governo, o “hospedeiro maior” ou “anfitrião”, com o “comensal menor”, que seria o aliado. Um exemplo dessa espécie de casamento na natureza são as hienas e os leões. Os primeiros se alimentam dos restos da caça dos grandes felinos.
Se a relação na política se deteriora, beirando o fim da aliança, assemelha-se gradativamente ao “parasitismo”. Neste caso, o parasita é o único a se beneficiar, sugando a energia do hospedeiro até o fim. Na natureza, os exemplos mais comuns são as pulgas e os carrapatos.
FHC: “Não pode ser o candidato da elite”
Para ex-presidente, nome da terceira via em 2022 precisa conhecer bem realidade brasileira
Cristiano Romero, Valor Econômico
BRASÍLIA - Na polarização que se desenha para a eleição de 2022, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) afirma ser possível criar o “espaço” para uma terceira via competitiva que enfrente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o atual, Jair Bolsonaro (sem partido). Desde que a alternativa construa esse “espaço” com um forte discurso de “progresso econômico”, que conheça a realidade brasileira e não seja “anódina”. “É preciso ver quem é capaz de conversar com o Brasil. Não pode ser o candidato da elite”, defende, em entrevista ao Valor.
Para FHC, o Brasil “gosta de novidade” e a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos é “positiva” por refletir “aqui de alguma forma” a possibilidade de se escolher “uma candidatura que seja equilibrada”. O ex-presidente almeja, mas não enxerga no momento o portador do perfil ideal para combater Lula e Bolsonaro em 2022: alguém que exerça liderança nacional, “atenda aos mais pobres” e seja popular.
“Estamos longe de ver alguém que simbolize essa diversidade, para ser um bom candidato de oposição”, diz. “Há governadores que têm peso. Dizem que são candidatos, mas eles não simbolizam nada nacionalmente”, acrescenta FHC, correligionário dos governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, pré-candidatos na corrida presidencial.
Para o tucano, “política não se faz com o passado”, mas com o futuro. Apesar disso, a disputa em 2022, afirma, pode favorecer Lula. Em sua opinião, o petista, na falta de uma terceira via competitiva, pode aglutinar forças do centro. “Bolsonaro é mais extremo que o Lula. Se não aparecer uma [terceira] candidatura, o Lula vai somar essa gente [que hoje faz oposição ao governo] para enfrentá-lo”, diz o tucano, que tampouco é a favor do impeachment de Bolsonaro. “Estamos muito longe de uma situação de impeachment. Bolsonaro está governando. Então, acho que é insensato”, disse.
A seguir, leia os principais trechos da entrevista ao Valor:
Valor: O senhor imaginou que o Brasil fosse se tornar o epicentro da pandemia?
Fernando Henrique Cardoso: Na minha casa falavam muito da gripe espanhola, que foi algo muito difícil, mas nunca mais se falou de uma pandemia no sentido que temos hoje. As pessoas não estavam, em geral, preparadas para isso. Quando o governo não sinaliza a gravidade, é pior. A situação é muito complicada, o número de mortos não para de crescer. E o pior é que os pequenos negócios na economia estão fechando, todo mundo está sofrendo as consequências e vai sofrer por muito tempo ainda.
Valor: Como estaremos depois da pandemia?
FHC: Não sei o que vai acontecer porque, neste momento, todos querem salvar a própria pele, todo mundo pensando em si mesmo, depois vai pensar na vida. E a vida é o trabalho, a política. O Brasil é curioso porque tem um serviço de saúde bom. Quando eu era criança, aqui só havia as santas casas de misericórdia e olhe lá. Hoje, temos o SUS e ele funciona, atende às pessoas. Eu uso o SUS.
Valor: Mas o senhor é bem atendido porque é ex-presidente.
FHC: Espero que sim, mas a cama é a mesma, os lençóis são os mesmos, os médicos, enfim, o SUS é razoável.
Valor: O que está faltando?
FHC: Confiança. É difícil manter a confiança numa situação dessas. E com o nosso presidente que acha que a pandemia é uma gripezinha, ninguém acredita em nada. Agora, isso não para a vida política. Ainda bem que tem eleição, mas sempre repito: política não se faz com o passado.
Valor: Não?
FHC: Não. Política se faz com o futuro. O que você apresenta, qual é o caminho. Num país como o Brasil, isso é mais forte.
Valor: Por quê?
FHC: Porque aqui não tem partido para disciplinar os políticos. O povo vai atrás de pessoas que expressam aquele momento. Neste momento, você olha em volta e vê falta de quem expresse alguma coisa. Vamos ver quem, depois da pandemia, vai expressar o momento novo do Brasil. É um país que tem futuro, tem riqueza, tem gente.
Valor: Mas não cresce há sete anos.
