Valor Econômico

Claudia Safatle: A reforma da Previdência ou o caos

"É cortar, cortar e cortar", dizem fontes do novo governo

Aprovar a reforma da Previdência no primeiro semestre de 2019 é a prioridade do presidente eleito, Jair Bolsonaro. A importância desse prazo pode ser detectada no comentário de um dos economistas da transição: "Ou aprovamos a reforma da Previdência até junho ou será o caos", disse. Por mais que se possa considerar essa afirmação um exagero de retórica sustentado na suposição de que esse será o período da lua de mel do mercado com o novo governo, o fato é que os agentes econômicos internos e externos estão à espera da reforma. Sua aprovação será um sinal de determinação e sustentação política do governo decisivo para a expansão dos investimentos no país.

Sem novos investimentos, a recuperação da economia terá vida curta, minando a confiança e o emprego. Este seria o início de um processo de deterioração das expectativas que fatalmente enfraqueceria o governo de Bolsonaro.

Técnicos da transição foram despachados para o Rio de Janeiro, na semana passada, para se inteirar da proposta de reforma elaborada por especialistas em Previdência Social sob a coordenação de Arminio Fraga. O ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos enviou ao futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, um projeto completo e inovador de previdência que está sendo avaliado, juntamente com algumas outras propostas. Os emissários de Guedes conversaram com Paulo Tafner, um dos autores da proposta.

À reforma da Previdência se seguem dois outros objetivos que compõem o plano de voo para a economia: a redução da conta de juros com o uso das receitas de privatizações para abatimento da dívida do setor público; e a reforma do Estado, centrada na busca de um modelo menor e mais eficiente.

Por onde se olha, há sobreposições de estruturas e tarefas, diagnosticam os assessores recém-chegados na transição. Um pequeno detalhe confirma essa visão mais geral. Para tratar das empresas estatais há a secretaria das estatais do Ministério do Planejamento, uma área que também cuida do tema no Ministério da Fazenda e o PPI (Programa de Parcerias de Investimentos), ligado à Presidência da República, com um conselho e uma secretaria.

Ao reformular as estruturas do Estado, o governo poderá economizar de 20% a 30% dos gastos com cargos de confiança ou comissionados. Atualmente são mais de 23 mil cargos que recebem DAS (Diretoria e Assessoramento Superiores) ou funções comissionadas do Poder Executivo.

Para consertar o forte desequilíbrio fiscal, é crucial investir na reforma da Previdência, hoje o maior gasto do Orçamento. São R$ 591,45 bilhões em pagamento de benefícios, que devem gerar déficit de R$ 201,6 bilhões este ano só no regime geral (RGPS), segundo dados oficiais divulgados ontem pelo Ministério do Planejamento. Considerando a previdência do servidor público, esse déficit sobe para a casa dos R$ 300 bilhões.

Em seguida vem a conta de juros da dívida consolidada do setor público e a folha de pessoal da União. Nos últimos 12 meses até outubro, os juros nominais somaram R$ 401 bilhões (5,9 % do PIB) e a folha de salários consumiu cerca de R$ 300,6 bilhões (4,4% do PIB).

O déficit nominal, que inclui a conta de juros, alcançou R$ 488,8 bilhões (7,2% do PIB).

Os três gastos - benefícios previdenciários, juros e salários - estão na mira da nova gestão. "É cortar, cortar e cortar", enfatizou um assessor do futuro ministro da Economia, que adiantou: "Não dá mais para fazer remendos. Agora temos que ir na raiz dos problemas".

O drama dos "rombos" nas contas públicas é que a dívida bruta - compreendida por governo federal, INSS e governos estaduais e municipais - superou os R$ 5,24 trilhões e cresce a uma trajetória explosiva. Atualmente, a dívida equivale a 77,2% do PIB. Cabe ao novo governo interromper o crescimento e reduzir o endividamento como proporção do PIB para evitar o desastre de um "calote" futuro.

O Ministério da Economia está sendo montado segundo a perspectiva da reforma do Estado. Ele será resultado da fusão de três ministérios (Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio). Deverá comportar de quatro a seis secretarias, e isso eliminará as estruturas triplicadas. Ampliará substancialmente o raio de poder do futuro ministro Paulo Guedes, que terá sob a sua área de domínio todas as receitas e despesas da União.

O que norteia esse trabalho é, segundo assessores da área de gestão, construir de forma incremental os pilares do novo sistema econômico baseado nos princípios liberais. A ideia é trabalhar com o conceito de "equilíbrio geral", no qual os processos vão sendo construídos de forma a um ajudar na sustentação do outro.
Em outras palavras, a reforma da Previdência se combina com um processo de privatização que se complementa com as reformas administrativa e tributária, que reduz o peso do Estado sobre as empresas e as famílias. E essas etapas vão se alimentando de um crescimento mais firme da economia.

Os governos tentaram de tudo após a democratização para colocar o Brasil nos trilhos do crescimento econômico sustentável. Avançou em um período, mas regrediu em outro. Buscou-se todos os tipos de atalho com intervenções exacerbadas. A carga tributária subiu a patamares asfixiantes - de 26,7% do PIB em 1995 para mais de 32% do PIB atualmente - para dar conta do acelerado crescimento do gasto público. Não foi suficiente e, então, recorreu-se ao aumento do endividamento para financiar as despesas, deixando a dívida chegar a níveis perigosos.

Resta tentar um caminho ainda não explorado: cortar a despesa pública para que ela seja financiada por uma carga tributária compatível com o resto do mundo, reduzir o tamanho do Estado e abrir a economia.

A equipe econômica do presidente eleito avalia que "pela primeira vez na história o país terá o governo com uma agenda claramente liberal". Até então, medidas de cunho liberal foram adotadas de forma pontual, mais por necessidade do que por convicção. Uma dúvida é se e por quanto tempo Bolsonaro comungará das mesmas ideias de Paulo Guedes.


Valor: "Foi uma campanha despolitizada, de argumentos rasos e simplistas", diz Lula Guimarães

"Foram 4 horas e 8 minutos de exposição sobre a facada, só em telejornais, até o final do primeiro turno, com vitimização"

Por Malu Delgado, do Valor Econômico

SÃO PAULO - Campanhas eleitorais costumam ser uma mistura de circo com guerrilha, brinca o jornalista Luiz Flávio Guimarães, conhecido no marketing político-eleitoral como Lula Guimarães. Decantada a pressão que enfrentou na disputa presidencial, Lula Guimarães falou ao Valor sobre consequências que a eleição do WhatsApp pode gerar para o marketing político.

Segundo o especialista, que conduziu a campanha presidencial de Geraldo Alckmin (PSDB), a campanha na televisão não pode ser considerada desprezível. Ele alerta que cada candidato tem um perfil, e o de Bolsonaro casa como luva à linguagem das redes. "Essa exaustão de desgaste da classe política foi o fermento para crescer o bolo de conservadorismo no qual o Bolsonaro embarcou."

Ele realça que após o atentado do qual foi vítima Bolsonaro ganhou ampla exposição em entrevistas de televisão. "Nós calculamos 4 horas e 8 minutos de exposição sobre a facada, se juntássemos só os telejornais nacionais, até o final do primeiro turno. É uma exposição na TV de alta qualidade, porque é jornalismo, e não propaganda. E com vitimização", disse.

Guimarães lamenta o nível de despolitização desta campanha, que considerou "rasa". Para ele, "a sociedade, a política e os tribunais" precisam responsabilizar os autores da disseminação de mensagens obscuras e feitas no campo da ilegalidade. Neste sentido, para o marqueteiro, o WhatsApp não necessariamente é ferramenta de campanha eleitoral, mas sim de guerrilha.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Essa eleição presidencial marcou um novo paradigma sobre a influência da TV, por seu diagnóstico? Isso lhe surpreendeu, como profissional de marketing político?
Guimarães: Não acho que a TV seja desprezível, sinceramente. Se o Bolsonaro tivesse tido três minutos [na TV], seria eleito no primeiro turno. Não tenho dúvida. Assim como no caso do PT e do Haddad a televisão se mostrou muito eficaz para transferência de votos do Lula, em pouquíssimo tempo. O que vejo, também, é que alguns candidatos são adequados a alguns meios. O Bolsonaro é um candidato muito adequado para o tipo de comunicação que as pessoas consomem. Bolsonaro é espontâneo, polêmico. Esses dois elementos alimentam muito a rede social. Recebi uma pesquisa, um ano antes da campanha, mostrando que existia, na rede, um perfil de compartilhadores. Esse perfil aparece muito mais entre os radicais, tanto de direita, quanto de esquerda. Um ano antes da eleição já era perceptível um engajamento, bastante forte, dos apoiadores do Bolsonaro, muito mais ativos que os eleitores que se posicionam pelo centro.

Valor: E como analisar o poder da TV em paralelo ao das redes?
Guimarães: Apesar do reconhecimento de que Bolsonaro utilizou as redes de maneira muito intensa e eficaz, acho que é preciso este olhar equilibrado. A televisão, nas eleições estaduais, manteve sua forte influência. Bolsonaro é muito adequado para as redes sociais. Já Alckmin é formal, e talvez a informalidade seja a característica mais consumida nas redes. Outra coisa que é preciso destacar, que é um registro polêmico, mas verdadeiro: Bolsonaro tem um crescimento muito espontâneo nas redes sociais, no WhatsApp e no Facebook, mas não dá para dimensionarmos o quanto disso foi bancado, patrocinado por alguém.

Valor: Além do custo financeiro, a disseminação das mensagens parecia seguir padrão de conteúdo e formato, com trabalho profissional.
Guimarães: Sim, exato. Custa dinheiro e organização. As mensagens tinham lógica de pauta, conteúdo e direcionamento. Por mais espontâneo que seja, quem faz isso é profissional.

Valor: Depois da execração dos marqueteiros, agora é a vez do marketing político obscuro das redes?
Guimarães: Evidentemente as campanhas no Brasil tiveram muito caixa dois, muitos candidatos que se elegeram com isso. Mas muitos trabalharam com orçamento baixo, não ficaram milionários e fizeram um trabalho correto. Os marqueteiros continuam tendo papel importantíssimo. Tivemos eleições que foram vencidas por marqueteiros super competentes. No Rio Grande do Sul, o Eduardo Leite (PSDB) teve uma campanha feita pelo Fábio Bernardi, que é excelente. A campanha no Pará, do Hélder Barbalho (MDB), foi feita pelo Ricardo Amado, responsável pela vitória dele. Há uma série de profissionais que foram responsáveis por vitórias políticas nos Estados, muito bem conduzidas.

