Valor Econômico
Gustavo Loyola: Incertezas crescentes, economia estagnada
A “solução” para a questão do orçamento federal de 2021, por meio de alteração na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), configura um atentado grave à responsabilidade fiscal. Foi criado um monstro orçamentário que abre espaço para a violação sistemática do teto de gastos estabelecido pela Emenda Constitucional 95, que tende a virar letra morta como mais uma das leis que não pegaram no Brasil. Tudo resultado de um processo orçamentário caótico, em que falharam a equipe econômica e a articulação política do governo, agravado pelo pouco compromisso do Congresso com a higidez e qualidade das contas públicas.
Há pelos menos dois problemas sérios com o orçamento aprovado para 2021. O primeiro decorre do volume extraordinariamente elevado de despesas – mais de R$ 100 bilhões – que ficam fora do teto de gastos, por estarem ligadas ao enfrentamento da pandemia (gastos com saúde e com programas como o Pronampe) e que serão cobertas por créditos extraordinários. O segundo deriva dos vetos do Executivo que foram necessários nas rubricas relativas às despesas discricionárias, com vistas a acomodar o exagerado volume de emendas introduzidas pelo Legislativo, que podem inviabilizar o funcionamento da máquina estatal e a continuidade de políticas públicas essenciais ao país.
Foi criado um monstro orçamentário que abre espaço para a violação sistemática do teto de gastos
Ambos problemas são péssimas sinalizações para o futuro. De um lado, repete-se o duvidoso expediente do qual abusou o governo Dilma, quando deixava de fora da meta do resultado primário certas despesas associadas a investimentos do setor público. Tal como ocorreu no governo petista, deixar de contabilizar gastos na meta fiscal não tem o condão de reduzir as necessidades de financiamento do setor público. Artifícios contábeis apenas contribuem para a diminuição da transparência das contas do governo. De outro, o corte irrealista, por meio de veto presidencial, de despesas discricionárias, assim como a necessidade de contingenciamento orçamentário, antecipa uma piora ainda maior na qualidade dos gastos, como já o demonstram o novo adiamento do Censo, que deveria ter ocorrido no ano passado, e a míngua de recursos para as atividades de preservação do meio ambiente.
Mas há outros prejuízos e incertezas trazidos pela caótica tramitação orçamentária. A começar pela perda adicional de credibilidade na gestão do Ministério da Economia e na capacidade do ministro Guedes de influenciar as decisões relevantes do governo Bolsonaro com impactos sobre temas econômicos.
A influência deletéria de alguns setores do governo sobre o relator do Orçamento no Congresso, com objetivo de amealhar verbas para seus ministérios à revelia da área econômica, aparentemente com o beneplácito presidencial, dá a medida da pouca força que resta ao ministro da Economia, que outrora foi rotulado pelo próprio Bolsonaro como o “posto Ipiranga” do seu governo. Este tipo de episódio leva de maneira inevitável os agentes econômicos a anteciparem dificuldades futuras para a política econômica, notadamente na área fiscal, sujeita a pressões de toda sorte, vindas de dentro do próprio Executivo, mas também do Congresso Nacional.
Por outro lado, iniciativas ventiladas pelo ministério da Economia na busca de uma solução para o impasse orçamentário, principalmente o da emenda “fura teto”, desgastaram ainda mais a imagem da atual gestão econômica junto ao mercado e aos formadores de opinião, afetando negativamente as expectativas e a própria precificação do prêmio de risco soberano.
Ao quadro adverso no campo fiscal somam-se outras incertezas associadas ao ambiente político e ao desempenho da atividade econômica nos próximos meses. A “solução” trazida para o imbróglio do orçamento revelou a força política do Legislativo, com destaque para o Centrão, sempre ávido por cargos e recursos públicos. O início dos trabalhos da CPI da Covid no Senado – na qual o governo não dispõe de maioria – antecipa momentos políticos difíceis para Bolsonaro, que podem ter reflexos sobre as expectativas e sobre o desempenho do governo em áreas relevantes para a economia. Ademais, a reconquistada elegibilidade de Lula pôs no horizonte o risco de uma eleição plebiscitária no ano que vem entre dois extremos que podem igualmente serem danosos para o país.
Além disso, a situação da pandemia continua bastante grave, em que pese a redução recente no número de infectados e de óbitos. Tal redução, afirmam os especialistas, decorreu em grande parte das medidas restritivas adotadas em boa hora pelos governos locais, mas que cobram seu preço em termos da atividade econômica. Sem a aceleração da vacinação, corre-se o risco de ficarmos presos na armadilha do “abre-e-fecha” até pelo menos o final do ano, com consideráveis impactos negativos sobre a economia. O recrudescimento da pandemia na Índia ameaça-nos não apenas com novas cepas do coronavírus, como também com o risco de falta de insumos para a produção de imunizantes necessários à manutenção de um ritmo mínimo de vacinação no Brasil.
Assim, o cenário de incertezas crescentes e de economia estagnada vai se tornando o mais provável para o biênio 2021-2022, após a forte recessão do ano passado e o desempenho anêmico nos anos anteriores. Com isso, torna-se, infelizmente, pouco provável a recuperação do emprego e a melhora dos indicadores sociais nos horizontes de curto e médio prazo.
*Gustavo Loyola é doutor em Economia pela EPGE/FGV, ex-presidente do Banco Central e sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/incertezas-crescentes-economia-estagnada.ghtml
Bruno Carazza: A volta dos que não foram
No ciclo de 2013 a 2018, as estruturas da política brasileira foram sacudidas por três fenômenos consecutivos e de certa forma inter-relacionados. Os movimentos sísmicos começaram com as manifestações de junho de 2013 e a ascensão do discurso do “não me representam”. Na sequência, muitas lideranças partidárias desabaram diante do terremoto que foi a Operação Lava-Jato. Por fim, nas eleições de 2018, o bolsonarismo chegou como um tsunami, derrubando quase tudo o que restou da velha ordem da Nova República.
Por condenações judiciais ou derrotas impostas pelos eleitores, a lista das vítimas é imensa. Para ficar apenas nos nomes mais significativos que tiveram suas carreiras interrompidas nesse processo estão os petistas Dilma Rousseff, Antonio Palocci, Fernando Pimentel, Jorge Viana e Delcídio do Amaral. Entre os tucanos, não conseguiram ser eleitos ou perderam seus cargos Geraldo Alckmin, Marconi Perillo e Beto Richa.
No MDB tombaram Romero Jucá, Eduardo Cunha, Eunício Oliveira, Garibaldi Alves, Valdir Raupp, Edison Lobão e Geddel Vieira Lima. Entre os membros do DEM, foram abatidos José Agripino, Heráclito Fortes e José Carlos Aleluia. No Centrão caíram ainda Valdemar da Costa Neto e Alfredo Nascimento (PL), além de Roberto Jefferson (PTB), entre muitos outros “peixes pequenos”.
Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, portanto, com um Congresso em terra arrasada. Além da diminuição no número de políticos experientes, o índice de “senioridade” na atual legislatura caiu (nas minhas contas, 82 deputados eleitos nunca haviam disputado uma eleição sequer na vida) e o grau de pulverização elevou-se – PT e PSL, os dois partidos com maior representatividade no plenário da Câmara, possuem pouco mais de 10% das cadeiras.
Esse cenário era perfeito para Bolsonaro nadar de braçada, pois além de não contar com um exército de parlamentares tarimbados na oposição, boa parte dos novos e antigos congressistas comungava de suas visões sobre a sociedade e a economia – afinal, o atual presidente moldou-se no mesmo barro que constitui o Centrão.
Bolsonaro, porém, abriu mão de liderar, seja por falta de agenda ou de cabeças coroadas na sua equipe (seu ministro com maior rodagem, Onyx Lorenzoni, nunca havia ocupado um cargo na Mesa Diretora da Câmara). Antes de seu governo ser engolido pela pandemia, a única entrega significativa foi a Reforma da Previdência – e ainda assim tendo contado com um belo empurrão da administração Temer. Fora isso, poucas propostas legislativas compensadas por muitos decretos tentavam contornar a falta de uma base governista.
Em nossa história recente, é alta a probabilidade de presidentes fracos no Congresso terem em algum momento que enfrentar um processo de impeachment ou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que seja capaz, senão de matá-lo, pelo menos de fazê-lo sangrar por alguns meses.
O capitão parece não ter aprendido nada em seus sete mandatos como deputado federal. Quando acordou para o fato de que, para governar, é preciso fazer alianças, já era tarde demais. O ideal seria evitar a criação da CPI; não conseguindo contorná-la, poderia ter manobrado para que ela fosse mista, contando com a ajuda de Arthur Lira pelo lado da Câmara; restrita ao Senado, com algum jogo de cintura daria para ter a maioria dos membros. Perdeu em todas.
A CPI da covid dará trabalho a Bolsonaro não apenas por estar em minoria. Pior do que contar com um apoio restrito é ver emergirem forças que desde o início do mandato vagavam à procura de uma oportunidade para retomar o protagonismo que detiveram no passado.
A composição da CPI é mais um sinal do movimento de refluxo na política brasileira, já captado no resultado das urnas em 2020. Entre seus titulares e suplentes estão alguns dos sobreviventes da sucessão de ondas destruidoras das jornadas de 2013, da Lava-Jato e do bolsonarismo.
Em 2018, quando a avalanche soterrou boa parte dos figurões que deram as cartas nas últimas décadas, poucos foram poupados. Cada um a seu modo, Renan Calheiros (MDB-AL), Jader Barbalho (MDB-PA), Eduardo Braga (MDB-AM), Humberto Costa (PT-PE) e Ciro Nogueira (PP-PI) foram importantes lideranças durante as presidências do PSDB e PT que escaparam tanto dos processos criminais quanto da sede de renovação do eleitor.
A eles se juntam Tasso Jereissati (PSDB-CE) e Otto Alencar (PSD-BA), que por terem sido eleitos em 2014 (o mandato de senador é de oito anos), não foram colocados à prova no mesmo pleito que elegeu Bolsonaro.
Com o couro curtido por décadas de embates em CPIs – atuando ora como investigados, ora como inquisidores -, esse grupo de parlamentares ditará, para um lado ou para o outro, o ritmo da devassa sobre a responsabilidade do chefe do Poder Executivo sobre as mais de 400 mil mortes causadas pela pandemia até agora.
