Valor Econômico
Maia diz que se vê como alternativa presidencial no longo prazo
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), reconheceu ontem, em entrevista ao programa do jornalista Roberto D'Ávila, na GloboNews, que pode alçar voos mais altos na político no longo prazo. Perguntado diversas vezes ao longo da conversa se não teria intenção de assumir a Presidência do Brasil, no lugar de Michel Temer, o deputado federal disse que seu papel atual é presidir a Câmara e que jamais faria algo para prejudicar Temer.
"O político, quando entra na política, sempre sonha com o máximo. Isso aí seria besteira não admitir. Mas neste momento, não", descartou o parlamentar. "A longo prazo, é óbvio, chegar onde eu cheguei já me coloca, daqui a duas ou três eleições, como uma alternativa", acrescentou.
Maia reafirmou que como parlamentar apoia o presidente Michel Temer, mas como presidente da Câmara dos Deputados vem mantendo posição de neutralidade em relação às denúncias feitas contra o mandatário.
"Uma coisa é o presidente da Câmara, outra é o deputado eleito pelo DEM que apoia o governo do presidente. Esse deputado vai ser sempre leal", afirmou Maia, acrescentando que manterá distância em relação ao governo, respeitando a Constituição Federal e o regimento interno da casa na tramitação das denúncia contra Temer.
A entrevista com o deputado federal foi gravada na tarde de ontem, no Rio de Janeiro.
Maia afirmou que o ideal para o Brasil seria que não tivesse havido o fatiamento das investigações contra o presidente Michel Temer, mas que respeita as decisões neste sentido tomadas por outros Poderes. Para o presidente da Câmara, o fatiamento enfraquece a posição de Temer em votações na Casa.
"O ideal para o Brasil é que tivéssemos apenas uma denúncia. Mas esse é um papel que cabe ao procurador-geral [da República] e ao ministro [do Supremo Tribunal Federal Luiz Edson] Fachin. O ministro Fachin já desmembrou o inquérito em dois. Então, ele mesmo viu motivos para separá-los", disse Maia, acrescentando que não tinha qualquer intenção de fazer críticas a outras instituições. "Não estou aqui para fazer críticas a outras instituições. Inclusive acho que no Brasil de hoje nós precisamos repactuar as relações entre os Poderes."
O presidente da Câmara criticou o que considera um excesso de declarações feitas por fontes não identificadas sobre assuntos do alto escalão do governo. "O Palácio [do Planalto] tem que falar menos", disse Maia, queixando-se das inúmeras "bocas" que falam pelo governo. Na avaliação dele, essa multiplicidade de fontes que falam sem se identificar acaba por atrapalhar o bom andamento da administração. "Pelo Palácio fala o presidente e seu porta-voz", acrescentou.
Rodrigo Maia reconheceu que as denúncias de corrupção contra Temer são graves. No entanto, minimizou o suposto uso de emendas parlamentares pelo presidente para garantir a rejeição na Câmara de Constituição e Justiça (CCJ) do relatório favorável à autorização para que o Supremo Tribunal Federal analise a denúncia contra ele. "Se cada emenda resolvesse o problema, Dilma ainda seria presidente do Brasil", argumentou. Com relação à troca de parlamentares na CCJ, para produzir um placar favorável a Temer, Maia afirmou que a instância definitiva será a votação da denúncia em plenário.
Maia afirmou que vem cobrando diariamente do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, a assinatura definitiva do acordo de recuperação fiscal entre a União e o Estado do Rio de Janeiro. "Nós perdemos completamente o controle da segurança pública no Rio", disse o deputado federal ao jornalista Roberto D'Ávila.
O presidente da Câmara frisou ainda que defende a implementação imediata do Plano de Segurança Nacional no Estado do Rio. Segundo o parlamentar, suas tentativas de acelerar a ajuda ao Rio de Janeiro mostram que, mesmo apoiando o presidente Michel Temer, ele e o governo federal divergem em alguns pontos.
Por Rodrigo Carro | Valor Econômico
Angela Bittencourt: Empresários e efeito riqueza bancam Maia
Três forças conduzem o deputado carioca Rodrigo Maia, filiado ao DEM, à Presidência do Brasil: o apoio de parlamentares de distintas colorações, a aposta do empresariado em sua capacidade de defender as reformas e restabelecer prioridades no Congresso e o efeito riqueza que a inflação de 3% em 12 meses até junho - piso da meta vigente no país - devolve à classe média.
Nesse período, o Ibovespa rendeu 18,5% acima da inflação, as aplicações em renda fixa mais de 13%, a caderneta 4,7% e o dólar, na lanterna, 0,2%. Também em 12 meses até junho o montante de dinheiro aplicado cresceu cerca de 6% em termos reais. As cadernetas ainda registraram mais saques que novos depósitos em R$ 10,4 bilhões no período - resultado excelente se comparado aos saques que ultrapassaram R$ 57 bilhões em 12 meses imediatamente anteriores. A Caixa, que abre 2.015 agências mais cedo nesta segunda para resgate de contas inativas do FGTS, nos últimos cinco meses, entregou a 22 milhões de trabalhadores R$ 38,2 bilhões.
Nada disso, porém, favoreceu a popularidade do presidente Michel Temer ou impediu que se desenhasse, na última semana, uma transição para o comando do país. A imagem de Temer, duramente abalada com a denúncia por corrupção passiva feita pela Procuradoria-Geral da República (PGR), está sujeita um desgaste talvez irreparável se a Câmara autorizar que o Supremo Tribunal Federal (STF) investigue o presidente. Essa autorização depende da aprovação do pedido da PGR na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) cujo processo tem início hoje seguida da aprovação no Plenário.
