vacinação

Alon Feuerwerker: Lição de Brasil

De vez em quando é preciso ser otimista. E hoje é um dia assim. Depois da espera, não um, mas dois registros de vacinas contra a Covid-19 foram pedidos à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa.

Da CoronaVac, parceria entre a chinesa Sinovac e o Butantan, e da AstraZeneca/Oxford, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz. A primeira é a aposta do governo de São Paulo (João Doria). A segunda é a aposta principal do governo federal (Jair Bolsonaro).

Está instalada a competição, começou a corrida. Em disputa, não apenas os imunizantes, mas a estrutura e os instrumentos, principalmente as seringas. Quem vai ganhar ao final? Quem mais eficazmente realizar a missão nos próximos meses. E a vacina que se provar mais efetiva no essencial: imunizar a população contra o SARS-CoV-2, inclusive suas novas variantes.

Restam dúvidas? Que sejam esclarecidas pela Anvisa, perfeitamente equipada para tanto.

O episódio é mais uma lição de Brasil. Sobre nosso país, nunca convém otimismo excessivo sobre as possibilidades, mas tampouco é conveniente ceder ao catastrofismo. É o caso agora. A Covid-19 não vai desaparecer num passe de mágica por aqui, mas não seria sensato supor que ficaríamos para trás enquanto o mundo todo já estivesse se vacinando em massa.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Alvaro Costa e Silva: Bolsonaro, o vagabundo eficiente

Trabalhando pela destruição do país e a favor do vírus, o presidente tem sido incansável

Em maio de 2020, o Brasil já era o segundo país do mundo com o maior número de casos de infectados com o coronavírus: quase 400 mil pessoas. Na época, em seu comportamento-padrão durante toda a pandemia, Bolsonaro circulou pelo comércio de Brasília gerando aglomerações. Incrível, ele usava máscara. Mas logo a tiraria, ao parar numa barraquinha para comer um cachorro-quente na Asa Norte. Na primeira mordida, recebeu o carinho da torcida: "Vai trabalhar, vagabundo!".

A fama de vagabundo, de quem sempre viveu na e da política, o acompanha desde muito antes da eleição para presidente. Um deputado federal que, em 27 anos de legislatura, consegue aprovar dois projetos só pode ser um mito.

Seus filhos Flávio, Eduardo e Carlos têm afazeres mais urgentes --contar dinheiro em espécie, comandar o gabinete do ódio, dar curso de como se tornar um perfeito fascista, tirar fotos com Neymar. No Senado, na Câmara dos Deputados e na Câmara Municipal, eles seguem o estilo do papai nos tempos de baixo clero: apresentaram no ano passado 23 propostas, segundo levantamento do repórter Dimitrius Dantas.

Soluções para o Brasil que vão da propaganda de armas na TV, no rádio e na internet à criminalização do comunismo.

Chamar o herói da Praia Grande de vagabundo —ou de indolente, ocioso, preguiçoso, encostado, desocupado, mandrião, o que mais você quiser— pode funcionar como desabafo. Mas é uma inverdade. Trabalhando pela destruição do país, Bolsonaro tem sido incansável. Pois ele sabe que, para levar vantagem em seu projeto de poder autocrata, há de promover o caos nas instituições (sua pregação contra a urna eletrônica é um golpe pré-datado), nas relações internacionais, na educação, na cultura, no meio ambiente e, sobretudo, há de torcer pelo vírus.

Não se engane ao ouvir de Bolsonaro que o Brasil está quebrado. O quebrador é ele.


Cristina Serra: O instinto assassino de Bolsonaro

Ao confessar seu fracasso, ele deveria renunciar. Mas não tem hombridade para tal

Bolsonaro tem duas preocupações na vida: salvar a pele dos filhos suspeitos de cometer crimes e preparar as bases para um golpe na eleição de 2022. Como admitiu em cínica declaração, pelo país ele nada consegue fazer. Aí está uma verdade. Não consegue porque não é capaz. Seu governo será sempre associado a um recorde trágico: 200 mil brasileiros mortos, em menos de dez meses, pelo vírus que ele ajudou a espalhar com seus arrotos de ignorância.

Péssimo militar e parlamentar medíocre, Bolsonaro levou seu despreparo para o Planalto e se cercou de incompetentes como ele. O pascácio da Saúde desconhece a lei da oferta e da procura e não consegue marcar a data da campanha de vacinação. O da Economia não sabe o que pôr no lugar do auxílio emergencial. O vírus mata, a fome também.

A incapacidade do presidente está longe de ser nosso único tormento. Para quem já respondeu a processo por terrorismo, as cenas de selvageria no Capitólio, em Washington, devem ter provocado êxtase. Certamente excitado com o que viu, Bolsonaro vai radicalizar sua campanha de sabotagem à democracia, à urna e ao voto enquanto tonifica seus esquadrões da morte, pelotões de jagunços e hordas de milicianos por dentro do aparelho de Estado, com liberação de armas, promoções, verbas, cargos e salários.

Só numa sociedade muito adoecida o presidente pode atentar à luz do dia contra a democracia e ficar tudo na mesma. O Brasil está morrendo de falência múltipla de instituições. Ao confessar seu fracasso, Bolsonaro deveria renunciar. Mas não tem hombridade para tal.

Restaria o impeachment. Mas ele sabe que os pedidos continuarão juntando mofo enquanto puder contar com a cumplicidade de gente graúda que enriquece ainda mais com a crise e que prefere deixar tudo como está. Assim, Bolsonaro pode seguir sem ser incomodado, contando com mais dois anos para exercitar seu instinto assassino. Não resta dúvida de que nisso está sendo muito bem-sucedido.