A volta dos que não foram coloca em jogo muito mais do que o destino do atual presidente. Cada um desses membros da velha guarda tem objetivos próprios ou coletivos bastante concretos e usarão a CPI para torná-los mais próximos de serem alcançados.
Jereissati e Alencar buscarão em 2022 a reeleição ou tentarão alçar outros voos. As sessões da comissão, portanto, serão um palanque de luxo que será explorado à exaustão visando ampliar seu capital eleitoral.
Os demais, tendo à frente Renan Calheiros como relator e Ciro Nogueira como principal representante governista, tentarão fazer da CPI a base para a reconstrução da ordem política, da qual almejam ser protagonistas dependendo de quem vier a ocupar o Palácio do Planalto em 2023.
Bolsonaro errou muito desde o seu governo, mas já percebeu que não pode ficar refém das velhas raposas que tentarão acuá-lo a partir desta semana, com o início dos depoimentos. Para isso vai buscar se blindar com o apoio popular, como demonstraram as manifestações desse último final de semana.
Os próximos capítulos prometem.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/a-volta-dos-que-nao-foram.ghtml
Valor: ‘Bolsonaro abraçou a morte’, diz Felipe Santa Cruz
Monica Gugliano, Valor Econômico
O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe de Santa Cruz Oliveira Scaletsky, viu um fantasma que julgava exorcizado voltar a assombrar. “Nenhum de nós que passou pelos tempos da redemocratização poderia ter ideia do risco que esse vírus incubado do autoritarismo deixou na sociedade brasileira”, diz o advogado de 49 anos.
Entre muitas outras sinalizações de retrocessos e de que “esse vírus” voltou a circular, aponta Santa Cruz, está a “reaparição” no governo de Jair Bolsonaro da Lei de Segurança Nacional (LSN), promulgada em 1983. A lei tem sido usada para justificar inquéritos que investigam manifestações e qualquer comentário considerado crítico ao chefe do Executivo e prevê penas de até quatro anos.
O youtuber Felipe Neto e o político Guilherme Boulos (PSOL) foram intimados a depor com base na lei. “Faz parte da política de intimidação do governo, que recorre a esse entulho autoritário para proteger aqueles que tentam derrubar o estado democrático de direito”, afirma o advogado, lembrando que o texto já começou a ser modificado na Câmara dos Deputados, incluindo crimes como o do uso de fake news. “Todos os presidentes da República pós-democratização foram acossados por críticas. Por que Bolsonaro não pode ser?”
Passa do meio-dia e a sala de Santa Cruz reluz com a claridade do Sol a pino do lado de fora da casa, onde ele vive com a mulher, a advogada tributarista Daniela Ribeiro de Gusmão, e os quatro filhos: Lucas, 20; Beatriz, 18; Maria Eduarda, 15; e João Felipe, 11. Ele explica que é um condomínio tranquilo, rodeado de verde, na Barra da Tijuca. Está sentado à frente do quadro do artista plástico goiano Marcelo Solá, uma explosão de cores que parece amenizar a frieza destas conversas em frente da tela do computador.
Elas estão incorporadas à rotina de Santa Cruz desde que o isolamento passou a ser, junto com o uso de máscaras, álcool em gel e outros cuidados, a forma de prevenir o contágio do coronavírus. Diz ele que, mantendo o isolamento, não passa dia sem que várias reuniões, conversas e entrevistas, como este “À Mesa com o Valor” pelo Zoom, estejam marcadas em sua agenda. Suas poucas saídas, relata, são até a sede da OAB, próxima de sua casa, também na Barra da Tijuca.
Há muito tempo que o Judiciário não tinha esse protagonismo na vida pública do país. “Acabou tendo esse papel preponderante pelo enfraquecimento do Legislativo e do Executivo”, pondera. Segundo ele, esse cenário está mudando, inclusive porque há muitas críticas entre os próprios juízes e advogados à exposição que esse quadro tem permitido, porque o Legislativo busca retomar seu protagonismo.
“Acho que não podemos negar o acesso ao Judiciário, quando há tanta disfuncionalidade”, diz, lembrando que foi a OAB a responsável pela ação que permitiu a Estados e municípios decidirem suas próprias ações no combate à covid-19. “O que teria sido do Brasil, sem isso? Porque Bolsonaro abraçou a morte, literalmente.”
Outro tema que expôs o Judiciário, assinala ele, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de promover um novo julgamento dos casos que envolviam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo Santa Cruz, o julgamento foi um divisor de águas, e ele lembra também que em muitas ocasiões se opôs à forma como os integrantes da Operação Lava-Jato procederam. “O mais importante nessa questão é que não joguemos a criança com a água da banheira.”
“Jogar a criança junto com a água da banheira”, explica ele, seria não preservar o legado de combate à corrupção que a Lava-Jato trouxe à sociedade brasileira.
Santa Cruz diz que não lhe cabe discutir o caso do ex-presidente Lula. O que lhe cabe, afirma, é mostrar que o processo necessita ter os devidos cuidados com a constitucionalidade, com o contraditório, garantir o direito de defesa.
O almoço pedido por Santa Cruz é mais do que frugal. Ele escolhe uma salada caesar, acompanhada por uma Coca Zero, pedida no Gula Gula, um restaurante com mais de 36 anos, considerado quase uma “instituição” no Rio de Janeiro.
Na foto do cardápio, a salada parece um prato de alface, com algumas lascas de queijo parmesão por cima. Mas o advogado explica que o prato faz parte da dieta que começou com a pandemia e conta que perdeu 30 quilos nos últimos meses passando fome em casa e fazendo exercícios físicos. “A noite é uma sopa – e só”, diz, contente com o emagrecimento, mas também com uma ponta de tristeza por não poder comer nada do que gosta.
Santa Cruz diz que a OAB tem tido muito trabalho desde a posse de Bolsonaro. Em sua opinião, a pandemia atingiu o Brasil em um dos piores momentos no que diz respeito a representação. “O presidente boicotou a máscara, a vacina, fez pouco caso de uma doença que está matando mais de 2 mil cidadãos por dia. É o governo da ignorância”, critica. “Este governo caminha para a reta final, com uma conta trágica de mortos e sem nada para apresentar, além de peculiaridades como a ministra da Mulher ser machista; o representante dos negros, racista; o do Meio Ambiente, um ecocida militante; e o secretário da Cultura, analfabeto”. Procurados, o Palácio do Planalto, a ministra da Mulher, Damares Alves, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o secretário de Cultura, Mario Frias, e o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, não se pronunciaram.
Em sua opinião, o Brasil vive um momento muito delicado e de muita instabilidade. “É importante que as Forças Armadas reafirmem permanentemente o papel de instituições de Estado, que elas não pertencem a Jair Bolsonaro”, diz. Ele também critica os decretos que ampliam as licenças para ter armas e a política para armar a população.
Embora esteja acostumado com os encontros via tela de computador, Santa Cruz aparenta estar um pouco sem graça em falar e comer ao mesmo tempo. É preciso explicar que, como a comida faz parte da entrevista, ele não precisa deixar o prato de lado, ainda que no caso dele não se corra o risco de as folhas de alface esfriarem. “Não tem problema. Muitas vezes preciso postergar o almoço.”
Felipe Santa Cruz era líder estudantil no governo de Fernando Collor (1990-1992) – hoje senador pelo Pros-AL – quando milhares de jovens, inclusive ele, saíram às ruas, com os rostos pintados de verde e amarelo – os caras-pintadas – pedindo a destituição do presidente da República. Primeiro chefe da nação escolhido pelo voto direto após a ditadura militar, Collor foi acusado de corrupção e perdeu o mandato no julgamento da Câmara e do Senado, que votou a favor do pedido de impeachment assinado pelo então presidente da OAB Marcello Lavenere e pelo presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Barbosa Lima Sobrinho.
A participação da OAB em episódios da história recente, como o impeachment de Collor, segundo o advogado, fomenta a ideia de que ali se faz política partidária. “A OAB não é politizada, como Bolsonaro quer fazer crer. É um instrumento de política institucional. Há pessoas aqui de esquerda, de direita, de centro, de todos os lados. Há eleitores bolsonaristas e de oposição”, afirma.
Formado em direito na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio, ele foi por duas vezes consecutivas presidente da seção fluminense da OAB (2013-2015, 2016-2018). Em 31 de janeiro de 2019, foi eleito presidente nacional da OAB. “Era o começo do governo Bolsonaro, e acho que ele sabia que sou um democrata radical. Jornalista, artista e advogado que não são democratas radicais não compreenderam a faculdade. Porque estas são profissões que vivem da liberdade”, diz.
Segundo Santa Cruz, o presidente nunca compreendeu – entre muitas outras coisas – o sentido do sigilo entre advogado e cliente. Bolsonaro passou a exigir que lhe fosse revelado quem havia defendido Adélio Bispo, o autor das facadas desferidas contra ele ainda na campanha eleitoral, durante um ato em Juiz de Fora, em setembro de 2018.
Mesmo depois de muitas investigações, inclusive da Polícia Federal, Bolsonaro sempre deu e dá a entender que o atentado teve motivação política e que Adélio foi usado para tirar-lhe a vida, evitando que se tornasse presidente. “Ele ficou inconformado com a defesa das prerrogativas do acusado”, diz Santa Cruz.
Ainda deputado, Bolsonaro disse mais de uma vez que o pai de Santa Cruz, Fernando Santa Cruz, desaparecera porque havia caído bêbado na rua. Antes mesmo da posse na presidência, relata Santa Cruz, o presidente, que incluiu a entidade no amplo rol de comunistas que boicotavam seu trabalho, já havia atiçado suas redes sociais, que passaram a atacá-lo sem piedade. Mas o pior momento desse embate ainda estava por vir.
Era julho de 2019, quando Bolsonaro, em uma das entrevistas que dava na grade do Palácio da Alvorada, afirmou que “um dia” contaria ao presidente da OAB como o pai dele desaparecera durante a ditadura. Ainda segundo Bolsonaro, certamente Santa Cruz não iria querer saber “a verdade”.
Segundo a Comissão Nacional da Verdade, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, estudante de direito, servidor público e militante da Ação Popular Marxista Leninista, foi preso no dia 23 de fevereiro de 1974, morto por agentes do Estado, e seu corpo nunca foi encontrado. “Quando Bolsonaro disse aquilo, fiquei em choque. Minha mãe, meus tios, todos ficaram em estado de choque. Foi um segundo assassinato”, descreve, com lágrimas correndo pelo rosto.