FHC: O problema fundamental é retomar o crescimento, mas diminuir a desigualdade, que é muito grande. Quando falam do meu governo, dizem: “Ele fez o Plano Real”. O real foi importante, mas fiz a reforma agrária, algo que tem um peso grande para a população. A educação melhorou bastante, Paulo Renato [de Souza] era um bom ministro; a saúde, onde o [José] Serra foi um bom ministro, antes dele o [Adib] Jatene, deu um salto grande. Comecei a reforma fiscal para enfrentar o déficit público, que sempre existiu e agora vai aumentar.
Valor: Bolsonaro, ex-deputado sem grandes pretensões políticas, rompeu com a polarização PSDB-PT que prevaleceu de 1994 a 2018. Como se explica isso?
FHC: Bolsonaro veio como o anti-PT. O pessoal ficou com medo da vitória do PT.
Valor: Medo do que exatamente?
FHC: O medo não estava baseado propriamente em fatos, mas muito mais na pintura que se fazia das coisas. Na verdade, quando foi presidente, Lula governou de acordo com o mercado. A presidente Dilma [Rousseff] foi mais voluntariosa, mas não fez nada que fosse contra os interesses predominantes. Ela podia ser menos capacitada que o Lula para lidar com a máquina pública.
Valor: Onde o senhor acha que a ex-presidente errou?
FHC: Ela rompeu [com o modelo macroeconômico herdado de Lula], sobretudo, no segundo mandato [2015-2016], quando fez outra coisa. A Dilma era mais estatizante que o Lula.
Valor: Lula manteve o modelo adotado em seu governo e, inclusive, o aperfeiçoou. Um exemplo foi a acumulação de reservas cambiais. Como o senhor o define?
FHC: O Lula é prático. Eu o conheci bastante quando ele era dirigente sindical. Ele é inteligente, sensível e prático. Sempre teve mais amor ao capital, mas nunca deixou de olhar para o povo, sempre fez uma mescla das duas coisas. É mais paulista: “O governo faz, mas quem faz também é o mercado”. Com a Dilma, é mais Estado. Não deu certo não só por ser Estado, mas também porque a conjuntura não favoreceu. Bolsonaro se elegeu na base de que é um liberal.
Valor: Ele é um liberal?
FHC: Não é liberal. É um militar e eu conheço bem os militares. Meu pai era general e meu avô, marechal. Nada contra isso, mas conheço a mentalidade militar deles, que é mais Estado. No caso do presidente, ele é capitão, então, é mais reivindicativo ainda. Nunca falei com ele, mas lembro que ele era um ser reivindicante, queria coisas para os militares. Não me parece que ele tenha grandes habilidades políticas.
Valor: Mas foi eleito presidente.
FHC: Sempre disse: quem tem votos eu respeito. Ele foi eleito. Sou visceralmente antigolpe. Nossa sociedade provou o gostinho da liberdade, é difícil voltar atrás.
Valor: O senhor não vê risco de golpe da parte do presidente?
FHC: Acho que não tem. Ele pode ter o ímpeto que tiver, não sei qual é o ímpeto dele, mas não pega. É difícil você botar um país do tamanho do Brasil na risca, tem que ter um partido. Aqui não tem nem partido nem de esquerda nem de direita.
Valor: E os partidos que chegaram ao poder, como PT e PSDB, são hoje bem menores do que eram, o que mostra que a fragmentação das legendas continua aumentando.
FHC: Além da fragmentação partidária, temos tradição de seguir o líder, de seguir pessoas. Bolsonaro, querendo ou não, tem liderança, o Lula também. Estão pregando a necessidade de localizar o centro. Depende de pessoas. Quem é? Não pode ser um centro anódino. Isso não pega na política.
Valor: Quem teria esse perfil?
FHC: Tem que ser alguém que faça a economia crescer e dê emprego para quem precise e atenda aos mais pobres. É fácil falar e difícil fazer, mas tem que simbolizar isso. Há governadores que têm peso. Dizem que são candidatos, mas não simbolizam nada nacionalmente.
Valor: É torcedor do Fluminense ou do Flamengo?
FHC: Eu era mais Fluminense, mas estava errado. Era melhor ter sido mais Flamengo... Quando fui candidato à Presidência [em 1994], Marcello Alencar era [candidato a] governador do Rio. Ele tinha força na Baixada Fluminense e me levou a uma cidade da região. No [Estado do] Rio, não conhecia nada; mais Niterói. Era assustador para mim.
Valor: Por quê?
FHC: Fui a um lugar onde tinha um bar, uma escadinha, por onde subimos e chegamos a uma sala grande, meio escura, onde estavam os “chefes” da Baixada, todos com pulseiras e colares de ouro. Eu era ministro da Fazenda. Conhece a Ana Tavares [então assessora especial]? Ana ia comigo e dizia: “Não vai falar com fulano!”. Eu dizia: “Ana, eu tenho que falar”. É complicado. Nossos líderes que estão aí têm que conhecer o Brasil. Eu tinha algum conhecimento de Brasil porque, primeiro, fui sociólogo. Minha mãe nasceu em Manaus. Minha família, por parte de mãe, é de Alagoas. Meu pai nasceu no Paraná, mas a família é de Goiás. Você tem que conhecer essa realidade, a diversidade que é o Brasil. Não adianta saber pelos livros, tem que ter contato com as pessoas. Ser líder político no Brasil não é fácil.
