vacinação
Bruno Boghossian: Governo teve pressa com cloroquina, mas nega ao país empenho na vacinação
Entre a 'angústia' e a 'esperança para corações aflitos', há um governo incompetente
Em março, Jair Bolsonaro se reuniu com o ministro da Defesa e ordenou que o Exército ampliasse imediatamente sua produção de cloroquina. A equipe técnica do governo dizia que o remédio não funcionava contra a Covid-19, mas a ordem foi cumprida em tempo recorde: em três semanas, os militares fabricaram 2 milhões de comprimidos.
A obediência inspirou Bolsonaro. Meses depois, ele escolheu um general para comandar o Ministério da Saúde. Eduardo Pazuello seguiu as vontades do chefe e moveu as engrenagens da máquina pública para distribuir um medicamento ineficaz. Com a cloroquina, o presidente teve uma pressa que foi negada ao país no planejamento da vacinação.
O governo assinou no início de junho a adesão do Brasil a um consórcio internacional para a fabricação de imunizantes contra o coronavírus. No mesmo mês, a equipe econômica perguntou ao Ministério da Saúde se havia previsão de importar material para vacinação. A pasta levou quase seis meses para publicar um edital para a compra de seringas.
Bolsonaro foi mais ágil na campanha do curandeirismo. Ainda em abril, o presidente conversou com o primeiro-ministro indiano Narendra Modi e pediu matéria-prima para a fabricação de cloroquina. Um carregamento chegou ao Brasil em menos de uma semana. No mês seguinte, os Estados Unidos enviaram mais 2 milhões de doses do medicamento.
O estoque de comprimidos está garantido, mas o país corre risco de ficar sem seringas e agulhas para a vacinação contra a Covid-19. O pregão aberto pelo governo para comprar 331 milhões de kits fracassou e só deve atingir 2,4% da demanda.
Quando o TCU pediu explicações ao Exército sobre a fabricação de cloroquina a preços acima do normal, os militares disseram que o objetivo era "produzir esperança para corações aflitos". Sobre as cobranças públicas por um plano de vacinação, o ministro da Saúde fez pouco caso: "Para quê essa ansiedade, essa angústia?". Entre a angústia e a esperança, há um governo incompetente.
Merval Pereira: A defesa da cidadania
O que os bolsonaristas estão chamando de “ativismo judicial” descontrolado nada mais é do que a defesa de uma política sanitária que nos permita ter vacinas mais rapidamente. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, acolhendo um pedido do partido político Rede, estendeu a validade de medidas de combate à pandemia, cujo prazo terminaria hoje, 31 de dezembro.
A mais importante delas é a autorização para que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) em caráter “excepcional e temporária”, em até 72 horas, libere a importação e distribuição de vacinas contra a Covid-19 já aprovadas em agências equivalentes dos Estados Unidos, Europa, China ou Japão.
Com a aprovação, no Reino Unido, da vacina da AstraZeneca/Oxford, que já estamos fabricando aqui na Fiocruz, o governo, que apostou nesse imunizante, poderia iniciar imediatamente a vacinação a nível nacional. Claro que temos um problema a mais, ainda não temos seringas nem agulhas. Para infelicidade de Bolsonaro, o governador João Doria foi precavido e já comprou seringas e agulhas suficientes para vacinar a população do estado.
Como a quantidade de doses ainda será pequena, o sistema que os ingleses adotarão pode ser uma solução inicial: dar a todos a primeira dose, e só a partir da maior produção, começar a vacinação com a segunda dose. Seria um início emergencial para um problema que se transformou em calamidade pública, embora o presidente Bolsonaro e seus mais próximos assessores não levem em conta suas responsabilidades.
Nas festas de fim de ano no litoral paulista, Bolsonaro, como de hábito, não está usando máscara, e provoca aglomeração. O governo, no entanto, confirmando sua incapacidade de atuação, estava disposto a deixar passar o prazo, o que atrasaria muito a vacinação já atrasada no país. O governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, também já havia se antecipado à previsível lassidão do governo, autorizando a compra de vacinas já aprovadas em outras agências internacionais, dentro do espírito da lei que agora o STF prorrogou em boa hora.
A atitude particularmente perversa do presidente Bolsonaro, que ganha prêmios internacionais por seus atos ligados à corrupção, e se tornou motivo de piadas pelo mundo, revelou-se mais uma vez no comentário que fez sobre a aprovação do aborto na Argentina: “Lamento profundamente pelas vidas das crianças argentinas”.
Não se ouviu, a não ser superficial e tardiamente, palavras de pesar do presidente pelos quase 200 mil mortos no Brasil, inclusive crianças, pela incúria do governo no combate à COVID-19, mas Bolsonaro é capaz de, por motivação político-religiosa, se intrometer nas decisões do país vizinho. Barbárie, como classificou o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, é defender a tortura.
A legalização do aborto até a 14º semana de gravidez, como aprovado agora na Argentina, pode ser considerada uma política de saúde pública e um avanço no direito das mulheres pois, segundo a Organização Mundial da Saúde, só um em cada quatro abortos feitos na América Latina ocorre de maneira segura. Claro que é assunto delicado, e que comporta várias visões de mundo, mas o fanatismo religioso não pode estar à frente da emancipação dos cidadãos.
O que aconteceu recentemente entre nós, quando uma criança de dez anos, abusada seguidamente pelo tio, teve que chegar ao hospital escondida na mala de um carro para poder fazer o aborto legal, não é aceitável. Os fanáticos que se postaram à frente do hospital tentando impedir a realização da cirurgia autorizada pela Justiça tiveram o incentivo de bolsonaristas seguidores da ministra Damares, cujos funcionários foram acusados de vazar a informação de onde seria feita a operação, o que levou os fanáticos religiosos a fazerem suas manifestações, com ataques morais e até físicos contra os médicos envolvidos na operação.
Esse mesmo fanatismo faz com que o presidente Jair Bolsonaro insinue que quem tomar vacina contra a COVID-19 pode virar jacaré. Nas redes sociais, há até mesmo loucuras como a afirmação que a vacina interferirá no DNA das pessoas. Todas essas aberrações e o fanatismo religioso acontecem não apenas no Brasil, mas em várias partes do mundo. O que não acontece é um presidente da República dar vazão à divulgação delas.
William Waack: De Dilma a Bolsonaro
As questões básicas não resolvidas do País permanecem as mesmas
A década que começou com Dilma e vai terminando com Bolsonaro tem uma extraordinária constância. Nossas mazelas continuam praticamente as mesmas. Apenas mais escancaradas por uma pandemia que expôs (e também agravou) problemas que já existiam. Nesse sentido, não se pode falar de uma década que começa e termina com sinais trocados. A incompetência governamental e nossa complacência em sua essência seguem as mesmas.
Sim, Dilma foi a vítima da tortura praticada por um regime de exceção, que Bolsonaro teima em exaltar. Por mais abjetas e fracassadas as ideias que ela defendia, não há nada que justifique tortura especialmente por órgãos de Estado, como aconteceu na ditadura militar brasileira. É um aspecto que o capitão Bolsonaro ignora e que exércitos profissionais de democracias abertas, como na França (na Argélia), Estados Unidos (por último, no Iraque) e Israel (na Intifada de 1987) reconhecem como destruidor da moral da força armada e se empenham em condenar.
A sociedade brasileira segue exibindo a mesma tolerância em relação a pragas nacionais há tempos estabelecidas: injustiça social, miséria disseminada, violência endêmica, corrupção e incompetência governamental. São características com as quais se podia descrever o Brasil de 10 ou 20 anos atrás, e a onda disruptiva de 2018 não ofereceu resultados até aqui convincentes para alterar fundamentalmente esse quadro. As comparações internacionais nada proporcionam para nos orgulharmos em termos de nível de desenvolvimento humano e, especialmente, educação, que continua sendo entendida no Brasil como ferramenta e não como valor em si.