Bolsonaro, no entanto, disse na entrevista – e nunca mostrou alguma prova – ter informações de que o militante não fora sequestrado e assassinado por agentes da ditadura. Mas por seus próprios companheiros. “Não é minha versão. É a que a minha vivência me fez chegar às conclusões naquele momento. O pai dele (Felipe Santa Cruz) integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco, e veio a desaparecer no Rio de Janeiro”, insinuou o presidente.
“Foi de uma perversidade que eu jamais pensei encontrar. Meu pai foi um herói da história brasileira. Não era um clandestino, era um estudante, tinha emprego, endereço. Mas Bolsonaro fez com que eu, de repente, me visse sozinho, com a ajuda da imprensa e outros tentando defender uma pessoa que está morta há 40 anos.”
O desaparecimento de Fernando, naquele Carnaval de 1974, marcou para sempre a família Santa Cruz. Felipe tinha apenas dois anos e vivia em São Paulo quando o pai foi sequestrado no Rio de Janeiro com o também militante e amigo de infância Eduardo Collier Filho. O corpo de Eduardo também nunca foi encontrado, e as famílias só presumiam que os dois rapazes haviam sido capturados.
A mãe do estudante, a pernambucana Elzita Santa Cruz, morreu em junho de 2019 em Olinda (PE), aos 105 anos, sem conseguir resposta para a angústia e a dor da perda. Durante 45 anos, ela buscou qualquer indício ou pista do paradeiro que fora dado ao corpo de seu filho. Percorreu gabinetes, quartéis, recorreu a autoridades e até presidentes brasileiros, explicando que só queria o direito de enterrar os restos do filho e já não lhe interessava saber quem o havia executado.
Tal qual a estilista Zuzu Angel, cujo filho, Stuart, também desapareceu na ditadura, Elzita – como dizem os versos de Chico Buarque na canção “Angélica”, escrita em homenagem a Zuzu – “só queria embalar seu filho, que mora na escuridão do mar”.
A mãe de Santa Cruz, Ana Lúcia, se casou novamente e se mudou com o filho para Porto Alegre, onde moravam os pais do marido. Entre 1977 e 1987, a família se instalou no Bom Fim, bairro tradicional entre as famílias judaicas. Ele conta que cresceu sem a mais vaga lembrança do pai. “Meu pai, para mim, é uma história contada pelos outros”, descreve.
O padrasto, Eduardo Scaletsky, militava na Convergência Socialista. Era professor, mas passava muito tempo em porta de fábricas. “Moramos em 17 lugares, no subúrbio de São Paulo, em Minas Gerais”, recorda Santa Cruz, acrescentando que sua vida só passou a ter alguma normalidade no fim dos anos 1970, quando seus pais terminaram a faculdade.
Ainda assim, lembra de ter tido um susto muito grande quando sua mãe, que liderava uma das primeiras e grandes greves nacionais dos bancários, foi presa pela Polícia Federal. “Entrei em pânico, mas aí os tempos já eram outros. Ela teve direito a advogados, sua prisão foi notícia.”
Muitos anos de terapia depois de passadas sua infância e adolescência, Santa Cruz diz que foi tão marcado por esses episódios que uma das razões de rejeitar até agora os convites para fazer carreira política são os filhos. Ele chegou a se candidatar a vereador do Rio em 2004 pelo PT, mas não tentou novamente depois daquele primeiro fracasso. Seu nome agora tem sido cogitado para uma possível candidatura a governador do Rio em 2022.
“Posso até pensar e, em algum momento, até aceitar. Mas a vida inteira quis dar a eles uma vida de propaganda de margarina. É aquela coisa de pai, mãe, estabilidade e não achar que a qualquer momento pode acontecer uma hecatombe”, explica, acrescentando que os filhos têm medo de que ele sofra um atentado, da violência nas redes sociais.
Santa Cruz recorda que foi uma criança com muito medo. Mas não carregava esse sentimento na vida adulta. O sentimento, conta ele, voltou desde que apareceram os primeiros infectados com o coronavírus e a “perversidade” de Bolsonaro se fez mais presente. Hoje, afirma o advogado, parte dos brasileiros vive com muito medo do presente e do futuro.
“Vivemos cercados pela morte”, lamenta. “Estive pensando sobre as famílias que não conseguem cumprir o luto quando seus familiares e amigos morrem vítimas da covid. É uma situação semelhante àquela da ditadura. Semelhante à morte do meu pai.”
Fonte:
Valor Econômico
Fernando Abrucio: Estratégias para não repetir o maior erro da eleição de 2018
As principais políticas públicas do país estão no caminho errado. O desempenho do Ministério da Saúde no combate à covid-19 foi um dos piores do mundo. A área ambiental foi destruída pelo antiministro e, enquanto ele continuar no cargo, o mundo não vai acreditar nas promessas feitas pelo governo brasileiro. O MEC abandonou os governos subnacionais e as escolas na pandemia, o que vai aumentar a desigualdade entre os alunos, no curto e no longo prazo. A lista de equívocos é longa e assustadora, e sua origem inicial está no processo eleitoral de 2018. Como evitar a repetição desse erro é uma das tarefas fundamentais para sair das trevas atuais.
Várias razões explicam as origens desse erro eleitoral, mas uma delas foi estratégica: a campanha foi muito curta e, sobretudo, houve poucos debates públicos com os principais candidatos, o que ficou ainda pior por causa da ausência do vencedor da eleição na controvérsia direta contra seus oponentes. Em defesa do presidente eleito pode-se dizer que ele sofrera um terrível atentado, o que é verdade. Mas no segundo turno Bolsonaro foi a inúmeros eventos públicos e deu entrevistas ao “jornalismo-amigo”, de modo que poderia ter ido aos debates contra seu adversário, mas preferiu fugir.
Bolsonaro não foi aos debates porque estava despreparado para ocupar a Presidência da República. Há três provas cabais disso, vinculadas ao seu plano de governo, às qualidades técnicas e políticas dos apoiadores mais próximos e do próprio futuro presidente, bem como à visão de mundo mais geral do bolsonarismo, tanto em termos de projeção de futuro para o país, como também em seu comportamento político.
Em primeiro lugar, o programa de governo foi o pior feito por um presidente eleito desde a retomada da democracia. Reduzido no tamanho e com pouquíssimo aprofundamento das ideias propostas, o programa de governo bolsonarista espalhava slogans e mitos sem a devida comprovação. Com erros básicos no uso dos dados, que nem mesmo alunos do primeiro ano de faculdade cometeriam, o projeto bolsonarista era claramente anticientífico, pois as principais evidências em educação, meio ambiente, segurança pública e saúde foram completamente ignoradas.
Uma lição ficou dessa história: os programas de governo precisam ser mais discutidos pela sociedade e, particularmente, pela imprensa de massa, como a TV. Geralmente, a mídia faz umas poucas matérias sobre as propostas formalizadas dos candidatos, mas o melhor caminho seria chamar, num primeiro momento, os candidatos para discutirem os programas de todos, e, num segundo momento, chamar especialistas nacionais e até internacionais, nas várias áreas de políticas públicas, para discutir a pertinência das ideias de cada concorrente. Quanto mais houver escrutínio público dos programas de governo, mais chances haverá de se evitar que despreparados cheguem à Presidência da República.
O segundo fator que comprova o despreparo de Bolsonaro está na qualidade das pessoas que apoiaram mais diretamente sua candidatura. Como já disse em artigo recente, os piores nomes dominam hoje grande parte dos postos da Esplanada dos Ministérios. Quem não percebeu isso, procure lembrar o nome do ministro da Educação e compare suas ideias para a área com o que é feito pelos países com melhor desempenho educacional. E não para por aí. Por mais de um ano, o Ministério da Saúde foi ocupado por pessoas que desconheciam completamente o setor – o próprio ex-ministro Eduardo Pazuello disse que nem sabia o que era o SUS. A militarização da política sanitária provou que não se pode improvisar com problemas coletivos complexos, pois uma pessoa pode ser habilitada para uma função e ser completamente despreparada para outra.
O pior de tudo isso é que o Brasil tem grandes acadêmicos, especialistas e gestores governamentais reconhecidos internacionalmente. Uma procura em bons sites especializados traria uma lista de nomes qualificados. Quantos desses foram chamados pelo atual governo? Quase ninguém. Bolsonaro prometeu que só chamaria “técnicos” para compor o núcleo de seu governo. Promessa descumprida: colocar policiais militares no Ibama, gente com currículo acadêmico pífio na educação, pessoas que nunca trabalharam com a cultura na respectiva secretaria, para ficar só em alguns exemplos, demonstra como o governo Bolsonaro é formado por amadores despreparados para as várias funções, que só estão lá porque obedecem completamente ao chefe maior.
Os debates na campanha deveriam discutir os principais nomes que assessoram os candidatos e que podem se tornar peça-chave para a qualidade do futuro governo. Mas não só o time de assessores faz diferença. É necessário também analisar a trajetória e as características pessoais dos presidenciáveis. Olhando para a biografia de Bolsonaro, não só ele não tinha comprometimento com a democracia e não fizera nada de relevante em 30 anos de Congresso Nacional, como nunca aprendera nada com as mudanças no mundo. Como todo governante despreparado, não é capaz de admitir e aprender com suas falhas. Isso poderia ter sido mais colocado em questão durante a campanha.
Há um terceiro e último elemento que já antecipava o despreparo para o cargo presidencial. Trata-se da forma como Bolsonaro e seu grupo se colocam frente ao mundo, em termos de ideias sobre o futuro almejado para o Brasil, formas de reagir à adversidade e a disposição em dialogar e aprender com os outros. Desde a campanha, percebeu-se que o bolsonarismo tinha um modus operandi muito claro: queria a volta ao passado em termos de valores e políticas públicas, não tinha muito respeito pela democracia e incentivava o ódio aos adversários.
O que vigora no grupo governante é o que pode ser chamado de “Planeta Bolsonaro”. Neste lugar distópico, imperam ideias e propostas que não são adotadas e/ou implementadas por nenhum outro país bem-sucedido nas diversas políticas públicas. A proposta educacional bolsonarista contém o contrário dos cardápios utilizados por nações que melhoraram sua educação nos últimos anos. A visão sobre a questão ambiental do bolsonarismo é o inverso do que está se firmando como um consenso mundial. Na mesma linha, a luta contra a desigualdade, não só de renda, mas com ações de defesa de minorias e da diversidade, é um processo crescente no mundo, enquanto as políticas do governo brasileiro vão no sentido contrário.