Valor: Essa foi a eleição do WhatsApp no Brasil?
Guimarães: O alerta mais importante para a sociedade, para a política e para os tribunais é procurar responsabilizar o autor de determinado tipo de comunicação e de mensagem. Em campanhas sempre houve a mensagem apócrifa, o jornal apócrifo, o lambe-lambe, os 'matraqueiros', pessoas colocadas em ônibus e locais públicos para disseminar mensagens falsas. Isso sempre existiu, mas não com o poder, a velocidade e a abrangência do WhatsApp. A ferramenta é muito mais um elemento de guerrilha do que de campanha. Alguns candidatos investiram muito nesta guerrilha. Como ela é ilegal, do ponto de vista da lei eleitoral, algumas candidaturas não investiram nisso.

Valor: Mas em que medida os profissionais do marketing foram surpreendidos por esta ampla rede de apoio de Bolsonaro?
Guimarães: Há dois fenômenos que temos que considerar fortemente para estudo: os protestos de 2013 e a greve de caminhoneiros [em maio deste ano], que parou o País de maneira acachapante. Esses dois movimentos foram caracterizados pela mobilização rápida via WhatsApp. Até que ponto a sociedade precisa encontrar mecanismos para se prevenir destas ferramentas, que são libertárias, mas de fakenews, e de uma atuação organizada que pode dar mais margem a radicalismos? O Brasil foi o campeão do uso do Orkut. Está em segundo lugar mundial de usuários do Facebook. Temos uma sociedade muito ávida por compartilhamentos, pelo uso destas redes sociais e interação. Aí não dá para saber se isso é o responsável pelo Bolsonaro ou o Bolsonaro foi o responsável por isso na eleição.

Valor: Como foi administrar todas as cobranças externas, do partido e do candidato para que a TV desse resultado?
Guimarães: Nosso posicionamento foi por procurar, logo de cara, ampliar os eleitores do Alckmin no campo azul, que já tinham sido eleitores do PSDB e migraram para o Bolsonaro. Na primeira semana de campanha, aumentamos muito a rejeição do Bolsonaro e crescer nossos pontos. A facada interrompe esse processo. Aí há uma inversão completa. O tempo de televisão que o Bolsonaro passa a ter nas matérias de jornalismo, além da isonomia que as TVs dão, passa a ser o maior de todos os candidatos. Nós calculamos 4 horas e 8 minutos de exposição se juntássemos só os telejornais nacionais, da facada até o final do primeiro turno. É uma exposição na TV de alta qualidade, porque é jornalismo, e não propaganda. E com vitimização.

Valor: A estratégia de desconstrução de Bolsonaro teve que se revista rapidamente.
Guimarães: Esse foi o maior desafio da campanha, como continuar fazendo a desconstrução do Bolsonaro sendo que ele tinha sido vítima de uma facada. Nossa opção naquele momento foi reforçar os atributos positivos do Alckmin em comparação aos demais. Nossa dificuldade é que o Alckmin representava, naquele momento, o establishment, seja por ter sido governador por 4 vezes, seja por ter apoio do Centrão.

Valor: O centrão acabou sendo um tiro no pé?
Guimarães: Não sei, talvez se não tivesse o Centrão o resultado tivesse sido ainda pior.

Valor: Essa campanha trouxe esse debate sobre comunismo. Como enxerga isso sob o ponto de vista do marketing?
Guimarães: Essa campanha trouxe uma despolitização. Ela deixou de debater os temas nacionais mais importantes e passou a ter argumentos muito rasos, e apoiados pelo excesso de fakenews, que dominaram a pauta. Até agora não sabemos claramente o que o Bolsonaro propôs porque ele nunca propôs, não foi a debates. Mas sobretudo em relação à qualidade da comunicação é uma campanha de argumentos rasos e simplistas. Esse apelo de que a esquerda significa uma ameaça comunista é tão inadequado! Onde é que o comunismo dá certo hoje no mundo? Não estamos na Guerra Fria.

Valor: O que predominou no debate eleitoral foi o antipetismo ou o antiestablishment?
Guimarães: Uma mistura das duas coisas. O PT, pelo tempo que ficou no poder, de certa maneira significa o establishment. De 2002 até agora o PT ficou no poder, há um desgaste pelos fracassos do governo Dilma, pelos escândalos de corrupção. E, de alguma maneira, se atribuiu à esquerda um certo de liberalismo, falta de valores morais. A direita fez esse discurso e isso colou. Você é gay, então é de esquerda. Você é artista, então é de esquerda. Assim. Chegou uma hora em que as pessoas achavam que tudo o que podia ser alternativo era de esquerda.

Valor: O que fica para o marketing político pós-Bolsonaro?
Guimarães: A sociedade e o mundo caminham com movimentos de ação e de reação. De certa maneira o que nós colhemos agora, na campanha do Bolsonaro, não deixa de ser uma reação ao governo do PT e ao que o Brasil passou nos últimos tempos. Essa exaustão de desgaste da classe política foi o fermento para crescer o bolo de conservadorismo no qual o Bolsonaro embarcou. Da mesma maneira que isso é uma reação, Bolsonaro agora passa a ser uma ação que deve provocar outra reação. E essa reação pode gerar, inclusive, o crescimento de uma força e crescimento de uma esquerda que estava desarticulada.

Acho que vamos ter, agora, uma avalanche de profissionais vendendo o jeito Bolsonaro de fazer campanha, com presença nas redes sociais. Mas isso tem que ter adequação, ao candidato, à circunstância. O discurso tem que casar com o perfil do candidato. O programa de cinco minutos do Bolsonaro no segundo turno tinha pouco conteúdo político, era mais um ataque ao PT. Era muito mais antagonista do que um programa construtivo.


Valor: Se 'centro radical' for recauchutagem para 2022 não faz sentido, diz Sérgio Fausto

Por Malu Delgado, do Valor Econômico

SÃO PAULO - O Brasil chegou ao fim de um ciclo político e econômico iniciado com a redemocratização, o que foi evidenciado pela eleição de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência, observa o cientista político Sergio Fausto, superintendente-executivo da Fundação FHC.

Com base neste diagnóstico, e definindo-se como observador, e não como formulador, Fausto antecipou ao Valor em que consiste o movimento que corre a todo vapor nos bastidores para formação de um "centro radical".

O nome foi autoria do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o radical do termo é exatamente "para fazer o contraponto de algo que se define por uma geometria que não é uma coisa nem outra". Esse centro, que ainda não tem cara e nem se sabe se poderá de fato vir a ser um partido, já tem ao menos agenda clara: se aglutina em torno da defesa de solvência do Estado brasileiro com inclusão social. É um centro, explica o cientista político, que rejeita o descaso da agenda ultra-liberal com os indivíduos. "O que me vem à cabeça é o I care about you", explica.

Nas entrelinhas, ele praticamente admite a saída de FHC do PSDB, mas explica que é preciso haver roteiro bem definido para tal desfecho. A ideia é que o novo comando do PSDB, certamente encabeçado por João Doria, governador eleito de São Paulo, deixe claro a envergadura à direita, abrindo o caminho para que os tucanos históricos digam abertamente por que não mais se sentem à vontade naquele ninho.

Sobre a presença de Ciro Gomes (PDT) no centro radical, Fausto acha uma costura complexa, pelo personalismo do personagem. Se Fernando Haddad (PT) caberia no centro, o dilema é muito mais pessoal, mas o perfil do petista é bem assimilado. A única certeza, por ora, é que este movimento não pode antecipar uma candidatura para 2022.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Essa eleição simbolizou a ruptura do processo da redemocratização, nos últimos 30 anos?
Sergio Fausto: Acho exagerados os temores e a percepção de risco de ruptura da ordem constitucional. Mas, de fato, é o fim de um ciclo. A rigor, o sistema partidário que se organizou durante a redemocratização, que teve vigência plena entre 1994 e 2002 - um grupo de cinco a sete partidos de fato relevantes, sendo os maiores deles PT e PSDB, e, dentro do Congresso, PMDB e PFL - isso se esfarelou. E acabou o ciclo de expansão do gasto público. Nesses 30 anos, o gasto público sobe sistematicamente acima do crescimento do PIB. Foi possível financiar isso com aumento da carga tributária, do endividamento público e, durante um período, com a situação internacional favorável. Essa forma de financiar o Estado acabou; uma situação fiscal limite.

Valor: Crê no fim deste ciclo?
Sergio Fausto: Sem dúvida. É preciso reconhecer que o País cresceu pouco neste período e que isso tem a ver com a forma de financiamento do Estado. Repetir essa forma é inviável e se forçarmos a mão, ou vamos para a volta da inflação ou para o calote da dívida pública. Outra coisa que mudou brutalmente é a forma como se dá a vida política e a competição política. Isso vai obrigar a reinvenção dos partidos políticos.

Valor: Apesar de todo o desgaste do PT, o candidato oficializado no dia 11 de setembro terminou o segundo turno com 47 milhões de votos. O que explica o poder do PT?
Sergio Fausto: A figura do ex-presidente Lula é enraizada na sociedade, polariza. Ele é mais do que uma referência política racional, há forte sentimento de adesão a Lula. Ao mesmo tempo em que isso permitiu ao Haddad ir ao segundo turno, foi obstáculo para que ele pudesse alargar a votação e vencer. A figura de Lula, ao mesmo tempo em que funciona como alavanca, pesa como âncora. Haddad ficou num dilema absolutamente insuperável, uma espécie de tragédia grega. Francamente, o PT não parece preparado para o pós-Lula. Tem dificuldade imensa de se reciclar porque não consegue digerir o seu passado.

Valor: Digerir num sentido crítico, de autoavaliação?
Sergio Fausto: É quase psicanalítico, a velha história freudiana que para você crescer, simbolicamente precisa matar o pai. Não é perder o amor, o apreço e o reconhecimento da importância do pai, mas é ganhar distância dele e dizer: eu sou outra coisa. E o PT me parece inteiramente preso ao passado e a esse totem, que é o Lula, hoje imobilizado. O problema é que esse totem é o polo de unidade, o denominador comum político-afetivo.

Valor: Então nem com muito divã Haddad mataria o pai?
Sergio Fausto: Acredito eu que ele fez o possível para ampliar o raio de manobra, para ser mais Fernando e menos advogado do Lula. Ele recebeu uma procuração de poderes muito limitados.

 

Valor: Com esse divisor de águas do sistema político, o que é o centro radical proposto pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?
Sergio Fausto: Há mudanças e há elementos de continuidade. O próprio presidente eleito reconhece que sem uma coalizão no Congresso, que se construa em torno de partidos, terá muita dificuldade de governar. Portanto, o presidencialismo de coalizão no Brasil está em xeque, está em crise, mas é o único software que permite o sistema funcionar. Há maneiras distintas de operar esse software, há espaços para cada governo imprimir a sua característica. Agora, dentro de certos limites. Não dá para se governar com base no apoio de bancadas que se organizam em torno de temas específicos. Questões como previdência são gerais. Ninguém organiza maioria com base em bancadas setoriais.

