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Fernando Exman: Sombra de Bolsonaro na eleição da Câmara

Campanha vai recomeçar em janeiro sem favorito

Em 2 de fevereiro de 2017, Jair Bolsonaro dirigiu-se à tribuna sabendo que não teria a menor chance de se eleger presidente da Câmara dos Deputados. Não demonstrava desânimo, tampouco desconforto com protestos da esquerda. Afinal, não era a primeira vez que se candidatava ao posto e o então deputado pelo PSC fluminense não mirava mesmo a principal cadeira da Casa. Estava lá, isso sim, para executar mais um movimento de sua campanha antecipada à Presidência da República.

Bolsonaro fez questão de marcar posição em relação à mesma agenda legislativa que hoje o leva a tentar influenciar a sucessão do presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Naquele dia, era Bolsonaro quem tentava ostentar o discurso de resgate da credibilidade da Câmara. “Todos sabem muito bem que vivemos uma crise nos três Poderes nunca sentida em nosso país”, declarou, talvez menosprezando a capacidade do país de boicotar o próprio futuro. “Sabemos que o Executivo sempre interferiu nos trabalhos desta Casa, em especial por ocasião das eleições. Hoje temos uma Câmara que não cria leis, que não fiscaliza e que não representa os anseios do povo. O Poder Legislativo se apresenta subserviente ao Executivo e submisso ao Judiciário”, prosseguiu, também talvez sem de fato acreditar que anos à frente estaria do outro lado da Praça dos Três Poderes.

O então deputado criticou o que considerava a usurpação das prerrogativas do Legislativo por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que discutiam a legalização das drogas. “O fato é que o Supremo vem legislando constantemente. E ele quer legislar não só sobre essa questão: legislou também sobre a questão ao aborto.” Para ele, a Câmara precisava de um presidente que batesse à porta do chefe do Poder Judiciário para buscar alternativas e dar fim a esse movimento. Ainda hoje aliados de Bolsonaro reclamam do que consideram ativismo judicial, e acreditam que o Congresso pode ajudar a reduzi-lo.

Ao pedir o apoio da bancada da segurança pública, que mais tarde lhe daria suporte na eleição presidencial, Bolsonaro questionou a regulamentação da audiência de custódia pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a discussão, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), do que pode ou não ser considerado crime de desacato. Não faltaram, claro, falas em defesa do projeto de lei que visa revogar o estatuto do desarmamento.

À bancada ruralista, sinalizou com um “ponto final na indústria de demarcação das terras indígenas”. “Não temos que ter um presidente para ficar apenas chancelando e buscando aprovar o que o Executivo quer. A bancada ruralista tem que ter um presidente que tenha esse compromisso com ela”, destacou. “Temos que ter um presidente, na Câmara dos Deputados, que tenha autoridade, posição e altivez, e não que precise ficar de joelhos para esse ou aquele Poder por causa de interesses pessoais.”

Proclamado o resultado, anunciou-se que Bolsonaro conquistara quatro votos. Quatro, ante os 293 de Rodrigo Maia. Porém, por mais paradoxal que possa parecer, os objetivos de Bolsonaro foram atingidos conforme o planejado.

Os dois voltam agora a se enfrentar, quando a pauta de costumes também retorna ao centro das atenções. A agenda econômica corre o risco de ficar definitivamente em segundo plano a partir de 2021. Também por isso Maia vem conseguindo atrair partidos da oposição para o seu campo, embora ainda não tenha conseguido definir quem será o seu candidato.

O atual presidente da Câmara passou os últimos dias conversando com aliados, medindo quem dos pré-candidatos de sua ala tem mais capacidade de reunir votos e evitar defecções. O voto secreto exige cautela, mas o tempo vai passando e dando espaço para que a candidatura do grupo sofra ataques especulativos ou questionamentos das cúpulas partidárias.

Independentemente do nome escolhido, a estratégia já está desenhada: tentar mostrar que de um lado estará o governo e toda as suas exigências em relação à pauta da Câmara, enquanto do outro ficarão os demais partidos que ainda defendem a independência do Poder Legislativo. Esse tipo de campanha é até capaz de garantir uma vitória moral ao grupo que se diz autônomo, seja qual for o resultado da eleição de fevereiro do ano que vem, mas a mensagem ainda precisa se mostrar forte o suficiente para assegurar uma vitória eleitoral ao grupo.

Essa demora também deu espaço para que líderes do Senado tentassem vincular as eleições das duas Casas do Congresso, o que está cada vez mais difícil de ser concretizado. Em primeiro lugar, porque o quadro de fragmentação partidária e o voto secreto dificultam acordos desse tipo. Além disso, diferentemente do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que insistiu na tese de que poderia concorrer à reeleição, Maia trabalhou na ampliação de seu grupo para fazer um sucessor e teria dificuldades políticas para desmobilizá-lo de uma hora para outra.

Por outro lado, sabe-se também que o deputado Arthur Lira (PP-AL), mesmo sendo o preferido do Palácio do Planalto, não deve ter uma postura de alinhamento absoluto em relação ao Executivo.

Como líder do Centrão, ele sinaliza com governabilidade e previsibilidade, mas sua campanha é baseada, por exemplo, no discurso de que a atual gestão da Câmara mantém controle total da pauta e, portanto, é preciso democratizá-la. Outra promessa do pepista é não interferir nos pareceres que chegarem ao plenário.

Quatro anos depois, Bolsonaro opera com muito mais força a partir do Planalto. Tornou-se onipresente nas discussões sobre a sucessão da Câmara e certamente conseguirá reunir mais do que quatro votos. Mesmo assim, ainda não tem certeza de que desta vez seus objetivos serão alcançados. Quanto mais o presidente aparecer na disputa, melhor será para seus adversários.


Armando Castelar Pinheiro: Economia das narrativas

Três narrativas em 2021: desaceleração com o fim do auxílio, retomada com vacinação e choque temporário da inflação

De acordo com o dicionário Merriam-Webster, uma narrativa é “uma forma de apresentar ou compreender uma situação ou série de eventos que reflita e promova um particular ponto de vista ou um conjunto de valores específicos”. Essa definição está no instigante livro de Robert Shiller, “Narrative Economics” (Princeton University Press, 2019). Como indica o título, o livro é uma grande análise das narrativas econômicas, que expande a palestra proferida no encontro de 2017 da Associação Americana de Economia (bit.ly/38mq5SX). Nesta, o autor observa que o “cérebro humano tem sido sempre altamente sintonizado com narrativas, factuais ou não, para justificar ações em curso, mesmo ações tão básicas como gastos de consumo e investimentos. Histórias motivam e conectam atividades a valores e necessidades profundamente enraizadas”.

O objetivo de Shiller é construir um referencial teórico sobre como as narrativas influenciam o comportamento dos agentes econômicos e como isso, por sua vez, determina o que ocorre na economia. A obra que se encaixa, portanto, no campo mais amplo da Economia Comportamental, a cujos conceitos Shiller recorre em diferentes partes do livro. É o caso, por exemplo, do conceito de “framing”, que enfatiza a influência da forma como as coisas são apresentadas (“framed”) nas decisões tomadas pelos agentes econômicos.

De fato, uma narrativa nada mais é que uma forma de apresentar e organizar as informações que circulam em certa comunidade, sejam elas verdadeiras ou não. Ou, como define o próprio Shiller, “narrativas são construções humanas que são misturas de fato, emoção, interesse humano, e outros detalhes estranhos que formam uma impressão na mente humana”.

Ao contrário do que ocorre nos trabalhos mais tradicionais de Economia Comportamental, porém, o foco de Shiller é a macroeconomia e, em especial, os ciclos econômicos. Assim, como ele coloca, “uma proposição chave deste livro é que as flutuações econômicas são substancialmente impulsionadas pelo contágio de variantes simplificadas e facilmente transmissíveis de narrativas econômicas. (...) Como com as epidemias de doenças, nem todos ficam infectados. (...) Mas em uma epidemia histórica, para a maioria das pessoas a narrativa será fundamental para suas razões para fazer, ou não fazer, coisas que afetaram a economia”.

Assim, a estrutura de análise utilizada no livro é: surge uma narrativa econômica que organiza ou confirma ideias e sentimentos ou paixões que flutuam na sociedade. Essa narrativa em algum momento é expressa publicamente por uma celebridade e isso gera um surto semelhante ao de uma epidemia, fazendo a narrativa se espalhar e influir no comportamento de um número grande o suficiente de pessoas para afetar o que ocorre na economia.

O livro ilustra esse argumento com diferentes exemplos, incluindo bolhas e recessões. Mas a proposta central não é tanto identificar e analisar narrativas que ajudem a entender fenômenos históricos, mas sim propor que uma metodologia como essa ajudaria a prever o que vai ocorrer à frente. Ou seja, que ao pensar o futuro não devemos olhar apenas preços e restrições econômicas, mas também as narrativas que podem vir a moldar o comportamento dos agentes econômicos.

Pensando no Brasil, por exemplo, eu enxergo três narrativas que podem exercer esse tipo de influência em 2021. Uma é que o fim do Auxílio Emergencial levará a uma significativa desaceleração da economia. Essa narrativa já parece influenciar a confiança de consumidores e empresas, o que pode levar a uma profecia auto-realizável, se desencorajar compras e investimentos. O Congresso, porém, parou de discutir a extensão do Auxílio, o que diminuiu a frequência com que o tema aparece na imprensa e isso vai enfraquecer a propagação dessa narrativa.

Uma segunda narrativa, na direção contrária, é a da recuperação econômica que virá com a vacinação e o controle da pandemia. Esta ainda é, por ora, uma narrativa do mercado financeiro, mas ela deve se disseminar conforme a primavera chegue no Hemisfério Norte. Veremos muitas histórias de consumo e, penso, uma narrativa se desenvolverá de que é justificado “exagerar” no consumo no pós pandemia, em especial de serviços.

A terceira narrativa diz respeito à alta dos preços. O Banco Central (BC) tomou a dianteira, argumentando que os 6% de inflação esperados para meados de 2021 são um choque temporário. Esse é um exemplo de algo que Shiller não enfatiza, mas que é uma conclusão direta de sua análise: que a construção e disseminação de narrativas é uma forma como o governo pode fazer política pública. Ainda que pense que o BC está certo em propor essa narrativa, acredito que ele enfrentará uma forte corrente de narrativas contrárias, já iniciadas por celebridades do mercado financeiro, que reportam uma maior preocupação com o controle da inflação em 2021. Preocupação para a qual vão concorrer, no segundo semestre, as pressões advindas da retomada do setor de serviços.