A construção do “Planeta Bolsonaro”, como um “mindset” que organiza o atual governo, não dialoga com as ideias e grupos que procuram enfrentar os desafios do século XXI. O Brasil ficará ainda mais para trás com as políticas do governo do presidente Joe Biden, nos Estados Unidos, que vão inspirar boa parte do mundo. A fonte desse reacionarismo radical vem de uma parcela da sociedade brasileira, que pode ter de um quinto a um terço dos eleitores, que está preocupada em evitar que as transformações do mundo contemporâneo cheguem aos seus lares. Não detém a maioria da população, mas consegue emperrar as necessárias decisões que deveríamos tomar para não construirmos aqui um salazarismo do século XXI, para lembrar o ditador português que atrasou por décadas a modernização da sociedade portuguesa.
A campanha de 2022 não pode repetir a de 2018. Os programas de governo devem ser discutidos exaustivamente. Não importa quais serão os candidatos: eles precisam falar mais sobre suas ideias, definirem como lidarão com situações difíceis, debaterem com outros concorrentes e serem testados pelo contraditório de especialistas, jornalistas independentes e cidadãos. Afinal, bons governos baseiam-se em propostas consistentes que necessariamente têm de passar pelo debate público.
Além disso, os nomes dos assessores devem ser conhecidos e analisados profundamente. Uma prévia de boa parte da equipe governamental deveria ser apresentada por todos os concorrentes. Desse modo, seria possível confrontar o plano de governo com a biografia e qualidade de seus prováveis implementadores. Soma-se ainda a isso a necessária análise das trajetórias e características de cada um dos presidenciáveis, tomando como principais qualidades a habilidade de dialogar e de agregar, além da capacidade de aprender com seus próprios erros.
Tão importante quanto o programa de governo e o conhecimento dos membros que o implementarão é a análise do “mindset” de cada grupo que disputa a Presidência. Sugiro quatro questões orientadoras aos condutores dos debates que deveriam ser feitas para todo concorrente a presidente. Primeira: como o senhor imagina que deve ser o país daqui a 20 anos num conjunto amplo de áreas (educação, meio ambiente, saúde, economia, cultura)? Segunda: que medidas adotará para que esse cenário se realize? Terceira: em que ideias, experiências de países e líderes governamentais o senhor se inspira para propor mudanças ao Brasil? E, por fim, como reunirá as pessoas em torno de suas propostas?
Para que uma campanha melhor aconteça em 2022, o período eleitoral deve ser maior e as regras sobre os debates deveriam ser melhoradas, fortalecendo o contraditório baseado em conhecimento sobre as políticas públicas. É sobre isso que o Congresso Nacional e a sociedade deveriam estar debruçados agora se quiserem que o Brasil tenha futuro. Seria a melhor reforma política para enfrentar as barbaridades produzidas no “Planeta Bolsonaro”.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Fonte:
Valor Econômico
César Felício: Voando por instrumentos
“Porque no acúmulo de sabedoria, acumula-se tristeza, e quem aumenta a ciência, aumenta a dor.” A julgar pelas ações do governo Bolsonaro e pela sua devoção ao Livro Sagrado, o lema de sua administração deveria ser esta constatação que está em Eclesiastes 1:18, e não o sempre citado João 8:32 (“Conhecereis a verdade e ela vos libertará”). O aumento do conhecimento, com suas incômodas revelações, parece torturar a administração federal, em que desde seu início declarou guerra aos radares, questionou o mapeamento da devastação na Amazônia, lançou suspeitas sobre as estatísticas de desemprego, tentou interferir na contagem de mortos da pandemia de covid-19 e por fim sabotou o censo demográfico que deveria ter sido feito em 2020 e talvez só ocorra em 2023.
Vivemos tempos estranhos, como gosta de dizer o ministro Marco Aurélio Mello, que no Supremo Tribunal Federal acatou anteontem um pedido de liminar do governo do Maranhão para obrigar a realização do censo ainda este ano. Não dá para arriscar prognóstico sobre o que o plenário do STF fará em relação a essa liminar, já na próxima semana.
O Supremo tornou-se o escoadouro último de todos os contenciosos da sociedade e cabe a Marco Aurélio, por exemplo, decidir tanto sobre a realização do censo quanto sobre o peso da embalagem dos sacos de cimento produzidos no Espírito Santo. Executivo e Legislativo, os Poderes a quem cabe a definição e a gestão do Orçamento, estabeleceram que o censo não é prioridade, embora a sua realização decenal esteja prevista em lei.
O governo deve usar a pandemia como argumento para o cancelamento do censo, mas a inicial apresentada pelo governo do Maranhão mostra que fechar o visor da sociedade sobre o que nós nos tornamos na era Bolsonaro parece ser deliberado.
Lá se historia que Bolsonaro assumiu com uma previsão orçamentária de R$ 3,4 bilhões para a consulta. A presidência do IBGE foi trocada em fevereiro de 2019, a diretoria de pesquisas substituída em maio deste ano e em junho foi apresentada a redução do censo, de 112 para 76 perguntas no questionário da amostra e de 34 para 25 no formulário básico. Com isso diminuiu-se a verba para R$ 2,3 bilhões. A dupla formada pelo relator do Orçamento e o ministro da Economia fizeram o resto do serviço este ano para deixar somente R$ 53 milhões em recursos.
Se em 2021 pareceu tão pouco importante realizar o censo, certamente em 2022, um ano eleitoral, haverá para governo e base parlamentar gastos mais relevantes do que fazer a medição. Não realizá-lo agora é adiá-lo mais dois anos, e não um ano só.
Os efeitos mais graves do atraso do censo são bem conhecidos. Prejudica políticas públicas que envolvam alocação de recursos federais de modo geral. No universo de danos há um, entretanto, que mesmo não sendo nem de longe o mais importante, está encoberto e causa dano político: os estragos nas pesquisas de opinião pública, particularmente as eleitorais.
As pesquisas precisam definir um universo para iniciar a amostra. Entrevistar na medida certa pessoas que retratem no microcosmo a diversidade social que permita transpor os achados da parte para o todo
Mesmo sem atraso do censo isso é difícil no Brasil, país onde a realidade social é porosa, com variações bruscas em curto espaço de tempo. Na escuridão proporcionada pelo governo Bolsonaro, todos vão ter que tatear.
“Qual o percentual de evangélicos que existe atualmente no Brasil? Qual exatamente a porcentagem da população que se autodeclara preta? Qual o tamanho da classe C? O prejuízo é enorme”, comenta o diretor científico do Ipespe, Antonio Lavareda.
Como se sabe que o presidente Jair Bolsonaro tem mais aceitação entre os evangélicos e menos entre os que se autodeclaram pretos; há viés para todos os gostos nos levantamentos feitos.
“Nossos modelos vão ficando defasados. Outro exemplo é o perfil demográfico. A população brasileira está envelhecendo. A estimativa de jovens pode estar superdimensionada nas pesquisas”, diz Mauricio Moura, do Instituto Ideia Big Data.
Uma estratégia para contornar essa dificuldade é limitar a amostra apenas aos dados para os quais há estimativas oficiais da Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (Pnad), que não foi interrompida. Mas ainda assim a base é movediça. “A Pnad também é uma pesquisa, com margem de erro. Portanto, o levantamento eleitoral é uma pesquisa que toma como base outra pesquisa”, diz Márcia Cavallari, CEO do Ipec, empresa de pesquisas.
A partir de uma amostra com cotas mais reduzidas do universo social, pesquisas como a do Ipec procuram identificar nas entrevistas o total de evangélicos, por exemplo. Márcia diz que levantamentos situam a população evangélica no Brasil entre 27% e 30% na atualidade, significativamente mais do que o censo.
O problema é como submeter os achados das pesquisas a um controle para se saber se há ou não problemas no universo amostral. Pesquisadores como Andrei Roman, do Atlas Político, tentam fazer esse controle pelo resultado da última eleição.
Sabe-se que em 2018 Bolsonaro teve 49,8% dos votos totais no segundo turno e Haddad 40,5%. Se o total das entrevistas de uma pesquisa de hoje for feita com este percentual de eleitores que optaram por Bolsonaro e Haddad na eleição passada, a chance de se ter um quadro fidedigno da sociedade no universo pesquisado aumenta. Mas quem garante que o bolsonarista arrependido fala a verdade quando perguntado sobre seu voto há três anos? Não há controle perfeito.
“A gente calibra a pesquisa com esses controles, mas não é uma situação confortável. É difícil até explicar no exterior o grau de incerteza que existe no caso brasileiro”, diz Roman.
Voar por instrumentos é o que resta, não apenas em relação a pesquisas eleitorais, mas a qualquer tipo de pesquisa. As consequências de apostas feitas pelo governo federal desaparecem da linha do horizonte. Há loucura no método, como sempre.
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/voando-por-instrumentos.ghtml
Maria Cristina Fernandes: Governo no modo pânico
O sincericídio do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na instalação da CPI da pandemia mostrou que o potencial de uma investigação do gênero é dado pela quantidade de erros que alvos cometem a partir da iminência de seu funcionamento. Primeiro foi o ex-secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, que partiu para o ataque contra o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, na tentativa de se blindar da investigação sobre a intermediação entre indústrias farmacêuticas e o governo.
Depois veio o ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, que, ao revelar ter tomado vacina escondido do presidente, como mostraram Thaísa Oliveira e Cézar Feitosa (CBN), poderá ser convocado para explicar porque o governo, publicamente, empurra a população ao matadouro enquanto seus ministros, privadamente, se acautelam contra o vírus.
Ao escancarar a cobrança aos aliados contra a instalação da CPI, Flávio Bolsonaro fragilizou ainda mais seu pai. O governo gastou muito mais do que podia para eleger Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) à presidência da Câmara e do Senado. Entregou ao Centrão grandes orçamentos da administração pública como o FNDE, a Codevasf e a Funasa. E, finalmente, acabou de renovar o passe de sua sobrevivência ao custo de R$ 49 bilhões para as emendas parlamentares no Orçamento de 2021, como notou Delfim Netto (“FSP”).
Nada disso foi suficiente para dar sossego ao governo. E, a partir de agora, nada dará. Além de escancarar a incúria governamental na condução da pandemia, a CPI tem um dano intangível sobre a base governista e os cofres públicos. Como os atores da comissão terão, a partir de agora, um palanque antecipado para 2022, resta aos adversários tentar sair da sombra de seu protagonismo.