Entre sexta-feira e domingo, a coluna conversou com cinco especialistas em economia, finanças e relações institucionais - três da área privada e dois do serviço público, que falaram sob anonimato. Nenhum deles vê condições de o presidente Temer permanecer no cargo, seja acolhida ou rejeitada pelos deputados a denúncia apresentada pela Procuradoria.
Os especialistas descrevem uma delicada e incomum transição em curso no Brasil, em que o presidente da República não tem condições para continuar e sua equipe econômica não tem condições de deixar o governo. "A agenda a ser cumprida está aí e todo mundo sabe qual é", diz um dos entrevistados, para quem Rodrigo Maia é o sucessor natural de Temer - presidente da Câmara é o primeiro na linha de sucessão presidencial -, embora considerado, por esse interlocutor, politicamente menos capaz que Temer para negociar com seus pares no Congresso.
"Rodrigo Maia é o Michel Temer que ainda não está publicamente enrolado, mas pode vir a estar", explica outro entrevistado que reconhece, porém, ter Maia a seu favor ser visto como "um político novo, que começa sua carreira, e a quem a sociedade não tem como julgar". O momento em que seu nome surge como opção para governar também é favorável ao deputado. "O Congresso está convencido de que a Reforma da Previdência é imprescindível. Rodrigo Maia toma o bonde andando. Não é exagero dizer que Temer já fez o trabalho sujo. Convenceu ou ao menos negociou condições que devem favorecer a aprovação das reformas."
Para outro profissional não há dúvida de que Maia oferece mais possibilidades de avanço ao país do que Temer. "O presidente deverá usar todo o seu capital político para se defender de denúncias. Maia não está nessa situação e deverá manter a atual equipe econômica porque precisará de gente competente para tocar o dia a dia que continuará dando trabalho, mesmo se aprovada a idade mínima para as aposentadorias".
Assim que aprovado o projeto, ainda que em sua versão minimalista, estender de imediato a reforma aos militares terá um efeito importante a se reverter em combustível para empurrar o Brasil até as eleições presidenciais de 2018. E caberá ao presidente que emergir das urnas a responsabilidade de ampliar a reforma previdenciária, inclusive, se desejar governar por oito anos. Sem essa reforma, o próximo presidente dura quatro anos no cargo - tempo estimado até a implosão das contas públicas por impossibilidade de pagar os aposentados.
A pressão temporal e financeira que deve recair sobre o presidente em 2019 é inédita. Não foi experimentada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou pela ex-presidente Dilma Rousseff. Nos governos petistas, a Previdência não estava no limiar do esgotamento. Agora está.
Contudo, até outubro de 2018 tem chão e condições internacionais a aproveitar. "O cenário externo não é configurado por um conjunto de bancos centrais que assume um discurso mais conservador do que o mercado esperava. Não há constrangimento para o Brasil. E devemos lembrar também que esses mesmos bancos centrais ameaçaram com aperto monetário no passado recente sem que a ameaça fosse realizada", avalia Tony Volpon, ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central e agora economista-chefe do UBS no Brasil.
Eventual transição para um governo Rodrigo Maia teria, internamente, as seguintes vantagens, enumera Sérgio Goldenstein, ex-chefe do Departamento de Operações de Mercado Aberto do BC e agora sócio e gestor da Flag Asset Management: "Redução da turbulência política, o que ajudaria na retomada da atividade e na queda do prêmio de risco dos ativos domésticos; alguma chance de aprovação de algo proposto para a Previdência, pois a base de Temer se enfraquece a cada dia; e menor chance de medidas populistas."
Nicola Tingas, economista-chefe da Acrefi, entende que não seria simples a conformação do poder com Rodrigo Maia na presidência, mas lembra não existir "prioridade maior que manter a economia funcionando ainda que minimamente". A classe política está totalmente desacreditada na sua opinião. "Para viabilizar uma agenda mínima será necessário uma costura política e a equipe econômica dá credibilidade no exterior. É conhecida e já acumulou vitórias em 12 meses. Temos um ano e meio de transição e o mais importante é manter a solidez da direção da política econômica. Há chance de termos um bom governo e podemos ingressar em novo ciclo de crescimento sustentável. É necessário manter a rota até que se saiba quem será o presidente em 2019", diz Tingas.
Angela Bittencourt, do Valor Econômico
Valor Econômico: No Brasil, economia de mercado é "caricatura", diz Eduardo Giannetti
SÃO PAULO - A operação Lava-Jato escancarou a deformação patrimonialista do Estado brasileiro, diz o economista e escritor Eduardo Giannetti, para quem o país tem a oportunidade de corrigir essa distorção. Segundo ele, o problema resulta da combinação de "um patronato político que usa as suas prerrogativas para se perpetuar no poder" e de "empresários de peso, do setor privado, que buscam desesperadamente atalhos de enriquecimento junto a governantes dispostos a negociar".
Para Giannetti, o país assiste, "ao vivo", uma aula de sociologia política sobre a deformação patrimonialista do Estado. Ela mostra que "a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido" - na frase de Sérgio Buarque de Hollanda, em "Raízes do Brasil" - e que a economia de mercado no Brasil é uma caricatura, segundo ele.
Na visão de Giannetti, o problema "chegou a um tal paroxismo que abre uma oportunidade de correção profunda". Mudar esse estado de coisas depende de uma reforma política e de uma reforma econômica que as eleições de 2018 "podem viabilizar, mas não garantem", avalia ele, que diz gostar da ideia de uma Constituinte exclusiva, focada na reforma política e em alterar o pacto federativo.