Valor: Como assim?
FHC: Bolsonaro tem a vantagem de ser capitão da reserva. Não sei o quanto ele andou pelo país, mas, mesmo que não tenha feito isso, eles [os militares] têm um certo conhecimento da realidade. Algum conhecimento do povo o líder político tem que ter. Estamos longe de ver alguém que simbolize essa diversidade, para ser um bom candidato de oposição. Os que estão aí e que são possíveis candidatos podem vir a ter, mas têm que obrigatoriamente vir a ter.
Valor: O senhor disse que ficou assustado com o encontro na Baixada Fluminense. Como foi?
FHC: Ah, chegou uma hora, depois de me ouvirem, que um deles disse: “Eu aposto não sei quanto nesse menino aí”. O menino era eu [com 63 anos na época]! Andei muito na Baixada com o Zito [José Camilo Zito dos Santos Filho, ex-prefeito de Duque de Caxias]. É muito importante falar com todo mundo e isso, que as pessoas pensam que é fácil, não é. Quando era presidente, eu falava com os motoristas, o sujeito que tomava conta da piscina [do Palácio da Alvorada], a moça que cuidava das flores, que se chama Dalina... Eu queria saber como as pessoas simples sentem a vida. Como não há estrutura partidária que sustente uma candidatura, é você que tem que se projetar. Projetar é jogar para fora, não é ficar para dentro. É preciso ver quem é capaz de conversar com o Brasil. Não pode ser o candidato da elite. Se ficar só na elite, está perdido.
Valor: Pesquisas mostram que, com a volta de Lula, neste momento a disputa de 2022 está entre ele e Bolsonaro. Há espaço para uma terceira candidatura, de centro?
FHC: Em política, o espaço é criado. Não está dado. Eu gostaria que houvesse alguém que criasse esse espaço. A maioria [dos eleitores] não é uma coisa nem outra, então, alguém tem que criar. No Brasil, o importante é o progresso econômico. Os que são espertos, Bolsonaro e Lula, ganharam espaço porque tiveram a capacidade de demonstrar [que conhecem a realidade].
Valor: Terão a mesma capacidade agora?
FHC: O Brasil gosta de novidade. Depende de aparecer uma novidade que seja palatável para a maioria da população. O mundo hoje é um mundo mais calmo, não tem expectativa de guerra. Isso reflete aqui de alguma maneira. Ganhou nos Estados Unidos o [Joe] Biden. Isso para nós é positivo porque não foi o extremo que ganhou. Então, há condições para uma candidatura que seja equilibrada, que não seja do extremo.
Valor: Lula é do extremo?
FHC: Não estou dizendo que Lula seja de extremo porque ele não é. Bolsonaro é mais extremo que o Lula. Se não aparecer uma [terceira] candidatura, o Lula vai somar essa gente [que hoje faz oposição ao governo] para enfrentá-lo. O Lula é inteligente, pegou no ar, aprendeu. O que ele vai simbolizar? Não sei. O que foi que ele simbolizou com o governo? Foi uma época feliz da vida no Brasil. E a economia foi bem. Mas ele não vai simbolizar o que vão dizer que ele simboliza, que é o socialismo, o comunismo, o Lula vermelho.
Valor: O que a sociedade tem a seu alcance para lidar com um presidente que nega a gravidade da pandemia desde o início e, por isso, não comprou a vacina ao tempo?
FHC: Ele vai pagar um preço por isso se houver alguém que diga isso, com força. Se não houver, não adianta. Política é sempre assim.
Valor: O governador de São Paulo, João Doria, está fazendo isso e o resultado tem sido o oposto. O Estado produz a vacina, mas esta tem que ser entregue ao governo federal para distribuição nacional. Como o governo atrasa a importação de vacina, o governador tem que fazer “lockdown” e isso derruba sua popularidade. Ele não corre risco de perder a reeleição?
FHC: Pode ser que ele ganhe de novo, pode ser. Por enquanto, quem está pagando um preço elevado [pela falta de vacinas] são os governadores. Você sabe como é o povo aqui. O povo não olha quem está tão lá em cima.
Valor: Quando começar a imunização em massa, Bolsonaro não pode se tornar o “pai” da vacina?
FHC: Quem for o pai da vacina terá vantagem eleitoral enorme, mas, isso hoje. Não sei daqui a um ano, porque as pessoas esquecem.
Valor: Em 36 anos de redemocratização, tivemos dois presidentes afastados por impeachment. Nossa democracia é frágil?
FHC: Não. Acho que já está consolidada, o povo gostou da liberdade de escolher. Eu acho difícil que dê marcha à ré. Não é impossível. Como dizia Otávio Mangabeira [ex-governador da Bahia], “a democracia é uma plantinha tenra que tem que ser regada todo dia”.
Valor: O senhor apoiaria Lula?