Nas comparações mais recentes estamos capengando para proteger nossa população da covid-19. Os que primeiro começaram a vacinar estão em todas as regiões do mundo. Nessa lista figuram ricos e emergentes, países gigantes e pequenos, regimes abertos, democracias liberais, monarquias absolutistas, a ditadura comunista da China, variadas etnias, as principais denominações religiosas (entre os latino-americanos, governos de esquerda e de direita).
O atraso brasileiro na questão da vacinação é uma vitrine expondo nossos limites estruturais. O sistema de governo, possivelmente o pior do mundo, mantém Executivo e Legislativo em choque constante, agravado pela insegurança jurídica emanada de um Judiciário que não foi eleito para governar, mas está governando. O podre sistema de representação política é fator preponderante para entender a falta de lideranças abrangentes e enraizadas – um grande deficit em situações de crise econômica e sanitária que se reforçam mutuamente. A força dos regionalismos e o egoísmo de suas respectivas elites – não só as geográficas, mas as de diversos segmentos sociais e econômicos nos fazem assistir à concorrência dos entes da federação.
Há aspectos peculiares na incompetência demonstrada pelo atual governo no trato da pandemia, mas incompetência em várias questões, agudas ou não, causadas pela “sabedoria” de chefes de Executivo (só lembrar o que Dilma fez com o setor elétrico, por exemplo) tem sido recorrentes. No plano mais abrangente, para um País que cultiva a imagem de ser dono de um futuro brilhante, estamos sendo extraordinariamente incompetentes em chegar lá. Nossa distância nesses dez anos em relação às economias mais avançadas aumentou – e estamos há mais tempo do que isso estagnados em matéria de produtividade e competitividade internacionais.
É confortável apontar o dedo acusador para este ou aquele governo do começo ou do fim da década. O fato é que nós os colocamos lá.
El País: Atraso do Brasil em começar vacinação retarda retomada da economia
Especialistas acreditam que PIB do primeiro trimestre do ano pode vir negativo caso a Covid-19 não seja controlada. Fim do auxílio emergencial deve causar salto na taxa de desemprego
Heloísa Mendonça, El País
Enquanto mais de 40 países do mundo já começaram a aplicar vacinas contra a covid-19, o Brasil continua em disputas políticas, sem uma data para o início da imunização e ainda não aprovou o registro de nenhum imunizante. Com mais de 7,5 milhões de casos de coronavírus registrados no país, tendência de alta em vários Estados e quase 200.000 mortes pela doença, o presidente Jair Bolsonaro chegou a dizer que não “dá bola” nem se sente pressionado pelo avanço da vacinação no mundo. A demora por um plano, no entanto, tem graves consequências. Além de não frear a perda de muitas vidas, o atraso deve dificultar ainda mais a retomada da economia brasileira, que já irá encontrar vários percalços em 2021, como alta do desemprego, da inflação e o agravamento do rombo das contas públicas.
O quadro é claro. Quanto mais o país demorar para aplicar o plano de vacinação nacional, mais tempo estenderá a crise. A atividade econômica deve ter um tombo de quase 5% em 2020. “A vacina é a única forma efetiva de resolver o problema. Só assim você consegue retomar a economia de forma contínua e não fica nesse abre e fecha das atividades, nessa incerteza, como estamos vivendo novamente com o aumento de casos”, explica Joelson Sampaio, coordenador do curso de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo. Segundo ele, os países que já conseguiram sair na frente na imunização da população serão os primeiros a sentirem os impactos na retomada da economia.
O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, já reconheceu que só a vacinação em massa da população conseguirá garantir um retorno seguro ao trabalho e retomada do crescimento econômico brasileiro.
Apesar do mercado projetar um cenário um pouco mais otimista para o próximo ano, apostando em um crescimento de cerca de 3,5% do Produto Interno Bruto, algumas instituições financeiras não descartam um primeiro trimestre negativo caso a vacinação não comece rápido e os registros da doença continuem em alta. “Vamos torcer para que todos estejam vacinados, porque, em um cenário com 400 mortes diárias pode ocorrer um trimestre negativo. Precisamos que a taxa de mortes caia. Agora [nas primeiras semanas de dezembro], os dados pioraram, e isso aumenta o risco de termos um PIB negativo no primeiro trimestre de 2021”, disse Mario Mesquita, economista-chefe do banco Itaú, em uma apresentação sobre as perspectivas para o próximo ano. Ele aponta ainda que, mesmo que as autoridades não imponham restrições às atividades, o aumento das mortes faz com que as próprias pessoas passem a sair menos de casa para utilizar serviços que impliquem em aglomerações.
Soma-se a esse quadro o fim do auxílio emergencial, benefício criado para minimizar os impactos econômicos da pandemia. Ao menos 40 milhões de pessoas começarão o próximo ano sem esse amparo do Governo em meio a uma pandemia e sem plano de vacinação. O encerramento da ajuda irá diminuir a renda da população mais vulnerável, a injeção de dinheiro na economia e deve provocar um aumento no desemprego no país. Muitas pessoas que perderam seus postos de trabalho não voltaram a procurar outro por conta da pandemia e das regras de quarentena, já que contavam com a transferência de renda.
Dados divulgados nesta terça-feira (29) pelo IBGE mostram que a taxa de desemprego ficou em 14,3% no trimestre encerrado em outubro, uma avanço de 0,5 ponto porcentual em relação ao trimestre encerrado em julho. O Brasil tinha 14,1 milhões de desempregados no trimestre, 931.000 a mais do que no trimestre móvel anterior, encerrado em julho. O aumento da fila do desemprego é um reflexo de um número maior de brasileiros que decidiu sair em busca de uma vaga com a flexibilização das regras de isolamento.
Além de mais pessoas à procura de emprego, houve alta de 2,8% na população ocupada, que chegou a 84,3 milhões de pessoas. “Esse cenário pode estar relacionado a uma recomposição, ao retorno das pessoas que estavam em afastamento. Nesse trimestre percebemos uma redução da população fora da força de trabalho e isso pode ter refletido no aumento de pessoas sendo absorvidas pelo mercado de trabalho e também no crescimento da procura por trabalho”, explica a analista da pesquisa Adriana Beringuy.
Há ainda, no entanto, queda na ocupação e aumento na população fora da força quando a comparação é feita com o mesmo período do ano passado. “Temos uma população ocupada que é menor em quase 10 milhões de pessoas e um aumento de 12 milhões na população fora da força [que inclui pessoas que não estavam trabalhando nem procuravam por emprego]. Então esse pode ser um início de uma recomposição, mas as perdas acumuladas na ocupação durante o ano ainda são muito significativas”, completa.
Para o professor João Saboia, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é inevitável que a fila do desemprego aumente com a extinção do auxílio emergencial, já que o mercado não conseguirá absorver todas as pessoas que voltarão a buscar novos postos. “E mesmo quem conseguir um novo emprego será mal absorvido, informalmente ou com nível de renda muito baixo”, explica. A maior parte do aumento no número de ocupados do último trimestre veio do trabalho informal, segundo o IBGE.
Terceiro trimestre pode ter pico de desemprego
O primeiro trimestre de 2021 deve ser o mais preocupante, na avaliação de Saboia. “Sem auxílio e provavelmente sem vacina praticamente, é difícil pensar como retomar. Também são os meses de verão quando historicamente a economia anda mais devagar. Depois, pode ser que a atividade comece a sair mais do fundo do poço, mas vai ser tudo muito lento”, analisa.
De acordo com a corretora XP, a grande fonte de incerteza relacionada ao desemprego ainda é quanto à transição do fim da ajuda às famílias e empresas em 2021 com os desafios da economia brasileira, como a agenda de reformas que podem trazer confiança, principalmente, ao setor de serviços em recontratação. A corretora estima que a taxa de desemprego alcançará sua maior taxa no primeiro trimestre de 2021, chegando a quase 16%.