Giannetti antevê dois cenários possíveis ao falar das eleições de 2018, um de polarização e outro de pulverização. O de polarização depende fundamentalmente de o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ser candidato, afirma o economista. "Se isso ocorrer, vai surgir quase que inevitavelmente um outro polo que será o anti-Lula. Pode ser [João] Doria [prefeito de São Paulo], pode ser [Jair] Bolsonaro [deputado do PSC-RJ]".
Já no de pulverização, sem Lula, haveria "uma dispersão grande de candidatos", com mais políticos se animando a participar do pleito", porque o quadro tende a ficar mais aberto. "Acho que é melhor para o Brasil o cenário de pulverização, embora haja o problema de que ele também abre a porta para outsiders aventureiros." Caso se concretize o de polarização, Giannetti acredita que a eleição tende a ser "muito rancorosa, muito violenta, e muito sem diálogo".
Giannetti também fala sobre a sua relação com Marina Silva (Rede), a quem destaca pelo compromisso ético, pela visão de mundo e por ser um "exemplo de vida e de superação". Diz que não se afastou da ex-senadora, de quem foi conselheiro nas eleições de 2010 e 2014, mas considera que ela precisa decidir se é uma líder de movimento, como o americano Martin Luther King e o indiano Gandhi, ou uma candidata a chefe de Executivo.
Ele vê com bons olhos a possibilidade de Marina e o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa estarem juntos na eleição de 2018. Afirma ainda que, "numa condição de aconselhamento e estrategista", está "perfeitamente à disposição". A seguir, os principais trechos da entrevista com o autor de livros como "Trópicos Utópicos" e "O Valor do Amanhã".
Valor: Michel Temer tem lutado para seguir no cargo. Quais as consequências de sua permanência até o fim de 2018?
Eduardo Giannetti: Uma condição de governabilidade que vinha se restaurando foi altamente comprometida a partir de 17 de maio, quando veio a público a delação de Joesley Batista, da JBS. É um governo que vai usar a sua energia daqui para frente simplesmente para sobreviver, ainda mais com o procurador-geral da República fatiando a denúncia. Isso obrigará o governo a ficar muito tempo numa postura de garantir o próximo dia. Para mim, Temer perdeu a autoridade e a legitimidade para governar. O que ocorreu em termos de apuração é conclusivo. Ele está envolvido em práticas inadmissíveis juridicamente no exercício do cargo.
Valor: Qual o impacto da nova crise política sobre a economia?
Giannetti: O timing para a economia não poderia ter sido pior. No momento em que se desenhava finalmente um cenário consistente de recuperação, o processo foi interrompido, os horizontes se encurtaram dramaticamente e se perdeu a condição de governabilidade, que é fundamental para avançar nas reformas e na recuperação de um mínimo de tranquilidade para a economia voltar a ter confiança. Os indicadores de confiança já estão todos regredindo. As decisões de investimento que começavam a ser tomadas foram novamente suspensas e não há um horizonte decisório para ações que envolvam comprometimento de recursos por um prazo maior.
Valor: Há mais aspectos preocupantes?
Giannetti: Uma coisa grave para o Brasil institucionalmente é o modo como essa delação premiada veio a público. Foi muito atabalhoado. Isso vem se repetindo na história da Lava-Jato, e é um enorme desserviço para a justiça, porque cria muito ruído desnecessário. Uma delação dessa gravidade, quando vem a público, deve ocorrer de um modo organizado, institucional, e não na forma de vazamentos seletivos, com um timing que ninguém sabe o que definiu e por que canal ocorreu.
Valor: A perspectiva de um Temer fraco até 2018 significa que teremos uma reprise do fim do governo Sarney?
Giannetti: Há semelhanças com o fim do governo Sarney e com o período que precedeu o impeachment da Dilma, mas com uma diferença importante - e para melhor. Hoje nós temos uma equipe econômica excelente não apenas na Fazenda, mas também nas principais estatais e no Banco Central. Isso nos protege, eu acredito, de uma aventura populista. No curto prazo, o incentivo para um governo desesperado para sobreviver é usar o que tem para comprar apoio. É necessário monitorar se a equipe econômica se mantém ou se vai sofrer baixas relevantes, que seriam indicativas de que estamos degringolando para uma situação como a do governo Sarney.
Valor: Há chances de Temer aprovar a reforma da Previdência?
Giannetti: A cada dia que passa me parece menor a probabilidade. Se for aprovada, vai ser muito desidratada, e a possibilidade de isso ser realmente votado antes do começo da temporada eleitoral é cada vez mais restrita. O fatiamento da denúncia da Procuradoria-Geral da República estreita ainda mais a janela de oportunidade de uma votação. E, depois da farsa que foi o julgamento do TSE, em que Temer foi absolvido por excesso de provas, estou preparado para uma farsa talvez ainda pior na Câmara dos Deputados. O mais provável é Temer concluir o mandato.
Valor: Como o sr. vê a situação fiscal? Em que medida a trajetória da dívida pública preocupa?
Giannetti: A dívida bruta não é grande se você a olhar estaticamente. Ele está acima de 70% do PIB, não é alguma coisa que dispare todos os alarmes. Ela é muito alta para os padrões emergentes, mas, se você olhar no mundo, não é como a do Japão, como a da Itália. O problema é a taxa de crescimento, que é explosiva. Isso preocupa. E há um problema de Previdência gravíssimo que, se não for tratado a tempo, vai levar o país para a insolvência. O que ocorre no Rio pode ser apenas uma primeira manifestação, se nada for feito, de uma realidade para a nação.
Valor: Os Estados estão em situação delicada. O que levou a isso?