FHC: No segundo turno, se ficar o Lula contra o Bolsonaro, não sei se o PSDB vai fazer isso... Se depender da minha inclinação, iria nessa direção, com muita dificuldade porque o Lula jogava pedra em mim.
Valor: Mas ele ainda joga?
FHC: Não, ultimamente não tem jogado, porque ele não precisa.
Valor: As condenações, agora anuladas, e a prisão de Lula o tiraram da eleição de 2018. O ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro é acusado de ter agido politicamente. Como o senhor avalia isso?
FHC: É isso aí, o Moro fez isso. Acho que ele fez um erro ao aceitar ser ministro. Ele mostrou, na época da Lava-Jato, sua importância no combate à corrupção. É importante, é verdadeiro. Mas, depois, entrou no jogo de poder. Não é a dele. Ele é um bom juiz. O jogo do poder é um jogo difícil e ganhar do Lula não é brincadeira, é difícil. Ele sabe. Lula segue a regra. Instintivamente, ele sempre faz isso. Isso não quer dizer que o outro lado não possa transformar o Lula num fantasma outra vez. Pode, independentemente do Lula. É claro que eu não vou contribuir para isso nunca.
Valor: Para onde vai o PSDB, que, assim como o PT, se enfraqueceu e sem dividiu nos últimos anos?
FHC: Unir o PSDB é uma tarefa sempre difícil. E não sei se se deveria perder muito tempo com isso, porque não são os partidos que elegem os governantes. Eu me dou com o Doria. Sou amigo dele há muito tempo. Conheço pouco o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que é do PSDB também. Ele tem bom nome também. Agora, é mais recente e o Sul é longe do centro. Mas vai ficar entre esses dois, você vai ver.
Valor: E o Luciano Huck?
FHC: Eu o conheço bem, sou amigo da mãe e do padrasto dele. Não sei... Ele vai ter que decidir agora. Ele teria que queimar a vela e deixar a [Rede] Globo. É agora. Se ele tomar a decisão e se jogar, tem condição de se transformar num político. Mas tem que se transformar num político, naquilo que os outros já são. Não é tão simples assim. Ele tem mais popularidade do que qualquer deles, hoje. Ter popularidade é uma coisa, ser líder político não é a mesma coisa. É bom ter popularidade, mas tem que ser como líder político. Eu não quero dizer que ele não possa, mas ele vai ter que mostrar que pode se transformar em um líder político. Custa mais a ele do que aos outros porque os outros já queimaram as velas.
Valor: O senhor acha que há motivos para um pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro?
FHC: Nunca fui favorável à ideia que você trabalhasse pelo impeachment. É golpe, de outra maneira. Na situação da Dilma, ela mesma inviabilizou. Mas agora estamos muito longe de uma situação de impeachment. Ele está governando. Então eu acho que é insensato.
Bruno Carazza: Quando a esmola é muita
Imunidade não quer dizer subvenção
Nos primórdios, a ordem era a seguinte: em primeiro lugar a Igreja, depois a unidade do Estado e as leis e só então viria o interesse da população.
“Juro manter a Religião Católica Apostólica Romana, a integridade e indivisibilidade do Império e fazer observar a Constituição Política da Nação Brasileira, e demais Leis do Império, e prover ao bem geral do Brasil”, exigia o art. 103 da nossa primeira Constituição, proclamada por Pedro I em 25 de março de 1824.
Logo após a Independência, a liberdade de culto existia apenas no papel, pois o catolicismo era o credo oficial; o único com direito a possuir templos - as demais práticas religiosas eram permitidas apenas em residências ou espaços fechados, sem demonstração externa. E havia um detalhe: para ser deputado, era preciso ter pelo menos 400 mil réis de renda líquida e professar a religião do Estado - ou seja, ser católico.
Com a Proclamação da República foi abolido o vínculo oficial entre Igreja e Estado no país. A Carta Magna de 1891 proibiu o governo de estabelecer, subvencionar ou atrapalhar o funcionamento de qualquer culto. O princípio da laicidade prevalece até hoje, insculpido no inciso I do art. 19 da atual Constituição.
E foi com base nesse dispositivo que a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos obteve do ministro Kássio Nunes uma liminar impedindo governadores e prefeitos de editarem normas restringindo cerimônias por causa da pandemia. Esse entendimento, contudo, foi derrubado na semana passada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, que decidiu que a proteção à vida não viola o princípio da liberdade religiosa.
Afora o debate se a fé pode ser exercida num contato direto com Deus ou carece de interação comunitária (“igreja” vem de “reunião”, em grego), muitos veem na controvérsia jurídica uma motivação muito mais mundana: a queda de arrecadação de dízimo.
Como igrejas não publicam seu faturamento, fomos atrás de um dado indireto para ver a quantas anda esse “mercado”. Contando com a ajuda de Joaquim Honório, do Laboratório de Analytics da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba, compilamos a data de criação de todas as pessoas jurídicas inscritas no banco de dados da Receita Federal que exerciam “atividade de organização religiosa” (CNAE 9491-0).