Inflação pressionada por alimentos e luz
Outro vento em contra no início de 2021 é a inflação. A pandemia pressionou os preços, principalmente dos alimentos e pode ter reflexos ainda no início do próximo ano. Nos últimos meses do ano, a inflação acelerou e o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo-15 (IPCA-15), uma prévia da inflação oficial, fechou em 4,23%, acima da meta de 4%. A pressão também foi causada pela decisão da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) de cobrar bandeira vermelha, aumentando o valor da conta de luz dos consumidores no último mês do ano. Segundo analistas, o preço dos alimentos deve começar arrefecer no primeiro trimestre. Para 2021, a meta fixada pelo Banco Central é de 3,75%, e o mercado financeiro estima algo em torno de 3,34%, também segundo o Focus. No próximo ano a tendência é de um “espalhamento” da inflação.
A pandemia também piorou a saúde das contas públicas do Brasil que já estão há anos no vermelho. O rombo fiscal acumulado entre janeiro e novembro deste ano foi de 699,1 bilhão de reais, o pior desempenho da série histórica iniciada em 1997. Em relação ao mesmo período de 2019, houve um recuo de 9,7% nas receitas e avanço de 39,3% nas despesas. A meta fiscal para este ano admitia um déficit de até 124 bilhões nas contas do governo central, mas a aprovação, pelo Congresso, do decreto de calamidade pública para o enfrentamento da pandemia autorizou o Governo a descumprir o valor em 2020.
Em nota nesta terça-feira, o ministério da Economia afirmou que há três desafios para o próximo ano: o emprego, o crédito e a consolidação fiscal. A pasta projeta um crescimento de 3,2% do PIB em 2021 e afirmou que “com a vacinação ganhando força no mundo, o cenário internacional, será propício” para o Brasil, já que a taxa de juros internacional está baixa e deve manter esse patamar, “o que nos favorece para manter os juros baixos internos” e por estimular “capitais internacionais que busquem oportunidades de retorno”.
Enquanto o ministério da Economia aposta no avanço da vacinação no mundo, Bolsonaro, que já afirmou que não tomará vacina contra covid-19, chegou a dizer que se alguém “virar um jacaré” por tomar o imunizante, não poderia tomar qualquer medida contra os fabricantes. O presidente também afirmou que são os laboratórios que precisam correr atrás de registros de vacinas para vender ao Brasil.
O país se encontra no meio de uma batalha política entre Bolsonaro e o governador de São Paulo João Dória na corrida por uma vacina. O país inicialmente centrou esforços na vacina da AstraZeneca, a chamada “vacina de Oxford”. O Governo Federal assinou um acordo para a realização dos testes da fase três do imunizante e de transferência de tecnologia, com a promessa de produção de milhões de doses pela Fiocruz. Nesta segunda, a Fiocruz afirmou que se encontra no processo de submissão contínua e que deverá enviar os últimos dados à Anvisa até 15 de janeiro. São Paulo, no entanto, diz que começará sua imunização no dia 25 de janeiro com a vacina do laboratório chinês Sinovac, que assinou um acordo de cooperação com o Instituto Butantan. Porém, o Governo paulista adiou a divulgação de seus dados de eficácia da vacina três vezes, enquanto a Sinovac tenta combinar dados de teste globais que incluem Indonésia, Turquia e Chile. Por enquanto o que ronda o país é uma nuvem de incertezas e nenhuma data concreta de vacinação.
Hélio Schwartsman: Brasil errou ao apostar em apenas duas vacinas
Faria mais sentido assegurar que o país tivesse acesso ao máximo possível de doses do maior número possível de vacinas
Se há algo que une militares de direita a sanitaristas de esquerda é a preocupação, às vezes obsessiva, com a transferência de tecnologia. É claro que é melhor ser capaz de fabricar seus próprios imunizantes do que não ser, em especial se houver necessidade de revacinações periódicas como parece ser o caso da Covid-19. Mas eu receio que, ao buscar primariamente acordos que previssem a transferência de tecnologia, o Brasil tenha limitado demais suas apostas.
O governo federal jogou tudo no imunizante da Universidade de Oxford/AstraZeneca, que deverá ter produção local pela Fiocruz, e o governo paulista investiu apenas na Coronavac, parceria entre chineses e o Instituto Butantan.
Na situação de emergência pandêmica que vivemos, teria feito mais sentido assegurar que o país tivesse acesso ao máximo possível de doses do maior número possível de vacinas, mesmo que sem previsão de autossuficiência.
E, para piorar, não tiramos a sorte grande em nossas apostas. A vacina Oxford apresentou 70% de eficácia (contra 95% do biofármaco da Pfizer) e atrasou. A Coronavac ainda não divulgou seus números, mas já sabemos que o braço brasileiro do estudo não apresentou eficácia superior a 90%.
Ficamos para trás em relação a outras nações, mas ainda não estamos no pior dos mundos. Quando falamos em eficácia, o “endpoint” (desfecho clínico) considerado é o desenvolvimento de doença. Significa, no caso da Oxford, que 70% dos voluntários que tomam a vacina ficam protegidos contra formas sintomáticas da moléstia. Mas esse não é o único “endpoint” relevante.
Outros desfechos de interesse são saber se as vacinas evitam a infecção propriamente dita (se o fizerem, fica bem mais fácil controlar a circulação do vírus) e se são capazes de prevenir os quadros graves e os óbitos. Se nossas vacinas transformarem uma doença potencialmente letal numa gripezinha, já estamos bem servidos.
Ricardo Noblat: A tempestade perfeita que poderá custar o mandato de Bolsonaro
Ele é uma ameaça à vida alheia
Se for o que resta para mostrar a que ponto chegou Bolsonaro, compare-se o seu comportamento com relação à vacinação em massa contra o vírus com o comportamento dos governantes mais autoritários do mundo, todos, como ele, de extrema-direita.
O ditador da República da Bielorrússia, Aleksandr Lukashenko, anunciou que não se vacinará porque a Covid-19 já o pegou faz algum tempo – como se não pudesse pegá-lo outra vez. Mas a imunização no seu país começou uma semana antes do previsto.
Até abril serão vacinadas 1,2 milhão de pessoas. Numa segunda etapa, mais 5,5 milhões. Na Hungria do primeiro-ministro Viktor Orbán, um dos poucos chefes de Estado a comparecer à posse de Bolsonaro, a vacinação começou no último sábado.
A Polônia tem um governo nacionalista conservador admirado pelo presidente brasileiro. Pois bem: ali, ontem, os dois líderes dos partidos rivais Plataforma Cívica (liberal) e Lei e Justiça (conservador) foram filmados vacinando-se juntos.
Ontem também, os países da Comunidade Econômica Europeia compraram mais 100 milhões de doses da vacina da Pfizer. Em colapso desde a explosão do seu porto em Beirute, o Líbano comprou à Pfizer duas milhões de doses de vacina.
Aqui, onde nas últimas 24 horas o vírus matou 1.075 pessoas e infectou mais de 57 mil, a Pfizer indicou em nota que no momento não irá pedir autorização de uso emergencial do seu imunizante porque as exigências do governo demandam tempo.
Como uma das muitas vacinas que já foram aprovadas em outros países e que estão sendo aplicadas por toda parte não pode estar rapidamente disponível para os brasileiros? É a pergunta que Bolsonaro e seus cúmplices se recusam a responder.
Na melhor das hipóteses, segundo o Ministério da Saúde, a vacinação contra o vírus está prevista para começar em 20 de janeiro, e na pior até o final da primeira quinzena de fevereiro. Quantas vezes você não leu previsões furadas?
Por outra parte, por que o espanto com a incompetência do governo Bolsonaro em dar início à vacinação? Quando foi que o governo dele revelou-se competente para tentar resolver um só grande problema do país nos últimos 2 anos?