Giannetti: Há um esgotamento do ciclo de expansão fiscal que começou em 1988. Juros e Previdência são parte do problema, mas não acho que isso dê conta da piora da situação fiscal de lá para cá. Em números arredondados, o país tem uma carga tributária de 35% do PIB e um déficit nominal de 8% a 9% do PIB. Com isso, 43% a 44% do PIB são intermediados pelo setor público. Juros e Previdência, juntos, dão algo como 20% do PIB. Nós teríamos 23% a 24% do PIB livres de juros e Previdência para atividades fim no setor público. É a carga tributária bruta para um país de renda média, mas sociedade não vê a contrapartida. O investimento público caiu desde 1988 como proporção do PIB. Os nossos indicadores sociais são muito defasados, muito ruins. Há alguma coisa mais além de juros e Previdência. A minha conjectura é que é um problema de federalismo truncado.
Valor: O que é exatamente isso?
Giannetti: Nós tínhamos um modelo muito concentrado no governo central no regime militar. Em 1988, fez-se a opção pelo Estado federativo. Mas, em vez de transitarmos de um para o outro, acoplamos um ao outro. A sociedade, que carregava um Estado nas costas, passou a carregar dois Estados superpostos. Se tudo tivesse corrido bem de 1988 em diante, nós teríamos visto que, a um aumento do gasto líquido de Estados e municípios, teria correspondido uma queda do gasto líquido do governo central. Mas os três níveis de governo passaram a crescer. Brasília ficou grande demais. Defendo uma redução do tamanho do governo central e um encaminhamento de um genuíno Estado federativo, com maior poder principalmente para o governo local. Isso implica um redesenho da autoridade para tributar. O dinheiro vai a Brasília para voltar. É péssimo.
Valor: Há um grande descrédito em relação à política. Isso abre espaço para um candidato fora do sistema em 2018?
Giannetti: Antes de falar em candidatos, acho importante dizer que o Brasil nunca teve uma oportunidade como essa, que agora se oferece, de corrigir a deformação patrimonialista do Estado. O que é isso? É um patronato político, um estamento político, que usa as suas prerrogativas para se perpetuar no poder, e são empresários de peso, do setor privado, que buscam desesperadamente atalhos de enriquecimento junto a governantes dispostos a negociar. Isso não foi inventado da redemocratização para cá. É uma característica que acompanha a formação do Brasil como nação, mas se escancarou agora de um modo como nunca antes. Nós estamos tendo uma aula de sociologia política, ao vivo, sobre a deformação patrimonialista do Estado brasileiro. Tudo aquilo que Raymundo Faoro [autor de "Os Donos do Poder"] fala, tudo aquilo que Sérgio Buarque de Hollanda fala -"a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido". Está aí. A caricatura que é o funcionamento da economia de mercado no Brasil. Os grupos que dominam empresarialmente não são aqueles que obtêm o crescimento por meio da inovação, da oferta de bens e serviços cujo valor o mercado reconhece, a sociedade reconhece. Nós temos uma chance de quebrar o lamentável mal-entendido da democracia e de criar finalmente uma verdadeira economia de mercado, em que haja uma separação clara e definida entre o setor público e o privado.
Valor: Esses seria o grande legado da Lava-Jato?
Giannetti: A Lava-Jato não é condição suficiente, mas é condição necessária para isso, porque escancarou a deformação patrimonialista como nada na história do país tinha permitido. É por causa disso que eu tenho citado um verso de Fernando Pessoa - "Extraviamo-nos a tal ponto que devemos estar no bom caminho". A deformação patrimonialista chegou a um tal paroxismo que abre uma oportunidade de correção profunda.
Valor: Isso pode ocorrer na eleição de 2018?
Giannetti: Isso depende de uma reforma política e de uma reforma econômica também, que as eleições de 2018 podem viabilizar, mas não garantem.
Valor: O sr. não vê o risco de esse cenário político conturbado levar a eleição de uma aventureiro?
Giannetti: Acho que dois padrões podem ocorrer na eleição de 2018. Um é o de polarização e o outro, de pulverização. O primeiro depende fundamentalmente de Lula ser candidato. Se isso ocorrer, ele tem automaticamente um piso de 20%, 20% e poucos por cento do eleitorado, que o coloca no segundo turno. Nesse quadro, vai surgir quase que inevitavelmente um outro polo que será o anti-Lula. Pode ser Doria, pode ser Bolsonaro. E essa polarização dominará o quadro sucessório.
Valor: E no de pulverização?
Giannetti: Nesse cenário, Lula não será candidato. Nós vamos ter uma dispersão grande de candidatos e acho que muitos se animarão a participar do pleito, porque vai ficar mais aberto. Acho melhor para o Brasil o cenário de pulverização, embora haja o problema de que ele também abre a porta para outsiders aventureiros. Pode surgir alguém do nada, ou um candidato com ideias muito demagógicas e muito irresponsáveis, mas que obtenha do eleitorado algum tipo de adesão. No entanto, seria muito ruim para o Brasil um cenário de polarização radical, porque seria uma eleição muito rancorosa, muito violenta e muito sem diálogo. Para a democracia brasileira, é melhor Lula não ser candidato.
Valor: Há elementos suficientes para que Lula não seja candidato?
Giannetti: É uma decisão que cabe à Justiça brasileira. Mas, pensando numa eleição que nos permita um bom debate e um bom amadurecimento do que precisa ser feito, eu acredito que o cenário de pulverização é mais arejado. Tem mais oxigênio para o diálogo, para o debate e para uma campanha construtiva. Uma campanha altamente polarizada, depois de todo esse processo, vai ser corrosiva.