Como pode ser visto no gráfico, há uma aceleração na abertura de entidades ao longo das últimas décadas. No entanto, após atingir um pico de 12.116 novos estabelecimentos em 2013, o movimento é revertido, com um aprofundamento significativo em 2020, quando chegou a “apenas” 4.808 até novembro.
O arrefecimento no lançamento de novas igrejas Brasil afora pode ser derivado de inúmeros fatores, inclusive em função de uma acomodação frente ao forte crescimento das últimas décadas.
Todavia o ciclo econômico adverso em vigor desde a grande recessão de 2015/2017, potencializado pelas medidas de distanciamento exigidas pela covid-19, surge como candidato mais provável para explicar não só essa reversão de tendência, como também o lobby das entidades religiosas junto aos três Poderes da República.
Além das ações propostas no STF e da evidente influência que exercem sobre Jair Bolsonaro, líderes religiosos promovem uma ampla agenda no Congresso Nacional. Uma pesquisa no site da Câmara dos Deputados indica que existem pelo menos 370 projetos de lei em tramitação com essa temática, sendo 70 apresentados desde o início da pandemia.
Além da pressão para a manutenção dos templos abertos - somente em março foram cinco propostas apresentadas com esse objetivo - e a pauta de costumes, há uma variada pauta tributária, o que reforça a tese de que a crise econômica não poupou padres, pastores e afins.
Organizações religiosas há tempos tentam por vias legislativas e judiciais ampliar os limites da imunidade tributária que, de acordo com o texto atual, só atinge seus templos - e não todas as suas outras atividades.
Além da recente derrubada do veto que abre caminho para um perdão bilionário de dívidas tributárias, o apetite da bancada da Bíblia não tem limites. As propostas gravitam em torno de questões de grande vulto, como a isenção de impostos para a remessa de valores para o exterior (PL nº 4.936/2020) e o afastamento da legislação trabalhista sobre as funções exercidas nas igrejas - que seriam consideradas trabalho voluntário, segundo o PL nº 4.188/2020.
Desconsiderando que a mesma Constituição que concede imunidade aos templos também proíbe que nosso Estado subvencione religiões com subsídios e isenções, os parlamentares buscam até mesmo a dispensa do recolhimento de direitos autorais na execução de músicas nos templos e meios de comunicação (PL nº 3.399/2020) e gratuidade no pagamento de taxas cartoriais na aquisição de imóveis (PL nº 2.870/2019).
É tanta a ganância de parlamentares que agem como procuradores de igrejas que corremos o risco de, em breve, regredirmos ao tempos do Império, quando interesses religiosos pairam acima do país, da Constituição e do próprio povo brasileiro.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”
Cristiano Romero: Poderes eleitos têm pouco espaço no orçamento
A rigidez atrofia a democracia e ocorre simultaneamente ao aumento de incentivos fiscais
No país a que chamamos de Brasil, muitas vezes a explicação de um conflito entre atores políticos não está no fato em si, mas, sim, nas estruturas que, ao longo do tempo, a sociedade cria para lidar com seus problemas. Em outras palavras, é possível afirmar que, nesta Ilha de Vera Cruz, a maioria dos problemas é enfrentada por meio de subterfúgios e soluções incompletas. Para não tratar da verdadeira causa de nossos desequilíbrios, forjamos acordos que, no fundo, apenas evitam o "confronto" imediato.
O futuro é sempre adiado porque vivemos numa sociedade que não pensa em seus descendentes. Prevalece, também, nas relações sociais, talvez justificável em alguns aspectos da vida nacional, um sentimento permanente de desconfiança em relação aos propósitos do vizinho, do colega de trabalho, do empresário que lhe dá emprego, do político eleito pela maioria de nós, do estrangeiro que se dispõe a vir aqui, entre outros lugares, para investir seu capital, no lucro de quem consegue lucrar, no sucesso de outrem, enfim, entre nós não há reconhecimento mútuo, mas, acima de tudo, suspeição.
A escravidão que nunca nos abandonou explica a maior parte desse grande desencontro que nos impede, não somente de sermos uma nação, mas de almejarmos um dia chegar lá. Nesse ambiente tenso, confuso, violento (só um país que não é nação "aceita" que 60 mil de seus cidadãos sejam assassinados todos os anos, a maioria, jovem e negra, nossa maior etnia), o Estado não exerce seu papel primordial, inscrito na Constituição, de combater diuturnamente as diferenças e dedicar-se inteiramente à oferta de igualdade de oportunidades.
Mas, se não cumpre sua missão, o que faz o Estado? Ora, é no Estado, isto é, na sua organização, nas leis que o sustentam e regem o contrato social em que estamos inseridos, onde os setores da sociedade se encontram para decidir o que somos e o que seremos. Sendo assim, numa sociedade marcada por uma desigualdade vertiginosa desde a sua fundação, há 521 anos, decide quem tem mais poder em Brasília. Sabemos, portanto, que, no centro da República, estão representados todos os grupos sociais, menos a maioria _ em resumo, os negros (56% da população), os miseráveis e os pobres.