2020 foi um ano muito difícil para todos. Que o Natal e 2021 nos tragam muita felicidade. Sem receio de exagerar!

*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ


Luiz Carlos Mendonça de Barros: Chegamos ao fim de 2020

O controle da pandemia abrirá condições para promover as mudanças no funcionamento da nossa economia

Certamente 2020 entrará para a história como um dos anos mais difíceis vividos pela humanidade com o aparecimento de um vírus mortal que colocou em cheque parte do conhecimento acumulado nas últimas décadas. Este seu status deriva não apenas do número de mortes causadas pela covid-19 em todo o mundo, mas também por mudanças importantes do protocolo de funcionamento das economias nacionais. A chamada globalização, que era considerada o modelo mais eficiente para a economia mundial, terá que ser repensada em função dos riscos que a ultra mobilidade entre os mercados nacionais revelou agora.

Mas, nesta última coluna do ano, prefiro restringir minhas reflexões na evolução da economia brasileira neste período e, principalmente, o que esperar para 2021. A partir do momento em que foi possível entender a natureza da crise econômica provocada pela covid procurei centrar minha atenção nos seus aspectos estruturais de mais longo prazo, deixando a conjuntura para outros profissionais. Aprendi, ao longo da carreira profissional, que em momentos de crise grave é esta postura a mais adequada para fugir das armadilhas e ruídos do curto prazo. Relendo minhas colunas deste ano foi possível fazer uma linha do tempo da evolução de meu entendimento do que iríamos enfrentar.

Assim, propus na coluna de abril “Olhar com otimismo para 2021” em função das decisões tomadas rapidamente por governos e bancos centrais para enfrentar o pânico que atingiu investidores e instituições financeiras no mundo todo. A lição de 2008 foi aprendida e, desta vez, as ações previstas foram rapidamente aplicadas, e mesmo expandidas por outras medidas ainda mais heterodoxas. Em pouco tempo construía-se um protocolo de natureza keynesiana para enfrentar a recessão que se seguiria. O mesmo ocorreu aqui no Brasil, com um dos mais exitosos e eficientes entre os que foram acionados por países emergentes e mesmo os desenvolvidos.

Já em 15 de junho na coluna “Um segundo pacote fiscal“ ponderei que seria necessário a definição de um segundo pacote de estímulos fiscais de cunho keynesiano para fortalecer a recuperação da atividade econômica na parte final de 2020 e principalmente durante 2021. Mesmo no Brasil, com todas as dificuldades de lidar ainda com a fase de estabilização da pandemia, o governo Bolsonaro e o Congresso precisavam iniciar um debate sobre a questão de novos estímulos para enfrentar 2021. Esta questão continua presente mesmo depois que a recuperação mais rápida da economia em 2020 tenha ocorrido, reduzindo o escopo das medidas a serem tomadas.

Em julho, meu otimismo sobre o futuro estava descrito na coluna “A destruição criativa no pós pandemia”. Citei as ideias do economista Joseph Schumpeter em seu livro, “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, quando definiu o termo “destruição criativa” como um impulso fundamental para o motor do desenvolvimento econômico no mundo capitalista via inovações tecnológicas e de gestão das empresas”.

Em outras palavras, Schumpeter queria dizer que o sistema capitalista não acaba porque sempre se reinventa. Mas, para entender é preciso ter vivido algumas das crises que já ocorreram e ter sobrevivido a elas.

Hoje temos uma visão mais clara do que significa a expressão “destruição criativa” na crise atual com reflexões de vários analistas sobre o “boom” econômico que pode acontecer em função do choque positivo que terá a implantação de novas tecnologias a partir de 2021. Cito aqui artigo recente de Martin Wolf do Financial Times no qual aponta que a covid-19 acelerou o mundo rumo ao futuro. Este movimento será liderado por duas forças principais que já estavam em ação, mas que se intensificaram durante a pandemia: tecnologia e desglobalização,

Na coluna de novembro “O vírus contra-ataca” consolidei minha visão de que “a volta da atividade econômica no Brasil foi conseguida principalmente em função de uma expansão vigorosa - e eficiente - dos gastos do governo em um momento em que a arrecadação corrente de tributos era reduzida pela recessão. Portanto era natural - e necessário - que seu déficit fiscal tivesse um grande aumento no período mais agudo da crise. Somente com o retorno do crescimento econômico sustentado a partir de 2022 é que o governo poderá buscar uma situação orçamentária de superávits primários que estabilize a curva da dívida pública no futuro.

O objetivo destas minhas reflexões era o de enfrentar os argumentos dos economistas mais ortodoxos que pediam quase histericamente movimentos radicais para reduzir os déficits fiscais do setor público. Implícito nestas mensagens estavam as ameaças de um chamado “abismo fiscal” eminente e o colapso da rolagem da dívida pública. Hoje com a calma de volta aos leilões dos títulos públicos pela ação eficiente do Tesouro e Banco Central podemos esperar a volta do crescimento econômico para definir uma ação mais estruturada de medidas fiscais de controle da expansão dos gastos públicos.

Finalmente, agora com a definição pelo governo de um programa de vacinação racional e sem os preconceitos anteriores, temos a certeza de que o controle da pandemia abrirá condições para olharmos para a frente, cuidar das feridas da batalha e promover as mudanças no protocolo de funcionamento da nossa economia. Isto em um mundo que deve entrar em um período de crescimento mais forte puxado pela China e outros países da Ásia e as maiores economias ocidentais.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


Bruno Carazza: Saúde, paz, união...e reforma tributária

Reforma tributária não vai sair se todos não cederem

Se acreditassem em Papai Noel, certamente a maioria dos empresários brasileiros desejaria o fim da pandemia e uma reforma tributária em 2021.

Enquanto escrevo este texto, às 16:39h de domingo (20/12), o Impostômetro calculado pela Associação Comercial de São Paulo indicava 1,987 trilhão de reais em tributos pagos neste ano - o que indica que provavelmente ao longo desta semana ultrapassaremos a marca de R$ 2 trilhões arrecadados pelos governos de todos os brasileiros. Trata-se de apenas um de vários indicadores de nossas distorções neste campo.

Pode-se criticar a metodologia de rankings de ambiente de negócios como o Doing Business, do Banco Mundial, ou o índice de competitividade do Fórum Econômico Mundial, mas ninguém discorda que o Brasil seja um dos países que demanda mais tempo e recursos humanos para o cumprimento de todas as exigências tributárias da União, 27 Estados e mais de 5 mil municípios.

Essa complexidade traz consigo uma alta litigiosidade, que congestiona o nosso Judiciário. De acordo com o relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça, apenas no ano de 2019 foram iniciados 5.168.177 novos processos envolvendo impostos, taxas e contribuições - um número que dá a medida da insegurança jurídica no país gerada pelo nosso sistema tributário.

Estimativas de especialistas indicam que em torno de 66% do PIB é alvo do contencioso tributário em nível administrativo (no âmbito das receitas dos três níveis federativos e conselhos de contribuintes) e judicial. São dois terços da produção anual do país que ficam empoçados enquanto não se decide se devem entrar nos cofres do governo ou serem liberados para investimento das empresas.

Qualquer pesquisa que se realize com empresários aponta uma concordância quase unânime de que é necessário reformar todo o sistema, buscando sua simplificação, desburocratização e aumento da competitividade e da transparência - além da redução da carga tributária, é claro.

O problema é que na cartinha para Papai Noel ou nos desejos de Ano Novo do empresariado brasileiro sobram pedidos e faltam compromissos.

Desde 19 de fevereiro uma Comissão Mista do Congresso Nacional discute as propostas na mesa: a PEC nº 45/2019 (“proposta Appy”), a PEC nº 110/2019 (baseada no trabalho do ex-deputado Luiz Carlos Hauly) e o PL nº 3.887/2020, encaminhado pelo ministro da Economia Paulo Guedes.

Ao longo dos últimos meses dezenas de audiências públicas foram realizadas e, a se contar pelas manifestações dos representantes dos principais setores da economia, os consensos se resumem aos seus objetivos gerais. Quando se desce às medidas concretas, é cada um por si e o diabo (que mora nos detalhes) por todos.

Todos querem simplificação de impostos, mas quando se trata de unificar as alíquotas, querem tratamento especial. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), por exemplo, defende alíquotas diferenciadas por atividades e produtos, assim como a manutenção do sistema cumulativo como opcional para empresas que trabalham com lucro presumido e prestadoras de serviços. Ora, se for assim, é claro que nosso carnaval tributário vai continuar.

A Confederação Nacional dos Transportes (CNT) pretende fazer rabanadas sem quebrar ovos. No documento “Pilares para a Reforma Tributária”, ele exige que a reforma tributária não apenas mantenha a carga tributária global da economia, como também se comprometa a não elevá-la em nível setorial. Na sua lista de presentes para o bom velhinho há o abatimento de seus gastos com insumos e folha salarial no valor imposto agregado devido, mas tratamento diferenciado na tributação dos negócios em transportes e infraestrutura. Impostos seletivos? Só se forem para não onerar as transportadoras - um dos setores mais poluidores de nossa matriz econômica.

Ideais de justiça e igualdade são valorizados nas mensagens de final de ano, mas quando se trata de reformar o sistema, meu interesse vem primeiro. Em carta aberta enviada ao relator da Comissão de Reforma Tributária, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), 45 associações de produtores rurais listaram os pleitos do agronegócio brasileiro. Entre elas, a manutenção da desoneração da cesta básica, a imposição de alíquota zero para os insumos agropecuários, tratamento especial para as cooperativas e exclusão dos produtores rurais inscritos como pessoa física.

As entidades filantrópicas, por sua vez, querem continuar a fazer o bem com o chapéu alheio. Um grupo de onze organizações representativas de entidades religiosas, de educação e saúde que se beneficiam de isenções fiscais lançou um manifesto contra a “taxação da solidariedade”. As intenções são as melhores possíveis, mas nenhuma palavra se vê sobre a necessidade de se separar o joio do trigo e dar o tratamento correto a atividades lucrativas travestidas de assistencialismo.