O prefeito Alexandre Kalil, de Belo Horizonte, reeleito com uma votação recorde, estoca há meses seringas de sobra para vacinar os habitantes de sua cidade e de cidades próximas. O que impediu o governo federal de fazer a mesma coisa?
Fracassou o pregão eletrônico realizado ontem pelo Ministério da Saúde para a compra de seringas e agulhas. De um total de 331 milhões unidades previstas para serem adquiridas, o ministério conseguiu fornecedor para apenas 7,9 milhões. Uma titica.
Não se brinca impunemente com vidas alheias, mas Bolsonaro insiste em brincar. Gosta de viver em perigo. Por que não brinca com a própria vida, quando nada para relembrar os antigos e bons tempos de paraquedista do Exército?
Só a vacinação em massa já, e bem-sucedida, salvará o sonho de Bolsonaro de se reeleger daqui a dois anos, e mesmo assim não será tão fácil como parecia. O contrário disso será com toda certeza a abertura de um processo de impeachment.
Crime de responsabilidade é razão para a abertura de um processo de impeachment do presidente. Falhar gravemente em garantir a vida das pessoas é o maior crime de responsabilidade que um presidente pode cometer. E daí?
Daí que é por isso que Bolsonaro precisa tanto eleger Arthur Lira (PP-AL) presidente da Câmara dos Deputados. A abertura de um processo de impeachment depende exclusivamente do presidente da Câmara. Por lá, mais de 50 pedidos repousam numa gaveta.
Lígia Bahia: Vacina antidesfaçatez
Em 2021, estaremos diante de ameaças sanitárias não superadas somadas a eventuais viroses emergentes
Oportunidades desperdiçadas para controlar a disseminação da Covid-19 em 2020 serão transferidas, com acréscimo de dificuldades, para o próximo ano. Históricas experiências do Brasil — desde as campanhas contra a febre amarela, DST/aids, dengue, chicungunha e zica — foram substituídas por charlatanismo, ameaças à Organização Mundial da Saúde e descuido proposital com a organização da prevenção, da vigilância de casos e do atendimento adequado a doentes. Desprezo pelas recomendações científicas, corte de recursos para pesquisa, presença irrelevante ou aliada automaticamente aos países ricos nos debates internacionais sobre o acesso universal ao conhecimento e inovações tecnológicas nos impediram de compartilhar plenamente o legado de 2020: ampla utilização de intervenções não farmacológicas para eliminar a transmissão de uma doença respiratória e produção rápida de testes e vacinas.
Em 2021, estaremos diante de ameaças sanitárias não superadas, somadas a eventuais viroses emergentes com potencial de transmissão global, e das visíveis e grandes falhas do sistema público de saúde. Necessitamos de uma infraestrutura de saúde pública moderna e do restabelecimento de uma gestão unificada da saúde. A garantia de suprimentos estratégicos, como equipamentos de proteção individual e testes, e da integração do país nas redes mundiais de pesquisa para restabelecer a gestão da pandemia é uma atribuição de âmbito nacional. Critérios padronizados e transparentes para a aprovação e alocação de recursos orçamentários — incluindo compras e produção de vacinas e a garantia de assistência para casos graves — são medidas objetivas para o enfrentamento de fenômenos que não respeitam limites administrativos.
Cada sociedade tem uma faixa, maior ou menor, de fanáticos, de pessoas que falam e agem sem considerar consequências nefastas de suas atitudes. No transcorrer do ano, a dose de dissimulação e irresponsabilidade foi excessiva e constante. O presidente Bolsonaro assinou a Medida Provisória 1.015, em 17 de dezembro, prevendo o gasto de R$ 20 bilhões com a vacinação, cuja justificativa técnica baseia-se no “cumprimento do dever do Estado de garantir a todos o direito à saúde” e no contato (memorandos de entendimento) com “empresas desenvolvedoras”. Poucos dias depois, declarou não aceitar pressão, não ter pressa e que “os interessados em vender para a gente” devem se apresentar.
O ministro da Economia, no fim de outubro, cometeu um erro crasso ao afirmar a diminuição da pandemia e a retomada da economia. Dois meses depois, o mandatário — que não prorrogou o auxílio emergencial no contexto de aumento do desemprego e de pessoas vivendo em situação de pobreza — disse que só a vacinação “em massa” pode sustentar a recuperação econômica.
Ora tem, ora não tem pandemia; ora a saúde é direito, ora é uma coisa que se compra se alguém quiser vender. O Poder Executivo federal mente descaradamente. Está mais que comprovada a indisposição de ocupantes de cargos estratégicos para resolver a crise sanitária. A Presidência da República e seus ministérios se recusam a processar democraticamente divergências e conflitos. Um quadro institucional incapacitado para diferenciar verdade, ou pelo menos verossimilhança, da falsidade requer atenção urgente de órgãos legislativos, judiciários, estados e prefeituras. Constata-se uma tendência assustadora de condenar idosos, trabalhadores de baixa renda, negros e indígenas à categoria de semimortos. Divergências entre quem considera que as políticas implementadas foram instáveis e ineficazes e os que as avaliam como excelentes podem ser julgadas, em 2021, pelo confronto com princípios básicos, como o direito à saúde e à vida. A administração de interesses, valores e ambições diferenciados requer profundo respeito às esperanças por justiça.
Um SUS grande, potente, efetivamente universal e de qualidade não é um procedimento eletivo ou substitutivo, um estepe para usar quando fura o auxílio pecuniário e se apela para a vacina. É essencial para que nos tornemos perene e progressivamente mais iguais.
Marc Bassets: Futuro, ano zero
Depois de meses fora de órbita, em 2021 é hora de pôr os pés no chão. Empreenderemos a recuperação da crise sanitária e econômica? Lutaremos seriamente contra a mudança climática? Especialistas fazem suas apostas
Pode ser uma aterrissagem suave ou forçada. Depois de um 2020 de morte, doença, confinamento e recessão em que o mundo flutuou em uma estranha irrealidade, o ano de 2021 começa entre a promessa de vacinas que acabem com tudo isso e a angústia por novas ondas que nos devolvam à linha de largada. A humanidade está fora de órbita há um ano e se aproxima o momento de pôr os pés no chão.
“As coisas não voltarão a ser como antes. Começamos a ter consciência de que foi a civilização que criou e espalhou o vírus: os aviões e os carros, as concentrações multitudinárias e os estádios de futebol”, diz o neuropsiquiatra Boris Cyrulnik, uma das 10 pessoas consultadas ― todas especialistas em áreas que vão da história ao pensamento, da economia à geopolítica ― para preparar este artigo. “Se restabelecermos as mesmas condições de consumo e de transporte, em dois ou três anos haverá outro vírus e será preciso recomeçar.”
Nada está escrito. O ano de 2021 pode ser o momento de decisões ― sobre a organização das relações internacionais, sobre a economia, sobre o meio ambiente, sobre os valores democráticos ― que marquem as próximas décadas. Um ano zero.
“A história sempre está radicalmente aberta. Sempre pode ir por um lado ou por outro. A crença de que haverá um progresso simplesmente porque queremos que o bem vença é um erro”, diz a historiadora Anne Applebaum, autora de Twilight of Democracy (“Crepúsculo da democracia”), ensaio que narra em primeira pessoa o conflito no mundo ocidental entre liberais e autoritários. “Também é um erro acreditar que, inevitavelmente, fracassaremos. Não sou declinista, mas também não acho que tudo sairá bem sem fazer nada para conseguir isso.”
O historiador marxista Eric Hobsbawm falava de um século XX curto, entre 1914, ano do início da Primeira Guerra Mundial, e 1991, ano do fim da Guerra Fria, com o desaparecimento da URSS. E se também houvesse um século XXI curto? E se sua data inaugural não tivessem sido os atentados de 11 de setembro de 2001, ou a quebra do banco Lehman Brothers em setembro de 2008, e sim o surgimento do vírus SARS-CoV-2 na cidade chinesa de Wuhan no final de 2019? Ou, melhor, a esperada derrota do vírus em 2021 ou 2022, do mesmo modo que 1991 marcou a vitória do campo ocidental contra o bloco soviético?