Valor: A eleição também deixou muito evidente a falta de identidade da centro-direita, sobretudo com a crise do PSDB. Vai haver cisão?
Sergio Fausto: Uma das vantagens da vitória do Bolsonaro é que ficará claro que dizer que o PSDB é um partido de direita era um artifício retórico do PT.

Valor: Mas com João Doria, o PSDB não penderá à direita?
Sergio Fausto: Essa discussão era mais importante no passado do que é agora. É possível o PSDB ser uma parte importante deste centro radical, para usar a expressão do presidente Fernando Henrique. Sejamos realistas: na política, manda quem tem voto. As forças que ganharam dentro do PSDB naturalmente farão o partido caminhar mais à direita. E aí o jogo é basicamente no campo da direita, com uma alternativa ao bolsonarismo, na hipótese de o governo Bolsonaro não se sair bem. Passa a ser um jogo, creio eu, de um partido que vai estreitar relações ou afastá-las em função de um cálculo político que tem a ver com as chances eleitorais de Bolsonaro em 2022. O PSDB se deslocou para o campo da direita. Dizer que é caudatário do bolsonarismo não é verdade, mas não me parece que o PSDB possa ter protagonismo na formação de um centro radical por conta do que deveria caracterizar o centro radical.

Valor: E o que deve caracterizar esse "centro radical"?
Sergio Fausto: A orientação política mais geral: não tenho a menor dúvida de que temos que fazer ajuste fiscal. A situação fiscal é dramática, o efeito distributivo disso é muito ruim. Em português claro: os pobres pagarão uma conta enorme pela não realização do ajuste. É demagogia dizer que o país possa fazer ajuste deste tamanho sem perdas. Todos perderão. A questão é quem perde mais e menos. O centro radical tem que associar ajuste fiscal com justiça distributiva.

Valor: Esta seria a ideia central desta aglutinação de centro?
Sergio Fausto: Isso é muito incipiente e agora não é o momento de ficar discutindo qual é o formato partidário, se conjunto de partidos... É hora de pensar em torno do que faz sentido se unir. E não pode ser uma discussão abstrata. Não é clube para tertúlias literofilosóficas. É dizer o que pensa dos desafios do país. É ajuste fiscal com critério de justiça distributiva, para valer. Significa que é estrutural, que vai ter que mudar a composição do gasto público. Vai ter que fazer privatizações para valer, para abater dívidas e estancar a sangria de estatais dependentes do Tesouro. A agenda de centro radical é favorável à privatização da Eletrobrás, é favorável a de fato romper o monopólio da Petrobrás na área de refino, é inteiramente contrária a qualquer possibilidade de retorno de uma política industrial à la Dilma. É uma agenda para enterrar de vez o nacional desenvolvimentismo, sem dó nem piedade. Não gastemos vela com mau defunto. Os interesses da maioria não estão na preservação de privilégios das corporações estatais. Esse foi um dos grandes erros do PT.

Valor: E isso não poderá ressuscitar a pecha do neoliberalismo, que por questão ideológica interdita debates políticos no Brasil?
Sergio Fausto: Na economia a agenda é liberal sim. Sem receio. Tome-se o caso de monopólios estatais: é para virar essa página da história que começou a ser virada no governo FHC e o PT representou imenso retrocesso. O PT esvaziou as agências e as politizou, engatou marcha à ré com a reemergência das estatais como atores fundamentais.

Valor: O caminho para se diferenciar da direita seria então a noção de justiça distributiva?
Sergio Fausto: Esse é o conceito central. Política de identidade é tema importante, mas, com toda franqueza, o centro da discussão política no Brasil é o que vamos fazer com o Estado brasileiro para preservar a sua solvência e colocá-lo em favor das maiorias. Vamos entrar num momento de imenso progresso tecnológico. O Brasil não pode perder essa onda. Agora, engatar no trem da modernização tecnológica pode criar amplos setores marginalizados do processo produtivo e não dá para simplesmente dizer: dane-se, isso é o custo da modernização. Não é ter essa visão ultra-liberal do processo. A palavra que me vem é "Eu me importo com você", "I care about you". Tenho solidaridade por você, porque a sociedade não é simplesmente um ajuntamento de indivíduos guiados por interesses econômicos. Ela é uma comunidade, que tem ligações entre si. Isso depende de políticas públicas, e preservar isso é fundamental para o bem-estar social. O centro radical tem que ter a preocupação de incluir.

Valor: FHC falou em ampliar a aglutinação de forças do centro para além de partidos, unindo-o a movimentos inovadores. Seria por aí?
Sergio Fausto: Vejo que sim. É um processo natural de aprendizado democrático muito interessante, o reconhecimento de atores novos. A sociedade civil no período da redemocratização era organizada, institucionalizada, tinha CEP, CNJP, era a OAB, a ABI, a Igreja Católica. Hoje em dia estes atores são caracterizados por uma certa dispersão e desorganização, e há formas novas de aglutinação. Exemplos concretos: RenovaBR, RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade). É uma nova forma de atuação da elite brasileira, inclusive empresarial, na política, muito melhor e saudável. Isso fomenta não apenas alianças transpartidárias, mas permite a emergência de novos líderes cívicos que vão entrando na política.

Valor: Mas se são movimentos encabeçados pela elite, o centro radical, a médio prazo, caso vire novo partido, não corre o risco de perder penetração social, como o PSDB?
Sergio Fausto: A política tem sempre uma tensão, entre o horizontal e o vertical. Esse é o risco do personalismo. Agora, quão mais horizontal for, melhor. É o momento de discussão de ideias e formas de atuação, sem que haja o protagonismo de um, dois ou três. E menos ainda pré-figurações de candidatos para 2022.

Valor: Mas não é provável que o debate sobre 2022 surja?
Sergio Fausto: Uma das vantagens de perder é que você tem algum tempo de se reposicionar. É gastar uma energia importante na reconstrução de um centro novo. Novo do ponto de vista de agenda, sem inventar a roda.

Valor: Se essa aglutinação de centro envolver a old school da política e novos nomes, como do RenovaBR, não vão despontar nomes para 2022, como Luciano Huck?
Sergio Fausto: Só me cabe esperar sabedoria e capacidade de autorrestrição dos vários personagens envolvidos para entender que, se for simplesmente uma espécie de recauchutagem [para 2022], não faz o menor sentido. Aí de fato é melhor cada um ficar na sua casinha partidária. Se é para se desacomodar de onde está para ir em busca de um lugar que ainda não está construído, é para, de fato, construir alguma coisa que seja inspiradora. Isso não significa desprezar o aprendizado e a experiência de figuras que fizeram história na política brasileira.

Valor: Sabe-se que estas conversas já estão ocorrendo. Como isso pode, de fato, ser viabilizado?
Sergio Fausto: Sou observador, até como expressão de desejo. Isso vai implicar algo que não é simples, que é ao mesmo tempo fazer o diálogo interno aos partidos de origem de cada qual e um diálogo no meio de campo, entre este eventual espaço de interseção dos partidos. No caso do PSDB, esse processo de mudança natural, na executiva, será uma oportunidade para discutir.

Valor: Para ficar claro quem quer sair da sua casinha partidária?
Sergio Fausto: Sim [risos]. Precisa explicar ao distinto público por que está saindo, se é que é o caso de sair. Pode-se chegar à conclusão que não é o caso de sair. O problema é explicar para as pessoas por que você está saindo e por que você está ficando. Isso vai acontecer de maneira central no PSDB. Não será simplesmente troca de guardas.

Valor: Até porque se FHC deixar o PSDB isso será um fato histórico.
Sergio Fausto: Não passará despercebido [risos]. Acho, de fato, que este processo vai acontecer. É natural, é salutar. A qualidade do processo que é importante assegurar. Que seja menos uma disputa de cotas de poder, mas de visões. Se ficar é porque tem convergência, se sair é porque tem divergência. Isso acontecerá também na Rede e no PPS, talvez no MDB, com Paulo Hartung se desligando da sigla. Duas questões estruturais: alguém saberá fazer a gestão disso, mas a primeira coisa é dizer onde erramos. Por que deu ruim? E, depois, para onde vamos e como vamos? De que modo vamos fazer essa caminhada? Aí lá na frente você vai ter mais clareza deste conjunto de forças.

Valor: E com quais pessoas?
Sergio Fausto: Pessoas é algo mais para a frente. Tem um conjunto de forças? Que formato vai ganhar? Quantos partidos? Novos partidos, velhos, fusões? Isso vai ter que esperar. E, muito mais lá para a frente, coisa para começar a pensar daqui dois anos, pensar em torno de que pessoas a proposta pode encarnar.

Valor: Pensar em 2022 em 2020.
Sergio Fausto: Inverter isso é o risco que a oposição em torno do Ciro corre. Ciro é uma figura política maior, personalista. Tem certa visão do Estado e ele é o condutor desta política. A maneira pela qual ele procura cativar o eleitorado é dizer: eu não me submeto a esses arranjos, eu sei, eu tenho experiência. É na primeira pessoa do singular. É talentoso, mais na cena aberta que no bastidor.

Valor: Ciro cabe neste centro?
Sergio Fausto: Na vida democrática você tem que dar o benefício da dúvida e deixar o espaço aberto para conversar. Ciro, há 20 anos, quando o PSDB se aproximou do PFL e começaram as negociações e havia críticas, soltou uma frase: "O que pega é catapora". Não tem nenhum problema testar a hipótese de haver convergência. Agora, o personalismo do Ciro, pelos defeitos e pelas virtudes, pode vir a se revelar um obstáculo. Precisamos evitar essa ideia de que será possível no Brasil a criação de um bloco hegemônico que dá as cartas.

Valor: E Fernando Haddad?
Sergio Fausto: Haddad terá tão mais liberdade política quão mais afastado estiver do PT. Será um dilema individual. Acho que este governo Bolsonaro não será um desastre, não devemos apostar nisso. Não significa alinhar. O que é criticável no movimento que o Doria tem feito é que antes que o governo apresente suas propostas, ele dá sinais claros de alinhamento estreito. É um equívoco. O PSDB ou os partidos que perderam têm que estar na oposição. Não pode ser a oposição tal como o PT a exerceu desde a sua criação.

Valor: Crê numa frente de centro-esquerda, com Ciro e Marina?
Sergio Fausto: Marina não sei. A vejo mais próxima do centro radical, até porque acho que ele tem que incorporar a temática ambiental. Temos que reconhecer que esse centro, do ponto de vista organizacional, parte muito débil. Perdeu a eleição, está de escanteio nos seus partidos, ou os partidos são pequenos. O fato é o seguinte: se o centro se estrutura e ganha uma cara, isso obriga o Ciro a se deslocar à esquerda. A força política tem a ver com a definição do terreno da disputa. Se isso aqui ficar amorfo, o Ciro balança da esquerda para o centro e ali constrói sua força. Do ponto de vista do centro, é estreitar esse espaço de manobra do Ciro. Não é hostilizá-lo. É dizer: aqui tem uma risca de giz. Nisso aqui você não consegue entrar. Então você tem que ficar mais pra lá mesmo.


José Eli da Veiga: Do Nobel ao "ruralismo"

Expressão 'agronegócio' também serve de biombo ao parasitismo 'ruralista', antagônico à eficiência produtiva

William Nordhaus foi laureado com o Nobel de Economia deste ano por ter sido pioneiro em reintroduzir no cérebro dos economistas uma dimensão da realidade ausente por mais de um século (1870-1977): a natureza. Modelando as conexões entre crescimento e clima, causou estupefação ao concluir o que hoje é quase trivial: a necessidade de taxar emissões de carbono.

Tão justa homenagem - 41 anos depois de seu célebre artigo na American Economic Review (67-1: 341-6) - incentivará jovens estudantes a se perguntarem como foi possível que a natureza tenha sido por tanto tempo banida da teoria econômica. Houve até quem ganhasse Nobel depois de dizer que o mundo se daria muitíssimo bem sem recursos naturais, graças a substituições de capital e trabalho. Foi o que escreveu Robert Solow no mesmo periódico (64-2: 1-14), concepção logo apelidada de 'Jardim do Eden' pelo injustiçado Nicholas Georgescu-Roegen (cf. Valor de 03/09/04 e 08/02/08).

Uma das piores consequências de tão radical abandono do beabá da escola clássica foi longa atrofia teórica das análises sobre as atividades que formam o chamado 'agro', a parte viva do setor primário que virou 'pop': agricultura, pecuária e florestas. Por mais de um século, os economistas torceram para que o "residual" ramo biológico se "industrializasse". O que legitimava a crença em supostamente universal "teoria da produção", cega ao fato de a elevação da produtividade do 'agro' depender sobretudo das tecnologias que mais propiciam a seres vivos reunirem as condições de seu próprio desenvolvimento orgânico.

Não por outro motivo, a grande inovação intelectual do século passado nesta área de pesquisa acabou emergindo dos mais realistas e pragmáticos estudos de negócios, conduzidos por administradores. Na Harvard Business School, um ovo de Colombo desbancou, desde 1955, a falsa expectativa de industrialização. John H. Davis (1904-1988) e Ray A. Goldberg (1926-) adotaram como objeto de análise o conjunto transversal das atividades industriais e terciárias mais diretamente ligadas à apropriação da natureza pelo 'agro'. O recorte "agribusiness" - feito pela dupla na matriz insumo-produto lançada em 1941 por Wassily Leontief - aniquilou a visão tradicional que ignorava os encadeamentos à montante e à jusante, separando o 'agro' de transações fora das porteiras dos estabelecimentos agropecuários e florestais.

No Brasil, foi só nos anos 1990 que o saudoso engenheiro agrônomo e empreendedor Ney Bittencourt de Araújo se serviu da noção "agronegócio" para tirar do gueto um carcomido lobby de grandes fazendeiros. Desde então, o emprego político do termo não parou de brigar com seu sentido analítico, adquirindo muitas outras utilidades, entre as quais a de servir de biombo ao parasitismo "ruralista", antagônico à eficiência produtiva.

Às vésperas de quadriênio que se anuncia desdemocratizador e descivilizador, fica ainda mais relevante dar atenção a duas perguntas: será que o trombeteado "agronegócio brasileiro" exprime a tríplice aliança entre os mais dinâmicos segmentos do 'agro' com seus fornecedores de insumos e as cadeias que transformam e/ou comercializam sua produção? Em que medida poderia ser representado pelos "ruralistas"?

Nota-se robusto engajamento dos fabricantes de máquinas, fertilizantes e agrotóxicos, assim como das grandes tradings, mas em flagrante contraste com a ausência de atacadistas e varejistas, além da dubiedade desconfiada das indústrias processadoras, com as notáveis exceções das de açúcar/álcool e, em menor medida, das da carne e da celulose.

Por outro lado, estima-se que mais da metade dos empregos oferecidos pelo agronegócio permaneçam primários: agrícolas, pecuários ou florestais. E que só um quinto destes esteja em fazendas operadas por contratação de mão de obra. Quatro quintos se encontram pulverizados na infinidade de sítios de agricultura familiar, aos quais se deve um terço do PIB do "agronegócio" e metade das vendas de produtos agropecuários.

Se as fazendas de natureza patronal geram tão pouco emprego é porque a maior parte de suas terras está ocupada por extensivas pastagens, que suportam a mais predatória bovinocultura de corte do mundo. Por buscarem muito mais rentabilidade patrimonial do que operacional, seus proprietários desrespeitam normas agronômicas básicas de conservação ecossistêmica, socializando os mais duradouros custos de sua ganância.

Em suma: é trapaça o uso da expressão "agronegócio" para esconder o vampirismo "ruralista". E em sistema eleitoral que garante super-representação de regiões periféricas, são objetivos avessos aos das atividades mais empreendedoras - representadas na 'Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura' - os que fundamentam e articulam a frente BBB como unificadora das bancadas boi, bala e bíblia. Por esse e muitos outros motivos, é altamente recomendável a leitura de "Formação Política do Agronegócio", recente e oportuna tese de doutorado do antropólogo Caio Pompeia, na Unicamp: http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/332572

*José Eli da Veiga é professor sênior do IEE/USP (Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo) e autor de Amor à Ciência (Senac, 2017), o mais recente de seus 27 livros.


Angela Bittencourt: Espera-se que Paulo Guedes "governe" na medida certa

Câmbio é "calcanhar de Aquiles" dos estrangeiros

A lua de mel do mercado com o novo presidente eleito neste domingo vai durar até a cerimônia de posse? Esta pergunta foi feita, na semana passada, repetidamente à Coluna, que devolveu a questão, recebeu várias respostas e considerou esta a mais instigante: "Vai durar até que o ministro da Fazenda descubra que o tempo da economia é um e o tempo da Política é outro. O tempo da economia é o da urgência; o tempo da política é o da negociação. Há um excesso de otimismo com Paulo Guedes exatamente porque o economista ainda não se apropriou adequadamente da figura de ministro que exercerá a partir de segunda-feira", afirma o interlocutor.

Para um profissional do mercado financeiro, Paulo Guedes pode cometer um equívoco - ou meter os pés pelas mãos - se decidir se apressar para fazer anúncios assim que formalizada a vitória de Jair Bolsonaro. "O que se espera é que ele volte a falar. Que não se tranque em copas. Que sinalize que a equipe que já está na Fazenda e no Tesouro e no BC permaneça ou diga que seguem conversando e isso vale também para Bolsonaro. Vale até um 'tamo junto' de Bolsonaro, referindo-se às equipes ou parte delas que já estão no governo", diz a fonte.

Outra clara indicação observada pela Coluna é quanto à formalidade esperada para as reformas. Questionados sobre a independência do Banco Central (BC), os profissionais do mercado financeiro são positivos quanto ao assunto, acreditam que o governo fruto dessa eleição preocupa-se com legitimidade das instituições e perseguirá a independência do BC. E, também por esse motivo, consideram indispensável a aprovação de um projeto de lei que discrimine todas as condições a serem cumpridas pela instituição para que ela tenha o selo de "independente".

Nesse sentido, o momento é considerado perfeito pelo fato de Ilan Goldfajn, presidente do BC, estar chegando ao final do segundo mandato, podendo ser reeleito por mais dois e quebrando mandatos por períodos coincidentes aos dos poderes Legislativo e Executivo. O que também vale para a diretoria da instituição. Um dos entrevistados da Coluna acredita que o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), fará das tripas coração para que Ilan tenha esse legado no currículo. E ele também, inclusive, porque, das 513 cadeiras da Câmara, 251 foram renovadas nessas eleições. E Maia, que era considerado um deputado forte na Casa, agora é considerado forte no Centrão.

Embora Jair Bolsonaro não seja Geraldo Alckmin, o candidato de fato cobiçado pelo mercado desde o minuto inicial da campanha eleitoral para presidente da República, a corrida acabou e o resultado agradou. Afinal, Bolsonaro não é PT e está ainda mais à direita.

Quadro posto já na sexta. "Há ou não um rali armado para a segunda?", questiono. "Resposta de US$ 10 milhões", devolve o analista.

"Uns dizem que sim, outros dizem que não. Mas hoje começa a doer carregar dólares em carteira. É alta a propensão a 'stopar'. A vender para conter o risco de assumir novas perdas", explica o analista de um grande banco. Ele lembra que o dólar ficou um bom tempo ao redor de R$ 3,70 e chegou a R$ 4,20, com o PT avançando nas pesquisas. Até aqui, só lucro. Mas a queda foi rápida e, abaixo de R$ 3,70, é perda. Já estamos a R$ 3,65.

Esse profissional alerta que a grande maioria dos investidores estrangeiros deixou o Brasil até duas a três semanas antes do 1º turno das eleições. O resultado do 1º turno, com vantagem para Bolsonaro, não atraiu essa modalidade de investidor para novas compras. "Neste caso, o D+1 não funcionou", diz.

O interlocutor da Coluna lembra que os estrangeiros continuam mantendo posição de compra em instrumentos derivativos de câmbio representados por contratos de dólar futuro e contratos de cupom cambial ou juro em dólar negociados na B3.

Essas compras começaram em março, quando o saldo era de US$ 11 bilhões. Em abril já estavam em US$ 23 bilhões; em maio, em, US$ 26 bilhões; em junho, US$ 34 bilhões; em julho, US$ 32 bilhões; agosto, US$ 39 bilhões; e, na última quinta-feira, em US$ 38,5 bilhões. Estas posições são utilizadas como garantia para transações com juros e ações no Brasil normalmente. Contudo, o analista entrevistado informa que boa parte desses dólares é hedge de aplicações feitas em outros países emergentes. E que alterações expressivas na taxa de câmbio no Brasil poderão desorientar grandes mercados.

Este profissional não descarta a possibilidade de a taxa de câmbio declinar a R$ 3,50, mas considera o futuro imprevisível, de fato, caso a reforma da Previdência não tome a direção prevista pelo mercado, o que pode ocorrer caso o governo não obtenha uma maioria solidária ou, ainda, caso o PT faça uma oposição ruidosa ao governo na Câmara dos Deputados, onde terá a maior bancada.

Um outro analista, também muito atento aos movimentos cambiais, tem uma avaliação diferente por contemplar um novo elemento: maior oferta de dólares ao Brasil pelo petróleo do pré-sal. Para este profissional, a vitória de Jair Bolsonaro vai recuperar a imagem do Brasil, o Investimento Direto no País (IDP) seguirá na ordem de US$ 70 bilhões ao ano, o superávit comercial ficará próximo a esse valor e o país ainda terá a receita adicional do pré-sal.

"Creio que teremos sim esse problema cambial. Uma apreciação do real que pode chegar a 20%. E, a se confirmar, será grave porque não há produtividade que compense essa variação de câmbio e não podemos imaginar que o mercado não vai fazer o que sabe, que é antecipar o movimento, o 'overshooting'", lamenta.

Uma preocupação que está no ar quando se pensa em dólar no Brasil é a intensa queda das Bolsas americanas. Em outubro, o Nasdaq tombou 10,93%, o que fez evaporar mais de US$ 1 trilhão de valor de mercado de seus componentes.

Mas Pedro Martins, estrategista de ações para o JPMorgan, em entrevista a José de Castro, do Valor, diz que é prematuro considerar que o mais longo "bull market" da história dos EUA chegou ao fim. E avalia que o nível "descontado" das ações emergentes em 2018 acaba deixando esses mercados mais atrativos neste momento.


José de Souza Martins: Macunaíma vai às urnas

Nestes dias, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, se prepara para a escolha do cacique que governará a taba chamada Brasil. Passa cuspe no pente para ajeitar o cabelo com que fingirá a boniteza de que carecem os que vão cortejar a urna donzela. Espera encontrar ali a muiraquitã mítica e sagrada para enfeitar-se ainda mais e iludir-se quanto ao que é e pode.

Na incerteza, talvez não encontre nem a si mesmo, perdido na extensão do território e na identidade fragmentada, moqueada desde o seu estranho nascimento para não degradar-se. Não nasceu, foi desovado, de repente, no meio da tiguera de uma roça antiga. Despencou, preto, de dentro do ventre de uma mãe sacrificial e se tornou branco à luz do dia tropical.

Seres de metamorfoses, continuamos sendo assim, macunaímicos, à procura da muiraquitã de nós mesmos. Serão dois os candidatos: Macunaíma e Macunaíma, espelho um do outro, que se fizeram reciprocamente, negando-se na intolerância que é a mesma em nome de causas opostas. Coisa da dialética da mesmice, do mudar sem sair do lugar, do caminhar cada vez mais para ficar cada vez mais longe do destino, como descobriu a macunaímica Alice do País das Maravilhas, inventada por Lewis Carroll, clérigo e matemático. É que Macunaíma não é apenas o herói local de nosso patriotismo difuso. Ele é universal. Ele ou ela? Sabe lá, Deus.

Macunaíma é criativo. Muito religioso, não tem religião. Foi batizado três vezes: numa pia batismal da Igreja Católica, nas águas do rio Jordão, lá na Terra Santa, por um pastor neopentecostal, e no tanque batismal por outro pastor neopentecostal, aqui na terra não tão santa. Qual batismo vale? Sacramento também macunaímico? Muda de água, muda de cor.

Ou que, em outra igreja, comunga para ser visto, pois é mais importante parecer do que ser. Coisa do duplo e contraditório que Macunaíma é. Já para não falar que um desses Macunaímas foi visitar um cardeal e assinar uma declaração de amor a valores conservadores e pré-modernos de família e de escola. Tem firmeza a promessa de quem não tem firmeza no batismo? Não faltou nem mesmo, diante de uma imagem de Cristo, o gesto no dedo no gatilho por parte de funcionárias da Cúria. Que Deus é esse, santo Deus?

Uma coisa é certa, apesar do Macunaíma que somos, Deus é mais ou menos brasileiro. Mostrou isso no primeiro turno das eleições, nos muitos banimentos do castigo eleitoral. Foi injusto em alguns casos, mas não em todos. De propósito, escolheu o Estado que leva o nome de uma das pessoas da Santíssima Trindade, o Espírito Santo. Um senador da província, pastor neopentecostal, apóstolo do endireitamento do Brasil, quase candidato a vice-presidente, preferiu tentar a reeleição. Esqueceu-se de que Deus atua também no varejo, não só no atacado do poder. Gosta mais de simples eleitores do que de ambiciosos candidatos.

O senador foi derrotado por um opositor gay, da Rede, de Marina Silva, partido de esquerda, tudo oposto ao que o derrotado é e quer que os outros sejam. Deus castiga. Desinverte o mundo invertido. Põe ordem no que a intolerância e o autoritarismo, adversos à democracia, viraram de cabeça para baixo. Na suposição falsa de que o mundo subvertido pelo uso em vão do nome sagrado é o verdadeiro mundo de Deus. Nesse processo, o magno saiu mínimo.

O trono republicano já está quase vago, à espera do traseiro que o ocupará. O que Macunaíma nele fará? Não se governa um país cheio de surpresas, como este, com o traseiro. Nem com grunhidos. A incerteza macunaímica nos sugere que é melhor rezar. Reler a Constituição também ajuda. Ficar de olho nos transgressores, cuidar para que as instituições sejam mantidas e respeitadas, doa a quem doer. O poder depende do cérebro. Já tivemos governantes de cérebro pequeno, em que cabia pouca coisa mais do que frases feitas, truques publicitários, lugares-comuns, inquietações prosaicas, expressões de uma pobre ideia de pátria, impatriótica. Nada muito diferente de conversa de botequim em fim de dia.

Macunaíma é, culturalmente, expressão do Brasil, mas não tenho certeza de que em sua incerteza constitutiva possa de fato personificar a pátria. A terra da muiraquitã dos nossos desejos, mas não necessariamente de nossas esperanças. São coisas diferentes.

O desejo é humano, a esperança é sobre-humana, pede humildade e renúncia, competência e coerência, respeito, sobretudo para compreender as enormes contradições de Macunaíma e nelas introduzir a gratuidade da luz do conhecimento e do discernimento. Esse é o mundo do espírito, avesso à coisificação e à precificação que o desfigura e trai. O espírito não é a mercadoria nem o dinheiro que escravizam. Antes é sua negação, a negação que liberta.

* José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Sociologia como Aventura” (Contexto).


Fernando Limongi: O príncipe e a fera tosca

A vitória dos conservadores, em boa medida, é por W.O

Os conservadores derrotarão os progressistas, pois somente um erro grosseiro tiraria a vitória de Bolsonaro. Esta é a forma como Luiz Philippe de Orleans e Bragança, em artigo publicado na Folha de São Paulo, caracteriza as eleições do próximo domingo. O deputado federal eleito pelo PSL se identifica como 'tetraneto de D. Pedro II, administrador, empresário e cientista político pela Universidade de Stanford (EUA), com pós-graduação pelo Insead (França)'. Como se sabe, o tetraneto foi cogitado para compor chapa com Bolsonaro, mas foi preterido para neutralizar possíveis tentativas de impeachment.

No passado, explica o tetraneto, os progressistas obtiveram sucessivas vitórias. "Desde 1995, com o governo FHC, que ideias progressistas vêm galgando espaço no poder público." O recuo dos conservadores teria se intensificado, mas não iniciado, durantes os governos Lula e Dilma. Ou seja, para o príncipe conservador, FHC, Lula e Dilma seriam farinhas do mesmo saco.

"Vivemos o esgotamento da hegemonia progressista", afirma o tetraneto. A ascensão de Bolsonaro à presidência será o fim de uma era, uma era marcada por uma "busca aflita pela justiça social". Mas se a busca pela justiça será abandonada, o que teremos no lugar? Qual o programa dos conservadores?

Do ponto de vista eleitoral, os progressistas foram postos para correr. Nos estados do sul, sudeste e centro-oeste não há progressista com chances de vitória. Não faltam aprendizes e oportunistas prontos a se colar a Bolsonaro para chegar ao poder. Associar-se aos progressistas, ao PT ou ao PSDB, é pedir para perder.

Mas é preciso ter clareza. Os progressistas estão sendo derrotados por um time desconjuntado, mal ajambrado, reunido às pressas, sem consistência, formado por herdeiros presuntivos, artistas pornôs, jornalistas com credenciais contestadas, juízes com histórias mal contadas etc. Para os mais velhos, a referência ao Exército Brancaleone é inevitável.

O fato é: não se perde para adversário tão improvisado e fraco sem cometer erros e mais erros. Witzels, Zemas e Dórias não teriam se destacado sem o acúmulo de erros das lideranças políticas. Para ser claro: o que estamos observando é antes a derrota dos progressistas do que a vitória dos conservadores. Em boa medida, é uma vitória por W.O.

Basta lembrar que, não mais do que dois anos atrás, Bolsonaro disputou a presidência da Câmara dos Deputados e recebeu exatos quatro votos. Nem seu filho se deu ao trabalho de comparecer para sufragá-lo. Até muito pouco atrás, o capitão era um figura politica tão folclórica quanto a do Cabo Benevenuto Daciolo. Sua ascensão meteórica se deve ao vazio criado pela luta aberta entre os progressistas, ao suicídio coletivo que se esmeraram para produzir. Não fosse assim e Bolsonaro não teria crescido justamente quando parou de fazer campanha.

A chance oferecida pelo segundo turno não foi aproveitada. A briga nas hostes progressistas não parou. Como crianças, cada lado pede que o outro reconheça sua culpa, que foi que ele que começou e que, sem as necessárias desculpas, não fará as pazes. A infantilidade reinante chega a ser patética. E a briga se estendeu para o interior de cada bloco, como atestam as acusações públicas de Alckmin a Dória e as de Cid Gomes ao PT.

Já faz um bom tempo que os progressistas não se veem como integrantes de um mesmo grupo, mas seus adversários sabem bem quem estão derrotando. Como afirmou o tetraneto, sairão de cenas os que acreditam que as "leis devem ser criadas para fazer justiça social e buscar atingir a igualdade sempre que possível em todos os aspectos da sociedade."

O príncipe está coberto de razão: foram estas as ideias mestras a ditar as políticas públicas e a ação do Estado desde a redemocratização. É contra este movimento, é contra esta direção dada às politicas que Bolsonaro se insurge.

O tetraneto, contudo, não foi capaz apresentar o programa positivo dos conservadores. O máximo que conseguiu foi afirmar sua crença na existência de uma ordem social natural: "O aprendizado para todos é que os avanços da sociedade se devem mais em função das ações da própria sociedade, e não dos mandos e desmandos da legislação."

Sabe-se lá o que o príncipe quis dizer com isto, mas sabe-se com certeza que a ordem social nada tem de natural, que conflitos sociais não se resolvem 'sem os mandos e desmandos da lei.'

O fato é que o discurso de Bolsonaro vai muito além deste conservadorismo edulcorado. O tetraneto lança mão de perguntas retóricas para enfrentar a questão: "Mas será que o medo dos progressistas é justificável? Veremos um retrocesso nas nossas relações sociais com os conservadores no poder?"

O príncipe acredita que os temores de retrocesso como a intolerância e o recurso à violência contra adversários seriam infundados: "O conservadorismo não é intolerante muito menos retrógrado; é simplesmente natural e evolui conforme as gerações de maneira livre."

De novo, difícil saber o que seja evoluir de maneira livre, mas sabe-se que um dos cotados a ocupar o Ministério da Educação acredita que a evolução natural das espécies deve ser banida das escolas. Poderia haver evidência mais clara de retrocesso? Não sei se Dom Pedro leu Darwin, mas sabe-se que era um entusiasta da ciência.

O fato é que quem forma juízos a partir das informações disponíveis tem razões de sobra para temer. O líder dos conservadores está longe de ser o moderado razoável que o tetraneto procura vender. Basta lembrar que, no Roda Viva, já em campanha, Bolsonaro fez questão de registar sua idolatria ao Coronel Brilhante Ustra. Precisa mais? Há algo mais bárbaro e repugnante que a tortura?

No mundo do faz de conta, beijos de princesas castas transformam sapos horrendos em príncipes garbosos. No mundo real, não há varinha de condão que transforme feras toscas em seres civilizados. O retrocesso será inevitável.

*Fernando Limongi é professor do DCP/USP, da EESP-FGV e pesquisador do Cebrap.


Maria Cristina Fernandes: Uma resistência que vagueia sem retrovisor

Toalha dos Ferreira Gomes respingou em JK e Lacerda

A desistência do PT em formar uma frente democrática é o reconhecimento, tardio, de que não há líderes a mover o eleitor. Sua necessidade, porém deriva menos da busca de votos do que na reafirmação de resistência à ordem que está por vir. As dificuldades em formá-la sinalizam os percalços políticos futuros de lideranças que vagueiam sem retrovisor.

Os irmãos Ferreira Gomes parecem decididos a disputar com o PT a hegemonia da esquerda. Mas a toalha arremessada respingou nos túmulos de Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek e se depositou sobre os escombros do PSDB.

O líder udenista apoiou o golpe de 1964 na expectativa de que a ordem democrática seria restabelecida no ano seguinte com a manutenção das eleições diretas para presidente da República. O líder do PSD, Juscelino Kubitschek, não apoiou a quartelada, mas tinha expectativas semelhantes e seguiu a orientação partidária na votação do colégio eleitoral que empossou o marechal Castelo Branco no cargo.

JK liderava a disputa presidencial. Foi cassado em junho de 1964, dois meses depois da eleição do marechal. Lacerda vinha em segundo na disputa e aplaudiu a cassação antes de assistir ao cancelamento das eleições de 1965. Articulou com um Juscelino no exílio uma frente de oposição, mas acabou preso com o AI-5.

Cid Gomes não para de se retratar e seu irmão ainda pode desembarcar num palanque eletrônico destinado a evitar a vitória de Jair Bolsonaro. Mas dificilmente reverterá o estrago provocado na campanha de Fernando Haddad pelo vídeo em que o irmão de Ciro Gomes dá como certa a derrota petista. São adeptos de primeira hora do #EleNão, mas custarão a desfazer a percepção de que já deram início à disputa por 2022.

A mesma lógica guiou o PSDB em 2016 ao encabeçar o impeachment de Dilma Rousseff. Os tucanos deram 2018 por garantido, enquanto os instintos de ódio represados foram atraídos por Bolsonaro e cevados na longa noite do governo Michel Temer. A maioria que apoiou a derrubada da ex-presidente recebeu, em retribuição, um governo que aprofundou o desencanto e fez do PSDB um sócio do PT na ascensão do bolsonarismo.

Parece exagero imaginar que 2022 pode perder seu lugar cativo no calendário eleitoral, uma vez que Jair Bolsonaro, se vier a se tornar presidente, não o será por golpe mas pelo voto da maioria. Desde a Alemanha de 1932, porém, sabe-se que governo eleito não é garantia contra tragédias.

À medida em que crescem as chances de vitória do candidato do PSL melhor se conhecem os planos de seu governo. O aumento no número de ministros do Supremo e o desprezo da lista tríplice para a escolha do procurador-geral da República, por exemplo, para ficar apenas naquelas propostas que foram diretamente verbalizadas por Bolsonaro, rimam com o esfacelamento das instituições.

Enfrentará resistências mas também uma grande capacidade de adaptação, como mostrou ontem a decisão do Tribunal de Justiça que reverteu sentença contra o espólio do coronel Alberto Ustra, condenado a indenizar a família do jornalista Luiz Merlino torturado e morto no Doi-Codi.

O congestionamento no mercado da mediação não é garantia de que esta funcionará. Ficou mais difícil contar com o Supremo para distinguir os passos que um eventual governo Bolsonaro vier a dar para além da Constituição desde que o presidente da Corte apressou-se em renomear de "movimento" o último regime de exceção.

É na condição de candidato a mediador que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso resiste ao que chamou de assédio moral de amigos diletos e de pelo menos dois de seus ex-ministros da Justiça, signatários de manifestos pela democracia. Depois de Manuel Castells, ontem foi a vez de Roberto Schwarz. Por Claudio Leal, da Bravo, o crítico mandou o recado: "Pensando em amigos da vida inteira, eu diria que neste momento a neutralidade entre Haddad e Bolsonaro é um erro histórico de grandes proporções".

Uma vez ameaçado de fuzilamento pelo capitão candidato, o ex-presidente segue incólume ao patrulhamento na toada de pode vir a cumprir um papel igualmente histórico, mas inexistem garantias de que haverá o que mediar. Os descaminhos da frente democrática indicam que a oposição pode vir a lhe dar menos trabalho do que a difusa aliança que o apoia.

O candidato da maioria fez carreira no confronto e terá que contemplar um eleitor que quer menos corrupção e mais segurança com os interesses difusos que cada vez mais o cercam. Não há 46 milhões de eleitores autoritários no Brasil. Votar como anti-petista não transforma o eleitor em inimigo da democracia. Derrotar o PT não bastará, tampouco, para manter o apoio de seu eleitorado.

Um Jair Bolsonaro presidente terá que mostrar resultados na economia que dependem de um Congresso, em grande parte, ainda, nas mãos da Lava-Jato, grande esteio de sua candidatura. Terá que lidar com generais que se arvoram a reescrever a história e ameaçam o licenciamento ambiental, financistas que pretendem concentrar poderes na licitação de obras e economistas que planejam impor ajuste fiscal por decreto. Com seu elevado poder de síntese, seu vice um dia explicou que o caminho mais curto para sair de um enrosco desses é o autogolpe.

Steve Bannon
O pedido do PT para que a Polícia Federal investigue a atuação de Steve Bannon na fábrica de disseminação de notícias falsas no Brasil aconteceu dois meses e meio depois do primeiro encontro público entre o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o ex-estrategista do presidente americano Donald Trump.

Blindados
Desembarcaram no Porto de Paranaguá, no Paraná, esta semana 96 blindados vindos dos Estados Unidos. São veículos usados no transporte de tropas. Muitas das unidades semelhantes que chegaram ao Brasil, ao longo dos últimos anos, por doação americana, foram destinadas à ocupação de favelas do Rio.


José de Souza Martins: Revelações dos nomes de urna

Uma comparação impressionista das listas de candidatos, nestas eleições de 2018, com o que era a representação política no país há 60 anos, mostra que o perfil do político brasileiro mudou muito. Então, estávamos mais perto da concepção republicana ideal do poder, que encobria, no entanto, persistências da limitada representação política da época da escravidão. Hoje, ainda que politicamente confusos, estamos mais próximos de uma representação democrática.

As listas têm indícios de que estamos também confusos em relação a nós mesmos. São numerosos os candidatos que se apresentam ao eleitorado com o chamado nome de urna diverso do respectivo nome civil. O que querem dizer os que assim se identificam e se candidatam e, também, os que neles votam? Há muitos nomes esdrúxulos como, em São Paulo, o de Buscando o Imponderável e o de Geraldo, o Iluminado; no Ceará, Faisk e Fumaça; na Bahia, Vado Malassombrado; no Rio Grande do Sul, Cavaleiro da Esperança e Gauchinho de Deus.

Se as listas de nomes de urna para deputado federal dão indicações do que é nossa política, ao revelarem a extensa crise de identidade dos brasileiros, também dão esclarecedora visibilidade política ao pluralismo do país.

É extensa a participação de pretos e pardos em quase todos os Estados. Embora muitos candidatos pretos, pardos e brancos estejam em dúvida ao assumir a identificação racial que a ficha eleitoral lhes pede.

Há casos, como o de uma mulher preta, com curso superior, que se autodefine como branca. E há casos, como o de uma loira que se identifica como preta. Isso em São Paulo. Há pretos cujos apelidos os puristas das demandas raciais poderiam atribuir a suposto racismo de branco: na Bahia, Delegada Negrona e Marcos Antônio, o Negrão, ambos realmente pretos.

Muitos brancos identificam-se como pardos, tímida aceitação da nova onda de identificação racial no Brasil. A pluralidade racial brasileira, se tem os reacionários que a recusam, tem também os que se identificam com a concepção de um Brasil multirracial e mestiço. No Ceará, uma candidata parda conciliou os opostos ao adotar o nome de urna de Dani Alvinegra. Em Pernambuco, outra também parda, tem por nome de urna A Marron.

São muitas as mulheres candidatas. As candidaturas de mulheres, tanto quanto as de pretos e pardos, expressam o empenho dos respectivos grupos em corrigir a injustiça histórica de seu quase banimento da cena política.

É também notório que há muito mais evangélicos, especialmente pastores e pastoras, disputando uma cadeira de deputado federal. E a diversidade das profissões é hoje maior do que aquela do tempo em que a nossa representação política era predominantemente de fazendeiros e bacharéis.

Os nomes de urna diferentes dos nomes civis, porém, indicam que a sociedade pós-moderna não oferece a extenso número de brasileiros referências por meio das quais se vejam como cidadãos de um país chamado Brasil e membros de uma sociedade que possa ser definida como nossa. Os nomes de urna são indicações da fragmentação desta sociedade.