Valor: O sr. foi conselheiro de Marina Silva em 2010 e em 2014. Ela pode ser uma candidata fora do sistema e que ao mesmo tempo agrade empresários e o sistema financeiro, com uma mensagem reformista?
Giannetti: Marina é uma líder com características raras em qualquer lugar do mundo. De compromisso ético, de visão ampla de mundo, de exemplo de vida e superação. Mas precisa decidir se é uma líder de movimento ou é uma candidata a chefe do Executivo.
Valor: Qual é a diferença?
Giannetti: Líder de movimento é alguém que abraça uma causa e tem fundamentalmente um papel de mobilização e trabalha muito num plano simbólico. Estou falando aqui de Martin Luther King, de Gandhi. É um caminho de mobilização de consciências. Outra coisa é ser candidato a chefe do Executivo, que precisa ter definição em relação a temas muitas vezes espinhosos e que vão desagradar a muitos, porque inevitavelmente haverá ganhadores e perdedores. Tem que ter uma equipe sólida, técnica, que dê suporte ao projeto. E Marina, na minha avaliação, reluta muito entre essas duas situações. Uma figura do século XX inspiradora é Nelson Mandela, que transitou de uma liderança de movimento para uma chefia de Estado. Uma das coisas muito interessantes que Mandela fez é o seguinte. Ao se eleger presidente da África do Sul, manteve no BC a mesma equipe da época do apartheid, porque não se brinca com moeda.
Valor: O sr. está afastado da Marina?
Giannetti: Não. Eu não sou filiado ao partido [Rede]. Sempre que eu sou demandado, eu ofereço o melhor que eu tenho. E vejo como uma promessa de renovação desse campo a possibilidade de Joaquim Barbosa e Marina estarem juntos na campanha em 2018. Os dois têm duas características comuns muito poderosas para a imaginação brasileira e para a renovação da nossa política. São dois brasileiros com compromisso ético inabalável, que não estão contaminados pela velha política e que, vindos de situações de maior adversidade, conquistaram e abriram trajetórias por meio da educação.
Valor: Mas eles teriam a habilidade política necessária para governar um país que atravessa uma crise como a atual?
Giannetti: Tem que construir, tem que ter um bom time técnico, sólido, tem que ter articuladores políticos competentes, que são fundamentais num projeto desse tipo. Mas eles têm muito a oferecer como exemplo para a sociedade brasileira daquilo que nós mais precisamos ter, que é a centralidade da educação e do conhecimento na construção do nosso futuro.
Valor: O sr. colaboraria de novo com Marina em 2018?
Giannetti: Eu tenho os meus limites e as minhas possibilidades. Eu jamais assumiria um cargo executivo, porque não tenho perfil para isso. Eu não sou uma pessoa que sabe trabalhar em equipe, que gosta de dar ordens, que cobra resultados.
Valor: Mas participou das duas campanhas de Marina.
Giannetti: Numa condição de aconselhamento e estrategista, colaborando num debate, eu estou perfeitamente à disposição, se for o caso. Não sei se é o mesmo papel das eleições anteriores, mas, para discutir o futuro do Brasil numa visão generosa e mais focada em redução de desigualdade e construção de uma prosperidade sustentável, eu estou disposto a contribuir com o que eu puder.
Valor: Como sr. vê João Doria como candidato a presidente?
Giannetti: Acho que é muito cedo para avaliar a sua aptidão, inclusive como gestor. Acho prematuro. Seria precipitado um voo dessa altura neste momento.
Valor: Bolsonaro tem avançado nas pesquisas. Ele pode ser eleito?
Giannetti: Acho muito remota a viabilidade eleitoral de Bolsonaro, mas ao mesmo tempo eu fico extremamente preocupado com as intenções de voto que tem obtido. É o desencanto radical com a política. Ele galvaniza toda a raiva de alguns segmentos que estão absolutamente desgostosos com os caminhos que as coisas tomaram no Brasil. Mas certamente não é por aí que nós vamos melhorar. Um dos cenários mais perturbadores, que me deixaria profundamente melancólico e deprimido, seria Lula e Bolsonaro no segundo turno.
Valor: É possível ser otimista em relação a 2018?
Giannetti: O meu otimismo é em relação ao autoconhecimento pelo qual o Brasil passa. Tínhamos um câncer que nos corroía as entranhas e que a Lava-Jato explicitou e escancarou. A deformação patrimonialista do Estado, o mal-entendido que é a nossa democracia e a caricatura que é a nossa economia de mercado. É fundamental hoje para o Brasil o fato de que esse câncer aflorou, para nosso terrível desgosto e perplexidade, mas ele se tornou aberto. A grande pergunta é o que nós vamos fazer diante dessa realidade.
Valor: Isso cabe ao próximo presidente?
Giannetti: Cabe à sociedade. A campanha vai inevitavelmente discutir como lidar com essa realidade que nos ofende profundamente e na qual nós não nos reconhecemos. Há um problema muito sério de relação promíscua entre o público e o privado. Vemos a ruína de um sistema de poder. Nós teremos que refundar a democracia no Brasil. Eu vejo com bons olhos a possibilidade de uma Constituinte restrita e exclusiva.
Valor: Nos moldes do que o jurista Modesto Carvalhosa propõe?
Giannetti: E que outros já propuseram, como Marina em 2010. A regra de ouro é a cláusula de exclusão. Quem participar não se elege para cargo público por dez anos. O fundamental é separar o processo constitucional do jogo político-partidário, o que não foi feito em 1988.
Valor: A Constituinte deveria tratar apenas da reforma política?
Giannetti: Trataria da reforma política e do pacto federativo, abordando a reforma tributária, a autoridade para tributar no Brasil. O sistema tributário é quase inexplícavel na sua labiríntica complexidade e irracionalidade.
