vacinação
Merval Pereira: O lado certo
Em meio à confusão promovida pelo seu governo no início atrasado da vacinação nacional contra a Covid-19, o presidente Bolsonaro achou tempo para fazer o que mais gosta: ameaçar o país com uma intervenção militar.
Na sua visão distorcida sobre a democracia, o presidente anunciou, e não pela primeira vez, que viver sob uma democracia ou uma ditadura é decisão das Forças Armadas. Seria uma ofensa às próprias FFAA, pois elas existem justamente para defender a democracia, e não para acabar com ela.
Sempre ciosos de suas funções, os militares deveriam dar uma nota oficial tirando dos ombros da instituição tal decisão, pois, a ser verdade o raciocínio de Bolsonaro, implantar uma ditadura militar no Brasil é apenas questão de gosto.
O uso dos militares para se defender quando sua atuação está sendo posta em dúvida é recorrente em Bolsonaro, e deveria ser rechaçado oficialmente. Bolsonaro não é mais um capitão do Exército, e sim um manipulador que se utiliza das FFAA com fins políticos.
Quando um General da Ativa como Pazuello concorda em defender tratamento precoce com cloroquina, ou mente ao dizer que nunca fez isso quando documentos do seu ministério mostram o contrário, é o Exército que ele está maculando, induzido por Bolsonaro.
Criticar Bolsonaro, pedir seu impeachment, são atitudes políticas que não deveriam atingir os militares como instituição, mas àqueles que se dispõem a acompanhar as ordens absurdas do chefe momentâneo. Se alguns deles são da ativa, a coisa muda de figura.
O debate sobre a politização da campanha de vacinação nacional contra a Covid-19 incorre em um erro fundamental, a comparação da atitude do presidente Bolsonaro com a do governador de São Paulo João Dória em face à pandemia e as maneiras de combatê-la.
Dória sempre esteve no lado certo, a favor do distanciamento social, do uso de máscara, e trabalhou corretamente para ter condições de fazer a imunização, mesmo que em alguns momentos tenha abusado do marketing político em favor de sua candidatura à presidência da República em 2022.
Mesmo que fosse tudo política, nesse caso o lado certo da política é forçar o começo da vacinação o mais rápido possível. E ele conseguiu fazer o governo Bolsonaro se mexer. Graças à sua iniciativa de fazer acordo com a farmacêutica Sinovac da China, deu condições ao Instituto Butantan de produzir a vacina CoronaVac, contra todas as ações políticas que o presidente da República engendrou para desqualifica-la e incutir no brasileiro desconfiança sobre a “a vacina chinesa do Dória”.
Bolsonaro comemorou quando a eficácia global da CoronaVac de 50,4% foi anunciada, dando ares de verdade à percepção popular de que uma vacina que tem 70% de eficácia global é melhor do que a de pouco mais de 50%, o que, para uma campanha maciça de vacinação para conter uma pandemia, é irrelevante.
Os técnicos do Butantan ajudaram essa percepção negativa ao anunciarem com fanfarras os índices vistosos de 70% para casos leves e 100% para os graves, antes do dado global. O governador Dória, evitando anunciar a notícia, ajudou, dando a sensação de que só vai “na boa”, deixando para seus subordinados as notícias ruins, o que não era absolutamente o caso.
Mas a irresponsabilidade de Bolsonaro, ao desdenhar da única vacina que os brasileiros tinham à mão para iniciar a vacinação, depois de mais de 50 países do mundo, sempre com fins políticos de combater um potencial adversário em 2022, é incomparável.
Bolsonaro foi o único presidente da República ou Primeiro-Ministro do mundo a fazer campanha contra a vacinação. Ontem mesmo Freud pegou-o num ato falho que revela sua decepção pelo sucesso do início da vacinação em São Paulo. Começou uma frase, depois de ter ficado em um silêncio inusitado durante quase um dia, assim: “Apesar da vacina…”
Um verdadeiro líder político deveria ter comemorado o início da vacinação, em vez de tentar confiscar as doses do Estado que se preparou com a antecedência devida para produzir vacinas contra a Covid-19, para impedir que seu adversário político se sobressaísse.
O destino reservou a Bolsonaro derrotas políticas variadas e em sequência: o ditador Maduro, na Venezuela, se prontificou a ajudar o Amazonas com cilindros de oxigênio, e a vacina CoronaVac, da chinesa Sinovac, foi a única que restou para nossa vacinação. Só faltou mesmo um enfermeiro cubano para completar a série de infortúnios de um presidente que coloca a ideologia acima das necessidades do povo que preside.
Juan Arias: O desafio arrogante de Bolsonaro, que acredita ser blindado por Deus
Bolsonaro, em vez de concentrar todas as suas energias em tirar da crise um país que “está quebrado”, como ele diz com sadismo, tenta apenas se blindar no poder para se reeleger
A dor dos asfixiados em Manaus por falta de oxigênio, uma verdadeira tragédia nacional, despertou o “Fora, Bolsonaro!” e fez os panelaços de protesto soarem mais fortes do que nunca. Voltou a surgir assim a possibilidade de um impeachment para arrancar Bolsonaro do poder. Minhas colegas Giovanna Oliveira, Carla Jiménez e Flavia Marreiro nos contaram muito bem em seus textos neste jornal.
Sem dúvida é um primeiro passo para a saída do presidente, que demonstrou, como sempre, sua frieza e indiferença perante a morte. Um presidente que nem se dignou a ir ao lugar da tragédia para confortar as famílias que estão vendo seus entes queridos morrer por asfixia ―a pior das mortes, segundo os médicos.
E no entanto Bolsonaro, que se revelou incapaz de governar um país com a envergadura e a complexidade do Brasil, em vez de concentrar todas as suas energias em tirar da crise um país que “está quebrado”, como ele diz com sadismo, tenta apenas se blindar no poder para se reeleger.
Uma blindagem em várias esferas. A mais arrogante é quando ele afirma: “Só Deus me tira daqui.” E, se por acaso Deus se esquecer dele, buscará outras blindagens mais humanas. Primeiro a dos militares, cuja presença ele garantiu no Governo e em todas as instituições do Estado. É verdade que muitos deles já começam a manifestar um mal-estar em relação ao chefe. E é verdade que não permitiriam que ele tentasse um golpe. Mas esses militares são um escudo para Bolsonaro, pois é a primeira vez na democracia que um presidente lhes dá tanto protagonismo dentro do Governo.
Até mesmo seu vice, o general Mourão, o mais crítico dos militares do Planalto, acaba de excluir a possibilidade de um impeachment ao presidente. Mais do que isso: Mourão avisou que nas próximas eleições Bolsonaro não terá um oponente capaz de vencê-lo nas urnas.
Os militares poderiam ter saído antes do Governo, quando começaram a ver a forma como o presidente tratava até mesmo os generais, além de sua incapacidade de governar. Alguns deixaram o cargo, mas agora é tarde demais. Abandonar o Governo significaria uma confissão de derrota, algo que nunca farão.
Outra blindagem do presidente, talvez ainda mais forte que a do Exército, é a da corporação das polícias militares ―as quais ele está cobrindo de privilégios. Com a polícia, Bolsonaro garante também o apoio das milícias― com quem nutre uma relação umbilical e familiar. Quem assassinou Marielle?
Não só isso. Bolsonaro se sente blindado pelas elites empresariais, que continuam mantendo a miragem do falso apoio do mandatário a uma economia liberal. Isso apesar de que, em seus dois anos de exercício, ele deu provas contundentes do contrário. Essas elites empresariais, juntamente com as classes altas, continuam defendendo o presidente com medo de que a esquerda volte ao poder.
Existe ainda a blindagem, talvez a mais forte, da tomada de poder da Câmara e do Senado, onde, salvo surpresa, Bolsonaro conseguirá impor seus candidatos à presidência. O homem que havia chegado para acabar com a velha política tornou-se o paradoxo de ser seu maior defensor.
Para o Congresso, é uma festa o fato de que Bolsonaro, que havia prometido uma luta implacável contra a corrupção, tenha se transformado no maior inimigo dos que querem continuar apostando na luta contra o saque do dinheiro do Estado por políticos que buscam manter suas campanhas milionárias e enriquecer suas famílias. Bolsonaro tem interesses espúrios em defesa da sua, envolvida também em supostos crimes de corrupção. Com um procurador-geral da República ajoelhado aos seus pés e um STF que parece amedrontado, Bolsonaro se sente blindado.
Some-se a isso o fato de que o presidente, apesar de ter perdido pelo caminho muitos dos que nele votaram e hoje se sentem traídos, ainda conta com 30% de fidelíssimos seguidores, justamente os mais fanáticos e violentos, capazes de se organizar e até de lutar com armas para defender o mito, como ocorreu com Trump nos Estados Unidos. Ao contrário da oposição, que hoje parece incapaz de organizar um protesto nacional.
Por fim, Bolsonaro conta hoje com uma blindagem especial: a da grande massa de evangélicos e seus pastores. É um escudo seguro e forte porque é feito em nome de Deus. Bolsonaro se viu blindado ante um país com mais de 80% de fiéis quando criou seu lema “Deus acima de todos”.
Com todas essas proteções, poder-se-ia dizer que o presidente negacionista e insensível diante da morte pode continuar tranquilo, governando ou desgovernando, e que terá uma reeleição garantida. Mas na política, assim como na vida, nada é imutável e as surpresas são sempre possíveis. Acabamos de ver isso com Trump, o ídolo e amigo de toda a família Bolsonaro, que com sua derrota e sua possível inabilitação política deixou órfão e nu não apenas o mandatário brasileiro, mas também sua política exterior, comandada por um ministro que afirmou, logo após chegar ao Itamaraty, que “Trump e Bolsonaro foram escolhidos por Deus para salvar o Ocidente”.
Diz o ditado que “Deus escreve certo por linhas tortas”. Quem sabe esse Deus, apoderado no Brasil por todos os poderes fáticos, que o roubaram dos pobres e desfavorecidos, ainda dê uma surpresa.
Se Bolsonaro se escudar em Deus para tentar se manter no poder, é possível que acabe sendo abandonado por esse Deus, ao qual tenta monopolizar e instrumentalizar para seus objetivos espúrios. Se esse Deus reverenciado por Bolsonaro existisse, seria preciso buscá-lo hoje, mais que no centro do poder, no leito dos que estão morrendo asfixiados nos hospitais de Manaus por falta de oxigênio que o Governo lhes negou.
Dito em linguagem laica: talvez para o capitão belicista, que conhece e ama as armas como poucos, o tiro saia pela culatra. Ou, como afirmou a escritora e acadêmica Ana Maria Machado em sua coluna de O Globo: “Chega uma hora em que os pés de barro não sustentam mais ídolos, mitos e mentiras.”
*Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
El País: Brasil só tem vacinas para 4% da população prioritária e enfrenta desafio para ampliar estoque
Primeiro lote distribuído aos Estados deve vacinar 2,8 milhões de pessoas. Além de gargalo na importação, especialistas recomendam negociação com outros fabricantes de imunizantes
Beatriz Jucá, El País
Mesmo com atrasos, o Brasil começou a vacinar grupos prioritários contra a covid-19 em vários Estados, mas ainda enfrenta um grande desafio para conseguir ampliar o quantitativo de doses necessário para viabilizar, de fato, uma imunização em massa. O primeiro lote que começou a ser distribuído nesta segunda-feira deve ser suficiente para vacinar, com o protocolo recomendado de duas doses, apenas 2,8 milhões de pessoas, segundo estimativas do próprio Ministério da Saúde, que considera no cálculo a fatia que pode ser perdida por problemas durante a operação de logística.
Isso corresponde a 4% dos 68,8 milhões de usuários dos grupos prioritários estabelecidos no Plano Nacional de Imunização (PNI), que foram enxugados neste primeiro momento diante da escassez de doses. O país entra em desvantagem para disputar no cenário global tanto a aquisição dos insumos para produzir os imunizantes aqui quanto para comprar doses prontas, inclusive de outros fabricantes. No momento, o principal gargalo é a importação, da China, da matéria prima para a produção local das duas vacinas já aprovadas pela Anvisa, a do Butantan/Sinovac e da Fiocruz/Oxford/AstraZeneca.