Os grupos de referência subjacentes a esses nomes são politicamente pobres e limitados àquele que é o público de relacionamento dos candidatos. Nossa identidade básica é comunitária. Ao se conceber o país como mera sociedade de classes sociais, o que ocorreu foi sobretudo a disseminação de identidades sociais precárias e redutivas, próprias da realização insuficiente, entre nós, da sociedade de consumo e de seus agentes. Ainda não conseguimos ver além da pessoa que nos vende um remédio ou a que diagnostica nossa doença.

Nosso mundo é o dos relacionamentos cara a cara, ainda que o outro seja fantasiosa personagem de circo, rádio ou TV, como o Bira do Jegue, na Bahia. Não vemos nem compreendemos o todo e suas ocultações, o lado invisível das relações políticas. Nosso sistema político nos priva da mediação dos conceitos e nos limita à mediação de pessoas.

Grande número de candidatos adota nome relacionado com a ocupação ou com a profissão. Dirigem-se a clientes, não a cidadãos. É o caso dos que antecedem o nome com um "Dr. Fulano", ou um "Professor sicrano". Ou, Adriana Vaqueira, André o Cobrador, Robério da Cesta Básica, Pinheiro do Queijo, Ribamar do Hospital, Marconi da Galinha, Paulo da Autoescola, Andréia da Farmácia, Cabral dos Químicos, Daniel Perueiro, Edson Bananeiro, Nairzinha do Tempero.

Chama a atenção o destaque dado nos apelidos eleitorais às funções policiais e militares, Sargento, Coronel, Comandante, Delegado Federal. Reflexo destes tempos de busca de políticos no universo profissional do controle social repressivo. Nossa pobreza política começa no vazio de nome do nome de urna.

*José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "A Sociologia como Aventura" (Contexto).


Raymundo Costa: Prós e contra PSL e PT no segundo turno

Nessa batida, eleição será um plebiscito sobre o PT

Na última semana da eleição de 1989 ninguém sabia ao certo quem iria para o segundo turno. Foram um aventureiro de direita e um incendiário - à época - de centro-esquerda que era Lula. O ex-governador do Rio Leonel Brizola, presumivelmente o segundo nome, ficou a 300 mil votos da segunda vaga. Uma fração. É improvável que Ciro Gomes (PDT), o equivalente de Leonel Brizola naquela eleição, consiga ainda chegar à final, numa reação do eleitorado à polarização entre o PT e o PSL, o partido de Jair Bolsonaro que assumiu o papel antes desempenhado pelo PSDB.

O segundo turno é este mesmo: Fernando Haddad (PT) e Bolsonaro. São 20 dias de campanha, desta vez com tempo igual de TV para cada lado (conteúdo não é o forte de Bolsonaro), quando o antipetismo será explorado à exacerbação. A ideia é botar o PT (e o governo Dilma, que anda meio desaparecido) no colo de Haddad. A avalia-se que ele ainda não foi contaminado pela rejeição ao partido. Neste momento, aparentemente, Haddad leva alguma vantagem pelo fato de a associação dele com o PT não estar fechada, o que deve acontecer no segundo turno. Pode ser. De certo mesmo, hoje, é que os dois estão no segundo turno.

Pode ser muita coisa depois do dia 7, o domingo da eleição. A conferir. No primeiro turno, algumas parecem mais ou menos claras. Na eleição de 2014, Aécio Neves (PSDB) tirou em São Paulo 7 milhões de votos de vantagem sobre Dilma Rousseff. O antipetismo com Bolsonaro não deve alcançar a mesma vantagem, segundo as pesquisas. Já o PT está em condições de levar 60% dos votos no Nordeste, na esteira do prestígio de Lula. Na eleição passada os outros dois Estados do Sudeste - Rio e Minas Gerais - votaram no PT. Bolsonaro tem possibilidade de ganhar na região.

A campanha de Bolsonaro não pode mais se dar o luxo de errar como fez na semana passada, com declarações desastrosas sobre o 13º salário e a CPMF. O candidato está sob o fogo cerrado do PSDB e das mulheres. A empresa de consultoria Arko Advice fez um interessante trabalho sobre os pontos fortes e negativos de cada um, no segundo turno. Não há margem para novos erros, sobretudo de Bolsonaro, que enfrenta um adversário experiente e que tem a mão uma azeitada máquina de ganhar eleição, o PT.

Bolsonaro entra na disputa com quatro pontos que a Arko considerou positivos. O primeiro é o discurso contra violência e o direito de o cidadão portar armas. O candidato do PSL também conseguiu se vender como um nome da antipolítica, apesar de seus sete mandatos de deputado federal. Também "posicionou-se abertamente contra o PT e se beneficiou dos escândalos de corrupção que também atingiram o PSDB", diz a Arko, e avançou no antipestimo.

A indicação de Paulo Guedes para o Ministério da Fazenda é outro ponto positivo. O economista tem prestígio no mercado financeiro e no setor empresarial. Por fim, Bolsonaro demonstra força no Sul, Sudeste e Centro-Oeste e lidera em quatro das cinco regiões. No Norte e no Centro-Oeste tem 28% das intenções de voto. No Sudeste, 29%. No Sul, 36%.

O eleitorado feminino é uma das maiores fragilidades do candidato. Segundo o Ibope, a rejeição de Bolsonaro entre as mulheres é de 52%. A de Haddad, apenas 20%. Outro ponto negativo são os recursos financeiros limitados. O tempo de TV será igual, mas a estrutura do PT é mais forte. Até agora só um candidato do PSL aparece com chances de eleger um governador (Roraima)

No segundo turno, o tempo de propaganda na TV será igual para os dois candidatos. Mas o PSL tem recursos financeiros limitados. As denúncias recentes contra Bolsonaro também tiveram ampla cobertura da imprensa. Por último, a questão da governabilidade - o PSL deve crescer, mas terá menos de 2% da Câmara.

Um dos pontos positivos mais fortes de Haddad em relação a Bolsonaro é a estrutura do PT - recursos financeiros, apoio dos movimentos sociais e governadores de Estados importantes trabalhando em favor do candidato. Claro, a força de Lula no Nordeste e sua capacidade de transferir de votos. É a única região em que Haddad está à frente de Bolsonaro.

A gestão Lula também conta positivamente. Há um certo sentimento de volta "aos bons tempos" em que a economia crescia. Não é por outro motivo que o slogan de campanha de Haddad - "O Povo Feliz de Novo" - procura reforçar essa ideia. A experiência do PT adquirida em disputas presidenciais conta a favor. Esta é a oitava e o partido venceu as últimas quatro.

Entre os aspectos negativos, a corrupção que atingiu o PT nos últimos anos é a principal. A exploração do assunto será exacerbada no segundo turno, agora, reforçada com a delação de Antonio Palocci, todo poderoso ministro da Fazenda e da Casa Civil nos governos Lula e Dilma. O segundo ponto é o sentimento anti-PT, especialmente entre os mais escolarizados e de maior renda. Haddad enfrenta resistência nos setores empresarial e financeiro, o que pode ser remediado com uma inflexão no atual discurso. Se vencer, Haddad pode anunciar de imediato sua equipe econômica, para acabar com as desconfianças. O quarto ponto negativo é o programa de governo francamente estatizante. "Há dúvidas, ainda, sobre o comprometimento com as reformas fiscais", diz a Arko.

Nessa batida, a eleição será um plebiscito sobre o PT. E o que não mata, fortalece.

Descrédito
Não é só Geraldo Alckmin que tem muito tempo de televisão à toa. O fenômeno também se repete nos Estados. Intrigado, um candidato a governador foi conferir numa pesquisa qualitativa. Resultado: os políticos levaram para a propaganda na TV o mesmo descrédito de que são vítimas.

Pulverização
Nas contas de Gilberto Kassab, um especialista na criação de partido, nenhuma sigla terá mais de 10% das cadeiras da Câmara. O PT e o PP devem ficar com 9,74% cada um. O MDB, com 7,79%, cai para a sexta posição. Kassab calcula que 18 partidos devem passar a cláusula de barreira, mas em 2023, com o fim das coligações nas eleições proporcionais, esse número cai para dez. Na atual legislatura, PT e PSDB têm 13%.


Angela Bittencourt: #elenão elimina zona de conforto na boca da urna

Ibope, FSB/BTG Pactual e RealTime/ Record saem nesta 2ª

As mulheres tiraram os brasileiros da zona de conforto. As manifestações por #elenão contra o candidato a presidente da República Jair Bolsonaro (PSL) reuniram multidões em grandes e pequenas cidades do país. O movimento manteve-se apartidário, com alguns deslizes, mas sem incidentes. A mobilização do último sábado atualizou 2013 e 2016. De expressão incomparável, em 2013 cerca de 1 milhão de brasileiros foram às ruas para demonstrar insatisfação com um pouco de tudo: governantes, corrupção, sistema político, educação, saúde e uso do dinheiro público em obras da Copa do Mundo. Semearam aquele movimento, protestos de estudantes contra tarifas de transporte público. Em 2016, o desgoverno de Dilma Rousseff foi alvo dos protestos em escala menor.

O #elenão, anos depois, espalhou vibração e nesse clima os brasileiros chegarão às urnas daqui a cinco dias. No sábado, ocorreram também manifestações por #elesim. No domingo, carreatas pró-Bolsonaro agitaram várias capitais.

A eleição de 2018 é singular pelos atos que ocorreram no fim de semana, por outros tantos pulverizados em poucas semanas, e por marcar o encerramento formal do 2º mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, afastada definitivamente do cargo em agosto de 2016 por crime de responsabilidade. Não tivesse o Brasil caído no atoleiro onde está, o próximo titular no Palácio do Planalto receberia, em 1º de janeiro de 2019, a faixa presidencial de Dilma. Seria ela a anfitriã no Parlatório, mas Michel Temer passará a faixa.

Temer, ex-vice de Dilma, não foi eleito presidente. Tornou-se presidente para cumprir o prazo regulamentar da chapa que integrava e saiu vitoriosa das urnas nas eleições de 2014. Mas, em menos de dois anos foi desfalcada, para assombro de uns e alívio de outros.

Esta eleição de 2018 é singular também por demonstrar que o processo de seleção natural prevalece em qualquer campo de batalha. Embora os partidos políticos tenham registrado ao menos uma dezena de candidatos à presidência da República, cinco se sobressaíram aos demais logo na partida da campanha: Jair Bolsonaro (PSL), Luiz Inácio Lula da Silva/Fernando Haddad (PT), Geraldo Alckmin (PSDB), Ciro Gomes (PDT) e Marina Silva (Rede).