Numa velha tirinha do cartunista Bill Watterson, o garoto Calvin, de 6 anos, se pergunta como o Papai Noel consegue pagar os duendes e os brinquedos que ele distribui. Seu tigre de estimação, Haroldo, arrisca uma responda: endividando-se. O lobby em prol da desoneração da folha de pagamentos, que une setores tão díspares quanto a construção civil e a indústria de tecnologia da informação e o varejo, recebeu seu presente de Natal antecipado em novembro. “O problema é que, mais cedo ou mais tarde, a farra acaba e aí como é que eu fico?”, pergunta Calvin diante da perspectiva de ficar sem presentes no futuro.

Para terminar este texto pré-natalino com um pouco de poesia, fica a dica de Drummond para o empresariado brasileiro (e para cada um de nós): “Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo. Eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre”.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Claudia Safatle: Quando fevereiro chegar

Reforma tributária já deixou a agenda do Ministério da Economia

Na agenda de reformas do Ministério da Economia para 2021, a tributária está fora. Tão logo se defina a eleição das mesas da Câmara e do Senado, em fevereiro, a primeira Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que o governo pretende se empenhar na aprovação é a Emergencial, que cria os gatilhos e travas para o cumprimento da lei do teto de gastos. Nesta, a área econômica ainda sonha com a possibilidade de inclusão para votação dos três D, sobretudo a desindexação, além da desvinculação e desobrigação. Estes, porém, não constavam da última versão do texto do relator da PEC, senador Marcio Bittar (MDB-AC).

O Orçamento do próximo ano já está com despesas subestimadas por causa da indexação do salário mínimo à variação do INPC. Com a aceleração da inflação, o valor do INPC ficou subavaliado, afetando, assim, os cálculos dos gastos com benefícios previdenciários e assistenciais vinculados ao salário mínimo.

Segundo dados apresentados pelo jornalista Ribamar Oliveira na sua coluna de ontem, publicada neste espaço, se o INPC ficar em 4,8% - ou seja, 0,7 ponto percentual acima do indice considerado no orçamento -, isso resultará em uma despesa adicional para os cofres da União de R$ 5,378 bilhões.

Antes da tributária, argumenta-se, tem a reforma administrativa para ser discutida e aprovada ainda no ano que vem. Embora a proposta do Executivo, que está no Congresso, seja tímida demais - porque o presidente da República não quis mexer com os atuais funcionários públicos -, a administrativa é o único projeto que busca reduzir o gasto com o pagamento de pessoal de forma estrutural.

Esse é o terceiro bloco das grandes despesas orçamentárias. Primeiro era a Previdência Social, cuja reforma foi aprovada no ano passado. Em segundo a taxa de juros que incide sobre a dívida pública, que encontra-se, atualmente, em seu menor nível (2% ao ano).

Ambos os gastos foram, portanto, atacados. E é bom que se diga que o juro básico só está nesse patamar porque havia uma política de rigor fiscal para lhe dar sustentação desde o governo anterior, de Michel Temer.

Um dos problemas da proposta de reforma administrativa do governo é que ela não mexe com os atuais funcionários. As novas regras de contratação, de gestão e de salários só vão valer para os servidores que entrarem no serviço público após a aprovação da PEC.

É de fundamental importância apresentar aos agentes econômicos domésticos e aos investidores estrangeiros um plano de governo em que se vislumbre, para os próximos anos, um certo equilíbrio das contas públicas.

Nesta semana o ministro da Economia, Paulo Guedes, enviou ao Congresso ofício onde ele estabelece uma meta fiscal de déficit primário de R$ 247,118 bilhões para o governo central.

Para as empresas estatais está fixado um déficit de R$ 3,97 bilhões e para os Estados e municípios, equilíbrio (superávit de cerca de R$ 200 milhões). A meta de déficit primário consolidada é, portanto, de R$ 250,9 bilhões para o próximo ano.

Acredita-se que isso associado à garantia de segurança jurídica dos contratos, mais do que resolver o “manicômio” tributário, é o que vai estimular os investidores internacionais a virem para o Brasil, aproveitando da imensa liquidez que há no mundo e do amplo programa de investimentos em infraestrutura e logística disponível no país.

Para assegurar juridicamente os investimentos tão esperados em infraestrutura, aguarda-se a aprovação da Lei Geral das Concessões. A proposta de um novo marco legal das concessões e Parcerias Público-Privadas (PPPs) foi aprovada em comissão especial da Câmara dos Deputados no fim do ano passado e desde então aguarda votação em plenário.

Com 224 artigos, o texto é a maior alteração feita na legislação sobre as concessões desde os anos 1990 e pretende garantir segurança jurídica e possibilitar a retomada de investimentos.

O projeto amplia o uso da arbitragem nos contratos, para facilitar a solução de pendências relativas ao equilíbrio econômico-financeiro, dentre outras mudanças. Espera-se, com esse novo marco legal, não deixar espaço para atitudes tresloucadas como a do prefeito do Rio, Marcelo Crivela, que mandou derrubar as catracas e cancelas do pedágio da Lamsa, na linha amarela, por discordar do preço cobrado.

Na avaliação que faz da economia brasileira, a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) realça a necessidade de mais reformas e uma real abertura da economia e insiste no intrincado ambiente de negócios que leva uma empresa de médio porte a gastar, aqui, cerca de 1.500 horas/ano para lidar com a carga de impostos. Na América Latina, esse tempo é de 317 horas/ano, e, nos países da OCDE, de 159 horas.

A pobreza e a desigualdade também chamam a atenção, assim como a negligência com o meio ambiente. Os prognósticos da OCDE para a economia brasileira são de uma recessão de 5% neste ano e crescimento de 2,6% e de 2,1% em 2021.

Em função do calendário político e as atenções voltadas para a disputa das presidências da Câmara e do Senado, o governo só vai se preparar para as negociações das reformas a partir de fevereiro. De antemão é possível dizer que é muito difícil a aprovação de duas PECs, a Emergencial e a Administrativa no mesmo ano legislativo e estando o chefe do Poder Executivo no seu terceiro ano de mandato e pleiteando a reeleição.

O impulso fiscal dado pelo auxilio emergencial pago a 68 milhões de brasileiros e pelas medidas de apoio ao setor privado em meio à explosão da pandemia terá que ser acompanhado de expansão dos investimentos no país, sem o que a recuperação que está em curso terá, uma vez mais, fôlego curto.


Ricardo Mendonça: Sobre promessas e calotes de Bolsonaro

O Brasil estaria pior se ele não tivesse esquecido seu plano

Na virada de 2020 para 2021, daqui a duas semanas, Jair Bolsonaro completa dois anos na Presidência. A metade exata de seu mandato é uma ótima ocasião para um balanço de realizações e do andamento das promessas feitas em 2018.

À primeira vista, um balanço assim parece exercício simples de ser feito. Com meio mandato percorrido, seria razoável esperar que Bolsonaro estivesse com algo próximo a 50% das promessas executadas. Ou que as metas estivessem 50% implementadas - pouco mais ou pouco menos, considerando as dificuldades inerentes e as variações de conjuntura.

Só que não.

A primeira dificuldade é identificar o que Bolsonaro prometeu em 2018. A forma mais óbvia, recorrer ao programa formal de governo, é também a mais inútil. Toscamente organizado e pessimamente redigido, o documento “O Caminho da Prosperidade”, protocolado no TSE, é uma peça imprestável com ponto de partida para uma análise minimamente razoável.

Trata-se de uma apresentação de 81 páginas que amontoa colagens de fotos e gráficos despadronizados com slogans vazios (“faremos uma aliança da ordem com o progresso”), compromissos genéricos (“enfrentaremos os grupos de interesses escusos”), muito conspiracionismo (“enfrentaremos o viés totalitário do Foro de São Paulo”) e pitadas de autoajuda (“SOMOS MUITO MAIS FORTES que todos esses problemas”, assim mesmo, com maiúsculas). Áreas inteiras são ignoradas, como meio ambiente, e não há metas nem prazos fixados. Como medir o desempenho de um governo a partir de uma base assim? Não dá.

Outra caminho é fazer um apanhado dos poucos compromissos objetivos do plano e juntar o suco ralo com falas dispersas de Bolsonaro em entrevistas e propaganda. Com ajuda dos jornais da época, é possível montar um conjunto mínimo de promessas mensuráveis feitas pelo capitão reformado dois anos atrás, lista que, lida hoje, longe do calor da campanha, talvez até surpreenda pelo radicalismo e pela ambição. Eis a relação:

- Eliminar o déficit público primário em um ano;

- Reduzir a carga tributária, simplificar e unificar tributos;

- Criar a carteira de trabalho verde e amarela, para que o jovem possa optar por um regime desvinculado da CLT, e eliminar a unicidade sindical;

- Criar isenção de Imposto de Renda para quem ganha até 5 salários mínimos e criar alíquota única de 20% no IR;

- Promover uma reforma da Previdência que implique num modelo de capitalização com contas individuais;

- Criar um 13º pagamento permanente no Bolsa Família;

- Liberar o porte de armas para toda a população, reduzir a maioridade penal, acabar com a progressão de pena, a saída temporária de detentos e as audiência de custódia;

- Criar o chamado excludente de ilicitude, dispositivo que isenta policiais de responder por mortes cometidas;

- Ampliar o número de ministros do STF de 11 para 21;

- Resgatar o projeto Dez Medidas Contra a Corrupção;

- Implementar o projeto Escola Sem Partido, construir pelo menos um colégio militar em cada capital e extinguir as cotas raciais nas universidades;

- Extinguir o Ministério do Meio Ambiente (MMA);

- Tipificar atos do MST e do MTST como ações terroristas;

- Tirar o Brasil do Conselho de Direitos Humanos da ONU;

- Acabar com a distribuição de cargos e liberação de emendas em troca de apoio no Congresso.

Do conjunto, é possível dizer que Bolsonaro se esforça para facilitar o acesso às armas e que tentou extinguir o MMA e criar o tal excludente de ilicitude. Fracassou nas duas tentativas. Em relação ao 13º do Bolsa Família, um abono foi pago no fim de 2019, mas o mesmo não ocorrerá em 2020. Neste caso, ele pode se defender citando o auxílio emergencial como substituto.