“O momento em que se proclama que uma pandemia terminou é arbitrário”, avisa Laura Spinney, autora de Pale Rider: The Spanish Flu of 1918 and How it Changed the World (”cavaleiro pálido: a gripe espanhola de 1918 e como ela mudou o mundo), livro de referência sobre a mal denominada gripe espanhola, que matou entre 50 e 100 milhões de pessoas entre 1918 e 1920. “Suponho que isso ocorrerá quando os Governos, de maneira escalonada pelo mundo, levantarem as restrições, quando as pessoas tiverem um certificado atestando que estão vacinadas e sentirem confiança para retomar sua vida anterior.”
Spinney assinala que a diferença entre a pandemia de agora e a gripe de 1918 é a existência de uma vacina. “Até alguns dias atrás, enfrentávamos a pandemia da mesma forma que isso foi feito ao longo da história, com as velhas técnicas de distanciamento social: afastar-nos uns dos outros, fechar espaços públicos, impedir encontros em massa, usar máscaras. Lutávamos com armas antigas e agora lutamos com a arma mais moderna possível.”
A dúvida é o que ocorrerá depois da vitória, se esta chegar. “Imaginemos que no verão [boreal, inverno no Hemisfério Sul] as vacinas permitam acabar com o distanciamento social. Passaremos uma boa parte do resto do ano nos acostumando a viver no novo mundo, que não será igual ao antigo”, diz George Friedman, presidente da Geopolitical Futures, empresa especializada em previsões geopolíticas. “A questão é superar com sucesso a transição de uma realidade, uma economia e uma sociedade baseadas na covid-19 para algo mais estável”.
Friedman, que vive no Texas, acredita que a situação atual é insustentável, e não só por razões econômicas. Cita como exemplo seu neto de quatro anos e a possibilidade de que, se as vacinas não funcionarem, ele não vá à escola em um futuro próximo. “Você vai à escola para quê? Para aprender? Não. Para brigar. Para discutir. Para se entender com outras crianças”, diz. O perigo é que a excepcionalidade de 2020 acabe se prolongando, algo que ele descarta. “Teríamos uma geração deformada. Isto não é a realidade”, diz. É preciso aterrissar, e quanto antes, melhor.
O filósofo Bruno Latour, autor de um ensaio titulado precisamente Où Atterrir? (“Onde aterrissar?”), argumenta, ao contrário de Friedman, que a pandemia significou um banho de realidade, uma tomada de consciência sobre nossos limites e nossa dependência da natureza, do clima até os micróbios. “Vivemos uma mudança cosmológica ou cosmográfica que tem a mesma importância que as grandes mudanças do século XVI. Naquela época foi descoberto o infinito do mundo. Agora passamos de um mundo que acreditávamos ser global e universal para um mundo relocalizado, no qual é preciso prestar atenção a cada gesto, a cada sopro que damos”, afirma. Ao pensar no que 2021 nos reserva, Latour fala da mudança climática ― a “mutação ecológica”, diz ―, “tão próxima que sabemos que passaremos de uma crise a outra, de um confinamento a outro”. Com a diferença de que o futuro confinamento não será em casa, mas em uma terra convulsionada.
“Espero que 2021 seja o ano da volta à normalidade, mas a uma normalidade com consciência coletiva renovada, que permita avançar em matéria ambiental”, diz a economista Mar Reguant, professora da Northwestern University em Illinois e codiretora do grupo de trabalho sobre a mudança climática na comissão de especialistas encarregada pelo presidente francês, Emmanuel Macron, de preparar a economia para o pós-covid-19. “Na frente pessimista, será um ano de novos desastres ecológicos e humanos nos quais a mudança climática ficará evidente com mais força”, prevê Reguant. Mas ela também deseja que o fundo de recuperação europeu, aprovado em julho, “dedique-se a transformar um modelo econômico e energético obsoleto”; que o futuro presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, cumpra suas promessas de combate à mudança climática, e que as empresas petrolíferas “entendam que não terão lugar em um futuro próximo se não se reinventarem”.
Outra crise potencial é a da desigualdade. Durante 2020, os trabalhadores com menor renda empobreceram, devido aos fechamentos forçados pelos confinamentos em setores como os de restaurantes e turismo e à redução dos salários. As pessoas com maior renda, por sua vez, gastaram menos e economizaram mais. “Há uma lacuna que já existe e não vai desaparecer quando a vacina chegar e as restrições forem levantadas”, diz o economista Marc Morgan, membro do Laboratório Mundial da Desigualdade, do qual Thomas Piketty é um dos diretores. “O papel dos gastos governamentais será muito importante para voltar a criar empregos depois da chegada da vacina.”
“O que considero absolutamente urgente é que, com a crise do coronavírus ― mas não só, também com a crise climática e a crise alimentar, que sempre é esquecida, e a grande instabilidade econômica ―, sejam modificadas nossas instituições internacionais e nossas atitudes, e segurança global seja colocada à frente de nossas preocupações”, enfatiza Bertrand Badie, professor emérito do Instituto de Ciências Políticas em Paris. “A segurança global é a que afeta toda a humanidade e não só uma nação ou outra. É isso que faz com que o vírus seja mais ameaçador do que os tanques russos para a Europa.”
Badie, no entanto, acrescenta: “O que pode ocorrer é justamente o contrário: que a crise, em vez de levar a um fortalecimento da governança global, favoreça uma tensão neonacionalista no mundo todo. A eleição de novembro nos Estados Unidos mostrou uma incrível resistência do nacionalismo. O fato de 74 milhões de pessoas terem votado em Donald Trump é a prova de que o neonacionalismo já é um componente fundamental dos comportamentos políticos no mundo atual”.
“Em alguns lugares, a pandemia fortaleceu os autoritários”, assinala Anne Applebaum. “Quando as pessoas sentem medo, estão dispostas a aceitar coisas às quais, em tempos normais, fariam objeções. Não estou falando da coisa superficial dos confinamentos: todo mundo entende para que servem”, acrescenta. “Ao mesmo tempo, a pandemia foi uma prova do valor da ciência e da cooperação internacional. Finalmente sairemos desta, graças às vacinas. E de onde vêm as vacinas? São criadas por consórcios internacionais, pela cooperação germano-americana, por fábricas na Bélgica que exportam para toda a Europa. Todas as soluções para o problema envolvem cooperação internacional, cooperação científica e cooperação comercial. Deveria ser uma lição para os nacionalistas.”
Um risco em relação às vacinas são as teorias da conspiração que proliferaram durante a pandemia e atribuem aos imunizantes todos os tipos de males. Não é incomum que uma pandemia ― na qual o medo do desconhecido se soma à falta de harmonia de governantes que adotam medidas confusas e contraditórias ― seja um terreno fértil para teorias absurdas, algumas com fedor antissemita, que veem um complô para a instalação de um Governo mundial.
“A retórica antivacinas ganhou muita força. Como a palavra oficial ― da imprensa, da política, do mundo médico ― está desacreditada, muitas pessoas não vão querer ser vacinadas”, diz a historiadora Marie Peltier, autora de Obsession: Dans les Coulisses du Récit Complotiste (“obsessão: nos bastidores da narrativa conspiracionista”). “O conspiracionismo e seu impacto na realidade foram subestimados. Para acabar com uma pandemia, é necessária uma vacinação em massa. O problema não será só político, mas também sanitário.”
Sem as vacinas, não será possível reduzir o distanciamento físico nem retomar completamente as atividades. Em seu livro Les Capitalismes à l’Épreuve de la Pandémie (“os capitalismos postos à prova pela pandemia”), o veterano economista Robert Boyer alerta que quanto mais as medidas profiláticas forem prolongadas, mais difícil será restaurar a economia: “Apesar das ajudas em massa, as falências reduzirão a capacidade de produção e de emprego, empobrecerão os mais desfavorecidos, e os jovens dificilmente se integrarão à vida ativa, correm o risco de se ver penalizados de forma duradoura, sem esquecer que a queda dos investimentos hipoteca o crescimento futuro”.