Tome-se, por exemplo, o que acontecerá em Alagoas. O relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), não precisará renovar seu mandato em 2022, mas deixou claro, em discurso com referências ao fascismo, à República do Galeão, às batalhas de Monte Castelo, a Slobodan Milosevic e Augusto Pinochet, que joga para voltar ao cargo de mais poder que já ocupou, o de presidente do Senado. Tem como condições necessárias para isso, ainda que não suficientes, que seu filho eleja um sucessor no governo de Alagoas e que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva volte ao poder.
Se Renan contará com uma CPI que tende a galvanizar o debate nacional até as eleições, seu principal adversário regional, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), só teria como rivalizar se desengavetasse um dos mais de 100 pedidos de impeachment que lá repousam. Como não deseja desfazer a sociedade com este governo, lhe restou ressuscitar as reformas tributária e administrativa. Agrada seus interlocutores no mercado financeiro, que precisam de tempo para se desfazer de posições alavancadas pela aposta neste governo, e escancara a Câmara à atuação de lobbies que, neste momento de atomização do poder, podem agravar distorções. Basta ver o que aconteceu com o projeto aprovado na Casa liberando a vacinação privada.
Suas contingências diferem daquelas de seu parceiro, o senador Ciro Nogueira (PP-AL). A Ciro resta tentar o governo do seu Estado, visto que a única vaga ao Senado será disputada pelo governador Wellington Dias (PT), favorecido pela candidatura de Lula. Disputará contra o candidato de Dias, mas mostrou, na CPI, a maestria no jogo duplo.
A Lira resta renovar seu mandato de deputado federal por Alagoas. Não terá problemas para fazê-lo, o mesmo não pode ser dito da renovação de seu mandato na presidência da Câmara se Bolsonaro não for reeleito. Satisfeitas as ambições de Lira e Renan, as duas Casas legislativas ficariam sob o comando da dupla de alagoanos em 2023, o que parece improvável. Até Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto se revezaram no poder.
Para tornar sua recondução incontornável, resta a Lira fazer uma bancada suprapartidária maior do que a de hoje e eleger um aliado em Alagoas. Sua agenda busca contemplar ambas as prioridades. Numa semana está em contatos empresariais em São Paulo, noutra vai a Campo Alegre, na Zona da Mata alagoana, para inaugurar 190 casas populares.
Com a Secretaria de Governo sob o comando de seu grupo, Lira não terá dificuldades de avançar ainda mais no Orçamento de 2022, mas não terá vida fácil em Alagoas, onde o governador dispõe de R$ 6 bilhões para investir até as eleições, graças à concessão do saneamento, a privatização da folha de pagamentos e às reformas administrativa e previdenciária. Alagoas deixou de ser o golfo que Graciliano Ramos vaticinava com a queda nos homicídios por 16 meses consecutivos e a redução de 65% na relação entre dívida líquida/receita.
O único flanco que Renan Filho tem desguarnecido é sua pretensão ao Senado. O presidente da Assembleia Legislativa assumiria o governo e se tornaria, automaticamente, candidato natural à reeleição, contrariando a vontade do governador de fazer, como sucessor, um dos secretários projetados por sua gestão. Um acordo fica cada dia mais difícil.
Só um projeto ainda os une, o de fazer o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, ministro no Supremo. Desembargador pelo quinto constitucional, Martins chegou ao STJ no governo Lula pelas mãos de Renan. No cargo, salvou Lira da Lei da Ficha Limpa.
Além dos dois alagoanos, Martins tem o apoio de Flávio Bolsonaro, que conta com o filho do ministro, Eduardo Martins, para iniciá-lo no mercado da advocacia da capital federal. Depois de uma visita desastrada ao Palácio do Alvorada, quando causou má impressão sobre o presidente, Martins conseguiu ser recebido em outras três ocasiões em que a ansiedade se manteve sob mais controle.
Duas ações resumem a postulação de Martins. O ministro Gilmar Mendes votou na terça-feira pela incompetência do juiz Marcelo Bretas na ação penal contra advogados contratados pela Fecomercio, entre eles o filho do presidente do STJ, acusado, em delação, de ter recebido R$ 77 milhões, maior fatia entre os causídicos. Na semana passada, a ministra Rosa Weber negara o pedido da PGR pela suspensão de inquérito do STJ contra procuradores cujos diálogos foram captados. Neles, Humberto Martins aparece como beneficiário de propinas reveladas pelo ex-presidente da OAS, Leo Pinheiro, em delação.
Um ministro com esses precedentes seria, obviamente, refém do Planalto. A aliança que se forma em torno dele, porém, mostra que é o pós-Bolsonaro que já está em jogo.
Cristiano Romero: Construção - No meio do caminho tinha uma pedra
Oligopólios jogam preços nas alturas e freiam setor
Responsável por cinco a 6% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, a construção civil foi o setor que mais gerou empregos formais no ano passado - 106 mil. Considerando toda a cadeia produtiva da construção, o setor representa 10% de tudo o que economia brasileira produz. Em 2014, quando se verificou o pico recente do setor, chegou a 11,5%.
A participação da cadeia da construção no PIB só é menor que a da agroindústria. Outro dado relevante é a fatia do setor na Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), isto é, na taxa de investimento da economia em bens de capital (máquinas e equipamentos) e construção: 50%, segundo a média histórica.
O setor de construção, como se sabe, é o que mais gera empregos no país: 12,5 milhões no total. Seu efeito multiplicador na economia é formidável. Estima-se que cada R$ 1,00 investido na construção civil gere R$ 1,88 na atividade. Para cada 10 empregos diretos gerados no setor, são gerados outros cinco indiretos. Embora seja um setor pouco importador de materiais e serviços, é exportador de bens e serviços.
A cadeia da construção compreende quatro áreas. Na primeira, estão as construtoras, incorporadoras e prestadoras de serviços auxiliares de construção, responsáveis por realizar obras de edificação e infraestrutura. Na segunda, estão as indústrias que produzem materiais de construção, máquinas e equipamentos.
Na terceira parte da cadeia, está o comércio varejista e atacadista. Por fim, há as atividades de prestação de serviços, tais como serviços técnico-profissionais, financeiros e de seguros.
Abrindo-se a participação de cada segmento, temos aproximadamente o seguinte: a construção responde por 61% do setor, seguida pela indústria de materiais (11,4%), o comércio de materiais (9%), os serviços (5%), o segmento de máquinas e equipamentos (0,6%) e por outros fornecedores (13,1%). Em termos de fatia do PIB, a construção lidera com 6,4%, seguida de materiais de construção (2,8% do PIB), serviços (0,7%), máquinas e equipamentos (0,2%) e outros materiais (0,1%).
Há uma forte correlação positiva entre a variação do PIB brasileiro e o setor de construção. A história mostra que, quando o PIB sobe, o PIB da construção cresce acima de sua variação; quando o primeiro cai, o do setor cai abaixo da queda da economia.
Depois de atingir o pico em 2014, primeiro ano da grande recessão brasileira (2014-2016), que nos subtraiu mais de 7% do PIB e desorganizou a economia de tal maneira que, até hoje, não houve efetivamente recuperação digna desse nome, o setor da construção amargou longo e penoso declínio. No fim do ano passado, estava 36,18% abaixo do pico.
Mas, foi em 2020, o primeiro ano da pandemia _ nenhum cidadão imaginou que, na Ilha de Vera Cruz, não teríamos vacina após 14 meses de tragédia _, que o setor começou a reagir graças a dois fatos inusitados: brasileiros de praticamente todas as classes sociais aproveitaram a economia forçada de dinheiro, provocada pelo isolamento social, para fazer reformas e também para construir e o fato de a taxa de juros dos financiamentos imobiliários está nos menores níveis da história.
Números da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) mostram que, no quarto trimestre de 2020, os lançamentos de novas unidades avançaram 33,2% em relação ao trimestre anterior, enquanto as vendas aumentaram 3,9%. Quando comparado ao quarto trimestre de 2019, lançamentos e oferta final caíram, mas isso não é necessariamente ruim.
"O mercado imobiliário vendeu mais 10 % em 2020, comparado com 2019; os lancamentos reduziram 13 %, logo, precisaremos construir o que foi vendido e repor o estoque, portanto, 2021 seria um ano para trabalhar à vontade", explica Luiz Carlos Martins, presidente da CBIC. "No caso de obra pública, os governos estaduais estão com dinheiro, estão contratando e pagando em dia."
O bom desempenho gerou confiança no setor, como demonstra o gráfico. Índice acima de 50 pontos mostra expectativa dos participantes do mercado de crescimento nos próximos meses. Mas, já começou a cair e a razão é uma só: a explosão dos preços dos insumos. Até as pedrinhas da rua sabem que o custo de insumos cresceu uma barbaridade porque tanto a sua produção doméstica quanto a internacional recuaram no início da pandemia.
Olhando a situação mais de perto, porém, o que se vê é muito feio: aprveitando-se de seu poder de mercado, isto é, do grau de concentração e das barreiras que Brasília impõe a concorrentes estrangeiros, várias indústrias, a siderúrgica e a de resinas à frente, estão tirando proveito do momento para elevar suas margens de lucro. O problema é que a prática asfixia o setor e o inviabiliza.
Fernando Exman: O receituário do diversionismo
Agenda positiva visa proteger imagem de um governo acossado
Acossado por uma comissão parlamentar de inquérito, em tensão permanente com os outros Poderes e em meio a dificuldades para combater tanto a pandemia quanto seus efeitos econômicos, o governo fará de tudo para lançar, dia após dia, notícias que busquem desviar a atenção dos problemas que acometem o país.
O programa de governo deu lugar a um plano de sobrevivência política. Este, por sua vez, permanece a reboque das turbulências que a própria administração Jair Bolsonaro cria.
Começaram a usar a receita do bolo mais servido na capital federal em tempos de crise: quando há algo errado, coloca-se a culpa na comunicação. Em seguida, é retirada do bolso do paletó uma lista com medidas concretas ou propostas genéricas, muitas das quais com poucas chances de prosperar sem o uso de fermento. Pouco importa. A finalidade é agradar o paladar do investidor ou melhorar a imagem do Brasil na vitrine.