Em todo o resto, o que há até agora é um rotundo calote.

Bolsonaro mais atrapalhou do que ajudou na reforma da Previdência. E o que foi aprovado, muito mais por mérito do Congresso, não guarda semelhança com o que ele dizia em 2018.

Algumas ideias foram esquecidas. É provável que ele ainda defenda, retoricamente, uma ou outra coisa. Mas na maioria dos casos, sequer tentou encaminhar projeto.

Já a rendição ao Centrão, em face da promessa de repúdio aos velhos métodos, soa como o mais puro estelionato eleitoral.

Feitas essas constatações, duas questão emergem para reflexão. Primeira: Seria desejável que Bolsonaro cumprisse suas promessas? Segunda: Os eleitores e admiradores do capitão tendem a abandoná-lo quando (ou se) se deram conta da distância entre promessas e realidade?

As respostas para as duas perguntas são não e não.

Embora, por princípio, o que se espera de um governante é que ele cumpra com sua palavra, parece não restar dúvida de que o Brasil estaria pior hoje (ou ainda pior) se Bolsonaro levasse a cabo a maior parte do que anunciou em 2018.

Até os mais fanáticos sabem que o projeto de elevar o número de ministros do STF para 21 não era inspirado na necessidade de melhoria do Judiciário. No contexto em que foi citado, era muito mais um desejo de captura o tribunal. O mesmo vale para o Escola Sem Partido, com seu indisfarçável desejo de perseguição a professores, e outras propostas meramente destrutivas relacionadas à segurança, meio ambiente e direitos humanos.

Mas e o eleitor bolsonarista? Alguém pode esperar queda de popularidade em razão do abandono de promessas? A julgar pelas pesquisas, isso não ocorrerá. No Ibope, Bolsonaro tem 35% de aprovação, exatamente o mesmo patamar de seu quarto mês de mandato.

E numa avaliação mais subjetiva, a manutenção de Bolsonaro na Presidência talvez represente para uma parcela significativa de seus eleitores o atendimento de dois anseios muito fortes de 2018.

Quem, revoltado com a política, votou em Bolsonaro pelo desejo vingativo de ver um personagem vulgar no topo do sistema, tem hoje o que queria. E quem votou pelo único desejo de ver o PT longe do poder, confirmou, nas eleições municipais, que a coisa parece estar funcionando.


Fernando Abrucio: Um 2021 a favor da vida

A mudança política nos EUA e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, e a ascensão de novos líderes vão colocar uma nova agenda nos próximos anos

Ao refletir sobre 2020 e imaginar como pode ser 2021, um verso não sai da minha cabeça: “Ano passado eu morri, mas nesse ano eu não morro”. A canção é de Belchior (“Sujeito de Zorte”) e reapareceu gravada recentemente por Emicida, numa belíssima parceria com Pablo Vittar e Majur. Não há nada mais atual para definir o que passamos nos últimos meses, marcados pela desesperança e pela morte, e a chance que temos de mudar esse cenário, abrindo as portas a favor da vida. Muitos sinais mostram que o mundo pode trilhar esse caminho, mas no Brasil a escolha pela vida ou pela morte, num sentido literal e num plano mais amplo, ainda não foi feita pelo governo Bolsonaro.

A principal causa da desesperança que marcou 2020 foi a pandemia. Já houve mais de 70 milhões de casos em todo o mundo e quase um milhão e setecentas mil mortes. São números de guerra. A covid-19, no entanto, não só foi uma arma de destruição em massa. A doença foi além disso, tendo dois outros importantes efeitos.

O primeiro ocorreu nas principais organizações e formas de sociabilidade contemporâneas, como escolas, empresas e a própria vida social dos indivíduos e famílias. Nada funcionou como antes e tivemos de nos adaptar. Só que no final das contas ninguém mais quer ficar neste mundo pandêmico, com milhões de reuniões e aulas por videoconferência, precarização do trabalho e afastamento das pessoas queridas. Quase todos estão gritando: “Tragam meu mundo de volta!”

Junto com esse efeito negativo da pandemia na vida de cada um e nas principais organizações contemporâneas, a desgraça trouxe reflexão. Isso porque os problemas trazidos pela covid-19 escancararam temas que a humanidade tinha jogado para debaixo do tapete. A mudança política nos EUA, com a eleição de Biden, e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, além da ascensão de novos líderes sociais, vão gerar uma nova agenda para os próximos anos. O Brasil precisa prestar a atenção a esse processo, para não perder o trem da história.

Destacaria cinco temas que serão colocados no centro da agenda na maior parte do mundo a partir de 2021: a revalorização da ciência, a questão ambiental vista como emergencial, a busca de soluções humanizadoras para as organizações, a preocupação com a desigualdade em suas múltiplas dimensões e, por fim, a luta para reconfigurar a comunicação de massas, dominada hoje por redes sociais polarizadas e muito influenciadas pela lógica das “fake news”. O crescimento da importância de tais temáticas não quer dizer que haverá soluções para tudo no curto prazo, pois haverá muitos conflitos e dificuldades no processo político. Todavia, os grupos defensores dessas mudanças vão ganhar força e o clima de opinião irá mudar substancialmente.

A revalorização da ciência é filha direta da esperança com as vacinas contra a covid-19. No momento, há uma discussão inútil sobre a obrigatoriedade da vacinação. Ora, se mais gente for imunizada e ficar livre da doença, surgirão barreiras contra os que não se vacinarem. Países fecharão as suas portas para os estrangeiros não vacinados e o mesmo será feito por empresas multinacionais, com o argumento de resguardar a saúde coletiva de seus funcionários. E o sucesso nem precisa ser de 100% porque muita gente morreu com a pandemia. Isso não será esquecido. Quem tem dúvida, veja o que a história diz de outras epidemias famosas.

Uma vitória científica como essa pode afetar profundamente o negacionismo. Como consequência, será alavancado um segundo tema ao centro da agenda: a questão ambiental. Empresas, consumidores e governos em quase todo o mundo vão bater de frente contra aqueles que desdenham da mudança climática, que insistem em manter padrões que não são ambientalmente sustentáveis e que defendem atividades econômicas atrasadas, que destroem a natureza, afetando nosso futuro no planeta. Cabe frisar que as soluções nesse campo demandam um certo tempo, porém, quem fugir da cartilha básica será punido internacionalmente, especialmente no campo econômico. E isso ocorrerá mais cedo do que se imagina.

A pandemia realçou o lado sombrio de várias organizações e modos de vida atuais. A morte de tanta gente, combinada com a dificuldade de sobrevivência econômica ou psíquica de boa parte da humanidade, colocou uma palavra no topo do dicionário contemporâneo: empatia. Daí que, como terceira temática que vai crescer na agenda pública, empresas, escolas e governos vão ser pressionados a levar mais em conta os aspectos humanos. A educação, por exemplo, precisa ser vista como um processo fundamental para garantir o aprendizado de conhecimentos básicos a crianças e jovens, mas é muito mais do que isso. Ela é responsável pela formação de boa parte da personalidade de cada um e da noção de coletividade que vigora numa comunidade ou num país. As escolas nutrem nossos sonhos para a vida adulta. Educar é formar seres humanos melhores, desenvolver seus talentos e fazê-los entender que o outro é a coisa mais fantástica da vida.

O maior obstáculo da transformação humanística está no mundo empresarial, pois a lógica econômica atual ainda privilegia o individualismo exacerbado. Não obstante, muitas empresas começam a mudar seus processos seletivos para captar gente com habilidades socioemocionais mais favoráveis ao trabalho em equipe e à consciência social. Além disso, as pessoas como consumidoras e cidadãs vão exigir cada vez mais uma postura diferente de quem lhe vende bens e serviços. Por essa razão, assuntos como responsabilidade social e diversidade do corpo de funcionários vão ser alavancas para ganhar mercado.

A pressão pela maior humanização da sociedade contemporânea virá certamente de uma herança da pandemia: aumentou a percepção das múltiplas formas de desigualdade. Foi graças a políticas públicas como sistemas de saúde públicos e do trabalho de abnegados profissionais da educação, da segurança pública e assistência social que as mortes e calamidades produzidas pela covid-19 não foram maiores. No mesmo momento histórico, injustiças causadas contra negros e mulheres em várias partes do mundo mobilizaram milhões de pessoas em torno de um não rotundo contra a ordem desigual atual.

Essa quarta temática vai gerar muitos conflitos, mas já ganhou um lugar especial na agenda pública. Que os bilionários dividam mais suas riquezas, que a justiça não tenha mais cor nem gênero, que todos possam ter acessos a oportunidades mais iguais (afinal, como disse antes, a boa educação deve ser uma fábrica de sonhos), que a diversidade nos faça melhores como seres humanos. Para quem acha que essa pauta é muito utópica, pergunte aos jovens atuais o que eles pensam. Você irá se surpreender.

A agenda transformadora em favor de mais vida para todos tem um último elemento que é a batalha da comunicação. A internet produziu, inegavelmente, maior acesso à informação e aproximação de pessoas em várias partes no mundo. Contudo, essa mesma fonte emancipadora gerou redes sociais marcadas pela polarização política e pela expansão da mentira pública como estratégia política. Como remédios a esse mundo distópico, devemos alimentar a tolerância, a capacidade de ouvir o outro, de respeitar e aprender com a discordância. Ademais, só há democracia quando os fatos públicos se guiam por uma noção de transparência e verdade. Ou seja, é possível ter opiniões diferentes, mas a realidade factual não pode ser tão ampla que fuja de critérios mínimos de veracidade.

E como ficará o Brasil quando toda essa agenda estiver sendo puxada para o centro do debate em 2021? Por ora, o que se pode dizer que o governo Bolsonaro optou, nos últimos dois anos, pela destruição e pela desesperança como bussolas de sua ação. Isso antes da pandemia, quando se defendia que a solução para os problemas do país passava por armar a população, pela ocupação econômica desenfreada da Amazônia, por desprezar políticas a favor das minorias ou dos mais pobres e pela disseminação criminosa de mentiras contra os adversários e as instituições.