Na Constituição, determinou-se que a União aplique, anualmente, nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os municípios, menos de 25%, da receita resultante do recolhimento de impostos, incluída a proveniente de transferências, "na manutenção e desenvolvimento do ensino". Segundo os dados oficiais, a União tem se mantido com folga acima do patamar indicado, e o teto de gastos, instituído por emenda constitucional em 2017, não alterou isso.
Considerando que a despesa com a Previdência Social (INSS) e com as aposentadorias do funcionalismo público federal e dos militares consome hoje mais de 50% das receitas da União, o que sobra para investir em qualquer outra área é quase nada. Intitulado “Vínculo Obrigacional e Grau de Rigidez das Despesas Orçamentárias”, estudo realizado por três consultores de orçamento da Câmara _ Eugênio Greggianin, Graciano Rocha Mendes e Ricardo Alberto Volpe _ mostra que, neste ano, a participação das despesas obrigatórias no total da despesa primária (excluído o gasto com juros da dívida) da União pode chegar a 98%. Isto significa que governo e Congresso, justamente os poderes eleitos pelo voto popular, têm ingerência sobre apenas 2% dos gastos da União.
Os dados do gráfico, presente no estudo dos três consultores da Câmara, mostram a evolução da rigidez orçamentária nos ultimos 15 anos. A vinculação foi criada para forçar os governantes a investirem nas áreas onde, sim, desde sempre tivemos carência de recursos que explica muito da nossa enorme desigualdade social. Mas, ora, depois de 33 anos de vinculação, que quadro temos?
O SUS (Sistema Único de Saúde) foi viabilizado pela vinculação, tem se mostrado bastante útil nesta pandemia, mas não nos enganemos, está muito longe de cumprir sua missão constitucional. No caso da educação, o dado positivo foi a universalização do acesso das crianças ao ensino básico. E só. O que se vê além disso é uma tragédia que nos impede de formar cidadãos em condições de ascender socialmente.
Quem perde são justamente aqueles que os maiores defensores das vinculações dizem representar: os mais pobres, os que, na "corrida" de oportunidades da democracia.
A rigidez atrofia a democracia e ocorre simultaneamente ao aumento de incentivos fiscais porque os setores organizados, percebendo que a conta não fecha, estão correndo a Brasília para assegurar "privilégios" adquiridos. Não estaria aí o dilema de nossa democracia? Governo e Congresso, eleitos, não têm como atender a demandas de seus eleitores?
Reformar a Previdência, além de tratar-se de uma questão aritmética e de justiça social, também envolve a necessidade de o país ter mais recursos para investir no futuro de sua sociedade, isto é, na formação educacional de suas crianças, adolescentes e jovens, do contrário, jamais teremos uma economia em condições de competir no mercado mundial, um ambiente cada vez mais competitiva _ lembremo-nos que, nos últimos 35 anos, emergiram na Ásia países que, com exceção do Japão, nem se comparavam com o tamanho e a diversidade de nossa economia, e hoje estão muito à nossa frente, principalmente, em tecnologia e produtividade.
Cristiano Romero: Sem nação, pandemia é mais devastadora
Manifesto é tardio, mas é cinismo criticar iniciativa
É de um cinismo atroz a crítica feita, principalmente por alguns setores da esquerda, ao contundente manifesto, assinado por 500 economistas e lançado no fim de semana passado, que cobra do governo Bolsonaro mudança radical no enfrentamento da pandemia. Subscrito por economistas de orientação ideológica distinta, o manifesto, intitulado “O País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo”, é uma forma de sensibilizar a opinião pública para a tragédia que assola o país devido ao inacreditável negacionismo do presidente da República diante da maior crise sanitária vivida pela humanidade em cem anos.
O movimento é tardio? Sim, não se tenha dúvida disso. Mas, o que explica o imobilismo da elite intelectual brasileira, assim como de todos os outros setores da vida nacional, é o fato de, infelizmente, não sermos uma nação. Esta só existe quando cada cidadão se reconhece no outro, quando compartilha valores e aspirações, quando todos são rigorosamente iguais perante as leis, quando não existe discriminação de qualquer espécie, quando o Estado assegura a todos oportunidades iguais de formação educacional e acesso a serviços, como a saúde e segurança pública.
Na Ilha de Vera Cruz, regimes ditatoriais procuraram forjar simulacros de identidade nacional, como a paixão pelo futebol. Pelé, o melhor jogador de futebol de todos os tempos (do passado e do que ainda virá), carregou nos ombros, talvez inconscientemente, o peso da responsabilidade de ajudar a Seleção Brasileira a vencer a qualquer custo a Copa do Mundo de 1970, no México.
Em documentário produzido pela Netflix, aos 80 anos, envelhecido pelos problemas de saúde que vem enfrentando nos últimos anos, Pelé relata, de uma maneira que nunca se viu antes, a carga sobre-humana que a falsa nação exigiu dele, em meio aos anos de chumbo da longa ditadura militar instaurada no país (1964-1985).