Arremata-se culpando inimigos imaginários ou terceirizando responsabilidades. E isso é feito sem pudor, mesmo que riscos tenham sido identificados previamente e soluções, sugeridas.
Já foi recuperada da geladeira a reforma tributária. É tarefa inglória encontrar algum governador que vislumbre um debate sereno da proposta ou até mesmo a sua aprovação no curto prazo.
Outras ideias começam a ser colocadas em prática. Bolsonaro assinou, enfim, a medida provisória que reinstitui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (BEm). Não eram poucas as críticas, entre empresários, à demora na reedição do pacote. Ao promover uma reunião extraordinária do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), colegiado responsável pela implementação de medidas de desestatização, o Executivo tenta também iluminar novamente a agenda liberal, que vem perdendo sua luz própria.
O mesmo esforço se vê na área ambiental, onde o governo Jair Bolsonaro esboça uma inflexão. Mas precisa correr contra o tempo, se de fato estiver decidido a calibrar as políticas públicas voltadas ao setor.
A cúpula organizada pelos Estados Unidos acabou por mostrar ao governo o que já era evidente para a iniciativa privada. Sem ter acesso direto ao colega americano, o presidente Jair Bolsonaro precisou registrar por escrito a nova abordagem que pretende dar ao tema. Acabou tendo uma passagem apenas protocolar pelo encontro, onde fez uma série de promessas que passarão a ser objeto de monitoramento.
No entanto, além de lidar com suas próprias idiossincrasias, o governo brasileiro vai precisar se apressar para implementar novas ações e torná-las perceptíveis ao público. Isso porque não demorará a chegar o período do ano em que ocorrem as queimadas na Amazônia e em biomas como o Cerrado ou o Pantanal. Existe ainda a preocupação com a possibilidade de haver alguma descontinuidade das ações das Forças Armadas na Amazônia.
A Operação Verde Brasil 2, voltada a combater ilícitos ambientais e focos de incêndio, expira na sexta-feira. Setores do governo defendem a edição de um decreto instituindo uma nova operação de garantia da lei e da ordem, com o intuito de assegurar que o Estado permaneça presente na região. Até ontem, esse ato insistia em ficar de fora das páginas do “Diário Oficial da União”.
O que já se sabe é que pelo menos será feita uma transição baseada no “Plano Amazônia 2021/2022”, documento aprovado depois de discussão no Conselho Nacional da Amazônia Legal.
Quem comanda o colegiado é o vice-presidente Hamilton Mourão, que deu maior peso institucional às discussões e reforçou, por exemplo, a percepção sobre a necessidade de se proporcionar maior protagonismo à Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Essa é uma ideia defendida há tempos tanto por diplomatas como por militares, a despeito das diferenças políticas existentes entre os governantes dos oito países que integram a instituição - Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.
Na visão deles, depois da implosão da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e do Conselho de Defesa Sul-Americano, a OTCA poderia servir de plataforma institucional para coordenar as políticas regionais, inclusive quanto a iniciativas de segurança, controle fronteiriço e combate a ilícitos transnacionais.
Curiosamente, a organização é sediada em Brasília, mas o país vinha desdenhando de sua potencialidade. Se aproveitada na plenitude, a OTCA pode recolocar o Brasil no debate ambiental, fortalecendo sua posição na região e dando eco ao discurso nacional nos organismos multilaterais.
A instituição vem mantendo contato direto com a União Europeia, instituições financeiras e agências das Nações Unidas. Pretende ainda atuar como entidade observadora na Assembleia-Geral da ONU. Ou seja, a ideia é promover o posicionamento conjunto dos países amazônicos nos ambientes multilaterais, inclusive defendendo bandeiras caras ao Brasil, como o aumento das contribuições financeiras de países desenvolvidos.
Enquanto isso, ela já tem agido, no limite de suas capacidades, na promoção do desenvolvimento sustentável. Desenvolve projetos voltados à água, ao saneamento básico, à proteção das florestas e ao combate a incêndios, mas precisa de um impulso político ainda maior para ampliar seus horizonte de atuação.
Isso consta do mapa estratégico produzido sob a coordenação de Mourão, que acabou sem os instrumentos executivos necessários para assegurar a implementação dessas e de outras diretrizes definidas no âmbito do Conselho Nacional da Amazônia Legal. Seu papel nunca agradou alguns ministros, mas agora isso pode até ser útil para Bolsonaro. Não será surpresa se o vice for injustamente responsabilizado pelos problemas que possam surgir, até porque o destino eleitoral de Mourão já está excluído dos planos do presidente.
Pedro Cafardo: O culto à cloroquina e ao teto sacrossanto
Enquanto o mundo pensa no pós-pandemia, Brasil se vê envolto na discussão sobre limites fiscais rígidos demais
Uma frase banal - fazer do limão uma limonada - move quem está pensando na economia da era pós-covid. Ainda que as aflições com o desastre humanitário global em andamento desencorajem esse olhar economicista, muitos países já puseram o tema em discussão e tomam medidas olhando para o futuro imediato.
Quem prestou atenção nos discursos da Cúpula do Clima da semana passada viu o “caminho das pedras” da nova economia. A ideia geral é que o principal mecanismo para criar empregos após a pandemia serão os investimentos na economia verde.
O presidente dos EUA, Joe Biden, está presenteando os americanos com um programa econômico que vai muito além do auxílio emergencial. Já aprovou um pacote de estímulos fiscais de US$ 1,9 trilhão e propõe investimentos de longo prazo de até US$ 3 trilhões. Esta segunda parte é a limonada, porque aproveita a crise para sugerir uma grande transformação estrutural da economia americana, ao mesmo tempo em que promete reduzir as emissões de gases-estufa em 52% até 2030. Pode parecer estranho, mas a infraestrutura americana está velha e precisa ser renovada. Não há no país, por exemplo, ferrovias de alta velocidade, coisa comum na Europa. As novas linhas de trens devem substituir transporte aéreo, altamente poluidor.
Então Biden quer renovar a infraestrutura do país e, ao mesmo tempo, descarbonizar a economia, que é para onde vai a fronteira tecnológica em função do aquecimento global. Além disso, ele promete investir em educação e saúde pública com recursos obtidos pela maior taxação dos ricos americanos.
O plano Biden, pela sua enorme dimensão, provoca controvérsias. As declarações que mais preocuparam foram as do ex-secretário do Tesouro Larry Summers, por ser um economista de centro-esquerda, que teoricamente deveria apoiar o investimento público. Summers acha que o pacote fiscal, grande demais, pode gerar inflação de demanda, alta de juros e recessão.
Com ou sem polêmica, o fato é que os americanos já planejam a economia do pós-covid e pouco se lixam com o aumento dos gastos. Europeus vão pelo mesmo caminho. Na França, o ministro das Finanças, Bruno Le Maire, mandou às favas o neoliberalismo e disse que vai proteger a economia francesa “a qualquer custo”. Prometeu investir para garantir soberania e domínio de tecnologias que “moldam o futuro” do país. Vai proteger as empresas com taxações e novos financiamentos. A ideia é “reinventar o modelo econômico do país” com base na inovação e na indústria livre de carbono.
Enquanto o mundo pensa no pós-pandemia, aqui o governo ainda aposta na cloroquina, provocando gargalhadas no exterior. Promessas, como as feitas na Cúpula do Clima, soam falsas. O comando econômico só pensa em conter gasto público. A discussão da política macroeconômica se limita ao teto de gastos, jabuticaba pouco razoável num momento em que mundo decidiu aplicar recursos para combater a doença e renovar a economia nos novos parâmetros.
Nem no incentivo ao carro elétrico, óbvia tendência mundial, estamos pensando ainda, como mostrou Marli Olmos no Valor de ontem. Não se trata de defender a ideia de que o bom para os EUA ou para a Europa é bom para o Brasil. Trata-se de seguir o rumo da economia mundial ou de ficar sentado na sarjeta, chorando e esperando pelos milagres da cloroquina ou do teto de gastos.
José Luis Oreiro, professor da UNB, que acaba de lançar o livro “Macroeconomia da Estagnação Brasileira” em parceria com Luiz Fernando de Paula, anda enfurecido com o que chama de “fé no teto sacrossanto”, que só existe no Brasil com esse rigor, incluído na Constituição e com poucas regras de saída. “Se preservar o teto, a economia cresce; se violar, não cresce”, esse é o dogma. “Por que?”, pergunta.
Em tempo: na opinião de Oreiro, Summers está equivocado e “Biden deve ficar para a história como o novo Roosevelt”.
Pontes abertas
Mudando de assunto, mas nem tanto, os quadrinhos acima, uma velha metáfora comum nas paredes de barbearias dos anos 1960, representam bem o que vêm fazendo as duas forças políticas progressistas do país há quase três décadas. Nunca saíram do primeiro quadrinho e foi preciso aparecer um radical totalitário para desconfiarem que estão no mesmo lado. Ameaçam agora passar para o segundo quadrinho.
As propostas das duas não são conflitantes. Quando governaram, controlaram inflação, buscaram crescimento, reduziram analfabetismo e mortalidade infantil, tiveram a responsabilidade fiscal possível e melhoraram a distribuição de renda. Seria utopia pensar numa aliança progressista entre elas? As pontes estão abertas. Mas será preciso superar ambições pessoais de poder em ambos os lados e alguém tomar a iniciativa de atravessar as pontes. As propostas podem ser mescladas para salvar um país entregue a quem não faz planejamento econômico, ignora a ciência e o desafio ambiental, descuida da educação e da saúde e promove discórdias.
Se não se unirem, as duas forças serão condenadas pela história. Pode dar com os burros n’água a ideia de deixar a centro-esquerda de fora e formar um bloco puro-centro, que é móvel, infiel e fragmentado, como mostrou pesquisa publicada sexta-feira pelo Valor. Também não há como isolar de um acordo a centro-direita, porque a esquerda não forma maioria. Não seria melhor escantear os extremistas, parar, negociar e decidir se vão comer juntos primeiro as mortadelas da esquerda ou as coxinhas da direita?
Andrea Jubé: 'Quantos poderiam ser salvos?'
Atraso nas vacinas foi deliberado, diz governador de Alagoas
O governador de Alagoas, Renan Filho (MDB), recorreu a uma metáfora futebolística, tão comum na política, para explicar por que a falta de uma coordenação nacional no combate ao coronavírus contribuiu para o recrudescimento da pandemia no Brasil.