O pior de tudo é que o bolsonarismo não aprendeu muito com o espelho de problemas que nos estão sendo apresentados pela covid-19. Ao contrário, fechou os olhos para a profusão de mortes e lutou incansavelmente contra a ciência. É por essa razão que ninguém tem certeza se teremos, o mais rápido possível, vacinas suficientes para salvar pessoas, recuperar a economia e trazer de volta nossa vida em sociedade. Mas esse cenário pode ser transformado pela construção de uma nova agenda, antenada com as mudanças internacionais que vão sacudir o mundo nos próximos anos.

Inaugurar um novo ano marcado pela defesa da vida no Brasil, entretanto, vai além de ser contra o governo Bolsonaro. É preciso que a sociedade brasileira e suas elites se incomodem com a morte cotidiana não só dos atingidos pela covid-19, mas também por aqueles majoritariamente jovens, negros e pobres que morrem numa quantidade absurda, ano após ano. Segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública, policiais mataram 2.215 meninos e meninas entre 2017 e 2019, o que representa mais de duas crianças ou jovens por dia. Desejar um Ano Novo melhor significa dizer aos brasileiros: tenham vergonha dessa carnificina e assim estaremos dando o primeiro passo para transformar o país.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.


Ribamar Oliveira: O grande teste para o teto será em 2021

Salário mínimo deve ficar em torno de R$ 1.095 no próximo ano

O valor da despesa total da União em 2021, que consta em anexo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), aprovada ontem pelo Congresso Nacional, está subestimado. A principal razão é que, em seu cálculo, o Ministério da Economia considerou um INPC de apenas 4,1% neste ano.

Com isso, chegou a um valor para o salário mínimo inferior ao que será efetivamente pago a partir de janeiro. O mais provável é que o piso salarial do Brasil fique próximo de R$ 1.095,00, e não do R$ 1.088,00 divulgado nesta semana pelo governo.

O valor de R$ 1.095,00 foi obtido com a aplicação de um INPC de 4,8% neste ano. No acumulado de janeiro a novembro, ele está em 3,93%. Os analistas de mercado esperam que o INPC em dezembro fique em 0,88%, de acordo com as estimativas coletadas pelo Banco Central e disponíveis em sua página na internet. Como os preços estão em alta, ele poderá ser ainda maior.

O INPC é de fundamental importância para a estimativa da despesa da União porque ele corrige o salário mínimo, que é o piso dos benefícios previdenciários e assistenciais, e reajusta também os benefícios de quem ganha acima do piso. A variação de 0,1 ponto percentual no INPC gera um acréscimo de despesa de R$ 768,3 milhões, de acordo com estimativa feita pela Secretaria do Tesouro Nacional, em seu último relatório de riscos fiscais, divulgado em novembro.

Se o índice for de 4,8%, ele ficará 0,7 ponto percentual acima daquele projetado pelo governo no anexo da LDO. Esse 0,7 p.p. resultará em uma despesa adicional para os cofres públicos de R$ 5,378 bilhões (sete vezes R$ 768,3 milhões), acima da previsão feita pelo governo.

Essa questão é importante porque, na terça-feira, o ministro da Economia, Paulo Guedes, encaminhou ofício ao Congresso Nacional, fixando uma meta de déficit primário de R$ 247,1 bilhões para o governo central (Tesouro, Previdência e Banco Central) em 2021. Junto com o ofício, ele encaminhou um anexo de riscos fiscais, no qual consta a previsão de que as despesas discricionárias (investimentos e custeio da administração, exceto gasto com pessoal e encargos dos servidores) da União, no próximo ano, ficarão em R$ 83,9 bilhões.

Na proposta orçamentária para 2021, encaminhada ao Congresso no fim de agosto, o governo estimou que as despesas discricionárias ficariam em R$ 96 bilhões. Houve, portanto, uma redução de R$ 12,1 bilhões. A diminuição tem duas explicações. A proposta orçamentária foi elaborada com a previsão de 2,09% para o INPC e não incluiu a despesa com a prorrogação da desoneração da folha de salários de 37 setores da economia. No anexo ao ofício de Guedes, a despesa é reestimada com base em um INPC de 4,1% e com a inclusão da despesa com a desoneração da folha de salários no próximo ano.

Questionada pelo Valor, a Secretaria de Orçamento Federal (SOF) esclareceu ontem que na previsão de R$ 83,9 bilhões para as despesas discricionárias está incluída a quantia de R$ 4 bilhões para a capitalização de empresas estatais no próximo ano. A despesa com a capitalização é excluída do teto de gastos. Assim, as despesas discricionárias efetivas em 2021 (aquilo que o governo vai dispor para pagar investimentos e o custeio da máquina) seria de R$ 79,9 bilhões.

Mas, como foi explicado no início desta coluna, a estimativa do anexo da LDO foi elaborada com base em um INPC de 4,1%. Se o índice ficar em 4,8%, será necessário acrescentar R$ 5,378 bilhões às despesas obrigatórias e reduzir igual valor nas discricionárias para cumprir o teto de gastos. Assim, as despesas discricionárias efetivas no próximo ano (não considerando a capitalização de estatais e as emendas parlamentares) ficarão em R$ 74,5 bilhões (R$ 79,9 bilhões menos R$ 5,378 bilhões), o menor valor da história.

Há uma estimativa na área técnica de que um valor abaixo de R$ 85 bilhões de despesas discricionárias representa risco de paralisia de serviços públicos - o chamado “shutdown”. O próximo ano será o grande teste para a teoria. Um grande teste também para o teto de gastos, pois os números estão mostrando que o Orçamento de 2021 não cabe no teto.

Há outras indicações de que a despesa está subestimada. O crescimento vegetativo dos benefícios previdenciários que consta do anexo da LDO, por exemplo, é de apenas 1,7%, muito baixo mesmo considerando o impacto da reforma da Previdência.

O diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto, acompanha atentamente as contas públicas brasileiras. Depois de ler o anexo de riscos fiscais enviado ao Congresso no ofício do ministro Paulo Guedes, Salto manifestou preocupação. “As contas estão pouco transparentes e o risco fiscal é elevado”, disse, em conversa com o Valor. “De duas, uma: chance alta de romper o teto na execução ou paralisação da máquina pública com mais cortes de discricionárias, já num nível de R$ 83,9 bilhões, sem emendas, que é historicamente baixo”, afirmou.

Sem base

O ano termina com uma triste constatação: o governo não possui, atualmente, uma base política que lhe permita aprovar as reformas estruturais indispensáveis para a retomada sustentável do crescimento econômico.

O indicador mais contundente dessa realidade é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) Emergencial que está sendo relatada pelo senador Marcio Bittar (MDB-AC). O relator desistiu de apresentar seu parecer depois que verificou a inexistência de acordo entre os líderes partidários para a adoção de medidas de ajuste fiscal, que sustentariam a manutenção do teto de gastos por, pelo menos, mais alguns anos.

Inconformado com a derrota, o Ministério da Economia tentou apresentar uma emenda ao projeto de lei complementar 101/2020, que promoveu nova renegociação das dívidas de Estados e municípios, com um “gatilho” para o teto de gastos. O Valor teve acesso à emenda preparada pela Economia. Ela previa que quando as despesas obrigatórias submetidas ao teto superassem 94% da despesa primária total, os chefes dos três Poderes da Republica poderiam acionar medidas de ajuste, as mesmas que constam da emenda constitucional 95/2016. Mais uma vez, a proposta de Guedes não foi apoiada pela base governista. E a emenda nem sequer chegou a ser formalizada.


Cristiano Romero: Não há dinheiro para o auxílio emergencial?

Subsídios a grupos consumiram 21,37% da receita em 2019

O país se aproxima de mais uma tragédia anunciada _ o fim do pagamento do auxílio emergencial _ e o que mais se ouve em Brasília é que faltam recursos para bancar a despesa. Diante da pandemia, cujo número de casos e mortes voltou a crescer, trata-se de viabilizar ajuda humanitária a pelo menos 23 milhões de pessoas que, daqui a duas semanas, não terão mais direito a receber um centavo do governo federal.

O governo federal, com a ajuda do Congresso Nacional, reagiu rapidamente à primeira onda da pandemia. O Banco Central foi célere na garantia de liquidez para o sistema financeiro e as grandes empresas. Já centenas de milhares de pequenas e médias firmas sucumbiram, principalmente no setor de serviços, porque a ajuda _ modesta _ demorou a chegar e beneficiou a poucos. Dentro e fora do governo isso foi visto _ e defendido _ como algo inevitável.

Na economia informal, onde atua cerca de metade da força de trabalho do país, a ajuda poderia ter evitado o que se vê neste momento nos grandes centros urbanos: o aumento exponencial dos moradores de rua, cidadãos que se afastam de suas família por vergonha (de não ter emprego) e que não depositam mais nenhuma esperança na própria vida nem no país onde nasceram. Chegar até os informais teria sido muito mais fácil se o Ministério da Economia tivesse acolhido proposta do BC de alcançar esse público por meio das empresas de maquininha.

Trabalhadores que atuam na informalidade correm enorme de risco de mergulhar na miséria absoluta quando sobrevêm crises como a atual. Eles se tornam vulneráveis de forma muito rápida, justamente, por não gozarem dos benefícios assegurados aos trabalhadores regidos pela CLT. A pandemia paralisou subitamente o comércio em geral e colocou nas ruas milhões de pessoas. Estas sequer conhecem seus direitos porque, em geral, morrem antes de completar 65 anos, idade que assegura a brasileiros em situação de indigência requerer do Estado um salário mínimo mensal por meio do programa Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Os cidadãos que fazem das ruas sua morada em momentos como este são, aos olhos não das leis mas sim dos governantes, os invisíveis. Em São Paulo, os moradores de rua fazem parte da paisagem, para a maioria dos transeuntes, como se isso fosse obrigatório, uma espécie de lei da natureza que escolhe os mais fortes entre nós e almadiçoa os fracos, uma predestinação "social" de seres que, por "livre arbítrio", optaram por não estudar e, por essa razão, merecem estar ali, mais vulneráveis do qualquer um de nós à ação implacável do tempo e à violência que campeia nos grandes centros urbanos.