“A tarefa prioritária dos Governos é restaurar até dezembro 2021 a confiança de ficar frente a frente”, diz Boyer por telefone. “A segurança sanitária é uma precondição para o reinício do crescimento. E isso ocorrerá depois de acontecimentos que podem ser dramáticos: mortalidade, incerteza, protestos pela liberdade”, acrescenta. “Uma terceira onda teria efeitos devastadores para a credibilidade dos governantes.”
Não sabemos o que encontraremos no desembarque. Em um dos cenários possíveis, deixaremos lentamente para trás a pandemia, que já matou mais de 1,7 milhão de pessoas e infectou 78 milhões. A economia voltará a andar depois da pior recessão em décadas. As democracias, depois que muitas delas administraram pessimamente a covid-19, resistirão aos ataques das forças autoritárias. Depois de recuar para as fronteiras nacionais quando o vírus ameaçou com mais força, as grandes potências e os grandes blocos econômicos buscarão novas formas de cooperação ― uma globalização com rosto humano ― e, escaldados pelo impacto que um fenômeno natural pode ter no planeta, redobrarão as medidas contra a mudança climática. A derrota de Trump nas eleições americanas de novembro anuncia o início do fim do nacionalismo populista, de sua retórica incendiária e suas teorias da conspiração.
É um cenário possível, mas não o único. No caso oposto, as campanhas de vacinação serão tão caóticas como foram a distribuição de máscaras no início da pandemia e, depois, a organização dos sistemas de rastreamento e teste. Quando os Governos suspenderem as ajudas milionárias para os trabalhadores e os setores mais afetados pela crise, as empresas quebrarão, o desemprego aumentará e as desigualdades dispararão. A volta das fronteiras para frear a expansão do vírus se tornará permanente. Os demagogos saberão aproveitar o descontentamento e darão as respostas que as democracias, transformadas em símbolo de mau governo e polarização, não terão conseguido oferecer. A resposta da China à pandemia estabelecerá as tecnocracias ditatoriais como modelo de eficácia.
Aterrissagem forçada? Ou suave? O ano de 2021 dificilmente reproduzirá ao pé da letra um dos dois cenários mencionados; é mais provável que se mova em uma zona cinzenta na qual nenhuma das duas tendências prevaleça.
Boris Cyrulnik, filho de judeus assassinados nos campos de extermínio nazistas, estuda há décadas o conceito de resiliência, a capacidade de superar a adversidade. É possível, diz ele, que a saída da pandemia signifique uma volta ao business as usual, como se nada tivesse mudado. Ou que nas ruínas da devastação sanitária e econômica surja um salvador, um ditador que agite os ressentimentos. Isso ocorreu em outras épocas de medo e caos. Mas há outra saída, diz o neuropsiquiatra e autor, entre outros, de La Nuit, j’Écrirai des Soleils (“à noite, escreverei sóis”).
“O sprint, a corrida constante, provoca estresse”, diz Cyrulnik. “É preciso redescobrir o prazer da lentidão, porque a lentidão protege, oferece o prazer de viver em paz.”
Cacá Diegues: O futuro vem aí
Faz parte dessa esperança sabermos que nem todos nos farão de trouxas e que a Fiocruz se recusou a dar, na distribuição das vacinas, a prioridade pedida pelo STF
Por falar em Natal, alguma coisa está mudando em nossos corações. O ano de 2020, por tudo o que aconteceu, talvez tenha sido o pior ano de nossas vidas. Mortes e separações, perda de emprego e falta de dinheiro, os amigos que não temos mais porque sucumbiram à Covid ou porque nunca mais abraçamos por causa da porra do vírus, a solidão provocada pelo temor do contágio. Tanta coisa nos aconteceu e nenhuma delas nos fez mais felizes.
Até a política, que sempre cultivamos como fofoca, nos faltou. É difícil fofocar, rir ou xingar no meio de outros papos, quando o cara disfarça a incompetência e o narcisismo por trás de uma afirmação machista, como a da “gripezinha” ou a do “país de maricas”. Ou quando ele, em plena discussão das vacinas, às vésperas de nossa redenção, da garantia ou da esperança de nossa sobrevivência, jura que não vai se vacinar e ponto final. Prefere inaugurar, com pompa e circunstância, na presença de ministros e funcionários, uma exibição exibicionista das vestes que ele e Michelle usaram na posse, como se isso tivesse alguma importância para nós ou para a História. Quem votou nele porque era um impávido colosso, um homem simples e modesto, igual a qualquer um de nós, deve estar uma fera.
Numa hora dessa, nada disso tem mais importância. O que importa é a nossa esperança, o que a gente acredita que vai passar, vai melhorar embora não saibamos direito como. Como nossa Fernanda Montenegro diante do mar e do sol que nasce generoso do outro lado da praia.
Faz parte dessa esperança sabermos que nem todos nos farão de trouxas e que a Fiocruz se recusou a dar, na distribuição das vacinas, a prioridade pedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Conforme disse Stuart Mill (que não era de esquerda, nem de direita), em meados do século XIX: o direito de um cessa quando perturba o direito dos outros. Eles que entrem na fila, como todo brasileiro terá que fazer ao longo desses primeiros meses de 2021. Um ano para o qual devemos sorrir com afeto, pois esse é o nosso futuro e é preciso confiar nele.
Quando terminar a pandemia, perceberemos com toda clareza as mudanças em nosso comportamento, as transformações culturais provocadas por ela no ser humano de cada canto do planeta. É cedo para falar dessas mudanças culturais, podemos tentar adivinhá-las, mas ainda não sabemos nem como termina a pandemia.
No Brasil, a tragédia mais grave neste momento é a do desmatamento cultural, o empenho em destruir nas expressões culturais do país tudo aquilo que representamos de fato e que representa nosso comportamento e nossa existência, o que na verdade somos. Para nós, os brasileiros foram sempre os outros, nos acostumamos a nos referir a eles na terceira pessoa, nunca os tratando como “nós”. Ainda assim, o Brasil é a nossa obsessão, vivemos inventando teorias para tentar explicá-lo. Somos o único país do mundo luso-afro-ameríndio e devíamos estar aproveitando essa novidade tão original e rara.
A pandemia nos ensinou algumas lições que havíamos esquecido. Como, por exemplo, viver na solidão como fomos gerados e viemos ao mundo, nosso compulsório destino. Por mais que contemos com a arte e a ciência dos outros, somos nós que fazemos nossas escolhas e tomamos nossas próprias decisões. Somos nós os responsáveis pelo nosso destino, mesmo que não tomemos conhecimento dele. Mas podemos contar com a força e o consolo do outro, a solidariedade de quem nos ama, e tomara que sejam muitos os que nos amam. Se além disso estivermos atentos ao inesperado, ao acaso responsável por quase tudo que acontece, temos uma grande chance de nos sairmos bem na vida. Pois é assim que se dá fora de nós, no mundo físico, mesmo que às vezes demore a acontecer.
Em 2021, não deixaremos que nada nos leve a alegria de viver, nossa esperança nas coisas da vida e do mundo. Tentaremos ser mais justos e mais amorosos, como sempre foi o mestre pensador sacrificado na cruz. Mesmo os que não acreditam em seu caráter divino, não poderão negar que o que ele pensou e disse mudou a humanidade nesses últimos dois mil e vinte anos. E continua mudando, mesmo que muitos tentem, em nome dele e em vão, praticar erros, equívocos e maldades. Inúteis alterações perversas de tudo o que ele dizia a respeito de nós, de tudo o que ele dizia esperar de nós.
Vamos nos preparar para o futuro — ele começa no ano que vem, daqui a uma semana.
Sergio Lamucci: Os custos da falta de um plano para a vacinação
Um planejamento minimamente adequado conseguiria poupar muitas vidas, além de contribuir para a retomada da economia
Enquanto os EUA e vários países da Europa, da América Latina e do Oriente Médio já iniciaram a vacinação contra a covid-19, o Brasil fica para trás, sem um plano claro e definido para a imunização. Por aqui, o presidente Jair Bolsonaro se empenha numa campanha de desinformação contra a vacina. Diz que não vai se vacinar, lança dúvidas sobre a Coronavac, desenvolvida no Brasil pelo Instituto Butantan e pela chinesa Sinovac, e afirma não ter pressa em iniciar a vacinação, num país em que já morreram mais de 191 mil pessoas pela doença. Além da tragédia da perda de muitas vidas, a demora tende a prejudicar a retomada da economia, que já vai enfrentar outros ventos contrários em 2021.
A vacinação em massa é o caminho mais eficaz para deter a doença. Diante disso, a estratégia óbvia de grande parte dos países foi planejar com antecedência a aquisição de vacinas para imunizar uma parcela expressiva de sua população, começando o processo o mais rápido possível. Não foi o que fez o governo Bolsonaro. No sábado, o presidente disse que não se sentia pressionado pelo fato de outros países já terem iniciado a vacinação, afirmando não dar “bola para isso”. Em 19 de dezembro, havia dito que “a pressa pela vacina não se justifica”, no mesmo dia em que vaticinou que a “pandemia estava chegando ao fim”. Ontem, porém, afirmou ter “pressa em obter uma vacina, segura, eficaz e com qualidade, fabricada por laboratórios devidamente certificados”, mas que a questão da responsabilidade por reações adversas é “um tema de grande impacto e que precisa ser muito bem esclarecido”.
A coleção de disparates de Bolsonaro a respeito do tema é ampla. Alguns dos mais graves são as seguidas declarações de que não pretende se vacinar, as críticas à imunização obrigatória e as ironias sobre a Coronavac. O presidente, que assinou uma medida provisória (MP) destinando R$ 20 bilhões para a compra da vacina, contribui ativamente para a campanha de desinformação sobre o assunto, que corre solta nas redes sociais e em grupos de WhatsApp.
Pesquisa feita pelo Datafolha neste mês mostra que 22% dos entrevistados não pretendem se vacinar contra a covid-19, percentual que era de 9% em agosto. Um terço dos ouvidos pelo instituto que afirmam confiar sempre em Bolsonaro diz que não vai tomar o imunizante. Além disso, metade dos entrevistados informa que não tomará uma vacina da China. Se uma parcela expressiva da população resiste a se vacinar, é mais difícil evitar a disseminação da doença.
O atraso na vacinação deverá ter consequências negativas para a economia. O maior otimismo em relação à atividade econômica global em 2021, especialmente no segundo semestre, se deve à expectativa de que uma parte expressiva da população em muitos países será imunizada. Se o Brasil ficar para trás nessa corrida, a retomada por aqui vai enfrentar um obstáculo importante.
Na visão dos analistas, o recrudescimento da covid-19 é um dos fatores que podem atrapalhar a recuperação da economia em 2021, num cenário em que as incertezas em relação às contas públicas e o fim do auxílio emergencial tendem a afetar o ritmo de expansão da atividade.
O Itaú Unibanco, por exemplo, estima que a economia brasileira deverá crescer no segundo trimestre 0,2% em relação ao trimestre anterior, feito o ajuste sazonal, considerando uma média diária de 400 óbitos pela covid-19 no fim desse período. No entanto, se a média de mortes por dia no fim do primeiro trimestre ficar em 600, pode haver uma retração do PIB de 1,2% nos três primeiros meses do ano, calcula o banco.
Segundo o economista-chefe do Itaú Unibanco, Mario Mesquita, o que se observou é que “a mortalidade afeta a atividade diretamente, porque as pessoas passam a circular menos e usar menos serviços que implicam aglomeração, mesmo antes de qualquer restrição por parte das autoridades”. Além disso, “elas passam a poupar mais também, pelo efeito precaucional”, diz Mesquita. A média de mortes nos últimos sete dias ficou em 625, de acordo com o consórcio de veículos de imprensa.
Ainda que não se esperem restrições à mobilidade tão fortes como as adotadas no começo da pandemia, em março e abril, esse movimento deverá ter um impacto negativo sobre a economia brasileira.
Em relatório, o Itaú Unibanco nota que continua a haver “um aumento acelerado na curva de novos casos um pouco mais lento na curva de novas mortes”, com base em números disponíveis até 22 de dezembro. “A utilização de capacidade hospitalar no país segue aumentando. O Estado de São Paulo anunciou a adoção da ‘fase vermelha’ durante os feriados de fim de ano, buscando reduzir o contágio em encontros sociais. É provável que outras regiões do país tomem decisões similares”, afirma o banco.
Se o número de casos e mortes continuar a crescer ou se mantiver em níveis elevados, os segmentos de serviços que exigem maior interação social vão sofrer. É o caso dos setores de alojamento e alimentação, que incluem turismo, bares e restaurantes, e dos serviços prestados a famílias. São segmentos que empregam muita mão de obra.
Com o fim do auxílio emergencial, a recuperação do mercado de trabalho é fundamental para a economia não sofrer um baque muito forte. Desse modo, promover uma vacinação rápida e ampla é a melhor resposta também do ponto de vista econômico. Bolsonaro, porém, continua a tratar a pandemia com descaso. No caso das vacinas, também politizou ao máximo a discussão, por causa de sua disputa política com o governador João Doria (PSDB).
Em São Paulo, o plano do governo paulista é começar a vacinação em 25 de janeiro, mas o adiamento da divulgação do índice de eficácia da Coronavac, que teria ocorrido a pedido da Sinovac, levantou dúvidas a respeito da viabilidade do cronograma. Em entrevista à TV Brasil, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse que até o fim de janeiro haverá “vacinas iniciais, algumas em caráter emergencial, e a vacinação em massa, já com registro, a partir de fevereiro”.
Como se vê, o Brasil começará a vacinação atrasado em relação a outros países, e não está claro qual fatia da população será atendida ao longo de 2021. Um planejamento minimamente adequado conseguiria poupar muitas vidas, além de contribuir para a retomada da economia.
Bruno Carazza: Nossas vidas nunca mais serão as mesmas
Em breve superaremos a gripe espanhola em número de mortes
14 de março de 2020. Nesse dia eu tive um pressentimento de que nossas vidas nunca mais seriam as mesmas.
É claro que, como a maior parte dos brasileiros, eu vinha acompanhando as notícias sobre o novo coronavírus. A doença havia chegado há algumas semanas por aqui, e o número de casos confirmados pelo Ministério da Saúde vinha subindo dia a dia - mas ainda eram apenas 362, sem nenhuma morte até então.
Àquela altura a covid-19 já avançava com força na Europa, a ponto de a Organização Mundial de Saúde ter declarado no dia 11 de março que se tratava de uma pandemia. Com quatro “circuit breakers”, a bolsa naquela semana caiu 15,6%, na pior semana desde a crise de 2008, e mesmo assim eu não me abalava.
A ficha caiu quando ouvi uma entrevista de Donald G. McNeil Jr., repórter de ciência do “The New York Times” que já havia feito coberturas sobre epidemias nos quatro cantos do mundo. Ao participar do podcast “The Daily”, o jornalista revelou que, pelo o que havia apurado junto a diversos cientistas, o novo coronavírus poderia ser tão letal quanto a gripe espanhola de 1918.
“Se nada for feito, todos nós perderemos pelo menos uma pessoa próxima por covid-19”, foi a frase que ficou na minha memória.