“O Ministério da Saúde é fundamental nesse processo, e em meio à crise, tivemos quatro ministros. Imagina a Seleção Brasileira, às vésperas da Copa do Mundo, trocando de técnico quatro vezes, cada um com um time de diferente, um lateral esquerda, outro de direita. Certamente isso dificulta a organização do time”.
O mandatário é filho do senador Renan Calheiros (MDB-AL), que ontem teve a nomeação para o cargo de relator da CPI da pandemia impedida por uma liminar da Justiça Federal do Distrito Federal. Nas redes sociais, o senador classificou a decisão como “interferência indevida”, acusou o governo Jair Bolsonaro de orquestrá-la, anunciou que vai recorrer, e provocou: “Por que tanto medo?”
Para Renan Filho, contar com Renan Calheiros na relatoria da CPI não deveria inspirar medo, mas, sim, confiança pela sua experiência política e disposição para conciliação. “Não se encontra no Senado tanta gente com a capacidade dele, experiente, calmo, sereno. O senador Renan é equilibrado e no papel de relator, só vai ajudar”.
O governador acrescenta que o senador seria incapaz de qualquer injustiça na condução dos trabalhos “porque já foi injustiçado, e sabe o que isso significa”. Uma alusão às denúncias contra o senador no âmbito da Lava-Jato. Renan ainda responde a oito processos no Supremo Tribunal Federal, mas dos 17 originais, nove já foram enviados ao arquivo.
Na última semana, Renan Filho recebeu um telefonema do presidente Jair Bolsonaro, que tem o alagoano como único interlocutor entre os governadores do Nordeste. Na conversa, Bolsonaro reafirmou ao governador que o momento é inoportuno para a CPI.
O governador não discordou do presidente naquele momento, porque seria uma descortesia em pleno telefonema com o chefe do Executivo. Ontem, entretanto, Renan Filho disse à coluna que tem outra opinião: “Quem decide o momento ideal para uma CPI é o Congresso Nacional”.
Renan Filho acredita que Bolsonaro lhe telefonou para fazer “um gesto na direção do diálogo”, já que o senador Renan havia sido indicado para relatar a CPI. O governador lembrou que, em entrevistas recentes, Renan Calheiros disse que, como relator, conversaria com todos, “especialmente com o presidente, se ele desejar”.
Até ontem, havia ambiente para o diálogo, mas a ofensiva judicial da deputada Carla Zambelli (PSL-SP), aliada de primeira hora do Palácio do Planalto, e que obteve a liminar barrando Renan, tumultuou o jogo. Se a decisão for revogada, Renan assumirá o posto pintado para a guerra, um figurino que ainda não havia exibido.
No fim de semana, Renan foi ao Twitter declarar-se suspeito em relação a qualquer investigação sobre o governo de Alagoas que surgir na CPI. Uma reação à campanha deflagrada nas redes sociais pelos bolsonaristas, que impulsionaram a hashtag #Renansuspeito, já que o relator da CPI é pai de um governador, e os governadores serão investigados quanto à gestão dos recursos federais para o enfrentamento da pandemia.
Renan Filho diz que não teme essa investigação porque Alagoas tem bom desempenho na pandemia. É o terceiro Estado com menos mortes por grupo de 100 mil habitantes, e não foi investigado pela Polícia Federal.
Para conter a covid-19, ele associou medidas de distanciamento social e de restrição de circulação, à ampliação da rede hospitalar. Relata que acelerou a conclusão de quatro hospitais, ao mesmo tempo em que contou com o apoio da Federação das Indústrias e da Associação Comercial em comerciais para a televisão nas medidas restritivas. Está em vigor o toque de recolher a partir das 21 horas, e dias pontuais para o fechamento dos shoppings. A lotação das UTIs está em 76%.
“Por essas ações a rede não colapsou até agora. É possível construir um discurso integrado, mas houve no Brasil uma intenção de dividir o país”.
Renan Filho invoca o infográfico elaborado na semana passada pelo site “Poder360”, que comparou unidades federativas a países. Nesse comparativo, o Distrito Federal e sete Estados brasileiros estariam entre os 10 países com mais vítimas da covid-19. Amazonas, com 2.903 mortes por milhão, desponta acima da República Tcheca, líder do ranking mundial. Alagoas estaria empatado com a Bahia, em 32º lugar, com 1.186 mortes por um milhão de habitantes.
Renan Filho defende que a CPI faça esse modelo de cálculo. “Quantas vidas teriam sido salvas se as medidas corretas de enfrentamento à pandemia fossem tomadas no momento adequado? Essa história também precisa ser contada”, conclamou.
Ele admite que não será possível um cálculo direto ou objetivo, “mas obviamente dará para demonstrar que algumas regiões têm resultados melhores do que outras, e podemos olhar o que levou a isso, podemos fazer discussão com especialistas”, sugeriu.
Num momento em que o Brasil ainda vivencia um platô de 3 mil mortes diárias, o governador considerou “muito grave” a nova revisão do cronograma de imunização, e vê um atraso intencional na busca de imunizantes.
“Nós nos atrasamos deliberadamente na aquisição de vacinas. Em determinado momento, o Brasil era contra a compra de vacinas, e isso se verbalizou por meio de várias autoridades. E não temos um cronograma de vacinação, ele é alterado a cada semana, quinzena ou mês, e é sempre para postergar, nunca para antecipar”.
Renan Filho lembra que defendeu a urgência de uma coordenação nacional de combate à pandemia, com a integração de esforços entre as três unidades da federação na reunião de governadores, ministros e chefes das Casas Legislativas no Palácio da Alvorada há um mês. “Governo federal e Congresso concordam com essa falta de coordenação, por isso criaram o comitê [nacional de combate à pandemia], mas de lá pra cá, não teve ação nenhuma”.
André Lara Resende: Obsessão em atar as mãos do Estado paralisa o Brasil há três décadas
Alta dos juros leva a efeitos distributivos perversos
Neste EU& Fim de Semana, de 16 de abril, José Júlio Senna faz uma crítica ao meu artigo “A quem interessa a alta dos juros”, também aqui publicado. O artigo de José Júlio merece um elogio logo na partida pois, coisa rara no debate econômico de hoje, é uma resposta civilizada e racional. Dito isso, passo a expor por que discordo dos seus argumentos e os considero um exemplo dos problemas da retórica dos economistas.
José Júlio concorda que não há hoje pressão de demanda sobre os preços. Discorda que a alta dos preços internacionais das commodities, associada à desvalorização do real, seja o principal fator por trás do aumento da inflação. Atribui a alta mais aos gargalos de oferta criados pela pandemia do que à pressão das commodities. Sustenta que a pandemia desorganizou a oferta, o que é incontestável, e que houve um desvio da demanda de serviços para bens, o que é uma mera conjectura.
De toda forma, o ponto central de seu argumento não depende disso. Reconhece que o núcleo da inflação não saiu de controle, está apenas ligeiramente acima da meta, aponta para 5,5% no fim do ano, mas pode chegar a ser mais alto a partir de maio, antes de voltar a cair. Sustenta que a alta dos preços no atacado, agravada pelos problemas de logística na pandemia, pode não ser transitória.
Segundo ele, o que poderia ser considerado um mero fenômeno estatístico é preocupante, pois corre-se o risco de influenciar as expectativas. Para José Júlio, a razão pela qual o Banco Central deve elevar os juros é justamente para evitar a perda de controle sobre as expectativas. Reconhece que a alta dos juros não irá reverter a alta dos preços, mas sustenta que irá impedir a propagação dos seus efeitos secundários, através das expectativas.
Paremos aqui um instante para perguntar como a alta dos juros irá reverter as expectativas. Os economistas concordam, coisa rara, que as expectativas são fator importante na formação de preços e na evolução da inflação, mas não têm nenhuma vantagem comparativa na explicação de como as expectativas são formadas. Expectativas de inflação são um fenômeno de psicologia coletiva, o que não é bem o campo dos economistas. Ao reconhecer sua incompetência, coisa ainda mais rara, os economistas resolvem o problema presumindo que as expectativas são formadas de acordo com as premissas do seu próprio modelo.
A hipótese de “expectativas racionais”, hoje praticamente hegemônica na macroeconomia, é exatamente isso: a realidade pouco importa, supõe-se que as expectativas são um mero espelho da formação de preços no modelo teórico utilizado. Resolve-se assim o problema de nada ter a dizer sobre a formação das expectativas, desconsidera-se a realidade e as circunstâncias, e de quebra, tem-se uma solução formalmente elegante.
Demonstrando sensibilidade para a realidade, José Júlio reconhece que as circunstâncias hoje nada têm de normais, o ambiente fiscal e político do país representa um terreno fértil para que as expectativas se deteriorem. O que ele fica devendo é explicar como a alta dos juros irá reverter este ambiente fiscal e político.
É possível argumentar que a alta dos juros pode agravar o ambiente político. Quando o comércio, a indústria, os restaurantes, os hotéis e todas as atividades ligadas ao turismo e ao entretenimento estão praticamente paralisados pela pandemia, passam por sérias dificuldades e são obrigados a se endividar para sobreviver, elevar o custo do crédito não é exatamente um elixir para a paz política e social.
Concentremo-nos no que José Júlio afirma ser o delicado ambiente fiscal. Aqui está o ponto central de meu artigo: a elevação dos juros aumenta a despesa financeira do governo e agrava o desequilíbrio fiscal. Repito aqui o ponto que José Júlio, consciente ou inconscientemente, optou por desconsiderar em seu comentário.
Dado que a dívida pública é hoje 90% do PIB, uma elevação de 4 pontos de percentagem na taxa básica, como antecipa o mercado para o fim do ano, implica um aumento de 3,6% do PIB nas despesas do governo. São aproximadamente R$ 267 bilhões, valor apenas ligeiramente inferior aos R$ 294 bilhões da totalidade do auxílio emergencial até o fim do ano passado. Esse valor é equivalente a mais do dobro de todo o investimento público anual dos últimos anos.
O auxílio emergencial exigiu uma emenda constitucional para ser aprovado. Sua extensão, em valores muito reduzidos neste ano, provocou um acalorado debate sobre se poderia ou não ser excluído do teto dos gastos. Já a alta dos juros depende apenas de uma decisão do Banco Central. O teto não vale para as despesas financeiras do Tesouro, que são determinadas pela taxa de juros fixada pelo Banco Central. Enquanto o auxílio emergencial vai para a população necessitada, desamparada pela perda do emprego e da renda, o aumento das despesas financeiras do governo vai para os detentores da dívida.