Por Sergio Lamucci , do Valor Econômico
Luiz Carlos Mendonça de Barros: A globalização sob ataque
A eleição inesperada de Donald Trump reforçou a percepção de que vivemos um forte sentimento de questionamento das condições econômicas e sociais criadas pelo fenômeno da globalização. Uma das causas mais importantes do inesperado sucesso de Trump foi o apoio que sua mensagem de volta a um passado glorioso para a América obteve na sociedade. Ora, volta ao passado glorioso implica naturalmente reconhecer que por trás do voto de protesto exercitado por 40% dos americanos está o repúdio ao fenômeno da globalização econômica e tudo que ela representa para uma parcela importante da classe trabalhadora, que vem se marginalizando, na última década principalmente.
Esta conclusão sobre o sucesso de Trump na última eleição ainda representa uma posição minoritária entre os analistas, mas faz todo o sentido para mim. Por isto é preciso aprofundar a reflexão sobre este fenômeno pois, se ele de fato ocorreu, estamos diante de um evento da maior importância para o futuro da economia mundial. Afinal, todo o arranjo institucional nas relações comerciais, entre países e blocos de países, tem como objetivo fortalecer e intensificar sua integração econômica. Ora, se uma parcela importante da população – com força suficiente para eleger um presidente da República – se posiciona contra este movimento então temos um grande problema pela frente.
Se a vitória de Trump foi uma grande surpresa para os mercados financeiros e analistas políticos, podemos dizer que já havia evidências de que este movimento antiglobalização vinha ganhando força na população das economias mais avançadas. O fortalecimento do populismo de direita dos últimos anos na Europa já apresentava traços concretos da revolta de uma classe operária que se marginalizava na proporção que parcela importante da produção industrial se movia, depois da queda do Muro de Berlim, para os países comunistas do Leste.
O único país a enfrentar esta questão com sucesso foi Alemanha, com a combinação de uma reforma trabalhista corajosa e a concentração de sua atividade industrial no segmento de maior valor agregado de produção. Os demais países, principalmente França, Reino Unido e Itália, ficaram imobilizados e passaram a sofrer de forma intensa a desindustrialização por perda de competitividade.
Mais recentemente, com a vitória do Brexit no plebiscito no Reino Unido, o vigor dos movimentos nacionalistas contra a globalização ficou evidente para todos. O “Divided” entre as regiões que mais sofrem com a desindustrialização e as que vivem o lado positivo da globalização deixou marcas claras nas estatísticas eleitorais. Londres de um lado, com mais de 70% de repúdio ao Brexit, em choque com a população das antigas regiões industriais clamando pela volta da antiga Inglaterra industrial do passado. Mesmo o sentimento anti-imigração nestas regiões tem uma motivação econômica, pois as massas de pessoas que sofrem com a fragilidade do emprego e da renda pessoal associam – de forma equivocada – aos trabalhadores de fora do país parcela importante de seu sofrimento.
As primeiras reações dos analistas sobre qual será o desenho operacional do governo Trump têm seguido o mesmo padrão de situações históricas semelhantes a esta, ou seja, racionalizar o comportamento do novo presidente no exercício de seu mandato. Segundo estes, as forças representativas do Partido Republicano, inclusive a parcela formada pelas grandes empresas multinacionais americanas, funcionarão como um poder moderador suficientemente forte para transformar o leão vigoroso que foi eleito em um presidente razoável e tradicional.
Com isto a parte de sua agenda mais revolucionária, inclusive em relação à globalização, seria domada e transformada em medidas mais conservadoras em relação ao status quo. O Nafta seria submetido a uma operação plástica de fachada, mas as regras da busca racional de custos de produção mais reduzidos, em países emergentes como o México e Europa do Leste, serão mantidas.
Particularmente não penso que o governo Trump se desenvolverá desta forma. Nós, brasileiros, conhecemos bem o caso de Lula, que se enquadra com perfeição no perfil de um líder populista e que pode ser usado como uma referência interessante para olharmos para Trump. Lula nos ensinou que os líderes populistas são sempre superficiais em suas análises, pois precisam de conceitos simples para ganhar apoio de seus seguidores. Como contrapartida, a maioria de suas ações não passa pelo crivo de uma análise profunda de consistência no tempo para avaliar os efeitos de longo prazo de suas decisões, sobre a economia principalmente.
Outra característica comum é que, ao longo do tempo, os líderes populistas sempre acabam por agir de acordo com suas ideias básicas de campanha. Pode acontecer que, nos momentos iniciais de seu governo, ocorra um período de acomodação em função da reação dos mercados e das lideranças políticas tradicionais. Este papel coube ao ministro Palocci nos primeiros anos de Lula e algo semelhante deve ocorrer agora com o governo Trump.
Mas ao longo de seu mandato, principalmente quando o apoio popular inicial se esgotar, o líder populista volta sempre à sua agenda até o amargo fim. Não me parece que com Trump vá ser diferente, o que me faz muito pessimista com seu governo. (Valor Econômico – 21/11/2016)
Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações. Escreve mensalmente às segundas.
Fonte: pps.org.br
Marcos Nobre: A nova geração da política
Terminada uma eleição, a primeira pergunta que se faz é pelas chances que teriam figuras já conhecidas para as eleições seguintes. As chances de Geraldo Alckmin, Aécio Neves, Lula, Marina Silva, Ciro Gomes, Fernando Haddad e por aí vai. O problema desse tipo de foco é o imediatismo, limitado à próxima eleição. É um raciocínio que pensa que política é apenas eleição.