O titular desta coluna conversou com um mendigo que, empurrando uma carroça e acompanhado obedientemente por nove cachorros (a maioria, abandonada à própria sorte nas ruas, como seu "dono"), esperava na porta de uma restaurante caixas de papelão que asseguravam parte de seu sustento. Ele contou que seu destino mudou radicalmente após o advento do Plano Collor, em 1990. A indústria onde trabalhava, fabricante de tintas, não sobreviveu à recessão provocada pelo confisco.

Desempregado aos 26 anos, o rapaz, originário de Minas Gerais, tentou se recolocar no mercado de trabalho nos quatro anos seguintes. O que mais ouviu foi que não havia vagas e que ele já estava "velho" para ser contratado. Em 1994, o ano de lançamento do Plano Real, ele desistiu de procurar emprego e de morar de favor na casa de amigos e conhecidos. Tornou-se, então, habitante das ruas da então 3ª metrópole do mundo. Não deu mais notícia à família, afastou-se dos amigos, porque, para ele e a maioria dos trabalhadores, vergonhoso não é ganhar pouco, mas, não trabalhar.

Indagado sobre a existência do BPC, que a esta altura de sua vida poderia ser um alento para a sua sobrevivência, nosso entrevistado disse que nunca ouvira falar, duvidou de "tamanha bondade" do governo, mas, antes de assoviar para os cachorros e bater em retirada, fez uma pergunta: "Doutor, é preciso ter quantos anos para ganhar esse BP, como é que é mesmo, BPC?". "Sessenta e cinco." "Ah, doutor, eu tenho só 57", disse gargalhando o homem, cuja aparência remetia facilmemente a alguém com mais de 70 anos.

O auxílio emergencial destinado aos brasileiros em situação mais vulnerável nesta pandemia foi instituído em pouco tempo, embora caiba aqui observação: ao escolher o público do programa Bolsa Família (BF) _ cerca de 44 milhões de pessoas _ como o mais elegível, governo e parlamento agiram com um olhar mais na política do que no bem-estar da maioria. Os beneficiários do BF já recebiam seus pagamentos, ainda que a um valor (R$ 150 em média por pessoa) que realmente precisava ser reajustado.

O auxílio foi definido em R$ 600 para o período entre abril e agosto, e de R$ 300 de setembro a dezembro. Além do público do BF, outras 23 milhões de pessoas teriam acessado o auxílio. A partir de janeiro, o pessoal do BF volta a receber R$ 150 e os outros, nada.

Falta dinheiro? Leitor, quando lhe disserem isso, olhe os números do orçamento de perto. O que se vê é que, apenas no ano passado, a União deixou de arrecadar R$ 308 bilhões e, em 2020, R$ 320 bilhões em tributos e impostos federais (ver gráfico). Esta fortuna foi apropriada pelos grupos de interesse específico mais bem representados em Brasília, entre eles, a indústria automobilística, os grandes grupos privados de educação e saúde e as classes média e alta.


Lara Resende: Por que Summers e Bernanke agora defendem política fiscal expansionista

A hora é da política fiscal expansionista com ênfase nos investimentos públicos, propõem grandes nomes da formulação econômica americana

No dia 1º de dezembro, duas das instituições mais influentes de Washington, a Brookins e o Peterson Institute, promoveram um seminário para reavaliar o papel da política fiscal. Jason Furman e Larry Summers, ambos professores da Universidade de Harvard, respectivamente ex-presidente do Conselho Econômico de Obama e ex-secretário do Tesouro de Clinton, prepararam o texto que serviu de base para a discussão1. Para o debate foram convidados, além dos ilustres autores, Ben Bernanke, Olivier Blanchard e Kenneth Rogoff. Bernanke presidiu o Fed durante a grande crise financeira de 2008, Blanchard e Rogoff foram economistas-chefes do FMI. Os três são renomados acadêmicos, doutorados pelo MIT, professores das Universidades de Harvard e Princeton. Estamos falando do que é a melhor expressão do cruzamento entre a academia e a tecnocracia, a fina flor da formulação e da execução da política econômica americana.

A conclusão do seminário, como disse Summers e, em seguida, Blanchard repetiu no Twitter, é que estamos diante de uma mudança de paradigma. Cesse tudo que a antiga musa canta, saem as políticas de austeridade e a busca do equilíbrio orçamentário. A tão decantada relação dívida/PIB é um indicador enganoso, deve ser desconsiderado. A hora é de uma política fiscal expansionista com ênfase nos investimentos públicos.

Essa já vem sendo a tese defendida pelo FMI. A diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, e a economista-chefe, Gita Gopinath, deram recentemente entrevistas defendendo o uso da política fiscal, tanto para amenizar a crise provocada pela pandemia como para garantir uma recuperação sustentada uma vez passada a crise.

Contra a corrente e sofrendo severas críticas, venho batendo nessa tecla desde antes da pandemia. Sustento que a combinação de uma política de juros altíssimos, conduzida pelo Banco Central desde a estabilização da inflação, com o Real em 1994, até muito recentemente, combinada com uma obsessão de equilibrar as contas públicas através de aumento da carga tributária e de corte dos investimentos, foi razão do baixo crescimento da economia nestes últimos 25 anos. Mas, antes de analisar o caso do Brasil, vejamos o que dizem Furman e Summers.

Comecemos pela relação dívida/PIB, que os nossos economistas e analistas que despontam na mídia usam como um indicador de que caminhamos inexoravelmente para o abismo. Os luminares americanos concluíram que estavam equivocados. A relação dívida/PIB não deve ser levada em consideração como indicador da solvência de um país. É um indicador falacioso, porque compara um estoque, a dívida, com um fluxo, a renda.

Na sua apresentação, Furman diz que nunca mais deixará de se sentir culpado por ter usado o conceito de dívida/PIB por tantos anos. Um indicador relevante deve comparar fluxo com fluxo, ou estoque com estoque. A comparação de estoque com estoque exige que se calcule o Valor Presente Redescontado (VPR) dos PIBs futuros do país. O VPR, ou o Valor Presente Líquido, é um conceito amplamente usado em economia e finanças.

Usa-se o VPR, por exemplo, para calcular o valor de uma empresa, a partir da estimativa de seus lucros futuros. Porque depende dos fluxos esperados de renda futura e da taxa de juros utilizada, o VPR está sujeito a grandes variações, de acordo com as expectativas utilizadas no seu cálculo. É essa variação que faz com que alguns achem que uma empresa cotada em bolsa está cara e outros, barata.

Uma empresa pode ter dificuldade para refinanciar a sua dívida, por isso compara-se o endividamento com o fluxo de caixa livre, o chamado Ebitda. Mas não faz sentido avaliar o risco de solvência de um país comparando o estoque da sua dívida com a sua renda hoje, dado que um país que emite sua moeda não corre risco de iliquidez. A dívida pública em moeda nacional deve ser comparada com o VPR da renda nacional.

Países, assim como civilizações, podem desaparecer, mas vamos simplificar e supor que os países tenham vida longa, em particular que o Brasil, posto que não é chama, seja eterno. O VPR do Brasil deve ser calculado redescontando o fluxo infinito dos PIBs futuros pela taxa de juros esperada daqui para frente. Supondo uma taxa de juros real de 2% ao ano, mesmo que o PIB brasileiro nunca mais crescesse, o VPR do Brasil seria 50 vezes o PIB de hoje.

Usando-se a dívida bruta do Tesouro, conceito inadequado como veremos à frente, mas o favorito dos novos “Beatos Salus” do fiscalismo, a dívida que é hoje 85% do PIB é apenas 1/50 de 85%, ou seja 1,7% do VPR da renda do país. Se supusermos que o país volte a crescer, a dívida torna-se ainda mais insignificante quando comparada ao VPR da renda. Se a taxa de crescimento for maior do que a taxa de juros, a dívida, mesmo como proporção do PIB, irá se reduzir sistematicamente se não houver déficit primários excessivos.

Supor que o país possa ter um crescimento superior à taxa de juros da dívida é uma hipótese mais do que razoável, se conseguirmos nos livrar da camisa de força ideológica do equilíbrio fiscal e se o Banco Central não se curvar aos apelos dos economistas do mercado para elevar a taxa de juros.

O cálculo do VPR da renda do país é um exercício intelectual para calcular um indicador coerente, que compare estoque com estoque, mas dada a enorme variância no seu valor, dependendo das hipóteses utilizadas, tem pouca utilidade prática. Como sustentam Furman e Summers, o indicador mais relevante é o que compara fluxo com fluxo, ou seja, o serviço da dívida com o PIB. Assim como ao examinar a viabilidade de assumir um financiamento de longo prazo, deve-se verificar se o valor das parcelas é compatível com a renda, a comparação relevante para a avaliação do endividamento público é entre o serviço da dívida e a renda nacional.

No Brasil de hoje, com a taxa real de juros abaixo de 2% e a dívida bruta perto de 85% do PIB, o serviço da dívida é de apenas 1,7% do PIB, muito abaixo do que era até recentemente, quando a dívida era menor, mas o juro muito mais elevado. Em toda parte do mundo, com as taxas de juros muito baixas, o serviço da dívida é hoje pouco oneroso.

A ideia do VPR do PIB chama atenção para um ponto fundamental e pouco compreendido: o que ancora a moeda fiduciária é a percepção de perenidade do Estado. É o fato de que o Estado estará sempre lá para aceitar seus títulos para pagamento de impostos que dá credibilidade e aceitação à moeda. Essa é a tese do economista alemão Georg Knapp (1842-1926), que, no início do século XX, foi reinterpretada pela moderna Teoria Fiscal do Nível de Preços (TFNP). A diferença é que a TFNP dá mais importância à solvência financeira do Estado, enquanto Knapp ressalta a estabilidade política-institucional do Estado.

Todo o espaço para a emissão de moeda e de dívida, sem provocar a inflação, se evapora quando o Estado ameaça se desorganizar. O fato de que quando o Estado caminha para o colapso político-institucional, ainda que com baixo nível de endividamento, a moeda perde credibilidade e a inflação se acelera é evidência clara a favor do Cartalismo de Knapp.

Voltemos a Furman e Summers. Reconhecido o equívoco de se utilizar a relação dívida/PIB como indicador da saúde fiscal e da sustentabilidade da dívida, eles concluem que é preciso praticar uma política fiscal agressivamente expansionista. Numa flagrante reversão da tese da “austeridade expansionista”, defendida por alguns deles depois da crise de 2008, concluem que a política fiscal expansionista em períodos de recessão não aumenta, mas sim reduz a relação dívida/PIB.