Em outubro do ano passado, o governador de São Paulo, João Doria, fechou acordo com o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, para a compra de vacina da China, primeiro passo para a produção de imunizante em larga escala, no Instituto Butantan (estadual) e na Fiocruz (federal). Doria começou a negociar com os chineses em abril. O acerto envolvia outros Estados, uma vez que, com exceção da União e do governo paulista, as unidades da Federação não possuem dinheiro nem tecnologia para produzir vacinas.
Num sinal claro de que está ali para atrapalhar e não para ajudar, no tema gravíssimo da pandemia, o presidente Jair Bossonaro desautorizou o acordo. A pergunta que fica no ar é uma só e não se dirige apenas aos 500 economistas do manifesto lançado há poucos dias: onde estávamos todos, os cidadãos instruídos deste imenso país, os sindicatos patronais e de trabalhadores, os artistas, todos aqueles sabedores de que o presidente negacionista estava usando a tragédia para fazer política, jogando governadores e prefeitos, diante da ausência de vacina, na armadilha da necessidade de adotar medidas de isolamento social?
Sem nação, seremos sempre uma democracia manca porque nunca teremos institucionalizado para defender a sociedade de maus governantes.
Pelé
A propósito de Edson Arantes do Nascimento, eleito o maior atleta do século XX e que fez 80 anos no ano passado, sob o silêncio constrangedor de seus compatriotas, que juravam ver nele um dos símbolos de nossa identidade nacional _ mentira, claro _, este humilde colunista diz o seguinte:
Monstro, extra-terrestre, gênio, fora-de-série, fenomenal, absoluto, artista, maestro, rei, inigualável, inalcançável, Deus, enfim. Foi em todos os quesitos do esporte bretão o melhor da história, inclusive, no gol. Sua arrancada rumo ao gol adversário não era engenho humano. Sua habilidade tinha a precisão de um relógio suíço e a plasticidade de um balé russo.
Pelé não “matava” a bola. Esta, na verdade, perdia a fúria ao se aproximar de seu peito. Acolchoava-se nos braços do ente querido como se estivesse retornando depois de um dia longe de casa.
O craque do Santos e do Brasil usava régua e compasso, mas, em seus pés, a redonda ia sempre em direção à meta adversária. Irascível, muitas vezes batia na canela dos marcadores, como se esses fossem cones em dia de treino. O drible era pura arte, mas a serviço da missão jamais negligenciada: furar o bloqueio e colocar a bola na rede.
Para Pelé, não havia “russos”, mas jogo contra em pelada de várzea. “Último a ir no gol”, apressam-se os maganos onde começa _ ou começava _ o sonho do futebol na pelada atéia, sem uniforme, paixão clubística, mancha verde, fiel corintiana, young Flu ou religião de qualquer natureza.
Assim como no “jogo contra”, adversários de Pelé não tinham naturalidade nem nacionalidade; nem registro profissional ou passaporte; carteira de identidade ou de motorista. Não chegavam a ser pedras no caminho do poeta, mas estavam ali para cumprir o destino histórico de testemunhar o sobrenatural, o indizível, o inacreditável, o indomável.
Se tivesse sido jogador ao tempo em que Pelé ainda não havia estreado como jogador profissional, eu certamente sonharia “perder” para Pelé. Ganhar seria perigoso, afinal, ninguém acreditaria e eu passaria por mentiroso e megalômano: “Acreditem, ganhei dele, venci-o, é verdade!”. É quase como sonhar em ser o substituto de Lennon nos Beatles, ainda que este seja um desafio mais palatável do que jogar e vencer o maior jogador de futebol de todos os tempos, aqui e alhures, nesta e em todas as dimensões.
Edson Nascimento é parte do maior grupo populacional deste país, cujo nome _ Brasil _ nada diz, ao contrário da maioria dos territórios deste planeta. Pelé é negro como 56% dos habitantes da Ilha de Vera Cruz. Pergunte a um quatrocentão paulista, a um galego do Sul, a um carioca de sobrenome de diplomata e a um descendente de usineiro de Pernambuco se ele se reconhece minimamente no “ídolo" que os fizeram sentir orgulho, por alguns anos, de serem brasileiros. As respostas mostrarão o quão distantes estamos de um projeto de nação.
Cláudio Gonçalves Couto: Golpismo e destruição
Não é só o discurso de Bolsonaro que atenta contra a democracia, mas também medidas concretas de articulação autoritária
Com o Brasil à beira de atingir 300 mil mortos oficiais por covid-19, o presidente Jair Bolsonaro achou por bem se refestelar com seus apoiadores, à frente do Alvorada, no dia de seu aniversário. Fosse só isso, seria indecoroso, mas não ultrapassaria os limites do que a democracia admite. Contudo, houve mais. Novamente o chefe do governo federal investiu contra seus pares nos Estados, acusando-os de serem tiranetes e emendando: “Podem ter certeza, o nosso Exército é o verde oliva e é vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade.”