Hélio Schwartsman: Caprichos vacinais

O próprio presidente trabalha para minar a confiança na vacinação

Numa cerimônia mais voltada a produzir fatos políticos do que a divulgar informações científicas, o governo de São Paulo finalmente anunciou que a Coronavac apresentou, no Brasil, uma eficácia de 78% na prevenção de doença sintomática. É um bom resultado; um pouco melhor do que o do imunizante da Universidade de Oxford/AstraZeneca —aposta do governo federal—, cuja eficácia foi estimada em 70%.

Politicamente, o governador de São Paulo, João Doria, se saiu melhor do que Jair Bolsonaro, já que o presidente, que jurara que jamais adquiriria a "vacina chinesa do Doria", teve de engolir a pirraça a seco e mandar comprar os imunizantes do rival paulista. Sorte de Doria, azar de Bolsonaro, já que, quando firmaram suas parcerias, era impossível saber qual vacina funcionaria melhor.

Numa perspectiva imediatista, o Brasil também teve sorte. Para um país que fez apostas tão limitadas (basicamente duas), ambas terem apresentado resultados bem razoáveis é boa notícia.

Num plano mais existencial, porém, o Brasil teve o pior azar imaginável. A pandemia chegou quando o país era governado pelo presidente mais despreparado de todos os tempos. Se atravessar a crise sanitária já teria sido difícil com um estadista no comando, com Bolsonaro tornou-se um pesadelo.

O tratamento que ele deu às vacinas é a maior prova disso. Um governante não precisa entender nada de medicina para fazer uma gestão decente na saúde. Basta saber que o grosso dos ganhos em expectativa de vida que a humanidade experimentou nos últimos dois séculos podem ser atribuídos a duas coisas: saneamento básico e vacinação em massa. São as duas vacas sagradas das quais nenhum gestor pode descuidar.

O Brasil era muito fraco na primeira e bom na segunda. Com Bolsonaro, continuamos ruins na primeira, mas ficamos péssimos na segunda, com o próprio presidente trabalhando para minar a confiança na vacinação.


Míriam Leitão: Diplomacia sem pé nem cabeça

O presidente Bolsonaro mandou uma carta ao primeiro-ministro da Índia pedindo ajuda para receber as vacinas da Serum. É mais um erro da diplomacia. Esta semana o ministro Eduardo Pazuello telefonou para o ministro da Saúde indiano, Dr. Harsh Vardhan, para pedir o envio das doses, dois milhões ao todo. Tudo o que ouviu foi que esse era um assunto comercial. Educadamente, o ministro indiano indicou que era preciso concluir primeiro a negociação com a empresa. A Serum é privada, e não havia recebido o pagamento e o governo da Índia não tinha o que fazer a respeito. Ontem, o Brasil programou o pagamento.

Esse é só um pequeno exemplo da falta de noção do governo brasileiro, que despreza a tradição da nossa diplomacia profissional. Quem conversa com representantes de outros países em Brasília ouve uma série de histórias das falhas nas regras básicas. Uma delas é a de que nenhum ministro liga para ouvir um não. Para isso existem os contatos precursores. E o que Vardhan disse foi que Pazuello se acertasse com a empresa e se houvesse algum entrave burocrático na exportação aí o governo indiano poderia ajudar. Não disse assim com essas palavras porque ele é diplomata de carreira. Conhece os códigos.

Quem não conhece é a cúpula do Itamaraty que erra o tempo todo. Primeiro, a chancelaria tinha que ter ido na frente preparando o terreno para que a área especializada já encontrasse o terreno preparado. A Fiocruz é que fez os contatos com a Serum. O presidente da Serum chegou a falar que havia uma proibição de exportação. Mas foi desmentido pelo governo indiano. Esse até poderia ter sido o assunto da conversa com o ministro da Saúde. Mas cobrar do governo a entrega do produto de uma empresa privada antes de pagar pela compra não fazia sentido. A Serum produz 60 milhões de doses por mês. E está com contratos fechados há meses com inúmeros países.

Durante os últimos meses, de luta pela vacina, o Itamaraty poderia ter fechado acordos com países produtores. O ministro Ernesto Araújo, se colocasse a cabeça no lugar e o pé no chão, poderia ter ajudado negociando acordos de cooperação. Um dos casos que se conta em Brasília mostra que Ernesto acha que é um evangelista. Um ministro de país desenvolvedor de vacinas o procurou meses atrás. E na conversa levantou a bola para ele cortar. Disse que o seu país estava investindo muito na produção de vacina, inclusive para Covid. Qual seria a resposta certa de Ernesto? Dizer que o Brasil tinha interesse em cooperação e que tem dois grandes institutos científicos que poderiam estabelecer parcerias. Não. Ernesto passou dez minutos pregando sobre o combate ao globalismo da Organização Mundial de Saúde. Até que seu interlocutor desistiu.

Assim, o Brasil foi perdendo lugar na fila. De um lado a cabeça desorganizada do ministro da Saúde, de outro a atitude de cruzado do ministro das Relações Exteriores. Acima de todos, o negacionismo do presidente. O resultado é a perda de reputação da nossa diplomacia e pior, atrasos na vacinação do povo brasileiro.Os tweets de Ernesto Araújo esta semana sobre o ataque ao capitólio rasgam qualquer manual básico de diplomacia. Na série “há que”, Ernesto abraçou a teoria de que havia infiltrados no ato e justificou os vândalos dizendo que “há que reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída pela classe política e desconfia do processo eleitoral”.

Há que se ter modos Ernesto, aprender o elementar sobre política externa. Esse tweet é uma agressão ao presidente que vai assumir o poder no maior país do mundo dentro de alguns dias. O chanceler brasileiro defendeu os agressores dizendo que não se pode chamar de fascistas “cidadãos de bem”. Um deles envergava uma camiseta com inscrições que se referiam aos seis milhões de judeus mortos na Segunda Guerra e uma sigla que significa que isso não é o suficiente. Outro tinha uma camiseta escrito “Campo de Auschwitz”. De fato, a palavra melhor é nazista.