Reconhecem que investimentos públicos se pagam e hoje são altamente necessários. Bernanke, nos seus comentários, sustenta que os investimentos públicos, em infraestrutura, saúde, educação, energia limpa e pesquisa, têm atualmente retorno muito mais elevado do que os investimentos privados. Em artigo recente, na mesma linha, argumentei que no mundo de hoje existe um excesso de oferta de bens materiais e de serviços privados e uma insuficiência de serviços e bens públicos.

No dia seguinte ao seminário da Brookings, participei, com Luiz Carlos Bresser-Pereira, Nelson Marconi, Monica de Bolle e Manoel Pires, de um painel sobre o investimento público e a retomada do crescimento no Fórum de Economia da FGV-SP. Bresser-Pereira e Marconi apresentaram uma proposta para elevar o investimento público no Brasil para 5% do PIB i. Na década de 1970 a taxa de investimento público foi em média quase 8% ao ano. Desde então, está em queda, até chegar a menos de 2% nos últimos anos e caminha para ser zero, se o teto dos gastos e o aumento das despesas correntes forem mantidos. Partem da premissa incontestável de que o crescimento depende do investimento. Sustentam que o investimento público é indispensável e complementar ao investimento privado.

Enquanto houver capacidade ociosa e desemprego, o investimento público não concorre com o investimento privado. Ao contrário, se bem conduzido, restrito à expansão de bens e serviços públicos, sem invadir setores onde o investimento privado dá conta do recado, aumenta a produtividade da economia e o bem-estar social.

Na mesma linha de Furman e Summers, argumentam que, como o investimento público de qualidade depende de planejamento e de projetos que tomam tempo, o Estado deveria ter sempre uma carteira de investimentos aprovados, que seriam executados de acordo com a necessidade e a capacidade da economia. A velocidade de execução seria calibrada para evitar tanto a recessão e o desemprego quanto as pressões inflacionárias e o desequilíbrio nas contas externas.

Em consonância com o que propus, em artigo neste mesmo Valor no ano passado, sugerem a criação de uma agência com competência técnica para avaliar os investimentos e a velocidade adequada de sua execução. A política monetária é incapaz de estimular a economia quando a taxa de juros já está muito baixa. A insistência numa política monetária expansionista, perto do limite inferior dos juros, corre risco de provocar um excesso de euforia nos mercados financeiros, sem qualquer efeito sobre a demanda agregada e o nível de atividade.

Essa é a razão pela qual uma agência competente de investimentos públicos é hoje tão ou mais importante do que o Banco Central. As políticas monetárias e fiscal são indissociáveis, não podem ser conduzidas de formas independentes e muitas vezes contraditórias. Bresser-Pereira e Marconi propõem que o Conselho Monetário Nacional, à semelhança do que faz o Copom em relação à taxa de juros, de acordo com a sua avaliação da economia e das pressões de demanda, defina o ritmo dos investimentos públicos.

A governança dos órgãos responsáveis pela avaliação da qualidade dos investimentos e pelo ritmo de sua execução é uma questão da mais alta relevância e merece estudo cuidadoso. É preciso encontrar um equilíbrio delicado, um desenho institucional que evite tanto pressões políticas ilegítimas quanto a arrogância tecnocrática.

A governança das políticas monetária e fiscal é um tema complexo e politicamente sensível. É preocupação com pressões políticas ilegítimas que explica a resistência de aceitar o que é uma constatação lógica irrefutável: o Estado que emite sua moeda fiduciária não tem restrição financeira. A moeda fiduciária é um passivo do Banco Central, portanto uma dívida do Estado, assim como os títulos do Tesouro.

A moeda fiduciária é apenas um título de dívida do Estado, emitido pelo Banco Central, que não paga juros e não tem prazo de vencimento, é uma perpetuidade. A distinção entre moeda e dívida pública perdeu sentido com o fim do padrão-ouro. O desenvolvimento dos mercados financeiros deu aos títulos de dívida pública uma liquidez quase perfeita, indistinguível da moeda. É possível comprar e vender dívida pública no mercado quase que instantaneamente.

A taxa de juros próxima de zero na dívida foi o golpe final na distinção entre moeda e dívida. Hoje, moeda e dívida são perfeitamente líquidas e praticamente não pagam juros. Quando o Estado gasta, credita necessariamente moeda em quem recebe do Estado. A decisão de obrigar o Estado a compensar a moeda emitida - creditada seria um termo mais adequado, dado que a moeda é quase que integralmente eletrônica - com a arrecadação de impostos é uma restrição institucional.

Uma restrição que deixa de fazer sentido quando se entende que o espaço para a emissão de moeda e dívida é muito maior do que se supunha. Foi o que o demonstrou de forma incontestável o experimento do QE. Como lembrou Bernanke, autor intelectual e executor do QE, no debate da Brookings, o mesmo experimento já vinha sendo posto em prática no Japão, desde o início do século, sem pressionar a inflação. Quando há insuficiência de demanda agregada, capacidade ociosa e desemprego, o Estado pode e deve gastar, emitindo uma combinação de moeda e dívida, sem se preocupar com o equilíbrio fiscal ou com o aumento da relação dívida/PIB. A responsabilidade fiscal e a disciplina orçamentária devem ser reinterpretadas como a busca da qualidade do gasto, da eficiência na operação do Estado.

Trocar ideias e discutir propostas, como tive a oportunidade de fazer no Fórum da FGV-SP, me pareceu um sopro de ar fresco no ambiente dogmático e raivoso com que tenho me deparado desde que passei a sustentar que o consenso macroeconômico convencional estava equivocado. Tenho me esforçado para entender as razões de uma tal falta de abertura mental de nossos economistas ortodoxos, hoje em grande parte associados ao mercado financeiro.

Resisto a aceitar que se trate de mera defesa de interesses, ainda que inconsciente. Parece-me mais uma combinação de um arraigado colonialismo intelectual, com o temor da perda do prestígio e da influência que adquiriram nas últimas décadas. Agora, com a guinada dos cardeais da metrópole, ficará difícil explicar a insistência no mantra fiscalista.

Pode-se sempre argumentar, parafraseando um ex-banqueiro central canadense a respeito da aposentadoria da Teoria Quantitativa da Moeda, que “não fomos nós que abandonamos o fiscalismo, foi o fiscalismo que nos abandonou”. Seja lá o que isso quer dizer. Com certeza, irão apelar para a tese da “jabuticaba”, que o Brasil é diferente, o que vale para os países avançados não vale aqui, um país que tem um histórico de inflação, que não emite uma moeda reserva, onde impera a irresponsabilidade política.

A moeda reserva faz realmente diferença para os países que têm déficits recorrentes nas contas externas e dívida externa. Foi o caso do Brasil na segunda metade do século passado. Obrigado a se financiar no exterior em moeda estrangeira, para compensar o déficit na conta corrente do balanço de pagamentos, o Brasil passou por graves crises todas as vezes que viu o crédito externo ser bruscamente interrompido.

Se emitisse moeda reserva, como os EUA e a União Europeia, não teria tido problemas. Hoje, o Brasil é autossuficiente em petróleo e trigo, tem um setor agropecuário altamente superavitário, a conta corrente caminha para o equilíbrio e o país acumulou o equivalente a mais de 30% do PIB em reservas internacionais. A atual dívida pública brasileira não sofre do que a literatura econômica chama do “pecado original”, o fato de ser uma dívida com estrangeiros, denominada numa moeda que o país não emite. A dívida pública brasileira hoje é do Estado com brasileiros e denominada em moeda nacional. O aumento da dívida e da taxa de juros tem, sim, efeitos redistributivos perversos, mas essa é uma outra história. Fica para uma próxima oportunidade.

Quando o Tesouro anuncia o maior déficit nominal da história, quando a relação dívida/PIB atinge o seu mais alto nível e o coro dos que anunciam a hecatombe final se intensifica, o Brasil acaba de fazer uma emissão externa de dívida pública, desnecessária por sinal, à menor taxa de todos os tempos. A cotação do dólar cai e a bolsa sobe, mas os fiscalistas insistem que vamos para o abismo se o teto dos gastos for desrespeitado e o Banco Central não subir os juros. E os economistas se dizem cientistas que se baseiam na evidência empírica. Julgue por você mesmo, caro leitor.

1 Furman, Jason and Summers, Larry "A Reconsideration of Fiscal Policy in an Era of Low Interest Rates", presentation to the Hutchinson Center on Fiscal & Monetary Policy and Peterson Institute for International Economics - December 1, 2020

i Bresser-Perreira, L.C. e Marconi, N. "5% do PIB para o Investimento Público", mimeo, Nov. 2020

*André Lara Resende é economista


Pedro Cafardo: Populismo e terrorismo na polarização fiscal

Paulo Guedes é cobrado por não cumprir promessas

Dilma Rousseff deve estar rindo e não à toa. Ela foi acusada em 2015 de cometer estelionato eleitoral, com certa razão, e agora assiste de camarote o pessoal do atual governo provar do mesmo veneno. O ministro da Economia, Paulo Guedes, vem sendo ferozmente criticado por executivos do mercado financeiro por não articular um plano para resolver a questão fiscal.

O próprio presidente do Banco Central fez, dias atrás, cobrança indireta a Guedes, dizendo que o país precisa de um plano que dê clara percepção aos investidores de que está preocupado com a “trajetória da dívida”.

A expressão acima não está entre aspas por acaso. Ela é fundamental no pensamento fiscalista dominante, diariamente repetido por economistas. Considera-se que, com a dívida bruta se aproximando de 100% do PIB, o país enfrentará um período dramático, porque perderá a confiança dos investidores e, sem esses recursos, não terá como reativar a economia.

O economista André Lara Resende, um dos pais do Plano Real, discorda dessa opinião quase consensual no universo financeiro. Ele considera a preocupação com a confiança dos investidores infundada, porque em várias ocasiões na história, principalmente após guerras ou catástrofes, inúmeros países tiveram dívidas maiores que o PIB. E mesmo em situações normais, muitos mantêm até hoje esse nível, entre eles Estados Unidos, Itália e Japão.