Ou seja, o presidente da República sugeriu que contra a “tirania” de governadores e prefeitos - que apenas exercem suas competências constitucionais no combate à pandemia - pode usar o poder armado dos militares por ele chefiados e, ainda, mobilizar suas tropas civis - formadas por aqueles que ajuda a armar. Não é novidade. Na famigerada reunião ministerial tornada pública por decisão do ex-ministro do STF, Celso de Mello, Bolsonaro deixou claro que armava as pessoas para que pudessem se insurgir contra governadores e prefeitos cujas ações divergem das que preconiza.
Ainda na festa de aniversário, o presidente disse: “Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”.
O que é “esticar a corda” nesse caso? É não lhe obedecer? É seguir políticas distintas daquelas por ele preferidas, optando pelo que preconizam autoridades sanitárias e científicas mundo afora? Por que isso seria “esticar a corda” e não apenas atuar como governos subnacionais autônomos numa federação? Ou ainda, na realidade, não é ele quem estica a corda, desrespeitando a autonomia política dos entes federados?
Bolsonaro é incapaz de reconhecer como legítima qualquer ação que não lhe seja subserviente - e isso, mesmo quando promovida por quem não lhe deve obediência alguma. Diante disso, como fazem os populistas autoritários (com o perdão da redundância), recorre ao “seu povo” - composto apenas por aqueles que o apoiam e seguem. Ao dizer que esse povo particular compõe, junto com as “suas” Forças Armadas, um corpo de combate em prol da sua noção também particular de democracia ¬- que contempla apenas esse povo particular -, Bolsonaro ameaça com um golpe de Estado. Não há como interpretar diferentemente, considerando a forma como trata atores políticos que a ele se opõem ou simplesmente não se curvam.
Alguém poderia replicar que Bolsonaro apenas diz que fará “qualquer coisa... que está na nossa Constituição” (o presidente tem fixação por pronomes possessivos). O problema é que a leitura constitucional bolsonarista também é muito particular. Não fosse, ele reconheceria as competências de Estados e municípios, o papel do governo federal como coordenador (mas não comandante) de políticas intergovernamentais e a decisão do STF relativa a isto - que não lhe desobrigou de nada, pelo contrário. Portanto, quando Bolsonaro invoca a Constituição é preciso ter clara a forma como a interpreta. E, assim como em todos os outros casos, ele a vê como mero instrumento de seus objetivos e desejos particulares.
Fossem apenas palavras ao vento, seria grave, mas não tão perigoso. O problema é que o presidente toma providências concretas. Ao aboletar milhares de militares em cargos comissionados, com suas respectivas gratificações, Bolsonaro aparelha o Estado e coopta o segmento armado da burocracia pública. Ao dar a esse mesmo grupo benesses corporativas, como o singular aumento previsto no orçamento, reforça essa cooptação. Por esses meios, busca de fato tornar “suas” as Forças Armadas.
Já com as normas sobre armas baixadas pelo Executivo, o presidente municia grupos na sociedade com os quais tem vínculos antigos e que lhe apoiam - notadamente os Clubes de Atiradores e Caçadores (CACs). Ao transferir a tais organizações privadas até mesmo a prerrogativa eminentemente estatal de certificar quem está ou não apto a se armar, Bolsonaro facilita a criação de potenciais tropas de assalto privadas. É esse “povo” que compõe seu exército, ao lado dos verde oliva - como ele mesmo disse. Portanto, as diatribes bolsonarescas não são meras palavras ao vento; elas têm lastro na construção de uma aliança armada e apostam na violência como solução para os impasses políticos em que a liderança de Bolsonaro enreda o país.
Em paralelo a essa construção de um poder paralelo, ocorre também uma desconstrução. Desde o começo, a Presidência de Bolsonaro tem obrado para desmontar instituições, políticas públicas longamente consolidadas, espaços de participação democrática e noções de convivência política e social. A devastação ambiental, a radicalização política, o ataque violento e intimidatório a críticos e à imprensa não alinhada, bem como as mortes evitáveis produzidas pelo descalabro sanitário, tudo é resultado de iniciativas governamentais claras - não são ocorrências fortuitas.
Esse desmonte favorece o cenário de caos, em que o recurso a soluções extremas e ilegais se torna mais propício. O ambiente anômico esboçado pela greve dos caminhoneiros, em 2018, tornou mais plausível o discurso extremista do então candidato, Jair Bolsonaro. O colapso sanitário e econômico que agora se produz, por empenho do próprio governo que o deveria mitigar, novamente abre espaço para aventuras.
O contrapeso vem do fato de que a Bolsonaro se opõem, cada vez mais fortemente, atores de peso no concerto político, como governadores, empresários, órgãos de imprensa e lideranças internacionais - que se dão conta da ameaça por ele representada e do estrago que promove. Esses atores têm dois desafios pela frente: primeiro, deter a escalada autoritária e destruidora do presidente da República, talvez o apeando do cargo; segundo, preparar-se para um logo e penoso processo de reconstrução nacional, que será inescapável diante da destruição humana, ambiental, institucional social e econômica produzida pelo bolsonarismo.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP