valor economico
Bruno Carazza: São muitos os Brasis
Entender resultado das urnas exige mergulho nos dados
Nas últimas semanas vocês foram inundados com números sobre as eleições municipais. Fechadas as urnas, no calor da apuração, produzimos uma profusão de análises apontando vencedores e derrotados. A partir do sobe-e-desce das prefeituras obtidas por cada partido, generalizamos os resultados e projetamos seus impactos para a eleição presidencial de 2022. E em geral a história termina aí.
Mas o Brasil é muito grande e diverso. Entender o que houve em 2020 e tentar extrair lições para o futuro exige um mergulho nos dados que a maioria de nós não faz - e mesmo os que desejam fazê-lo, esbarram na baixa qualidade dos dados.
O TSE até merece elogios por divulgar os dados das votações na unidade mais desagregada possível (a seção eleitoral). O problema é que as planilhas são extremamente pesadas e de difícil manuseio, além de os dados do perfil dos eleitores não serem atualizados periodicamente - o que os torna inúteis com o passar do tempo, pois as pessoas envelhecem, mudam de cidade, continuam estudando e até escolhem trocar de gênero.
Porém, como muitas cidades brasileiras realizaram o recadastramento biométrico de sua população recentemente, abriu-se uma breve janela de oportunidade para se analisar o comportamento do eleitor no microcosmo de cada seção eleitoral Brasil afora com dados pouco defasados. E quando nos aprofundamos nessa pesquisa, a realidade se mostra muito mais complexa do que os grandes números fazem parecer, como pode ser visto nos gráficos a seguir.
Muito se falou sobre o efeito da pandemia sobre a disposição do eleitor em votar. Analisando o comparecimento às urnas em Belém e Vitória no primeiro turno, podemos constatar que o medo de contrair covid-19 pode ter sido a razão para a alta abstenção na capital do Pará - pois lá houve maior abstenção nas seções com maior presença de idosos -, mas não em Vitória, onde praticamente não se observou essa correlação.
Do ponto de vista da disputa eleitoral, as duas capitais tinham um cenário bastante parecido: em ambas ex-prefeitos de esquerda (Edmilson Rodrigues, em Belém, e João Coser, em Vitória) enfrentaram numa disputa apertada com candidatos apoiados por Jair Bolsonaro - Delegado Federal Eguchi e Delegado Pazolini, respectivamente.
Quando comparamos o desempenho dos candidatos bolsonaristas em cada seção eleitoral no primeiro turno com o nível educacional dos seus eleitores (uma boa proxy para nível de renda), também chegamos a resultados díspares: na capital paraense o preferido do presidente foi menos votado nas seções eleitorais com maior percentual de analfabetos e pessoas com instrução até o ensino fundamental, enquanto entre os capixabas ocorreu justamente o contrário.
Os dados de Belém e de Vitória indicam ser precipitado generalizar se houve um deslocamento da base eleitoral de Bolsonaro dos mais ricos para os mais pobres em função do auxílio-emergencial.
Entender o Brasil não é fácil - e dá trabalho.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Luiz Gonzaga Belluzzo: Fintechs, Banco Centrais e FMI
Na hora do aperto, o abastecimento de liquidez, a seiva dos mercados financeiros, só encontra provimento nos bancos centrais
Gavekal Dragonomics informa: os reguladores chineses estão às voltas com as criaturas da finança digital, as chamadas fintechs. Desde meados dos anos 2000, as fintechs e demais empresas de tecnologia passaram a ocupar um espaço considerável nas transações financeiras do mercado chinês.
O Banco Popular da China e a Comissão Reguladora de Bancos e Seguros da China (CBIRC) buscam uma abordagem regulatória mais abrangente, em vez de simplesmente alinhavar uma regulação específica. A proposta de medidas sobre as microfinanças online publicadas em 3 de novembro está em elaboração desde setembro de 2019. Ela estabelece regras rígidas sobre alavancagem, exigindo que as empresas de microfinanças mantenham sua taxa de alavancagem abaixo de 600%, e retenham pelo menos 30% dos empréstimos por elas originados em seus livros.
Essas normas regulatórias são bastante semelhantes às dos bancos. Em julho deste ano, o CBIRC também emitiu novas regulamentações para o negócio de crédito online dos bancos, enfatizando que os bancos não podem terceirizar suas responsabilidades na gestão de riscos. O efeito combinado é acabar com a expansão não regulamentada das empresas de microfinanças on-line, e garantir que elas mantenham reservas de capital suficientes para arcar com o risco de suas decisões de empréstimo.
Para os reguladores, é simplesmente inaceitável que grandes empresas financeiras - essa é a natureza verdadeira das empresas de tecnologia - operem fora dos marcos da regulação financeira. No final de outubro, diz a Gavekal, a Comissão de Estabilidade Financeira e Desenvolvimento, órgão coordenador de alto nível, reafirmou que “é necessário incentivar a inovação e promover o empreendedorismo, mas também é necessário fortalecer a regulação e trazer atividades financeiras totalmente sob a supervisão da lei para efetivamente prevenir riscos".
No início de novembro, o PBOC publicou seu anual Relatório de Estabilidade Financeira, que pela primeira vez esboçou um marco regulatório para a tecnologia financeira. Os regulamentos e normas existentes devem definir uma linha vermelha que a inovação não pode cruzar, disse o PBOC, embora os reguladores “reservem espaço” para a inovação por instituições financeiras licenciadas.
As autoridades chinesas entendem que as empresas de tecnologia devem jogar pelo mesmo conjunto de regras que disciplinam os bancos comerciais e demais empresas financeiras tradicionais. “Grandes empresas de tecnologia já se tornaram importantes para o funcionamento do sistema financeiro, e serão reguladas da mesma forma”. Uma vez estabelecidos os princípios gerais, será promulgado a regulação mais detalhada das novas formas de atividade financeira. “Provavelmente não vai demorar muito até que a gestão da riqueza on-line se torne sujeita a uma regulação mais abrangente, assim como, diga-se, toda a gestão da riqueza está sendo padronizada”.
“Toda a gestão da riqueza está sendo padronizada”. Uma frase que revela mais que sua aparente banalidade. Sinto incomodar os crentes dos mercados eficientes, os que pretendem confinar as transações financeiras no arcabouço teórico das feiras livres. Os sistemas monetários financeiros são muito mais cruciais para o funcionamento das economias capitalistas. Para o bem ou para o mal, são organismos de coordenação (planejamento?) dessas economias, irremediavelmente monetárias. Por isso, os sistemas monetários são inexoravelmente centralizados, a despeito da multiplicação de agências e agentes incumbidos da gestão de ativos privados heterogêneos, sim heterogêneos em sua semelhança monetária.
Nos tempos de bonança, a coisa anda às maravilhas e o universo da acumulação e precificação da riqueza monetário-financeira estimula a criativa multiplicação e dispersão dos ativos. Quando o troço aperta emerge a dura feição centralizadora.
A convivência entre a dimensão privada e proprietária da riqueza monetária e a força centralizadora dos gestores públicos da moeda - essa instituição irremediavelmente social - é uma liça entre contrários inexoravelmente interdependentes em sua xifopagia. A crise de 2008/2009 e o desmantelamento dos circuitos monetários do coronavirus escancararam o desespero da dimensão privada em colapso e o clamor angustiado pelo socorro público.
O Relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) preparado para apoiar a última reunião do G-20 faz uma incursão nas virtudes e contrariedades dos mercados de riqueza monetária. “As intervenções decisivas dos grandes bancos centrais ajudaram a preservar a estabilidade. As más condições financeiras globais refluíram e os rendimentos dos títulos soberanos e corporativos caíram de suas altas no início da crise… As elevadas valorizações do mercado ao lado de uma recuperação que é apenas parcial resultaram em uma desconexão entre os mercados financeiros e a economia real, refletindo em parte o otimismo dos investidores sobre o apoio público contínuo e uma rápida recuperação.
Embora o apoio à política tenha ajudado a restaurar a calma, vulnerabilidades estão se construindo no setor financeiro, à medida que os buffers de capital dos bancos e das instituições financeiras não bancárias são corroídos”.
Em artigo recente no Financial Times, o conselheiro do grupo Allianz e professor de Columbia, Mohamed El Erian, afirmou que Donald Trump acreditava, e declarou publicamente repetidas vezes, que o mercado de ações validou suas políticas. Quanto mais o mercado subia, maior a afirmação de sua agenda “Make America Great Again”. A abordagem do presidente era música para os ouvidos dos investidores. Trump reforçou a crença já consolidada há tempos em um “Fed put” - abreviação para a visão de que o Fed sempre vai intervir para resgatar os mercados - a tal ponto que as expectativas dos investidores ficaram ancoradas nas areias do otimismo.
Na hora do aperto, o abastecimento de liquidez, a seiva dos mercados financeiros, só encontra provimento nos bancos centrais. O comportamento dos sistemas monetário-financeiros nos ciclos de negócios pode ser comparado a uma sinfonia de Beethoven que alterna movimentos de exaltação e tristeza. Nessa toada, ora os acordes são eufóricos, ora melancólicos. Entre as obras primas de Ludwig recomendo a abertura da Quinta Sinfonia com seus acordes bombásticos: Tan-tan-tan-tam. “O Destino Bate à Porta”. Isso, sem desconsiderar o quarto movimento da Nona, o Hino à Alegria.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
Andrea Jubé: Vai, Rodrigo!, ser “gauche” na vida
PT da Câmara vai se posicionar contra a reeleição na Mesa
A esquerda saiu derrotada das urnas - com ressalva ao desempenho de Guilherme Boulos (PSOL) em São Paulo -, numa disputa em que MDB, PP, PSD, PSDB e DEM elegeram mais de 3 mil prefeitos.
Apesar do revés eleitoral, as bancadas de esquerda retornam ao Congresso nesta semana com os passes valorizados para outra eleição: a sucessão nas Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, daqui a 63 dias.
Entusiasta de uma ampla frente “de centro” em 2022 - na qual incluiu Ciro Gomes e o PDT - o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), terá de fazer a curva à esquerda para conquistar os votos necessários para sua eventual reeleição, ou para fazer um sucessor de seu grupo.
Na Câmara, os 138 deputados dos partidos de esquerda cumprirão o papel de fiel da balança no desfecho da acirrada disputa entre Rodrigo Maia e Arthur Lira (PP-AL). Sabe-se que foram os votos da esquerda que viabilizaram a expressiva vitória de Maia no primeiro turno em 2018, com 334 votos.
Ontem durante uma reunião virtual, a bancada do PT - a maior da esquerda, com 57 deputados - estabeleceu pré-requisitos ao candidato que reivindicar os votos petistas. Dois deles inviabilizam, de saída, o endosso do PT ao próprio Maia, e ao relator da reforma tributária, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB).
Falta a chancela do diretório nacional, mas a bancada do PT na Câmara vai se posicionar contra a reeleição dos atuais presidentes das Casas.
Os deputados não têm ingerência sobre os senadores, mas, ao menos em seu foro decisório, não avalizarão a eventual recondução de Rodrigo Maia, na hipótese de o Supremo Tribunal Federal (STF) declarar a constitucionalidade da postulação.
Os deputados do PT também só comprometerão os votos da bancada com um candidato apoiado oficialmente pelo seu partido. Essa posição é um complicador para Aguinaldo, na hipótese (remota) de ele lançar a candidatura avulsa pelo grupo de Maia. O presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), já declarou que o partido apoia Lira.
As diretrizes dos votos do PT na Câmara ainda serão submetidas ao diretório nacional, que se reúne na próxima semana para a primeira avaliação oficial do resultado das eleições.
As bancadas da Câmara e do Senado divergem, e o diretório terá de arbitrar o impasse. O líder no Senado, Rogério Carvalho (SE), já declarou publicamente apoio da bancada à recondução do presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP).
Maia já tem uma boa parcela dos votos da esquerda, mas terá de se desdobrar pelos votos do PT. O partido tem restrições a vários de seus possíveis candidatos. Rejeita o líder e presidente do MDB, Baleia Rossi (SP), pela proximidade de Michel Temer.
A melhor interface dos petistas entre os postulantes à cadeira de Maia tem sido, até agora, com o vice-presidente Marcos Pereira, e com o próprio Arthur Lira. Ambos, entretanto, são considerados muito próximos do presidente Jair Bolsonaro.
Aguinaldo seria uma solução menos amarga, mas dificilmente embarcará em uma candidatura avulsa. O exemplo mais recente dessa aventura, em 2005, acabou na eleição de Severino Cavalcanti (PP-PE), morto neste ano. Ele comandou a Casa por sete meses, até renunciar, diante das denúncias do “mensalinho”.
O racha no PT favoreceu a vitória do azarão. O candidato oficial da sigla era o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (SP), que venceu o primeiro turno. Mas o também petista Virgílio Guimarães (MG), que concorreu como avulso, obteve 117 votos, e empurrou o desfecho para o para o segundo turno.
Em suma, a dois meses da eleição, o cenário é nebuloso, e a disputa tende a ser voto a voto. Se vivo fosse, e acompanhasse a política nacional, Drummond diria a Maia: “Vai ser ‘gauche’ na vida”.
PT e o Acre
A derrota nas 26 capitais pela primeira vez desde 1985 é um dos piores revezes do PT desde a sua fundação, há 40 anos. Mas uma leitura mais detalhada dos números deveria acender mais luzes amarelas na cúpula da legenda.
Um decano do partido questiona, por exemplo, por que o PT não elegeu sequer um vereador em Rio Branco, capital do Acre. Em dimensão eleitoral, parece desimportante, mas esse resultado tem um simbolismo incômodo.
Somados os períodos em que o PT esteve no comando da Prefeitura de Rio de Branco e do governo do Acre, são 38 anos de administrações petista nas esferas municipal e estadual.
Foram 18 anos não consecutivos na prefeitura, e mais 20 anos consecutivos no governo estadual, entre 1999 e 2018, onde se revezaram os irmãos governadores Jorge e Tião Viana, e no intervalo entre eles, Binho Marques.
Pode-se argumentar que o eleitorado do Acre, assim como o da Região Norte, tornou-se majoritariamente bolsonarista. Mas a esquerda elegeu vereadores em Rio Branco. PDT e PSB fizeram seis dos 17 titulares da Câmara Municipal.
Se o Acre não tem expressão eleitoral, o PT pode direcionar a lupa para os quatro Estados do Nordeste, governados por petistas: Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte e Piauí. Nenhum desses governadores conseguiu levar candidatos do PT à Prefeitura das capitais ao segundo turno.
O caso da Bahia é alarmante: sem lideranças expressivas nos grandes centros (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais), o PT pode perder em 2022 o comando do quarto maior colégio eleitoral do país.
O exemplo de Rio Branco aplica-se à Bahia do ex-governador Jaques Wagner, e de seu sucessor, Rui Costa, que tem 80% de aprovação popular. Após 14 anos no comando do Estado, o PT sai desta eleição com três vezes menos prefeituras do que seus futuros adversários. Dos 417 municípios baianos, o PT governará 32 prefeituras.
O PSD do senador Otto Alencar, pré-candidato à sucessão de Rui Costa, elegeu 108 prefeitos. O DEM do prefeito ACM Neto, também pré-candidato ao governo, fez 37 prefeitos, inclusive Bruno Reis, em Salvador. Se o senador Jaques Wagner não for candidato em 2022, o PT corre o risco de ceder a cabeça de chapa, e ficar sem o comando do Estado que entregou 72% dos votos para Fernando Haddad em 2018.
Humberto Saccomandi: Trump leva a negação do outro ao limite
Ao acusar regularmente Joe Biden e os democratas de quererem “destruir tudo o que amamos e estimamos”, Trump preparou o terreno para deslegitimiar o outro lado e contestar, sem provas, o resultado eleitoral
“A esquerda radical está empenhada em destruir tudo o que amamos e estimamos”, disse o presidente Donald Trump num comício na Flórida, em 12 de outubro. O atual ciclo eleitoral nos EUA é mais um exemplo gritante desse tipo de retórica excludente, na qual só um lado se vê legitimado a vencer. É um jogo de soma zero que ameaça a democracia. As próximas semanas serão decisivas.
Trump passou a campanha usando esse tipo de retórica. Biden e os democratas “vão matar nossos empregos, desmantelar nossa polícia, dissolver nossas fronteiras, libertar criminosos estrangeiros, elevar nossos impostos, confiscar nossas armas (…), destruir nossos subúrbios e tirar Deus do espaço público”, tuitou ele em outubro.
O presidente costuma usar uma linguagem hiperbólica. Quase tudo o que ele faz é “tremendous”. O que outros fazem ou fizeram é um “disaster”. É um mundo anedótico em preto ou branco. Mas, à parte o aumento de impostos (que parece inevitável devido ao aumento dos gastos com a epidemia), nada do que ele tuitou constava do programa do democrata Joe Biden, que é basicamente um moderado, que seria um centrista em qualquer país europeu. O objetivo desse tipo de discurso é incutir a suspeita, o medo, o ódio ao outro.
A narrativa por trás disso é perigosamente simples. O outro busca destruir o que somos (algo propositadamente pouco definido). Logo, o outro não pode chegar ao poder, afinal ninguém quer ser destruído. O passo seguinte é que vale tudo para impedir a vitória do outro, como Trump está agora tentando fazer. Um passo ulterior é que, se o outro não pode vencer, porque ele precisa existir? E, pronto, estamos no terreno do autoritarismo. O fascismo italiano via a oposição como desnecessária, já que ele era o portador do bem comum.
Um dos princípios da democracia é a alternância de poder. Se eu não ganhar desta vez, ganharei na próxima ou na seguinte. Essa alternância permite refinar a política com o tempo, como numa concorrência normal, quando um produto predomina até que apareça outro melhor. Isso estimula, ou deveria estimular, os partidos a oferecerem candidatos e políticas melhores. Quem não o fizer acaba punido pelo eleitor. A alternância estimula ainda a colaboração. Se um partido ficar desfazendo tudo o que o outro fez no governo anterior, não se avança.
O discurso da exclusão, porém, visa deslegitimar o concorrente. O desfecho, caso o eleitor opte pelo outro, será apocalíptico. Não haverá retorno possível. É como se a propaganda de um sabão em pó, em vez de mostrar como ele lava melhor, acusasse o concorrente de destruir a roupa, a máquina de lavar. Sem provas.
Não foi Trump que introduziu esse discurso no “mainstream” da política americana. Já em 1996, no livro “A Política da Negação”. Michael Milburn e Sheree Conrad, professores de Psicologia Social na Universidade de Massachusetts, identificaram a ascensão dessa retórica extremista na direita religiosa americana, em figuras como Pat Buchanan e Newt Gingritch. Mas Trump levou essa negação do outro à Casa Branca, ao topo do establishment americano. Ninguém estimulou e explorou o medo e o ódio como ele.
Esse é um discurso comum a qualquer extremismo. Hugo Chávez passou anos dizendo que a oposição de direita destruiria a Venezuela caso voltasse ao poder. Seu sucessor, Nicolás Maduro, repete isso regularmente. O resultado é o impedimento de a oposição vencer, por quaisquer meios necessário. O fim da alternância levou o país à ruína.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro se refere à oposição em termos similares. “Nós temos que acabar com aqueles que querem destruir a família brasileira”, disse em entrevista ao Valor, ainda em dezembro de 2017, como se houvesse um único modelo de família brasileira do qual ele seria o porta-voz. No início deste ano, afirmou: “Não dê chance para essa esquerda. Eles não merecem ser tratados como pessoas normais, como se quisessem o bem do Brasil.” Outra expressão comum no discurso da negação é se proclamar do lado dos “homens de bem”, o que automaticamente coloca o outro fora do campo do bem.
Essa visão revela uma concepção quase religiosa do governo, como se fosse onipotente. Isso é, obviamente, uma falácia. Tudo que um governo faz, dentro das regras do jogo, pode ser desfeito. É improvável, por exemplo que qualquer governo democrático conseguisse fazer nos EUA os propósitos que Trump atribuiu a Biden. Haveria oposição do Legislativo, do Judiciário, da sociedade civil. O próprio Trump sentiu essa impotência na pele. O muro que ele prometeu construir na fronteira com o México, pago pelos mexicanos, nunca saiu do papel. E mudanças que ele fez nas normas ambientais serão agora desfeitas por Biden, por decisão dos eleitores americanos. Assim é o jogo da alternância.
Mas a política da negação tem um forte apelo populista. Ela identifica um culpado, o outro, ao qual pode ser atribuída a responsabilidade por quase qualquer mazela. Tanto na Venezuela chavista como nos EUA trumpiano, a culpa é sempre do outro. E, mesmo quando não há uma culpa, como no caso do surgimento de um vírus, é possível atribuí-la, como Trump faz com a China.
O resultado dessa campanha de deslegitimação e descrédito é que dois terços dos americanos, segundo pesquisa divulgada nesta semana, acreditam que a eleição não foi justa nem livre. Trump contesta o resultado eleitoral no Estado de Nevada, onde as autoridades estaduais, republicanas como Trump, negam qualquer irregularidade.
E, por ora, ele conseguiu que o Partido Republicano o apoiasse nessa aventura política perigosa. Apenas uns poucos senadores e governadores republicanos se dissociaram. “Estou estarrecido de ouvir as acusações sem evidências vindas do presidente, da sua equipe e de muitas outras autoridades republicanas eleitas em Washington”, disse o governador republicano de Massachusetts, Charlie Baker.
O que distingue os EUA da maioria dos países é que há 200 anos os americanos elegem o seu presidente, e o vencedor, seja ele da situação ou oposição, assume. Essa estabilidade certamente ajudou os EUA a se tornarem o que são hoje. Nas próximas semanas ficaremos sabendo se essa tradição continuará.
Maria Cristina Fernandes: O que esperar de um eleitor machucado
Se as eleições de 2016 foram marcadas pelo cansaço, as de 2020 o serão pelas perdas - de vidas, empregos e perspectivas
A campanha eleitoral transcorreu num ano em que a pandemia matou 160 mil pessoas, desempregou 12 milhões, e deixou 7 milhões sem aulas. Por mais que as disputas municipais tratem do que o jargão dos candidatos chama de zeladoria, não há como subtrair da corrida pelas prefeituras e Câmaras de Vereadores, o drama nacional.
Mais do que o cansaço de 2016, pavimento para a praga da antipolítica que se esparramaria pelo país em 2018, a disputa de domingo será marcada pela perda - de vidas, empregos e perspectivas. Foi este o denominador comum das pesquisas feitas por Nilton Tristão ao longo de 2020.
De tão discreto, o instituto que dirige (Opinião) nem perfil em redes sociais tem, mas passou pelo crivo rigoroso do site Pindograma, que analisou quase 2 mil pesquisas no país, como o de maior grau de acerto. Por não seguir a metodologia estabelecida pelo Tribunal Superior Eleitoral, que classifica de binária, Tristão não publica suas pesquisas. Trabalha por encomenda de candidatos.
Do que tem colhido nas pesquisas - quantitativas e qualitativas - conclui que nunca houve distância tão abissal entre os anseios de um eleitor machucado e a oferta do mercado de candidatos. Desse fosso, aposta, sairá a maior taxa de votos em branco, nulos e abstenção de uma eleição municipal desde a redemocratização.
É bem verdade que não se trata uma aposta arriscada. O próprio TSE, lembra Tristão, tem alertado na sua propaganda eleitoral que, na presença de quaisquer dos sintomas da covid-19, o eleitor deve se abster de votar. Mas aqueles que forem aos locais de votação, aposta, não estarão propensos a bravatas e propostas contra-tudo-o-que-está-aí.
O cansaço de 2016 fez ascender gente que se dizia avessa à carreira que estava a abraçar - os empresários João Doria (São Paulo), Alexandre Kalil (BH) e Hildon Chaves (Porto Velho), além do professor universitário Clécio Vieira (Macapá) - e de outros, como Marcelo Crivella (Rio) que, apesar de agarrado à política há muito tempo, ainda age e fala como se num templo estivesse.
As perdas de 2020 dão o tom da moderação. De radical, basta a conjuntura. Basta ver as bem-sucedidas campanhas de Guilherme Boulos, em São Paulo, e de Manuela d’Ávila, em Porto Alegre. O candidato do Psol conteve as ironias que marcaram sua campanha presidencial. Agora faz blague de si mesmo, ou de seu “celtinha prata”, o carro com 120 mil quilômetros rodados que nunca o deixou na mão.
Assiste de dentro de um carro à abordagem de uma repórter de sua campanha a eleitores que temem sua fama de invasor para depois aparecer com um sorriso a explicar os pressupostos do Estatuto das Cidades. Exibe a entrevista-depoimento com o apresentador José Luiz Datena que o conheceu, na virada do século, pelas histórias que seu pai, o epidemiologista Marcos Boulos, fonte do jornalista, lhe contava. Do relato, sai quase um São Francisco de Assis redivivo.
Nas viradas, uma transmissão por 24 horas de sua vida, o eleitor teve acesso ao aquário de suas filhas e à mesa de café da manhã da família - sem leite condensado no pão. A intimidade não explica como montaria uma maioria na Câmara de Vereadores, mas ajuda a moderar a imagem e aproximá-la do paulistano médio. Se conseguir o voto útil dos petistas, chegará ao segundo turno contra o prefeito Bruno Covas (PSDB), que tem na sua luta pessoal contra o câncer o maior ponto de adesão com este eleitorado machucado pela pandemia.
Também é outra Manuela aquela que se apresenta ao eleitor de Porto Alegre. A candidata do PCdoB, vice de Fernando Haddad em 2018, se apresenta como alguém que “sofreu e aprendeu”. Tanto ela quanto Boulos podem vir a ser beneficiados pelo comparecimento do eleitorado jovem, presumivelmente maior do que a média por causa da pandemia. Não têm uma eleição fácil, mas se passarem para o segundo turno já terão conseguido dar o tom da esquerda para 2022. E não apenas da esquerda.
De candidato da antipolítica em 2016, Alexandre Kalil (PSD) virou o conciliador pragmático que só não transige com o coronavírus. Quando o presidente da República culpou os prefeitos pelas mortes, respondeu: “Muito ajuda quem não atrapalha”. Cartola do Atlético Mineiro, vetou a presença de público em estádio de futebol durante a pandemia como queria Bolsonaro - “É coisa de débil mental”. Chega ao fim do primeiro turno mantendo Belo Horizonte com uma taxa de transmissão da covid abaixo de 1 (o que indica desaceleração do contágio) e caminha para se reeleger facilmente no primeiro turno, derrotando um candidato abertamente bolsonarista.
Daqueles mais identificados com o presidente da República, só Wagner Gomes, o deputado federal Capitão Wagner (Pros), tem chances de passar para o segundo turno em primeiro lugar. Para isso, precisou se afastar de Bolsonaro. O candidato do Republicanos em São Paulo, Celso Russomanno fez o mesmo movimento, mas não adiantou. Talvez porque quando ele diz que morador de rua não pega covid por não tomar banho ninguém sabe se é ele ou Bolsonaro quem esteja falando.
Levada para as “lives” do Palácio do Alvorada - pode TSE? - por outro frequentador e sanfoneiro do evento, o presidente da Embratur Gilson Machado, a candidata do Podemos no Recife, a delegada Patrícia, despencou. A capital do Estado ruma para ser a única no país com dois candidatos de esquerda, os deputados federais e primos João Campos (PSB) e Marília Arraes (PT). É o oposto do que se vê nas capitais do Centro-Oeste. Nesses oásis do agronegócio, onde os marqueteiros paulistas que lá estão reclamam do preço dos restaurantes, a esquerda não tem qualquer chance de chegar ao segundo turno.
A eleição nas capitais está longe de refletir o conjunto do país. São 5.568 disputas diferentes comandadas pelas realidades locais. Só o medo da morte e da fome os une. O resultado eleitoral de domingo não determina o futuro de Bolsonaro. No limite, pode mostrar um presidente da República dissociado do sentimento do eleitor. O que é metade do caminho para 2022.
Alex Ribeiro: Derrota de Trump não afeta bolsonarismo
Mercado se anima com falso declínio do populismo de direita
As eleições americanas animaram o mercado financeiro na semana passada, com alta da Bolsa e queda dos juros e do dólar. Boa parte dos ganhos se deve à esperança de um comando dividido nos Estados Unidos, com Biden na presidência e o Senado sob controle republicano, que limita extravagâncias da esquerda democrata. Mas analistas citam uma força adicional: a derrota de Trump seria um revés para a onda global populista de direita, incluindo o bolsonarismo.
Embora tenha apoiado a eleição de Bolsonaro em 2018, o mercado financeiro, em geral, não gosta de populismo. A retórica ideológica do governo em áreas como meio ambiente, relações exteriores e saúde causa preocupação dentro da própria equipe econômica. Também gera inquietação a aproximação do presidente com o populismo fiscal. Por isso, o enfraquecimento do populismo de direita seria positivo para a economia e para os mercados financeiros.
O cientista político Christopher Garman, managing director para as Américas da Eurasia Group, discorda da tese de que a derrota de Trump representa um enfraquecimento do populismo de direita. Ele pondera que Trump superou as expectativas. As forças que, em primeira instância, levaram à ascensão do populismo de direita seguem presentes. E são independentes nos Estados Unidos e Brasil, por isso Bolsonaro não será afetado.
“O Trump se saiu bem, superou as pesquisas, demonstrou ser mais resiliente do que as pessoas estavam antecipando”, diz Garman, que cita a melhora de sua performance no votos dos latinos e dos afroamericanos nas cidades. A eleição foi decidida por alguns pontos percentuais em favor de Joe Biden em estados competitivos, em que se alternam vitórias democratas e republicanas. “Se não fosse pela forma desastrosa que lidou com a Covid 19, Trump teria sido reeleito.”
Uma pesquisa feita pelo Ipsos Public Affairs, uma empresa de opinião publica, mostra que às vésperas do pleito 28% dos eleitores consideravam o combate à pandemia como o principal tarefa do próximo presidente. Biden estava 14 pontos percentuais à frente de Trump quando se pergunta quem está mais preparado para lidar com a pandemia
O fato de Trump ter sido um candidato competitivo a despeito da sua incapacidade no tema prioritário para o eleitorado mostra como é forte a sua base de apoio. Garman diz que as forças que levaram à ascensão do populismo nos EUA seguem presentes.
“É o desencanto profundo de boa parte da população com o chamado sistema, com a mídia, com o judiciário, com a política tradicional”, afirma. “Os fatores que levaram a isso são o aumento de desigualdade de renda, cada vez maior, o distanciamento entre o desempenho econômico dos centros metropolitanos com a velha economia industrial e os centros mais dinâmicos, com a nova economia.”
A perspectiva não é muito animadora. A pandemia da Covid-19 deverá exacerbar essas desigualdades. A recuperação econômica se desenha no formato em “K”, com a volta mais forte da nova economia e o desempenho mais fraco do setor de serviços.
As enquetes de opinião pública mostram que os americanos estão muito divididos. Uma pesquisa da Ipsos revela que cerca de um quarto dos americanos (26%) apoiaria a continuidade de Trump no cargo no caso de ele perder a eleição e declarar que o resultado não é legítimo.
“Vejo mais polarização, não moderação. O partido Democrata está migrando para uma base mais liberal, progressista e, no partido Republicano, temos o recrudescimento da base trumpista e um presidente que permanece como uma sobra.”
Não deixa de ser paradoxal o fato de que Biden é a moderação em pessoa - um presidente multilateralista, inclinado ao diálogo e à convergência. Mas seria um erro tomar sua vitória como um sinal de crescimento dos moderados, assim como muitos acharam que Emmanuel Macron, na França, seria um sinal nessa direção. Macron foi um candidado de fora do sistema político convencional.
O Brasil é uma história completamente independente do que acontece nos Estados Unidos. A eleição de Bolsonaro está ligado a fatores locais que levaram a uma profunda descrença nas instituições e na política tradicional. A tese de Garman é que esse terreno fértil ao populismo surgiu com a ascensão da nova classe média, que ficou frustrada com a péssima qualidade de serviços públicos, como saúde, educação e segurança.
“É claro que o presidente Bolsonaro pode imitar, tomar lições do trumpismo, e teve muito disso”, afirma Garman. “Mas o fenômeno bolsonarista foi um desencanto profundo por razões domésticas, e não será o Trump fora do poder que vai mudar isso.” Ele propõe um contrafactual: se Hillary Clinton tivesse derrotado Trump em 2016, o presidente Bolsonaro não teria sido eleito?
Não se deve esperar uma moderação, no Brasil, do discurso ideológico do presidente. Bolsonaro migrou para o centro recentemente, mas foi apenas um recuo tático, diz Garman. “Ele não vai demitir o ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores) nem o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) só porque o Biden foi eleito. Acho muito improvável que vá se acovardar para uma liderança mais de esquerda nos Estados Unidos e desagradar a base ideológica.”
O futuro eleitoral de Bolsonaro, diz Garman, dependerá do custo político que terá que pagar com o fim ou redução do auxílio emergencial e de como vai manejar o abismo fiscal no ano que vem, quando os estímulos fiscais que mantém a economia viva terão que ser retirados para retomar o ajuste das contas públicas. “O presidente Bolsonaro deve encontrar um quadro eleitoral bastante competitivo”, afirma. “Qual é a perspectiva de melhora dos serviços públicos em dois anos, com uma crise fiscal em Estados e municípios? O presidente Bolsonaro vai ter que lidar com a falta de melhora desses serviços público e a economia recuperando. O futuro político dele depende disso, não do que aconteceu com Trump.”
Luiz Carlos Mendonça de Barros: Roteiro para a recuperação da economia
Aumento brutal na necessidade de rolar a dívida em títulos está criando uma situação perigosa de solvência de curto prazo
Os últimos dados econômicos divulgados para o mês de setembro consolidam, de forma inquestionável, a recuperação da economia brasileira. Para efeito de ilustração desta afirmação vejam ao lado a evolução do índice IBC-Br que mimetiza por antecipação a evolução do PIB no Brasil. Mas não é apenas o IBC-Br que mostra uma recuperação em V com uma pequena inclinação, mas outros indicadores relevantes. Cito outros, como a evolução da arrecadação de impostos pela Receita Federal, consumo aparente de bens industriais monitorado pelo Ipea, vendas ao comércio restrito e ampliado e atividade na indústria que apontam que entraremos em 2021 com a economia de volta ao seu leito normal do ciclo econômico.
Estamos agora no início de um processo analítico de olhar para os estragos de longo prazo que vão aparecer nas economias nacionais, e mais importante ainda, de como supera-los para voltar a normalidade perdida com a pandemia. Neste sentido é muito bem-vindo o texto produzido por técnicos do FMI no “October 2020 Fiscal Monitor - Fiscal Policy for Unprecedented Crisis” sobre o que chamaram de “Road Map” para o futuro próximo. Nele seus autores defendem que a política anticíclica tomada pela grande maioria dos governos respondeu com eficiência aos desafios que a crise trouxe para as economias nacionais por eles analisadas. Citam entre elas as seguintes;
Medidas de saúde pública para conter a expansão da pandemia;
Benefícios extraordinários para os afetados pelo desemprego
Transferências de recursos dos Tesouros nacionais para indivíduos dos grupos de risco;
Suporte de liquidez para empresas mais atingidas pela recessão.
O trabalho menciona ainda a importância do apoio dado pelos bancos centrais das economias desenvolvidas, e em algumas poucas economias emergentes, via compra maciça de títulos públicos que criaram um espaço para juros muito baixos e para os governos aumentarem seu endividamento. Uma linguagem pouco comum para os que conhecem a história desta instituição de crédito. Em outras palavras, a política anticíclica no Brasil tem todo o apoio do FMI, aliás como mostrou também a presidente desta instituição em entrevista recente citada pelo jornalista Celso Ming em sua coluna no Estadão.
Os autores concluem suas reflexões com o que chamaram de “Um roteiro fiscal para a recuperação econômica” e do qual retirei as seguintes observações;
Para as economias em que o controle da pandemia (EUA e Europa por exemplo) ainda não chegou a seu final os governos não devem retirar muito cedo seu apoio fiscal;
Entretanto eles devem ser mais seletivos na escolha dos beneficiários de suas ações;
Mas nos países em que o desemprego ainda é muito relevante devem continuar a fortalecer as empresas mais vulneráveis em seu processo de reabertura.
O Brasil, pelos critérios dos autores deste trabalho, está à frente da grande maioria das outras economias em função da conjugação de uma ação fiscal eficiente do governo (Tesouro e Banco Central) e de governos estaduais e municipais na gestão do chamado isolamento social. Apesar de ao custo de um número de mortes ainda muito elevado, foi levado adiante o processo de normalização da atividade econômica com exceção de alguns setores do mercado de serviços.
Certamente antes da virada do ano a atividade econômica no Brasil já deve ter voltado ao nível anterior a pandemia, mas com sequelas importantes na infraestrutura econômica do país. A mais grave, e que já chegou ao dia a dia da economia, é o alto endividamento do governo criado pelo esforço fiscal brutal no combate aos efeitos da covid-19.
Neste aspecto, o Brasil talvez seja o caso mais crítico dado o tamanho do mercado interno de títulos públicos que o coloca como ponto fora da curva entre as economias emergentes. Em um primeiro instante esta característica foi fundamental para o sucesso das ações fiscais do governo, mas agora com o aumento brutal na necessidade de rolar sua dívida em títulos está criando uma situação perigosa de solvência de curto prazo.
Em função dos volumes de rolagem da dívida mobiliária, os investidores estão começando a exigir juros mais elevados alegando os riscos envolvidos pela dívida de curto prazo e superior a 100% do PIB. Embora outros países desenvolvidos tenham aumentado também o seu nível de endividamento, no caso de uma economia emergente como a brasileira, as tensões que este endividamento provoca sobre o mercado é de outra natureza.
Não acredito que no curto prazo possa ocorrer uma perda de funcionalidade do mercado de títulos públicos no Brasil, mas certamente o custo de rolagem da dívida criada adicionalmente em 2020 vai aumentar pela pressão dos intermediários na sua colocação junto a investidores. Como dizem os operadores financeiros, “isto é da regra do jogo” nos mercados financeiros. Mas o governo terá que mostrar uma agenda para tratar da estabilização desta dívida com um plano de ação adicional à já longeva promessa de reformas estruturais.
E para obter credibilidade terá que envolver a criação de novos impostos, a serem cobrados dos maiores beneficiários de seu esforça fiscal, mesmo que por um finito espaço de tempo, como aumento do IR da pessoa física e estender sua cobrança no pagamento de dividendos pelas empresas.
*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações
Fabio Graner: O desafio de manter a retomada da economia
Parte da reação mais rápida do que o previsto se deve ao pagamento do auxílio emergencial, que deve terminar abruptamente na virada do ano
Em meio à tristeza de 150 mil mortes pela covid-19, a economia brasileira apresentou nas últimas semanas uma série de dados positivos. Números como a alta recorde das vendas do varejo motivam revisão generalizada de previsões para o PIB.
O movimento mais recente foi do Banco Mundial, que havia irritado o governo com sua catastrófica projeção de queda de 8% e que passou a prever recuo de 5,4% no ano. Ainda é um tombo feio, mas embute uma recuperação bem mais rápida.
Nos bastidores, a equipe econômica tem comemorado o ritmo de expansão e acreditam que isso terá continuidade. A visão é que o setor de serviços começará a ter um ritmo melhor daqui para frente, consolidando a recuperação do PIB.
Mas é necessário cautela. Os dados que mostram forte ritmo no varejo e na indústria têm efeito de medidas como o auxílio de R$ 600 pagos a quase 70 milhões de pessoas. Só isto já injetou R$ 237 bilhões na economia. A partir de setembro, porém, ele foi reduzido a R$ 300 e assim deve seguir até dezembro.
Como a economia se comportará com o corte pela metade de seu principal impulso fiscal? É verdade que o auxílio e outras medidas, como a liberação do FGTS, devem injetar cerca de R$ 150 bilhões entre setembro e dezembro. Não é pouco. Mas a dúvida mais inquietante é para 2021, quando não só o auxílio, mas os outros programas, como o benefício para o emprego e as ações de crédito às empresas, chegam ao fim. Qual será a resposta do setor privado à contração fiscal prevista, em meio às sequelas deixadas pelo coronavírus, como os milhões de desempregados e o fim de milhares de empresas?
A equipe econômica parece mais preocupado em sustentar o discurso de que a partir de 1º de janeiro a vida fiscal do país volta ao limite do teto de gastos, salvo uma segunda e forte onda da covid-19, do que em responder a essas perguntas.
É preciso reconhecer que de forma geral, Paulo Guedes e sua equipe tiveram uma ação econômica correta, com medidas relativamente bem calibradas - sem, claro, esquecer da atuação do Congresso em seu desenho final. Essa retomada do crescimento reflete isso, ainda que não se deva deixar de comentar que o resultado final seria muito melhor não fosse a sabotagem do presidente da República às medidas de isolamento social, que prejudicou o combate ao vírus e até hoje cobra seu preço em vidas e resultados econômicos.
Agora, cabe se discutir a transição da política econômica. É verdade que esse processo já começou com a redução do auxílio emergencial, mas seu fim parece abrupto em 2021. O problema é que a vida no tecido econômico não muda só porque o calendário passou de 31 de dezembro para 1º de janeiro. E aí reside uma enorme incerteza.
Documentos do próprio governo lançam dúvidas sobre a persistência desse ritmo de recuperação. Em seu relatório de inflação, o Banco Central disse que a ausência de uma clara retomada do mercado de trabalho “pode impor restrições à velocidade futura de recuperação da economia, especialmente após redução das transferências extraordinárias”.
Já o Ipea aponta que a questão relevante é como manter a economia em ritmo satisfatório, no restante do ano e ao longo de 2021. “O desafio reside em buscar um ritmo adequado de transição das medidas excepcionais de política voltadas para a preservação de empregos, renda e produção para um regime de política que continue a prover suporte ao setor produtivo e assistência aos mais necessitados, mas que seja fiscalmente sustentável”, diz.
É essa sinalização que a equipe econômica falha em dar. O problema não é trivial, dada o elevado endividamento do país. Mas o desempenho do PIB é parte do processo de ajuste fiscal. O ponto é que a discussão econômica se tornou binária em torno do teto de gastos, algo que equivocadamente tem sido estimulado pelo próprio Ministério da Economia. É um tudo ou nada que já está cobrando o seu preço.
“A grande questão é como se consegue tirar o estímulo fiscal sem causar uma recessão. É muito difícil a economia resistir a uma retirada de estímulos de 8% a 10% do PIB. Devia ser gradativo, enquanto o setor privado vai se recuperando”, comentou o pesquisador do Ibre/FGV e ex-secretário de Política Econômica, Manoel Pires.
Ele explica que não é uma questão de calendário, e sim econômica. “Tem o outro lado: é evidente que isso pode gerar outra crise se não houver clareza sobre como retirar esse incentivo fiscal. Tem um dilema de curto prazo a ser resolvido”, afirmou, explicando que isso deve ser feito sem se descuidar de uma solução fiscal de longo prazo para o país.
Para a especialista em contas públicas e procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo Élida Graziane, planejar a transição de 2020 para 2021 “é esforço de justiça fiscal que pode ser feito de forma transparente e equilibrada até para que seja resguardado o custeio dos serviços essenciais”.
Ela lembra que o pais já alterou o teto para repassar os recursos do petróleo e adotou o Orçamento de Guerra diante da necessidade da pandemia. “Não podemos interditar reflexão equitativa sobre nossas regras fiscais em um plano bienal de enfrentamento da pandemia”, disse a procuradora ao Valor.
Guedes tem discutido com o Congresso uma boa e engenhosa ideia: prever de forma permanente, dentro da PEC do Pacto Federativo, a possibilidade de se acionar o Orçamento de Guerra, que hoje só vale para essa pandemia. A medida poderia ser uma saída caso haja uma intensa segunda onda de covid-19 no Brasil, que force uma ação do governo em 2021.
Mas esse arcabouço jurídico poderia ser complementado, definindo-se alguma margem de manobra para o governo fazer uma retirada gradual desse tipo de estímulo, mesmo com a “operação de guerra” já encerrada. Isto evitaria o que Pires chama de “abismo fiscal”.
Para o ex-diretor do BC e economista-chefe da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Carlos Thadeu de Freitas, faz sentido falar em algum mecanismo de transição para o início de 2021. Mas ele alerta que isso só é viável se o país demonstrar compromisso de voltar ao teto de gastos, com a adoção de medidas estruturais de ajuste fiscal. “Tem que ter força política e mostrar que quer o teto”, afirmou.
Ao defender com unhas e dentes o teto de gastos, Guedes e sua equipe miram na confiança de investidores do mercado financeiro. Falta também falar com o restante da sociedade.
José de Souza Martins: Amazônia em transe
Das pranchetas do economismo ideológico nunca saiu nada socialmente inteligente
Dirigentes de três dos maiores bancos brasileiros apresentaram, ao vice-presidente da República, um plano para a Amazônia. Mas um plano que está muito longe de reconhecer e enfrentar os aspectos mais graves da problemática realidade econômica e social da região, de seus habitantes e do país, no que a Amazônia nele é ou pode ser.
Convém lembrar que, na perspectiva do que já foi chamada de Amazônia Legal, aquela região constitui bem mais da metade do território brasileiro. As personagens e os destinatários da proposta, no entanto, nela correspondem a muito menos do que é a população da Amazônia problemática e em crise.
Nada diz de significativo aos nossos compatriotas indígenas e aos desvalidos da economia tradicional e camponesa, cuja situação de risco e abandono é o que tem motivado as restrições econômicas ao que da Amazônia devastada e excludente buscam os mercados dos países ricos. Das pranchetas do economismo ideológico nunca saiu nada socialmente inteligente, embora lucrativo para poucos a curto prazo e destrutivo para a nação a prazo longo.
Num país como este, suas peculiares características sociais e humanas são muito diferentes do que se pode ver, compreender e interpretar desde as estreitezas neoliberais e monetaristas de Chicago. A boa vontade dos bancos ganharia sentido se temperasse o poder dos economistas dessa corrente com o bom senso investigativo e interpretativo dos cientistas sociais, que há mais de meio século têm estudado sistematicamente a Amazônia e os problemas sociais dos amazônidas.
São esses cientistas que podem apontar na realidade social e econômica o que de fato é problema para o país. Além do que, sem ouvir e compreender as vítimas, dificilmente se chegará a uma proposta que convença os inquietos e desconfiados lá fora e aqui dentro. O Brasil está sendo colocado diante do falso dilema de civilização ou lucro.
Os que dizem agora que querem salvar a Amazônia, com as ciências sociais enxergariam uma Amazônia também indígena, cuja cultura é estigmatizada pelos leigos e improvisadores que menosprezam os seres humanos e suas alternativas para as estreitezas mentais do primado do lucro e da lucratividade. Os que menosprezam porque pensam o mundo e a vida na perspectiva estéril da mentalidade das classes ociosas, como as definiu Thorstein Veblen (1857-1929).
A proposta apresentada é para acalmar os que, nos países desenvolvidos, inquietam-se com os desdobramentos políticos na opinião pública interna de restrições significativas, de natureza social e moral, à importação de produtos originários de uma economia suspeita porque delinquente e socialmente incorreta.
Faltou na proposta o remédio para as ilegalidades na realidade amazônica, da grilagem ao trabalho análogo ao do escravo. Os poderes das economias dominantes têm medo das consequências políticas da consciência social crítica comprometida com a primazia da condição humana.
O que os proponentes, aparentemente, não perceberam é que as objeções e restrições aos produtos da Amazônia não têm a ver somente com queimadas e com o modo de produzir de uma economia retrógrada, ainda que aparentemente moderna.
Fala-se na necessidade de uma boa propaganda que diga ao mundo que o Brasil cuida do ambiente e cuida dos indígenas. A fumaça da floresta queimada e o grito dos que padecem os efeitos da predação e da iniquidade lucrativas dizem que não. O interesse pela Amazônia tem sido, historicamente, limitado aos imediatismos do capitalismo rentista. Não se trata de usar a terra e a natureza, mas de consumi-las, o que é a negação do próprio capitalismo.
O problema da Amazônia já havia chegado à consciência das pessoas esclarecidas de diferentes países há meio século. A questão indígena, a da violência fundiária e a ambiental brasileiras já estavam em debate na Europa e mesmo nos anos 1970, quando a voracidade da economia neoliberal tentou impor-se com base na falsa premissa de que a Amazônia estava disponível para ser ocupada predatoriamente.
Há décadas, indígenas brasileiros têm comparecido a debates, conferências e manifestações na Europa para expor a situação em que se encontram. O eminente e lúcido cacique Raoni Metuktire, do grupo linguístico kaiapó, tem sido ali recebido como herói da humanidade, com seu imponente e belo diadema plumário e seu solene batoque labial e ritual, impondo respeito e acatamento. Coisa que o governo atual não consegue.
Raoni é um dos melhores diplomatas populares brasileiros, porque entre os que têm poder tem o que falar e sabe falar a quem sabe ouvir O interlocutor do verdadeiro Brasil. Significativamente, foi depreciado pelo presidente brasileiro na assembleia-geral da ONU em 2019.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP, Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Fronteira - A degradação do Outro nos Confins do Humano" (Contexto).