A sequência de absurdos cometidos por Ernesto Araújo deixa horrorizados os representantes estrangeiros em Brasília e os inúmeros bons diplomatas brasileiros. Diplomacia abre portas, a do atual governo, fecha. Depois de hostilizar a China, o Brasil está brigando com os Estados Unidos. Em cada posto-chave da administração Biden haverá alguém disposto a cobrar do governo Bolsonaro respeito aos valores que ele tem ofendido diariamente.


Cristovam Buarque: Basta e basta

União contra Bolsonaro

Basta do governo insano e da oposição dividida. O maior erro dos democratas foi não manterem a unidade da luta contra a ditadura, na hora de construir a democracia, com eficiência econômica, justiça social, sustentabilidade ecológica, fiscal e educacional. Continuamos divididos, mesmo diante do risco de reeleger um regime miliciano no lugar do antigo regime militar.

Em 1985, os democratas se uniram para barrar a continuação do regime militar com o civil Maluf; com exceção do PT, que não votou contra a ditadura, para não se aliar a democratas conservadores. Com poucos deputados, sua opção não impediu a vitória da democracia. Quase quarenta anos depois, outra vez os democratas têm a chance de deixar suas divergências para barrar um regime militarista, obscurantista, candidato a autoritarismo. Desta vez o PT não é mais o pequeno partido de antes. Apesar de todo seu desgaste, por seus erros ou por manipulações na justiça, o PT é um partido grande o suficiente para definir o rumo das eleições em 2022: unindo-se aos demais democratas para barrar a continuação do atual governo, ou repetir o isolamento e correr o risco de reeleger o governo atual, com todas as consequências.

Se repetirmos agora o divisionismo, seja porque o PT não se alia aos demais democratas ou porque estes não aceitam se unir ao PT, há grande chance de outra vez chegarmos ao segundo turno com um nome que não entusiasma ao conjunto dos democratas, e, ainda mais grave, um nome ou um partido com mais rejeição do que o atual presidente. Como aconteceu em 2018, onde Fernando Haddad era muito mais preparado, mas perdeu por causa da rejeição ao PT.

Basta deste governo insensato.

Basta também da insensatez dos democratas que se dividem.

Em 1985, Brizola, Arraes, Ulisses, deixaram de lado suas divergências mútuas e abriram mão da proposta nobre das eleições diretas, adiando-a por quatro anos; se aliaram a Sarney e Marco Maciel, que até a véspera estavam aliados a ditadura mas aceitaram a aliança com seus adversários para iniciar a redemocratização, que sem eles teria sido adiada por anos. Foi a aliança entre adversários discordantes e o nome sem rejeição, do Tancredo, que permitiu barrar a ditadura. Outra vez precisamos que nossos líderes de hoje barrem a reeleição deste presidente que se reelegeu por causa de nossa divisão em 2018. Para tanto, precisam fazer como fizeram aqueles outros 40 anos atrás: explicitarem a unidade, os motivos dela, e escolherem um nome com pequena rejeição na opinião pública. Que assuma o compromisso de abolir o negacionismo, aceitar diálogo e tolerância, respeitar a democracia, rechaçar o armamentismo e conduzir o país por quatro anos. É como se estivéssemos outra vez adiando as Diretas, mas abrindo o debate sobre o progresso futuro, graças a barrar a decadência que o Brasil sofre.

Basta da insanidade do desgoverno ou do divisionismo das oposições.


Murillo de Aragão: Mudando de ideia para sobreviver

O governo deve deixar claro que a vacinação é, de fato, prioridade

Em política, mudar de ideia é quase inevitável. As circunstâncias e o acaso são os curingas da realidade. Mas, de modo geral, a mudança de ideia não é bem aceita pela opinião publica, sendo vista como um sinal de falta de coerência. Em política, porém, coerência e conveniência andam muito próximas da necessidade. São como os três mosqueteiros de Dumas. E, como na história, existe o quarto mosqueteiro, que é a oportunidade.

Na análise política, identificar os mosqueteiros é essencial para entender o que está acontecendo. A coerência é mantida pela conveniência e pela necessidade diante da conjuntura. Quando as circunstâncias mudam, a coerência é sacrificada e abre-se a oportunidade para mudanças.

Nenhum regime totalitário e dogmático do século passado deixou de mudar de ideia ao longo dos acontecimentos. Ao contrário, mudam com mais facilidade que os democráticos, pois controlam a expressão política da sociedade. Já na democracia, as quebras de paradigma são mais penosas porque o processo decisório é mais abrangente e envolve mais atores.

O governo Jair Bolsonaro viveu em 2020 um processo de mudança de ideias com sinais contraditórios. O ex-­presidente dos EUA Harry S. Truman teria dito “if you can’t convince them, confuse them” (“se não pode convencê-­los, confunda-os”) ao se referir à forma como a oposição tratava o seu mandato perante a opinião pública. Bolsonaro exerceu, de forma muitas vezes rude, o que o americano dizia. Mas não só ele. Lula foi mestre em tecer narrativas contraditórias às suas atitudes.

Há dois processos em curso confundindo o eleitorado. Um é a mudança de ideia materializada nos entendimentos com setores do centro político, prática que Bolsonaro já rejeitou com veemência. A necessidade prevaleceu sobre a coerência. Nada de novo, apesar do estranhamento. O outro processo está indefinido: a questão da imunização contra a Covid-19. Ao mesmo tempo que Bolsonaro diz que não se vacinará, ele já pôs verbas à disposição para os fármacos. Mas o programa de imunização não está posto, ao passo que países menos organizados avançam na questão. A ambiguidade no tratamento do tema pode penalizar a aprovação do governo.

Confundir os adversários com narrativas e atitudes contraditórias depende de mestria, timing e certa simpatia da sociedade. Lula foi popular mesmo negociando com o FMI, praticando um grande arrocho fiscal e operando no submundo da política com o mensalão. Beneficiou-se da tolerância da opinião pública e “daszelite”. Mas não resistiu aos próprios erros. O maior deles foi Dilma Rousseff.

Bolsonaro avançou na reestruturação do presidencialismo de coalizão e demonstrou que sua prioridade era a blindagem política. Mas, no tocante à vacinação, suas atitudes estão obliteradas pela falta de convicção. Ele corre o risco de cometer erros fatais ante os desafios econômicos e sanitários atuais. A questão da imunização deve ser abordada de forma a deixar claro para a opinião pública e, sobretudo, para o mundo econômico que ela é, de fato, prioridade. Sem a vacinação, a economia vai patinar e a aprovação do governo vai encolher. O caminho para o seu sucesso será o de mudar de ideia com mais intensidade. Como disse Churchill, “quem não muda de ideia não muda nada”.


Luciano Huck: Escutar, pactuar e agir - Sugestões para 2021

Muitas vidas teriam sido salvas se as autoridades tivessem ouvido mais os doentes, os profissionais de saúde e aqueles que trabalham em serviços essenciais

O ano de 2020 foi violento. Da porta para dentro de casa, um liquidificador de angústias, ansiedades, incertezas, reflexões profundas sobre valores e prioridades. Da porta para fora, toda sorte de maluquices, ataques à ciência, à democracia e às liberdades, desorganização total, mortes em números de zona de guerra.

Não cabe aqui nem minimizar nem varrer para debaixo do tapete a maior crise sanitária da história. Vivemos o mais doloroso evento para a humanidade desde a II Guerra no ano que passou. Isso fica ainda mais especialmente grave neste momento em que os números de casos e mortes voltam a se acelerar no Brasil.

Tenhamos consciência de que a vacinação, quando finalmente chegar, não nos fará esquecer tanto sofrimento. O ano de 2020 foi também de aprendizados e exercícios valiosos. Fez frutificar a solidariedade e multiplicar as redes de apoio. Reforçou a fé da sociedade na cooperação humana e na democracia. Mostrou a importância do Estado, na forma do SUS e na competência dos profissionais da saúde. Revelou a excelência de nossos cientistas e pesquisadores. Confirmou a capacidade das pessoas e das empresas de se desdobrarem para tocar a vida adiante, com engenho e determinação.

Essas lições igualmente vão ficar para sempre. Tenhamos isso em mente. Em 2020, o planeta foi forçado a parar. Em 2021, precisaremos, de algum jeito, forçá-lo a voltar a girar. Tal oportunidade é valiosa demais para aproveitá-la com os mesmos pensamentos, as mesmas idiossincrasias, as mesmas atitudes. Não podemos mudar o nosso passado, mas somos livres para escolher o nosso futuro.

Tenho conversado com muitos pensadores atuais, pessoas capazes de iluminar o pós-pandemia, e deles tirei sugestões para 2021, que vou resumi-las em três ensinamentos-convites que gostaria de compartilhar aqui.

O primeiro desses ensinamentos-convites é o de escutar. Escutar quem não tem sido ouvido. Escutar quem estudou. Escutar quem pensa diferente de você.

Minha carreira de comunicador foi construída prestando atenção no que os outros têm a dizer, em suas histórias, em suas dificuldades, sacrifícios e lições de vida. Nestes vinte anos rodando pelos quatro cantos do Brasil, em razão do meu trabalho na TV, tomei o pulso da realidade de um país potente, mas ainda vergonhosamente desigual. Aprendi muito com a nossa gente e continuo a aprender. Nosso povo tem muito a ensinar — sobretudo a quem se acha dono da verdade. Apurar os ouvidos é transformador. Se você escutar de verdade, não vai ter como ignorar os problemas que existem nem as propostas mais robustas e consequentes que surgem para enfrentá-los. Leva a gente a perceber que a realidade nada tem de binária.

Voltemos à pandemia. Era a chance de o poder público escutar com atenção os doentes e suas famílias. De ouvir os profissionais de saúde, os cientistas e todos aqueles que trabalham em serviços essenciais. Era hora de focar em quem foi mais impactado pela crise, em quem mais colaborou para solucioná-la. Muitas vidas teriam sido salvas se nossas autoridades tivessem ouvido mais essas pessoas.

Agora tomemos a questão da Amazônia. Se é fundamental escutar os alertas urgentes e os registros aflitivos da ciência e da meteorologia, também é importante ouvir as necessidades e privações das pessoas que vivem na região e de lá tiram o seu sustento. Qualquer programa de bioeconomia só será realmente sustentável na região das florestas quando houver um entendimento entre diferentes pontos de vista — ou seja, se for feito um encontro de ideias entre ambientalistas, produtores rurais e povos tradicionais, sem descartar ninguém que aja no marco da lei.

Então o segundo ensinamento-convite que proponho é o de juntar as pessoas, reunir as melhores ideias e buscar consensos. Tem muita gente decente no Brasil com vontade genuína de contribuir para fazer um país melhor. Uns dirão que isso é utópico, que as lutas (de classes?) do dia a dia jamais permitirão convergências. Conversa fiada — tão conveniente àqueles, aliás, que prosperam justamente com o imobilismo.

Exemplos não faltam de políticas públicas pactuadas e executadas a várias mãos, do Plano Real ao Bolsa Família, do SUS à Lei Maria da Penha. Em 2019, bem antes da pandemia, eu defendi num seminário no centro financeiro de São Paulo a urgência de o Brasil atacar a nossa abissal desigualdade socioeconômica. Tinham me dito que a plateia farialimer torceria o nariz para a defesa de um programa de renda mínima. Pois aconteceu o contrário. Na vida, os bons exemplos arrastam — e, no trato da questão pública, precisa ser assim também.

O terceiro convite para 2021 nasce dessa disciplina de escutar e de buscar entendimentos. É o imperativo de agir. Temos de tirar do papel as boas ideias. A curiosidade somada à iniciativa e à capacidade de execução pode mover montanhas. Numa conversa recente, a historiadora Anne Applebaum fez para mim a defesa de um reagrupamento político e da instalação de uma contranarrativa com o objetivo de deter os extremos antidemocráticos. Um chamado que considero irresistível e que conta com ventos a favor. Amém!

Nas últimas eleições municipais, as capitais e as maiores cidades rejeitaram inapelavelmente a polarização política. E agora na Câmara desponta a frente multipartidária mais ampla das últimas décadas. É gente diferente unida por um mesmo propósito: nada mais poderoso.

Neste momento tenso da história do Brasil, cheio de instabilidades, é normal que especulações e interpretações equivocadas apareçam por todos os lados. Existe uma vontade pessoal minha de atuar na construção de um futuro mais próspero e justo para a nossa sociedade. Essa vontade já é bastante notória. Venho procurando exercê-la de maneira constante e intensa por meio do diálogo, do mapeamento e da divulgação de boas práticas. Todos os meus passos em 2020 foram dados à luz do dia, sempre em caráter apartidário e pessoal. Divulguei informações sobre a pandemia com responsabilidade e frequência na TV e nas minhas redes sociais — mais de 30 milhões de pessoas impactadas semanalmente.

Contribuí para erguer pontes entre a iniciativa privada e comunidades desassistidas — da distribuição porta a porta de álcool em gel e kits de higiene até cestas básicas.

Participei do grupo de criação da União Rio, de inúmeras iniciativas com a Central Única das Favelas, procurando assim auxiliar financeiramente quem mais sofreu com os efeitos da pandemia na saúde e na economia.

Abri uma escuta permanente para aprender, apoiar e viabilizar iniciativas inclusivas e antirracistas — de um piloto de distribuição de renda não bancarizada em Alagoas à oferta de um intensivo digital e gratuito para inscritos do Enem no Rio Grande do Sul.

Tentei também contribuir dando protagonismo e reconhecendo vozes das periferias e do Brasil profundo, as quais conheço bem, presto atenção, ouço e com quem apreendo há mais de duas décadas viajando pelo país.

Puxei para o debate público brasileiro mais de uma dúzia de pensadores internacionais que, de alguma forma, podem inspirar nossos caminhos pós-Covid — de economistas que estudam a desigualdade, como Esther Duflo e Thomas Piketty, a referências da tecnologia e da inclusão digital, como Nandan Nilekani e Peter Diamandis.

Como cidadão, tento contribuir com meu país até onde minha voz alcança. Consciente da violência, dor e desfuncionalidade do ano que passou, concluí que preciso ir além em 2021. E quero chamar mais gente para avançar: escutando, pactuando e agindo.

Numa de suas tantas letras maravilhosas, um dia Caetano Veloso escreveu que “coragem grande é poder dizer sim”. A gente precisa de um país mais eficiente e afetivo, em que as pessoas tenham o direito de sonhar e as oportunidades não sejam determinadas pela cor da pele ou pelo CEP de nascimento. Uma nação com mais formaturas e menos funerais.

Temos de arregaçar as mangas das nossas camisas, pisar firme no chão da realidade e elaborar um projeto de nação que faça o Brasil liderar agendas globais.

É urgente trabalhar para ser a maior potência agroindustrial sustentável do planeta. Uma economia verde admirada, capaz de produzir e preservar, mas também de extinguir a miséria e combater com rigor as nossas enormes desigualdades.

Para isso, nós teremos de nos mexer, de unir favela e asfalto, campo e cidade, conectando Brasília ao mundo. Tal desafio só será possível se nossas lideranças reconhecerem a necessidade de fazer concessões em nome do bem comum. Pois nada acontecerá por geração espontânea.

Somos muitos. Podemos muito. Aqui estão algumas sugestões para juntos construirmos o futuro próximo do Brasil. Feliz 2021!

*Luciano Huck é apresentador de televisão e empresário

Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720


Míriam Leitão: A nossa dor multiplicada

O Brasil chegou ontem ao número impensável e inaceitável. Duzentos mil brasileiros perderam a vida na pandemia do Covid-19. O coronavírus mata no mundo inteiro, mata mais nos países cujos governantes desprezam a vida humana, a prudência e a ciência. É o caso aqui. Ontem, o presidente Bolsonaro, em defesa do assunto que ele acha importante, o voto impresso, referiu-se “a tal da pandemia”. A “tal”, que ele ainda subestima, enlutou lares, levou aflição a milhões de brasileiros, lotou os hospitais, os cemitérios e nos colocou no segundo lugar em mortes do mundo.

Ontem foi dia de uma boa notícia, pelo menos. Isso não é pouco no tempo de tanto luto. O Instituto Butantan anunciou que a vacina que desenvolve junto com a Sinovac chinesa completou a fase 3 dos testes clínicos. Segundo o governo de São Paulo, evita 100% dos casos graves e 78% dos casos leves. Ficaram faltando dados, na interpretação de alguns analistas. O mais importante deles é sobre o percentual dos que tomaram a vacina que não contraíram a doença. Não ficou claro para quem acompanhou a coletiva do governo paulista qual é, afinal, a taxa de eficácia na imunização, que é afinal o objetivo de qualquer vacina. Os testes no Brasil foram feitos com o grupo que está mais exposto: o pessoal da saúde. Isso foi realmente um teste bem mais robusto do que o feito na população em geral. O pedido de registro emergencial vai ser feito à Anvisa nesta sexta-feira e já estão no solo brasileiro mais de 10 milhões de doses. Foi o momento de alívio, num dia tenso e triste.

No Ministério da Saúde, o general Pazuello apareceu na entrevista, coisa que não tem feito faz tempo. Chegou agradecendo o trabalho dos jornalistas. Era falso. Ao longo de 62 minutos ele deu um espetáculo de autoritarismo castrense. No tom que os militares de alta patente costumam falar aos recrutas, o ministro repreendeu e deu ordens aos repórteres. “A gente repete, repete, repete e a notícia sai distorcida”, disse. Em seguida, proibiu a imprensa de analisar os fatos. “Me mostrem quando foi que um brasileiro ou a população brasileira delegou aos redatores ou a qualquer um dos senhores a interpretação dos fatos. Nós não queremos a interpretação dos fatos dos senhores.”

Eu interpreto que Pazuello nada sabe de comunicação e entrou em contradição com os fatos várias vezes. Para citar uma. Ele disse que o governo federal comprará 100 milhões de doses da Coronavac, do Butantan, e essa é de fato uma excelente notícia. Mas em seguida afirmou que isso havia sido dito várias vezes, que inclusive foi assinado um memorando de entendimento em outubro.

O ministro deve ter esquecido do episódio constrangedor que envolveu esse memorando. Pazuello assinou no dia 21 de outubro, o protocolo para a compra de 46 milhões de doses. No mesmo dia o presidente Bolsonaro afirmou que não compraria a vacina. “Já mandei cancelar”, disse Bolsonaro sobre o texto assinado pelo ministro. E, como se não fosse humilhação suficiente, o ministro dias depois teve que gravar um vídeo ao lado do presidente dizendo “ele manda, eu obedeço, simples assim”.

O Brasil não chegou à terrível marca de ontem por acaso. Foi construção diária do governo de Jair Bolsonaro. É fruto do negacionismo, da insensibilidade, da incapacidade de gestão. É resultado dos incentivos diários do presidente para que a população não use qualquer medida protetiva e que faça o oposto do que os médicos orientam. Bolsonaro demitiu dois ministros da Saúde. Henrique Mandetta trabalhou para defender a saúde dos brasileiros, fez todos os alertas ao governo, montou uma articulação com estados e municípios e insistiu nas medidas de proteção. Nelson Teich ficou poucos dias no cargo e saiu defendendo o presidente que não o deixou trabalhar. Aí veio Pazuello, que confunde país com batalhão, convencimento com ordem unida, logística com requisições autoritárias. E pensa que pode, numa democracia, determinar como os jornalistas devem exercer seu ofício. Deveria saber que nem na ditadura seus antigos superiores conseguiram calar a imprensa brasileira.

A pandemia é uma tragédia que se abateu sobre a humanidade. Enfrentá-la com um governo inepto multiplicou nossa dor. Como curar feridas de 200 mil mortes? Essa é a pergunta que ronda o Brasil.


Bruno Boghossian: Com 200 mil mortos, governo quer desinformar sem ser incomodado

Na condução delinquente do país durante a pandemia, Bolsonaro mentiu e deu dados falsos à população

No dia em que o Brasil bateu a marca calamitosa de 200 mil mortes pela Covid-19, o ministro da Saúde apontou o que realmente atormenta o governo. Não é a tragédia nacional, mas a divulgação de informações negativas sobre a negligência federal no combate à pandemia.

"Não queremos a interpretação dos fatos dos senhores", reclamou Eduardo Pazuello, inconformado com a imprensa. "Deixem a interpretação para o povo brasileiro."

A indignação do general mostra que o governo Jair Bolsonaro prefere desinformar e mentir sem ser incomodado. Na condução delinquente do país na pandemia, esses são alguns dos "fatos" que o presidente apresenta para o "povo brasileiro":

Bolsonaro faz uma propaganda contínua contra a vacinação. O presidente alega que essa é uma escolha individual e lança alertas vazios sobre seus riscos, sem apresentar evidências. Com isso, ele trabalha contra a imunização coletiva que é necessária para proteger a população.

Em novembro, Bolsonaro afirmou nas redes sociais que o imunizante desenvolvido em São Paulo produz "morte, invalidez, anomalia". Ele festejou o óbito de um voluntário e atribuiu o caso à vacina. Era mentira.

O presidente também se tornou líder de um movimento charlatão ao recomendar o uso de medicamentos ineficazes. Além de se tornar mercador de cloroquina, ele afirmou que a África controlou a pandemia com a aplicação de ivermectina. Nenhuma autoridade sanitária confirma essa relação, mas a informação circula entre youtubers bolsonaristas.

No pacote, também estão dados falsos sobre o uso de máscaras ("a proteção é um percentual pequeno") e a irresponsável tentativa de minimizar os riscos da doença, inaugurada em março de 2020 com a infame previsão de que a pandemia provocaria menos de 800 mortes no país.

No pronunciamento desta quinta (7), o ministro da Saúde disse que "a desinformação e a interpretação equivocada ou tendenciosa leva a consequências trágicas". O governo cumpriu essa missão.


Rogério L. Furquim Werneck: Precariedade e popularidade

Atrasos inexplicáveis na vacinação tenderão a ser integralmente debitados à incompetência do governo

O terceiro ano do governo Bolsonaro continuará marcado pela persistência de um quadro de alarmante precariedade em áreas absolutamente cruciais para o país. Do combate à segunda onda da pandemia à vacinação tardia e desorganizada da população. Da condução improvisada da política fiscal a novas e reiteradas evidências de falta de compromisso efetivo do governo com a preservação do teto de gastos.

Tudo isso contribuirá para manter a economia em interminável clima de suspense, que dificultará a redução de risco que se faz necessária para uma recuperação vigorosa do nível de atividade, bem fundada na retomada dos investimentos. O país continuará restrito por um horizonte bem mais limitado do que seria possível e desejável.

Que planos tem Bolsonaro para a segunda metade do seu mandato? O que lhe sobra é 2021, ainda com pandemia e tudo, e o ano eleitoral de 2022. Sejam quais forem seus planos, sobram evidências de que já não há no Planalto qualquer disposição de levar adiante reformas fiscais necessárias. Todas as medidas de ajuste fiscal de mais fôlego vagamente aventadas pela equipe econômica no ano passado foram sistematicamente solapadas pelo Planalto no nascedouro (gatilhos, reforma administrativa, privatização).

O esforço de ajuste fiscal de 2020 redundou em nada. O Ministério da Economia alega que não ter havido prorrogação do auxílio emergencial ou criação de programa substituto (Renda Cidadã/Brasil) foi um sinal importante de compromisso com a consolidação fiscal. Mas a verdade é que é muito cedo para cantar vitória.

É preciso aguardar o que fará o Congresso. “Tudo isso será motivo de reflexão a partir de fevereiro”, advertiu, em dezembro, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), líder do governo no Senado. E ainda falta ver qual será a reação de Bolsonaro, se a suspensão do auxílio emergencial, em meio à segunda onda da pandemia e com desemprego em alta, acabar se refletindo em queda expressiva de sua popularidade.

Como evoluirá a popularidade de Bolsonaro nos próximos meses, na esteira do agravamento da pandemia e da impaciência com a demora da vacinação? É bem possível que se observe fenômeno similar ao que, ao analisar determinantes da intolerância política com a desigualdade, há quase meio século, Albert Hirschman rotulou de efeito túnel. A analogia era com o comportamento de motoristas dentro de um túnel em que o trânsito foi subitamente interrompido.

De início, todos se mostram compreensivos com a situação. E, quando, afinal, uma das faixas começa a andar, isso é visto de forma positiva pelos que continuam parados. Um prenúncio de que veículos de todas as faixas estão prestes a também voltar a andar. Se, no entanto, a desobstrução das demais faixas não ocorrer, a postura compreensiva dos que continuam parados logo dará lugar a um clima generalizado de revolta com a situação.

É fácil perceber quão elucidativa pode ser a aplicação da ideia de efeito túnel à análise da reação popular à pandemia no Brasil. A postura surpreendentemente compreensiva da população em face da Covid-19 pode estar fadada a dar lugar a um sentimento inequívoco de revolta, à medida que se disseminar a percepção de que, enquanto dezenas de países avançam céleres na vacinação de suas populações, o Brasil continua incapaz de articular um programa minimamente eficaz e abrangente de vacinação.

É fácil ver que, no que tange a vacinas, o governo já não terá espaço para explorar narrativas ilusionistas como tanto fez durante a epidemia. Atrasos e deficiências inexplicáveis do programa de vacinação tenderão a ser integralmente debitados à incompetência e à irresponsabilidade do governo, no cumprimento de uma de suas obrigações mais fundamentais.

É difícil que a suposta resiliência da popularidade do presidente atravesse incólume esse teste de fogo. A reação de Bolsonaro, caso depare com súbita queda de popularidade, promete ser mais um fator crucial de incerteza a deixar a economia sobressaltada nos próximos meses.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio.


El País: Brasil chega a 200.000 mortes na pandemia com SUS sob pressão

País enfrenta um cenário difícil com doença mais uniforme entre as regiões enquanto a estratégia de vacinação segue imersa em dúvidas. Atrasos em testes e na atualização de prontuários turvam análise

Beatriz Jucá e Jorge Galindo, El País

O Brasil supera a dura marca de 200.000 mortes pela covid-19 em sua contagem oficial com um cenário nebuloso pela frente. O país está prestes a entrar na sazonalidade que favorece a circulação de vírus respiratórios e espera um repique pelas aglomerações das festas de fim de ano enquanto se vê imerso em uma série de obstáculos para iniciar a vacinação e ainda não tem uma política efetiva para frear os contágios mesmo com a iminência de uma variante do coronavírus mais transmissível. É neste cenário que o país conta, nesta quinta-feira, 200.498 mortes por coronavírus durante a pandemia e 7,96 milhões de casos ―mais de 87.000 deles registrados nas últimas 24 horas, um pico. Se no início da crise sanitária algumas regiões emanavam maior preocupação no país continental, a situação agora é grave nas mais diversas regiões. Nos últimos meses, o Brasil viu o vírus se espalhar pelo seu território de forma mais uniforme e agravar, por exemplo, a situação em regiões ao sul, que inicialmente tinham mais fôlego pela baixa concentração de casos e agora sofrem com seus sistemas de saúde abarrotados.

Depois de atingir os primeiros 100.000 mortos oficiais pela covid-19, em agosto, o Brasil não registrou picos agudos de mortes por covid-19 como nos primeiros meses da crise. A estratégia brasileira focou basicamente em uma gestão de leitos por prefeitos e governadores, que decidiam ampliar ou reduzir as medidas restritivas frequentemente conforme os dados locais. Em geral, só iniciativas pontuais de restrição circulação foram novamente impostas de agosto para cá, algumas delas só com a intervenção da Justiça, como em Manaus. Medidas para rastrear casos e de fato tentar frear os contágios não foram implementadas como uma política pública robusta. As mortes por covid-19 foram distribuídas em um espaço maior de tempo, mas o Brasil nunca chegou a conseguir controlar de fato a pandemia. Foram mais de 200.000 mortes registradas oficialmente desde março, data do primeiro óbito. Cerca de metade delas a cada cinco meses de pandemia no país.

Mas a perda humana de uma das maiores crises sanitárias pode ser ainda maior. O excesso de mortes já havia ultrapassado 200.000 em relação à média de anos anteriores em meados de novembro, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass). Além disso, o sistema do Governo Federal que registra hospitalizações e mortes por covid-19, o Sivep-Gripe, indicava nesta quarta-feira, dia 6, as cifras de 187.800 óbitos confirmados e outras 80.000 mortes por síndrome respiratória aguda grave (uma complicação da covid-19 e de outras síndromes gripais) não especificadas, nas quais podem estar incluídos casos de coronavírus não registrados por exame por motivos que vão de problemas da coleta à dificuldades de detecção pelo teste laboratorial. A Vital Strategies —uma organização global composta por especialistas e pesquisadores com atuação junto a Governos— já alertou sobre a possibilidade de casos omissos sob a justificativa de que a OMS determina que casos em que os pacientes apresentaram três ou mais sintomas clínicos de covid-19 deveriam ser diagnosticados como suspeitos. O Ministério da Saúde tem dito que os casos são revisados e só depois incluídos no sistema de monitoramento.

Soma-se a isso a demora nas notificações e o represamento de dados que pesquisadores brasileiros têm ressaltado neste momento, quando a demanda por internação hospitalar de infectados pelo coronavírus voltou a crescer em diversos Estados. Isso porque, com a base de atendimento lotada, as fichas demoram a ser preenchidas e notificadas no sistema federal, atrasando a cadeia de dados. O cenário ainda é influenciado pelo represamento durante os feriados de fim de ano, quando tanto laboratórios quanto hospitais atuaram com equipes reduzidas, em regime de plantão.

Pandemia interiorizada

Se antes havia uma ampla concentração nas populosas capitais e cidades metropolitanas, o interior do país já está marcado pelo avanço do vírus e enfrenta a pandemia com sistemas de saúde mais frágeis. O mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, com dados até o dia 26 de dezembro, mostra que 56% das novas mortes por covid-19 na referida semana já se concentravam em cidades do interior. Esta interiorização da mortalidade é observada desde setembro, quando a concentração de mortes começou a se equiparar entre estes dois perfis.

Em vários Estados, gestores trabalham para tentar ampliar leitos de UTI, mas agora enfrentam maiores desafios para contratar profissionais da saúde, exaustos pelo trabalho na linha de frente ao longo de meses. O Amazonas ―Estado onde já se ventilou a teoria de ter chegado a uma imunidade de rebanho sem vacina e a um preço alto de mortes― vive uma nova onda preocupante. O próprio ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, já afirmou que o Amazonas está caminhando para as proporções do ano passado. E o governador Wilson Lima tem dito que trabalha contra o tempo para abrir mais leitos hospitalares, transformando espaços administrativos em hospitais em salas com leitos clínicos e as de leitos clínicos em terapia intensiva. Lá, a Justiça determinou maiores restrições após o Governo relaxar medida sob pressão de comerciantes e empresários.

Em um contexto em que os vizinhos da América Latina já reagem à alta de casos de covid-19 com novas restrições, o Brasil segue inerte. E parece repetir a mesma posição errática do começo da pandemia. A guerra política entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador João Dória na corrida por uma vacina geraram um clima tenso no país, embora, nos últimos dias, há uma pequena sinalização de trégua, com a decisão do Ministério da Saúde de comprar a vacina paulista desenvolvida com os chineses, a Coronavac. O Governo Federal enfrenta pressão da sociedade, de governadores e até da Justiça para antecipar uma estratégia nacional de imunização depois de atrasos nas negociações tanto de vacinas quanto de insumos. O Governo de São Paulo está na iminência de pedir a autorização para uso emergencial à Anvisa da Coronavac e promete começar a vacinar grupos prioritários no dia 25 de dezembro. Enquanto isso, o Governo Bolsonaro corre contra o tempo para tentar iniciar a vacinação antes. Prometeu começar cinco dias antes de São Paulo, no dia 20 de janeiro. Os cronogramas sobre o quantitativo de vacinas que devem estar disponibilizadas nos postos nos próximos meses ainda não estão definidos.

“A gente lamenta, mas a vida continua”

Já o presidente Jair Bolsonaro segue com declarações que põem em xeque a segurança de vacinas em um momento em que a confiança na ciência é fundamental para garantir uma campanha de vacinação ampla. Especialistas têm sido categóricos ao dizer que a estratégia de imunização é coletiva e que, para chegar à almejada proteção, é preciso que a maioria da população receba os imunizantes. Mesmo que a vacinação comece nas últimas semanas de janeiro, os meses seguintes deverão ser de muito trabalho para garantir esta cobertura vacinal. Mesmo os que receberem a vacina deverão seguir os cuidados como distanciamento e uso de máscara, já que há um tempo até o corpo desenvolver uma resposta imune e a maioria das vacinas necessita de duas doses para uma proteção admissível.

Numa mudança de tom, o Ministério da Saúde emitiu nota de pesar pelas vítimas da pandemia. Assinada pela pasta, o informe expressa solidariedade aos familiares que perderam seus entes queridos e diz fazê-lo em nome do presidente. Pazuello também falou pela primeira vez em “guerra” total contra a doença, que deve estar acima “das ideologias”. “O Ministério da Saúde está trabalhando incansavelmente, acompanhando pesquisas científicas e reforçando diálogos entre o Brasil e outros países para garantir vacinas seguras e eficazes à população”, prometeu o ministério. Já Bolsonaro, em uma transmissão ao vivo nas redes sociais, voltou a questionar os dados sobre mortes, falando que pessoas morreram “com” covid-19, como se fosse possível separar as causas. “A gente lamenta hoje, estamos batendo 200 mil mortes. Muitas dessas mortes com covid, outras de covid, não temos uma linha de corte no tocante a isso aí. Mas a vida continua...”

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