Qual protagonista de um longa metragem, nas últimas duas semanas Bolsonaro quase morreu, vítima de um atentado à faca durante um comício onde só ele parecia estar de amarelo, mas após três semanas internado obteve dividendos nas pesquisas de intenção de voto; ganhou um bocado. Lula, sob vigília da Polícia Federal, em Curitiba, sumiu depois de ilustrar o melhor cenário traçado pelo PT que torce por sua libertação e também avançou nas pesquisas. Haddad ganhou o posto de candidato do PT e, embora se mostre como representante do ex-presidente - ou até por isso - arrancou nas pesquisas. Marina derreteu. Alckmin subiu pouco ou deslizou. Ciro patinou, mas acabou se tornando uma real opção de voto útil.

Por 24 horas, contudo, o Brasil perdeu 40% do seu elenco de presidenciáveis. Ciro foi hospitalizado. Seria uma baixa considerável se adoecesse por um grave motivo ou por longo período. Por sorte, dois dos cinco candidatos ao Planalto deixaram o campo temporariamente e sem substitutos no banco de reserva.

Ciro ingressou na categoria de um hospitalizado Bolsonaro, mas para um tratamento emergencial. Logo foi liberado e fez campanha nas redes sociais. Seguiu o exemplo do maior oponente que, até a pesquisa CNT/MDA publicada na madrugada de domingo, só ele poderia derrotar no 2º turno.

A pesquisa CNT/MDA mostrou Jair Bolsonaro (PSL) com 28,2% dos votos - mesma porcentagem da leitura anterior do mesmo instituto -, Haddad (PT) cresceu de 17,6% para 25,2% e, considerando a margem de erro de 2,2 pontos chegou a um empate técnico com Bolsonaro. Ciro. que tinha 10,8%, caiu a 9,4%. Na simulação do 2º turno, Haddad sai vencedor com 42,7% dos votos e Bolsonaro obtém 37,2%. A repercussão desse placar nos mercados é difícil prever.

Ontem, três profissionais afirmaram à Coluna que a maioria das instituições e investidores já esperavam um candidato da esquerda na disputa do 2º turno com Bolsonaro - Haddad ou Ciro. O petista desperta maior simpatia, embora o PT nem tanto, diz um dos interlocutores. Outro entrevistado concorda, mas alerta que a "simpatia" do mercado por Haddad será proporcionalmente menor quanto maior for a submissão de Haddad ao ex-presidente Lula, caso o ex-prefeito ganhe a eleição.

Até o fechamento da Coluna no domingo à noite, estava prevista a divulgação, nesta segunda-feira, de três pesquisas de opinião: Ibope, FSB/BTG Pactual e Real Time/ TV Record. Amanhã, terça, tem mais um Datafolha.

As sondagens sobre intenção de voto realizadas por telefone também são uma singularidade desta eleição. E ainda inspiram inquietação sobretudo entre profissionais do mercado financeiro. Outra singularidade desse pleito, os candidatos cercaram-se de economistas conhecidos, de elevada reputação, experientes no setor privado e/ou no setor público. E quase todos foram para a vitrine. Esse movimento não tem registro em eleições passadas.

A presença dos economistas na linha de frente das campanhas é interpretada como forte sinal de desconhecimento mais profundo de questões econômicas pelos principais postulantes ao Planalto. Cenário admissível, não fosse a grave situação em que se encontra a economia brasileira que já não sabe qual é a cara do crescimento e esqueceu o conforto que rende um mercado de trabalho ativo.

Entre os economistas mais comprometidos com o processo eleitoral estão André Lara Resende, Eduardo Gianetti, Guilherme Mello, Gustavo Franco, José Márcio Camargo, Mauro Benevides, Nelson Marconi, Pérsio Arida, Ricardo Paes de Barros.

Nas últimas semanas, à exceção de Paulo Guedes, assessor de Jair Bolsonaro, todos participaram de debates, seminários e entrevistas. Guedes foi tão reservado que, há poucos dias, quando falou publicamente sobre perspectivas para política fiscal, acabou mal interpretado e quase liquida a carreira do chefe. Guedes teria sugerido a recriação da CPMF para reforçar o caixa. Foi repreendido por Bolsonaro. A suposta sugestão foi negada.


Cristiano Romero: Estabilidade e eleição

Depois de 33 anos, estabilidade econômica e política é questionada

A mais desafiadora transição política enfrentada pelo Brasil, desde a redemocratização, mostra que o país precisa amadurecer suas instituições. A democracia deve ser encarada como um bem absoluto, inalienável, mas sua construção, especialmente em nações que experimentaram interrupções históricas (no caso brasileiro, em 1937, com o Estado Novo, e, em 1964, com o golpe militar), é cotidiana. Em geral, quanto mais antiga uma democracia, mais forte ela é e mais arraigados são os valores democráticos.

Democracias frágeis têm instituições frágeis. É por isso que algumas transições são marcadas por turbulências. Quando os militares perceberam, em meados da década de 1970, que ficou difícil esticar a ditadura depois dos anos de chumbo - cujo marco inicial foi a edição do Ato Institucional número 5 (AI-5), no fim de 1968 -, a ideia de distensão e abertura tomou lugar. Mas quem detém poder, principalmente num regime autoritário, resiste a entregá-lo.

Entre 1975 e 1985, período em que se deu a transição "lenta, gradual e segura" arquitetada pela cúpula militar, grupos resistentes ao retorno da democracia tentaram promover golpes dentro do golpe e, por muito pouco, a redemocratização não foi abortada. No fim, uma "surpresa" desagradável para os brasileiros que não votavam para presidente desde 1961: coube ao Congresso eleger o primeiro presidente depois de três décadas.

Este é o Brasil: no papel, o regime de exceção vigorou de abril de 1964 a março de 1985, sendo que a transição para a democracia consumiu quase metade desse tempo. Muito comum na história do país, o acordo de transição conciliou interesses do grupo que perdeu a hegemonia e do grupo de oposição que assumiu em seu lugar. No acerto, o presidente seria Tancredo Neves, um dos expoentes da oposição "consentida", e o vice, José Sarney, um dos próceres do regime autoritário - a derrota no Congresso, em 1984, da emenda constitucional que restabelecia a eleição direta foi parte do acordo.

O destino, traiçoeiro que só ele, decidiu, porém, que em 15 de março de 1985, depois de mais de duas décadas de ditadura, Sarney subiria a rampa do Palácio do Planalto, e não Tancredo - que adoeceu dias antes da posse e morreu em 21 de abril. No Brasil, a vida imita a arte, e não o contrário. Nesse contexto, o primeiro governo civil da redemocratização foi marcado por disputa intestina entre viúvas da ditadura e a nova situação, liderada por integrantes da "resistência democrática".

Não se pode dizer que deu tudo errado. Afinal, a democracia avançou, direitos foram restaurados, elaborou-se uma nova Constituição, proibiu-se a censura, o país começou a sair da toca e a se aproximar dos vizinhos etc. Mas, marcado por intensas disputas de poder, o governo Sarney fracassou de forma retumbante na tentativa de estabilizar a economia. A situação era caótica: inflação de três dígitos, calote na dívida externa, ausência de crédito externo, paralisação dos investimentos etc.

Num ambiente conturbado, os brasileiros foram às urnas em 1989 e elegeram Fernando Collor, que conseguiu criar imagem de "outsider", político anticorrupção (para se contrapor aos muitos escândalos do governo Sarney) e anticomunista (para agradar a direita e a amplos setores da classe média e, assim, derrotar Lula no segundo turno). Ulysses Guimarães, líder da resistência democrática, obteve votação inexpressiva.

A eleição de 1989 mostrou que, naquele momento, já havia fadiga dos brasileiros com políticos tradicionais. Originário de uma oligarquia nordestina, Collor era tão ou mais tradicional que os outros, porém, com um marketing vigoroso, apresentou-se de outra maneira. Mas o que contribuiu decisivamente para sua propaganda dar certo foi o ambiente confuso, de crise econômica e desesperança, que o país enfrentava.

Aquele pleito teve ainda duas outras novidades: Lula começou a disputar eleições e o getulismo, na ocasião representado por Leonel Brizola, viveu seu ocaso. A partir dali, Lula e seu PT assumiram a hegemonia das esquerdas - desde então, estiveram em todas as eleições presidenciais e só perderam duas (1994 e 1998).

Collor sofreu impeachment em 1992 e seu vice, Itamar Franco, assumiu o cargo em meio a uma renitente crise econômica. Antes de tomar posse, exigiu dos partidos que derrubaram o antecessor que o apoiassem numa coalizão, do contrário, não colocaria a faixa presidencial. O PT foi o único que ficou de fora do governo porque, acreditando na tese do "quanto pior, melhor", apostou que Lula daria um baile na eleição de 1994. Já Fernando Henrique Cardoso, alçado a ministro da Fazenda em 1993, sabia que um plano econômico bem-sucedido o levaria ao poder.

Lula estava certo num aspecto. Se a eleição de 1994 tivesse ocorrido em ambiente parecido com o de 1989, provavelmente ele teria sido eleito. Durante o pleito, perguntou a seu candidato a vice, Aloizio Mercadante, se o Plano Real tinha chance de dar certo. Ouviu um "não" como resposta. Ocorre que o plano interrompeu um longo período (mais de 20 anos) de inflação alta no Brasil. Tanto em 1994 quanto em 1998, Lula perdeu a disputa para FHC no primeiro turno.

No segundo mandato de FHC (1999-2002), plantaram-se as sementes para a alternância de poder: a forte desvalorização do real nos primeiros meses deu a impressão aos cidadãos de que o real chegara ao fim e o apagão de energia em 2001 derrubou uma economia que crescera bem em 2000 (mais de 4%) e começava a acelerar o passo. Diante da liderança de Lula nas pesquisas, o mercado reagiu mal, o real voltou a desvalorizar-se e a inflação assanhou-se, chegando a mais de 12% naquele ano.

Esperou-se o pior de Lula e isso não veio. Ele chegou ao poder, derrubou a inflação, promoveu algumas reformas, reequilibrou as finanças públicas, pagou dívidas e respeitou contratos. Tornou-se o fiador da estabilidade e, em 2006, mesmo com a imagem arranhada por causa do escândalo do mensalão, foi reeleito depois de derrotar Geraldo Alckmin no segundo turno. Um registro: a inflação daquele ano (3,1%) foi a segunda menor da história e a economia já crescia, na margem, 4%.

Em 2010, o sucesso de seus dois mandatos permitiu a Lula eleger Dilma Rousseff com relativa tranquilidade. Havia desconfianças no mercado quanto ao compromisso da candidata com o legado do antecessor na economia, mas Lula tinha crédito. Naquele momento, nem o mais pessimista dos integrantes do mercado imaginou que, oito anos depois, chegaríamos a uma eleição presidencial duvidando da estabilidade econômica e política tão arduamente conquistada pelos brasileiros ao longo de 33 anos de redemocratização.