Tentar entender política envolve saber distinguir movimentos políticos de lógica partidária e de estratégia eleitoral. Quadros políticos são construídos ao longo de décadas. Não surgem nem desaparecem apenas em momentos de eleição. Nem são formados apenas dentro de partidos. Suas trajetórias de vida determinam o que são e onde estão para além da política oficial. Temos de nos perguntar como se politizaram e como tomaram a decisão por um caminho e não por outro.
É importante não reduzir a pergunta pela nova geração da política à pergunta pela geração nova da política. Para conseguir pensar o que será a política nos próximos 20 anos. E o que se quer que se ela seja. Para tentar sair da armadilha imediatista e pensar adiante, vale lembrar, por exemplo, onde estavam figuras da nova geração 20 anos atrás.
Nestas eleições, há casos clássicos de uma nova geração com formação partidária ortodoxa, como o do prefeito reeleito de Salvador, ACM Neto, do DEM. Nascido em 1979, acompanhou desde cedo um político tradicional, o avô, ACM, e conquistou seu primeiro mandato de deputado federal aos 23 anos. Mas está longe de ser paradigmático de sua geração. Basta olhar para outras figuras políticas que nasceram entre 1980 e 1984.
O procurador da República no Paraná, Deltan Dallagnol, nasceu em 1980 e formou-se em direito em 2001 na UFPR. Seu mote sobre a transformação do país pode ser enunciado assim: “Não é o envolvimento político-partidário, mas o exercício de cidadania”. Provavelmente foi sua avaliação negativa do cenário político-partidário no momento de sua decisão profissional o que o fez optar pela carreira de procurador em lugar de um engajamento na política oficial.
Liderança do MTST, Guilherme Boulos tem hoje 34 anos e aos 17 já tinha assinado uma carta de rompimento com o PCB. Como será que, durante seu curso de filosofia na USP, decidiu que o caminho partidário ou a militância em um movimento social tradicional não conseguiriam traduzir mais suas aspirações políticas? No momento em que decidiu participar de sua primeira ocupação, o PT e os movimentos sociais estavam voltados para a eleição de 2002. Não parece que era essa a sua ideia do que significa fazer política.
Áurea Carolina nasceu em 1984. Sua atuação no coletivo “Hip Hop Chama” e no movimento feminista, seu engajamento nas lutas do movimento negro nas periferias se traduziu em 2016 na maior votação para a Câmara Municipal de Belo Horizonte. Elegeu-se pelo Psol, mas seu mandato está ligado à iniciativa “Muitas | Cidade que queremos”, semelhante à que foi realizada em São Paulo pela “Bancada Ativista”.
A pergunta que se pode fazer agora é: por que recuar 20 anos se há caras da nova geração que têm 20 anos de idade, como o vereador eleito Fernando Holiday, em São Paulo? Também o caso de Holiday vai além do horizonte partidário. Negro, pobre e primeiro vereador assumidamente gay, elegeu-se pelo DEM, mas sua atuação se pauta pelo movimento do qual é uma das lideranças, o MBL.
Em Junho de 2013, Holiday era secundarista. Se optou por se lançar na política oficial desde já, não foi esse o caminho escolhido por muitos da mesma idade que saíram às ruas três anos atrás. O exemplo de Holiday leva à ideia simples de que pensar o futuro é pensar o que está acontecendo agora nas escolas ocupadas em quase metade dos Estados. Da natureza dessas iniciativas e das respostas que serão dadas a elas sairá muito do Brasil de 2036.
Para quem quer entender essa “primavera secundarista”, é indispensável ler “Escolas de luta: o movimento dos estudantes contra a ‘reorganização’ escolar”, de Antonia M. Campos, Jonas Medeiros e Márcio M. Ribeiro (Veneta). É um relato generoso tanto com quem lê o livro como com quem ocupou e continua a ocupar as escolas. Reconstrói, com paciência e detalhe, o processo de “reorganização escolar” desencadeado pelo governo Alckmin em São Paulo em 2015, reunindo informações que se encontram espalhadas em fontes diversas e dispersas.
Mas não existe neutralidade quando se trata de recortar uma exuberância de dados, uma multiplicidade de vozes. Cada escola ocupada tem sua história, sua linguagem e seus temas. E nem os autores pretendem neutralidade. Se não há tomada de posição nem preferências por uma ou outra ação, é explícita sua adesão ao sentido geral das movimentações secundaristas como ações de resistência e de auto-organização.
A peculiaridade do livro é fazer com que esse conjunto de ações surja como um movimento, algo que talvez não seja claro nem para quem faz nem para quem está tentando entender o que está sendo feito. A dificuldade que o livro se colocou é dar esse caráter de movimento sem confundi-lo com homogeneidade, muito menos com partidos e com a política oficial.
Não por acaso, em lugar de “movimento”, fala-se muito desde 2011 no mundo todo em “primaveras”: árabe, feminista, secundarista. Um movimento como o de “secundas” não é um movimento no sentido que se conheceu até antes dos anos 2010. Parece que o próprio conceito de “movimento” e de “movimento social” ficou obsoleto. Nessa lógica, primavera é uma estação de germinação. As formas anteriores de organização ficaram como que com o inverno da política.