Lara Resende é impiedoso ao contestar esse terrorismo fiscal, como dizem alguns críticos. “A pergunta mais complicada de ser respondida é: por que hoje no Brasil a opinião dos economistas que aparecem na imprensa, assim como a da própria imprensa, regrediu para o que era a ortodoxia do século XIX na Inglaterra? A chamada ‘Visão do Tesouro’, que sustentava a necessidade de sempre equilibrar as contas públicas, depois duramente criticada por Keynes, deixou de ser levada a sério”, disse o economista em entrevista ao “Estadão”.

O argumento de Lara Resende é que, desde que não siga uma trajetória explosiva, a dívida pública pode crescer e se estabilizar assim que passar a crise. O que pode preocupar é a dívida externa, mas nesse quesito o país vai muito bem, porque tem reservas cambiais de quase 30% do PIB, cerca de US$ 350 bilhões. A insolvência externa, esta sim, quebra um país, daí a célebre frase do ex-ministro Mário Henrique Simonsen: “A inflação aleija, mas o câmbio mata”.

Toda essa divagação sobre a questão fiscal é para dizer que Paulo Guedes, um fiscalista confesso, está agora sendo criticado por inoperância exatamente nessa área. A ponto de se espalhar a ideia de que ele deixou de ser o fiel da balança do governo, segundo dizem reservadamente executivos de bancos e investidores institucionais diariamente ouvidos pelo Valor. Sua eventual saída, portanto, não mais representaria uma ruptura na visão agora dominante no mercado. Mas o mercado quer um substituto que tenha compromisso com a agenda da responsabilidade fiscal, ou “Visão do Tesouro” do século XIX.

No fundo, o mercado faz com a equipe econômica de hoje o mesmo que a oposição fez em 2015 com o governo Dilma. Acusa-o de prometer uma coisa e fazer outra. Durante a campanha para a eleição de 2014, na qual superou Aécio Neves (PSDB) por poucos votos, Dilma garantiu que não haveria arrocho às custas dos mais pobres e que benefícios trabalhistas não seriam reduzidos. “Nem que a vaca tussa”, disse. Reeleita, porém, nem foi preciso a vaca tossir. Ela logo elevou impostos sobre gasolina, operações financeiras e cosméticos. E mudou normas trabalhistas, entre outras, o seguro-desemprego. Também vetou a correção da tabela do Imposto de Renda, o que atingiu em cheio a classe média. A oposição considerou essas medidas estelionato eleitoral, até porque Dilma nomeou para o Ministério da Fazenda um economista fiscalista radical, Joaquim Levy, conhecido como “mão de tesoura”.

Guedes estaria cometendo estelionato eleitoral pela razão oposta. Durante a campanha de Bolsonaro, ele prometeu adotar uma política econômica ultraliberal, com rigorosa austeridade fiscal, corte implacável de gastos, forte contenção de salários, demissão de servidores públicos e privatização de estatais. Seja lá como for, por razões políticas ou pela crise sanitária, Guedes não entregou o prometido nos dois primeiros anos de governo, com exceção da decantada reforma da Previdência. E a continuidade da pandemia indica que o “Posto Ipiranga” não conseguirá entregar muito mais em 2021. Mas o mercado quer sangue.

Estão em choque o populismo e o terrorismo fiscal, ambos altamente danosos.

Mudando completamente de assunto, observe o símbolo acima. Você está cansado de vê-lo por aí, em estacionamentos. Mas, algo o incomoda? Se não, provavelmente não é idoso. O leitor Humberto Viana Guimarães é. Ele leu coluna neste espaço, meses atrás, com o título “Clichês que aborrecem e eufemismos inócuos” e diz ter se divertido muito. E também fez uma observação sobre o preconceito exalado por esse símbolo. O assunto veio à baila porque as denúncias de violência contra idosos aumentaram 72% durante a pandemia. Foram de 62 mil no país de janeiro a setembro.

Guimarães irrita-se com esse símbolo que identifica vagas para idosos em estacionamentos, sempre de um velho curvado, com uma bengala na mão. Diz que tem 70 anos, postura correta, não usa bengala e faz diariamente três horas de exercícios físicos.

Ele tem razão. Um senhor naquelas condições provavelmente não estaria dirigindo um carro e não precisaria da vaga. A placa indica flagrante preconceito.

Tramita há anos no Congresso um projeto de lei que proíbe o uso de símbolo pejorativo de idoso. Mas será que isso precisaria de lei?


Alex Ribeiro: BC entre a pressão do mercado e do FMI

É improvável que, pelo menos no curto prazo, a autoridade monetária caminhe para um lado ou para outro

O Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central abre amanhã sua reunião de dezembro sofrendo pressão dos dois lados. O corpo técnico do Fundo Monetário Internacional (FMI) fez os seus cálculos e concluiu que seria necessário levar a taxa de juros para perto de zero. Já no mercado crescem as apostas de que, em 2021, o BC será levado a começar a normalizar os juros.

É improvável que, pelo menos no curto prazo, o Banco Central vá caminhar para um lado ou para o outro. Provavelmente vai colher mais informações no primeiro trimestre sobre decisões de política fiscal e a evolução da atividade econômica. Apesar de todo o barulho sobre a alta da inflação no curto prazo, não será isso que deverá mover a autoridade monetária, salvo uma piora significativa.

No seu relatório de avaliação da economia brasileira, o FMI faz umas continhas simples com a regra de Taylor, que é um roteiro de reação a desvios da inflação e do nível de atividade. Por elas, seria possível cortar os juros abaixo dos atuais 2% ao ano, desde que não haja uma deterioração adicional nas expectativas de inflação.

Na visão dos técnicos do Fundo, a capacidade ociosa da economia vai terminar 2020 no equivalente a 4,5% do PIB e será preenchida apenas no distante ano de 2024. Até lá, seria uma força para manter a inflação muito baixa, fazendo-a convergir à meta só em 2023.

Representante do Brasil no FMI, o economista Afonso Bevilaqua registrou, no próprio relatório de avaliação, que o governo brasileiro discorda da visão de que haveria espaço para juros menores. O BC reforçou que considera adequada a política monetária.

É fato, porém, que, se o Copom fosse se guiar por uma regra de Taylor, poderia ter cortado os juros na sua última reunião ou ter aprofundado o “forward guidance”. Suas projeções de inflação no cenário básico estavam abaixo da meta no horizonte de política monetária.

O que colocou um freio foi o balanço de riscos, sobretudo os fiscais. Projeções alternativas de inflação do BC mostram que, se o desarranjo das contas públicas persistir, a inflação vai superar as metas. Por isso, a inflação esperada pelo Copom, que é uma média da inflação projetada no cenário básico e nos cenários alternativos, está basicamente na meta e não comporta estímulos monetários adicionais. Para fazer mais, seria necessário o cenário fiscal melhorar, sem haver piora nas projeções.

Já os analistas econômicos estão prevendo um aumento mais forte e mais prematuro de juros, sobretudo devido à aceleração da inflação mais recente. A providência anterior ao reaperto seria a derrubada do “forward guidance”, já que essa é justamente uma promessa de não subir os juros.

Hoje, a mediana das projeções dos economistas do setor privado prevê o início de um ciclo de alta de juros entre agosto e setembro, até levar a taxa Selic para 3% ao ano em dezembro. Antes de o BC adotar o “forward guidance”, essa era exatamente a aposta dos analistas. Mas o “forward guidance” os convenceu a prever, por algum tempo, que os juros encerrariam 2021 em 2,5%. A recente inflação mais salgada os fez voltar ao cenário anterior.

O Banco Central disse que abandona o “forward guidance” se as suas projeções de inflação no cenário básico e as expectativas do mercado convergirem para a meta no horizonte relevante. Os economistas do setor privado acham que isso vai ocorrer mais cedo. A análise mais comum que se ouve é de que o repique da inflação de curto prazo vai elevar a inflação a patamares muito altos até abril e maio do ano que vem. Isso, por sua vez, vai contaminar as expectativas de inflação e as próprias projeções de inflação do BC de 2022, que estará no centro do horizonte de decisões de política monetária.

Na teoria, esse raciocínio do mercado está errado. Uma alta de preços no curto prazo não deveria contaminar horizontes mais longos de política monetária, se os fatores são passageiros. A política monetária atua com defasagens sobre a inflação. Se o Copom subisse os juros agora para combater uma alta temporária de inflação, teria poucos ganhos para baixar os índices no curto prazo e arriscaria derrubá-los abaixo da meta no horizonte de dois anos.

Nos últimos dias, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, destacou vários motivos por que acha que a alta de preços é passageira. Ele fez isso depois que foi divulgado o IPCA-15 de novembro, que veio mais salgado do que o esperado e assustou muita gente. Citou várias vezes um box do Relatório de Inflação de setembro que argumentava, antes que os analistas do setor privado se preocupassem com o tema, que a alta do dólar e dos preços das commodities chegaria aos preços ao consumidor.

Os comentários mais alarmistas no mercado dizem que estaria em curso um processo de desancoragem das expectativas de inflação. A alta das expectativas não é, exatamente, uma surpresa para o Banco Central, que já vinha antecipando esse movimento. Há algumas semanas, o diretor de Política Econômica do BC, Fabio Kanczuk, disse que esperava que as expectativas continuassem subindo, para “3,2%, 3,3%. 3,4%”. Pelo dado mais recente, chegou a 3,47% para 2021. Nesse percentual, está abaixo da meta, de 3,75%. Campos Neto destacou que a inflação implícita dos títulos públicos segue comportada.

Mas essa é a fotografia do momento, que faz com que o BC provavelmente mantenha o “forward guidance” nesta semana. Como estarão as projeções e expectativas para 2022 em maio do ano que vem? Os analistas têm um ponto correto quando dizem que a alta da inflação de curto prazo pode contaminar expectativas - não deveria, mas na prática isso acontece. A verdade, porém, é que os analistas econômicos ainda não pensaram a fundo sobre a inflação de 2022. Falta uma informação essencial: como vai se comportar a economia a partir do primeiro trimestre, caso os estímulos fiscais saiam mesmo de cena. Não pode ser descartado de antemão o cenário traçado pelos técnicos do FMI: o grau de ociosidade da economia seguirá alto por muito tempo e a inflação deverá ficar contida.