Naquele mesmo dia 14 de março em que ouvi o episódio com o jornalista do “NYT” compareci à festa de aniversário de um grande amigo - e aquela foi a última vez que fui a um bar. Lá, recebi uma mensagem por WhatsApp informando que a faculdade em que trabalho havia suspendido as aulas preventivamente. Daí pra frente minha vida nunca mais foi a mesma.
Num depoimento dado em 1977, no longínquo ano em que nasci, o artista plástico Abraham Palatnik parecia profetizar o que vivemos em 2020. “O ser humano representa um grande investimento em estudo e aprendizagem ao longo de dezenas de anos. Desprezar esta vantagem seria uma degradação da própria natureza do homem e um desperdício de suas potencialidades.”
O desdém pela ciência, expresso inúmeras vezes pelo presidente da República, cobrou seu preço. “Cenas de terror e tensão, fuga na terra, ira no céu”, cantavam ainda no início da carreira os Titãs, tendo entre eles o punk Ciro Pessoa. “Tomaram tudo o que tínhamos”, clamava o líder Aritana Yawalapati, um dos últimos falantes do idioma tradicional do seu povo, no Alto Xingu.
“Nós estamos órfãos de um projeto nacional. (...) Nós fomos achando que é possível tocar o futuro sem discutir o futuro”, criticou certa vez o ex-reitor da UFRJ e ex-presidente do BNDES Carlos Lessa.
Como o limpador de vidraças do conto “Um discurso sobre o método”, de Sérgio Sant’Anna, estamos suspensos no tempo, sem orientações claras sobre novas medidas de distanciamento social ou ações rápidas para a obtenção de vacinas. “Ele era um homem que vivia nas imediações do presente, pois o passado não lhe trazia nenhuma recordação agradável, em especial, e o futuro era melhor não prevê-lo, de tão previsível”.
Muitos sucumbiram diante da indefinição. Alguns de modo resignado, como na canção de Paulinho do Roupa Nova: “E a hora vai chegar; já não sei como evitar. Eu não vou mais fugir, é tempo de encarar”.
“Daqui dou o viver já por vivido”, sentenciou a poetisa Olga Savary na sua Sextilha Camoniana.
“Pela fresta, é possível ver o céu azul. Acho que atravessei esta porta”. Algodão-doce para você, inesquecível Daniel Azulay.
“Passei o bastão pra vocês, agora sigam e sejam felizes”, disse a atriz Nicette Bruno a seus filhos, mas o conselho serve a cada um de nós.
“Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente”, nos ensinou Aldir Blanc num hino de outros tempos, mais atual do que nunca. “A esperança dança na corda bamba de sombrinha, e em cada passo dessa linha pode se machucar”.
Enquanto escrevo esta coluna, o Brasil registra 190.795 mortes oficiais por covid-19. De acordo com a última pesquisa Datafolha, 8 em cada 10 brasileiros pegou ou conhece alguém próximo que foi contaminado pelo novo coronavírus.
Estudiosos estimam que as duas grandes ondas de gripe espanhola que atingiram o Brasil entre 1918 e 1919 mataram em torno de 35.000 pessoas. Segundo o IBGE, nesta mesma época o Brasil possuía em torno de 30 milhões de habitantes. Grosso modo, pouco mais de 0,1% dos brasileiros sucumbiram à doença.
Um século depois, o país possui pouco mais de 210 milhões. A continuar o ritmo atual de evolução, em breve a covid-19 terá matado o mesmo tanto que a gripe espanhola, em termos proporcionais.
O descaso com a saúde pública no atual governo jogou por terra todo o avanço de higiene, tecnologia e políticas públicas de um século.
As retrospectivas do ano de 2020, a serem veiculadas nos próximos dias, vão precisar de tempo e espaço extra para retratar tantas perdas inestimáveis - inclusive as dez personalidades que eu mencionei expressamente acima.
No meu caso, a profecia do repórter do “The New York Times” se cumpriu na noite do dia 25 de outubro. Sebastião Fernandes Pereira era um grande amigo da minha família, com o qual convivi desde os meus 10 anos de idade.
De riso fácil e conversa atenciosa, deixou órfãos milhares de pessoas que recorriam a ele para buscar conforto e conselho para suas dores da alma.
Tiãozinho virou estatística da covid, mas a falta que ele deixou não tem medida. Por meio dele homenageio as vítimas da doença que marcou este ano, seus familiares e amigos.
Até 2021.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Vinicius Torres Freire: Na guerra da vacina, Doria injetou veneno de descrédito na testa
Governador exagerou no show e ameaça programa de imunização
Ao fim da guerra da vacina, João Doria poderia parecer um líder mais nacional e um contraponto da razão a Jair Bolsonaro. O governador paulista decerto fez o bom serviço de cutucar a inoperância federal. Mas, depois dos vexames recentes, Doria pode parecer apenas um destrambelhado provinciano. Pior, lançou desconfiança sobre a própria vacina que comprou, grave em termos sanitários e econômicos.
Por duas vezes, o governo de São Paulo adiou a publicação da eficácia da Coronavac. Na quarta-feira (23), o país foi induzido a esperar boas notícias. Em vez disso, ouviu uma conversa palerma de que os dados precisariam ser antes mastigados pela Sinovac, por uma obrigação contratual, e de que a eficácia da vacina era diferente daquela verificada em outros países, no limite de apenas 50%.
Descobriu-se que Doria estava em Miami, o que pareceu fuga do fiasco. Para piorar, soube-se na sexta (25) que a Turquia não teria “obrigação contratual”, pois divulgou, de modo mambembe, que a Coronavac seria eficaz em 91,25% dos casos.
O governo Doria suscitou desconfiança sobre os números que virão sobre a vacina, já objeto de propaganda negativa criminosa de Bolsonaro.
Quanto menos confiança, menos gente tende a aderir ao programa de vacinação. Quanto menos vacinados, menor a possibilidade de a vacina evitar mortes, aliviar hospitais e atenuar as restrições obrigatórias ou autoimpostas de contato social, o que tem óbvio impacto econômico também.
Mesmo com uma vacina eficaz em 85% dos casos, a campanha contra a Covid teria de atingir adesão do nível de vacinações contra a gripe (uns 95%) para propiciar um alívio notável apenas a partir lá de maio. A vida, porém, ainda teria restrições sérias, em especial para negócios e empregos que dependem de aglomerações e circulação livre pelas cidades.
Na reunião dos governadores com o capacho do ministério da Saúde, dia 8, Doria já trocara as mãos pelos pés. Em vez de vencedor generoso e agregador, pareceu um “mauricinho metido e exibido”, como disse a este jornalista um governador ainda simpático ao colega paulista. Depois, houve duas negaças dos resultados da vacina. Doria blefava, com confiança temerária?
No mundo político, ficou a impressão de que Doria não sabia bem o que estava fazendo, o que sublinhou sua imagem de pouco confiável, um tipo obstinado que faz qualquer negócio, de atropelar aliados a apoiar Bolsonaro em um dia para sair de fininho pouco depois.
O governo paulista poderia simplesmente apresentar a situação tal como ela é, dando publicidade e explicações racionais para a atos e processos, o que seria um contraponto confiável ao desvario bolsonarista. Tem gente para fazê-lo. Doria nomeia muitos bons quadros para seus governos.
Não se trata de ser “transparente”. Apenas na fantasia juvenil ou anarquista um governo pode ser um BBB ao vivo. É política, administrativa e tecnicamente inviável. Mas, claro, em qualquer tempo e lugar, gente com poder sonega informação do público, o que é autoritário.
A fim de recuperar terreno, Doria terá de abafar seu caráter espetaculoso, parar com segredinhos, com vazamentos de notinhas publicitárias e mostrar que pode ser alternativa de racionalidade mínima à pura monstruosidade bolsonarista. Já tem um passivo grande, até pelo Bolsodoria de 2018, relembrado nestes dias de vexame.
Terá de contar com sorte também, que a vacina seja eficaz em nível relevante, uns 75% ao menos, e fazer a mais bem-sucedida campanha de vacinação da história.