Ninguém mais tem dúvida de que o cenário partidário e a forma atual de organização do sistema político caducaram. O problema é que muitos parecem continuar a olhar apenas para a política oficial, com a expectativa de que ela se transforme de dentro e por si mesma. Essa miopia não permite ver adiante. Para olhar para frente, é preciso olhar para trás. E para um presente que não é só o da política institucionalizada. Principalmente para quem ainda acha que partidos são instituições fundamentais da institucionalização da política. (Valor Econômico – 31/10/2016)
Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap. Escreve às segundas-feiras
E-mail: marcosnobre.valoreconomico@gmail.com
Fonte: http://www.pps.org.br/2016/10/31/marcos-nobre-a-nova-geracao-da-politica/
David Kupfer: A indústria ainda é aquela
A pesada queda sofrida pelo nível de atividade industrial em agosto último, que foi 3,8% menor do que o do mês anterior, virtualmente anulou toda a recuperação que a indústria havia acumulado em 2016. Esse resultado tão negativo, surpreendente somente para as Polianas de plantão, é revestido de importante caráter didático. O problema econômico brasileiro está longe de ser eminentemente expectacional.
Claro que alterações no estado de confiança dos tomadores de decisão de produção e investimento são variáveis de grande relevância na determinação das perspectivas da economia. Mas o Brasil de hoje está muito menos parecido com um mar de oportunidades enevoado por um quadro expectacional cinzento do que com um deserto de novos e bons projetos provocado pelas toneladas de areia que graves distorções estruturais estão colocando nos motores da economia.
Se é correto que a estagnação da economia brasileira tem origem primariamente estrutural, a solução não estará ao alcance de medidas que simplesmente tenham o dom de convencer investidores reticentes a reencontrarem o espírito animal perdido. Terá de vir de políticas que proporcionem a retirada das amarras ao processo de investimento, reabrindo um horizonte de atratividade econômica para as empresas. Daí a importância crucial de se entender a dinâmica (ou a falta de) recente da formação de capital na economia brasileira, visando identificar onde estão as principais travas.
Sob a ótica da demanda, os números que descrevem a contribuição dos seus componentes para a variação do Produto Interno Bruto durante o último ciclo de crescimento (2004-2010) mostram com clareza o papel fortemente dinamizador exercido pela formação de capital fixo.
Com a exceção de 2009, ápice da crise financeira global, a contribuição desse componente se elevou ano após ano no período até atingir 3,4% em 2010. Isso correspondeu a quase a metade da variação do PIB nesse ano, que foi de 7,5%, e quase igualou a contribuição dada pelo consumo das famílias, que foi de 3,9%, mesmo tendo esse último um peso no produto três vezes maior. Esse dado é importante para desmistificar uma ideia muito difundida, embora muito pouco verdadeira, de que a economia brasileira teria experimentado um puro ciclo de consumo nos anos de expansão da década passada.
Com a chegada de 2011, as tensões e dilemas que vinham marcando o processo de retomada econômica no Brasil começaram a aflorar. No plano internacional, o mergulho da Eurozona sinalizava que a recuperação da economia mundial não viria como resultado das medidas monetárias tomadas pelos bancos centrais líderes. No Brasil, o sucesso das políticas anticíclicas adotadas após a crise de 2008 levou a um paradoxo fundamental: como prosseguir com essas políticas anticíclicas na arquitetura de um modelo de estabilização tão procíclico como o do Tripé Macroeconômico adotado pelo país. Evidentemente, a corda iria arrebentar para algum lado. E arrebentou para o lado da robustez macroeconômica, fazendo do investimento o grande perdedor de longo prazo.
Sob a ótica da oferta, o ciclo anterior de expansão (2004-2010) ocorreu em meio a um quadro muito favorável de preços internacionais dos bens commodities nos quais a economia brasileira é relativamente especializada, que pode ser atribuído, de forma simplificada, ao chamado efeito China que preponderou nesses anos. Mas a expansão dos serviços, especialmente comércio, transportes, e serviços prestados às famílias, também constituiu uma fonte dinâmica tão ou mais relevante, como consequência do efeito renda que se estabeleceu no mercado interno.
A contribuição da indústria manufatureira (não-commodities) foi minimizada pelo “vazamento” para fora decretado pela perda de competitividade relativa trazida pelo período muito longo de apreciação cambial conjugado à estagnação da produtividade e forte ampliação dos custos sistêmicos da produção.
Com o esgotamento do ciclo anterior que se dá a partir de 2011 teve lugar uma reviravolta. Ao invés de premiar, os mercados internacionais de commodities passaram a penalizar a economia brasileira enquanto o dinamismo dos serviços, totalmente dependente que era do efeito renda, literalmente evaporou. Projeções que se possam fazer para frente indicam ser inevitável que, sem o impulso da demanda, os preços dos serviços acabem cedendo como, aliás, a despeito das defasagens, vem sendo gradualmente captado pelos índices de inflação. Mais cedo ou mais tarde, essa trajetória de queda de preços irá disparar um intenso processo de aumento da produtividade dos serviços, que implicará novas tensões sobre a economia brasileira.
A saída da crise, quando vier, vai envolver, necessariamente, a viabilização de novos blocos de investimento. E onde estarão essas oportunidades? Não é preciso ter uma bola de cristal para responder que uma parcela importante virá da infraestrutura. Mas há um outro bloco de investimentos, talvez menos visível, que poderá vir exatamente do processo de modernização dos serviços acima discutido. Ambos acarretam um crescimento da importância da indústria no fornecimento de insumos intermediários e bens de capital mais sofisticados que serão necessários.
Daí decorre uma conclusão cristalina. Dificilmente a retomada virá sem que se recomponha o papel indutor da indústria como motor do crescimento. Mas atenção: será uma nova indústria. E é exatamente nas políticas voltadas para a promoção dessa nova indústria que está a saída. (Valor Econômico – 10/10/2016)
David Kupfer é diretor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Grupo de Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ). Escreve mensalmente às segundas-feiras. E-mail: gic@ie.ufrj.br.
Fonte: pps.org.br