A dívida pública hoje é uma divida interna, expressa em moeda nacional e carregada essencialmente por brasileiros. É um passivo do Estado e um ativo do setor privado brasileiro. O aumento dos juros é uma transferência direta do Estado para os detentores da dívida, para aqueles a quem a fortuna, vamos dizer assim, deu renda superior às suas necessidades e lhes permitiu acumular riqueza em títulos públicos.
Ainda que se desconsiderem os efeitos distributivos perversos da alta dos juros, como compatibilizá-la com a tese de que é preciso equilibrar o orçamento fiscal, a qualquer custo, para evitar o “abismo fiscal”? A explicação para um tratamento tão diverso entre as despesas financeiras e as outras despesas públicas, inclusive em investimentos essenciais, está na suposta inevitabilidade das “leis” da economia e das finanças.
É possível falar em leis da física e das demais ciências exatas, mas nas humanas, e economia é uma disciplina social, não existem leis imutáveis. As relações humanas são resultado da combinação de fatores psicológicos e ideológicos definidos num contexto cultural sempre em evolução. O arcabouço analítico dos economistas, que pretende se espelhar na física, pode ser circunstancialmente útil, mas não tem validade científica. É um modelo mental, baseado em postulados sobre o comportamento dos indivíduos, que em circunstâncias altamente idealizadas, batizadas de competição perfeita, justifica o cerceamento da intervenção do Estado na economia. Sob aparência de isenção científica, é uma ideologia conservadora, usada para justificar a impossibilidade de fazer diferente. As coisas são como são e não podem ser diferentes, porque assim determinam as leis da economia1.
Voltemos ao artigo de José Júlio. Segundo ele, o Banco Central atua com “certa liberdade para reagir às mudanças de cenário”, mas sujeito a um “arcabouço teórico rigoroso”. Este arcabouço teórico, formulado numa linguagem algébrica inacessível à grande maioria das pessoas, rigorosamente irrealista, serve para justificar a excepcionalidade dada ao Banco Central. Mas vejamos se o que diz José Júlio, sobre os objetivos do BC, segue o mesmo rigor.
Afirmações como “o BC procura manter a projeção de inflação o mais próximo possível do objetivo, no horizonte relevante de tempo” e “na situação atual, a projeção encontra-se na meta, e o risco de eventual desvio para cima supera o risco de eventual desvio para baixo” não são exatamente exemplos de rigor científico. Ao contrário, deixam claro o grau de inevitável subjetivismo na condução da política de juros do BC.
A recém-aprovada lei que deu autonomia ao BC acrescentou entre os seus objetivos a suavização dos ciclos econômicos e o estímulo ao pleno emprego. Ninguém em sã consciência irá afirmar que, nas atuais circunstâncias, a alta dos juros atende a esses objetivos.
José Júlio considera que a alta dos juros de longo prazo, assim como a pressão exercida pelos analistas para que o BC eleve a taxa básica, são meramente um “movimento antecipatório”, que aumenta a eficácia da política monetária. Como, ele não explica. Provavelmente por elevar o déficit do Tesouro e agravar a recessão e o desemprego. Considera que não há espaço para que o BC influencie diretamente a taxa de câmbio, que se o BC atuasse, como já faz o Banco do Japão, para balizar as taxas futuras, estaria “tabelando” o mercado e “quebrando o termômetro”.
Mais uma vez, sob a pretensão de conhecimento técnico, são meras opiniões, baseadas na ideologia de que o mercado está sempre certo e que toda intervenção de políticas públicas cria distorções em relação ao melhor dos mundos. Mas quando o mercado provoca grandes crises como a de 2008, o BC e o Tesouro são chamados a intervir. O “quantitative easing”, QE, foi uma emissão de mais de 20% do PIB nos EUA para salvar o sistema financeiro de seus excessos. Aí sim, o BC e o Tesouro podem emitir e gastar, mas nunca para enfrentar a pandemia e o desemprego.
A ideologia do fiscalismo, a obsessão em atar as mãos do Estado, inclusive para investir em áreas essenciais, como infraestrutura, saúde, educação, segurança, pesquisa e desenvolvimento, paralisa o país há pelo menos três décadas. A má governança do Estado brasileiro, agravada por um governo verdadeiramente catastrófico, justifica o receio de que dar espaço ao Estado para gastar estimule a irresponsabilidade.
Repito então o que disse ao concluir o meu artigo: é evidente que o Estado deve ser responsável e gastar bem. Restrições institucionais e administrativas para os gastos públicos são necessárias, para evitar abusos e distorções, mas precisam ser desenhadas com base no entendimento correto da importância do Estado, como prestador de serviços e como investidor. A teoria econômica convencional, uma ideologia que se pretende ciência, é hoje o principal empecilho ao entendimento correto do papel do Estado.
1 O irrealismo e a incapacidade do instrumental analítico da economia convencional têm sido alvo de críticas contundentes de alguns de seus mais ilustres nomes. Para os que se interessarem, recomendo a leitura do artigo de Paul Romer “The Trouble with Macroeconomics” (2016) e dos recém-publicados de W. Brian Arthur, “Economics in Nouns and Verbs” (2021), e de S. Bichler e J. Nitzan, “The 1,2,3 Toolbox of Mainstream Economics” (2021).
*André Lara Resende é economista
Armando Castelar Pinheiro: À espera da inflexão
Há que resistir à tentação de usar a inflação no ajuste das contas públicas: a conta vem depois, não compensa
A realidade tem se mostrado mais complexa que as previsões. Novas cepas, múltiplas ondas de casos e mortes, efeitos colaterais das vacinas, tudo eleva a incerteza sobre quando se controlará a pandemia da covid-19 e, não menos importante, como será o novo normal depois disso. Fica claro, também, que os países ricos não conseguirão controlar a epidemia vacinando só suas populações, enquanto no resto do mundo a pandemia segue solta, facilitando o surgimento de novas e mais virulentas variantes do vírus.
Isto posto, tudo indica que 2021 verá uma inflexão nesse processo, fruto do gigantesco esforço de vacinação em curso. E de que, os dados mostram, as vacinas estão funcionando. Até aqui foram aplicadas quase 900 milhões de doses globalmente, quase uma dose para cada seis pessoas com 20 anos ou mais. Na última semana, mais de 100 milhões de doses foram administradas e a tendência é esse ritmo acelerar, conforme suba a produção de vacinas. Mesmo que isso não ocorra, mantido esse ritmo o ano fechará com 4,5 bilhões de doses aplicadas, o suficiente para vacinar boa parte dos mais vulneráveis.
A vacinação avançou mais em alguns países ricos, como os europeus e os EUA, com grandes emergentes como Brasil, Argentina, China, México e Índia vindo atrás, nessa ordem, em termos de vacinas aplicadas por habitante. Onde a vacinação andar mais rápido, a atividade econômica e o emprego também se recuperarão mais ligeiro e significativamente. Os EUA são o grande caso de sucesso na economia, para o que os redobrados estímulos fiscais também contribuem.
No Brasil, tudo parece meio parado, à espera que a vacinação avance o suficiente para a normalização, ainda que parcial, para usar o jargão da moda, da economia. Já se aplicaram cerca de 35 milhões de doses e o ritmo tem ficado, com alguma volatilidade, perto de um milhão de doses por dia. Isso permitirá vacinar, com duas doses, todos os brasileiros com 20 anos ou mais até o fim do ano. Se conseguirmos mais vacinas, poderemos atingir essa “normalização parcial” no terceiro trimestre, com o ano fechando com uma retomada mais firme da atividade.
O problema é que há muito mais com que se preocupar, o que não parece estar ocorrendo. O que me fez lembrar da frase de Samuel Johnson: “Confie nisso, senhor, quando um homem sabe que está em vias de ser enforcado, concentra sua mente maravilhosamente”. Quem sabe a forca ainda não está apertando tanto quanto parece, mas a impressão é de rompimento com o padrão das últimas décadas, quando a proximidade da crise concentrou as mentes e levou à aprovação de ajustes fiscais. Não vemos isso agora, como ficou claro na confusão, ainda em curso, com o orçamento público deste ano.
O drama humanitário - mais de 20 mil mortes por semana - explica em parte essa apatia com a deterioração do quadro fiscal. É na saúde pública que as mentes estão concentradas. Parte da explicação também está, porém, em muito da deterioração futura vir de maiores despesas com juros, e não do mais visível déficit primário.
Entre fevereiro de 2020 e o mesmo mês este ano, a Dívida Bruta do Governo Geral saltou de 75,2% para 90% do PIB. A despeito desse salto, a despesa com juros sobre essa dívida caiu de 5,5% do PIB nos 12 meses até fevereiro de 2020 para 4,7% do PIB um ano depois. Isso porque, na média dos 12 meses terminados em fevereiro último, a taxa de juros implícita incidente sobre essa dívida foi de apenas 5,7%, contra 7,5% um ano antes.
Essa taxa de 5,7% é a menor registrada na série histórica disponibilizada pelo Banco Central (BC). Essa excepcionalidade fica ainda maior quando se olha para essa taxa em termos reais, descontando a variação acumulada pelo IPCA: nos 12 meses até fevereiro de 2021, a taxa real ficou em 0,5%, contra uma média de dez vezes esse valor em 2007-20 (5%).
Nos próximos meses a taxa de juros real incidente sobre a dívida pública vai continuar caindo, indo para valores negativos. Porém, olhando um pouco mais à frente, parece inevitável que ela suba, possivelmente de forma significativa. Isso por dois fatores.
Um, a alta dos juros pagos pelo Tesouro americano, que deve continuar conforme a economia do país se recupere, dado que o governo americano necessita emitir altos volumes de dívida para financiar seu elevado déficit. O processo será gradual, oscilando com as ondas da pandemia, mas deve ganhar força com a recuperação da atividade e a queda do emprego.
Outro, a necessidade de controlar a escalada inflacionária doméstica, que fará o BC continuar a elevar a taxa Selic, indexador de 45% da dívida pública, provavelmente para além do que projeta o analista mediano do Focus (6% ao final de 2022). A inflação segue surpreendendo para cima e o risco de o BC perder o controle das expectativas inflacionárias tem aumentado.
Torço que se resista à tentação de usar a inflação no ajuste das contas públicas: a conta vem depois, não compensa. É hora de começar a se preparar para esse novo desafio fiscal.
*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