O ministério orienta começar a aplicar as doses disponíveis nos idosos que vivem em asilos, pessoas com deficiência internadas, profissionais de saúde da linha de frente e indígenas aldeados. Mas isso pode ser adaptado na ponta pelos Estados, que podem priorizar mais um ou outro grupo desses conforme a realidade local. Até a noite desta segunda-feira, a vacina havia chegado a dez Estados, além do Distrito Federal: Tocantins, Piauí, Ceará, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Goiás. Veículos que transportavam caminhões foram aplaudidos em alguns locais, um símbolo do sopro de esperança em meio a uma pandemia que já matou mais de 210.000 brasileiros e levou sistemas de saúde ao colapso. A vacina chega depois do ano mais mortal da história do Brasil, segundo os registro da associação de cartórios.
Apesar do alento deste momento com a chegada dos imunizantes ―o primeiro passo rumo ao controle da pandemia―, pesquisadores e até a Organização Mundial da Saúde têm destacado que o início da vacinação no Brasil não deve estimular os brasileiros a relaxarem os cuidados preventivos, como uso de máscaras e distanciamento social. Isso porque o país vive um agravamento da pandemia e ainda é longo o caminho tanto para que o país consiga doses suficientes para vacinar seus mais de 200 milhões de habitantes quanto para que se alcance a imunidade de rebanho (proteção coletiva ao vírus). O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou nesta segunda-feira que o país pode ter 70% da população vacinada até o fim do ano.
O Ministério da Saúde estima chegar a 354 milhões em 2021, mas conta com doses que ainda serão fabricadas. Já existem contratos com a AstraZeneca/Fiocruz, o Butantan e o consórcio global Covax Facility, no qual o Brasil aderiu com a menor cota de doses possíveis de solicitar. Mas o cumprimento dos cronogramas de entrega, inclusive das doses que serão produzidas pelo Butantan e pela Fiocruz, dependem neste momento do cenário global de disputa tanto pelos insumos para produzir o imunizante quanto pelas doses prontas.
Por enquanto, estão sendo distribuídas 6 milhões de doses da Coronavac, aprovada neste domingo pela Anvisa para uso emergencial. O Governo Bolsonaro espera receber mais 2 milhões de doses da vacina de Oxford ―cujo uso emergencial também foi autorizado e que nos próximos meses deve ser produzida pela Fiocruz―, mas enfrenta dificuldades para conseguir consolidar a importação delas, que virão da produção da Índia. “Não há resposta positiva de saída até agora. Nós estamos contando com essas 2 milhões de doses para que a gente possa atender mais ainda a população”, admitiu o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que espera um desfecho nesta semana.
Dificuldade para importar insumos para a vacina
O Butantan já solicitou à Anvisa uma autorização para usar emergencialmente mais 4,8 milhões de doses prontas ou que estão sendo envasadas em São Paulo. Se por um lado a produção local nos laboratórios locais é uma importante arma brasileira, preocupa a dificuldade que Butantan e Fiocruz enfrentam para conseguir importar os insumos da China necessários para manter a produção dos próximos meses e conseguirem cumprir os cronogramas de entrega. Os acordos feitos pelo Governo Federal e pelo Governo de São Paulo com os laboratórios preveem transferência de tecnologia para que este insumo passe a ser produzido no país, mas é uma fase posterior, que só deverá ocorrer no segundo semestre.
Neste momento, há dependência dos insumos e atrasos preocupantes. A Fiocruz aguarda a chegada do IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) da China para iniciar a produção, segundo a Folha de S. Paulo. Isso deve acontecer até 25 de janeiro e, caso não se consolide, o contrato prevê a entrega de doses prontas. O cronograma da Fiocruz prevê a entrega de 1 milhão de doses até 15 de fevereiro e deve chegar a 100,4 milhões de doses até julho. Já o Butantan aguarda há dias a autorização do Governo chinês para que o insumo possa ser enviado ao Brasil. Segundo o presidente do instituto, Dimas Covas, o IFA disponível só é suficiente para a produção desta semana. “A capacidade de produção do Butantan é de 1 milhão de doses por dia, a depender chegada da matéria-prima. [A capacidade] foi atingida neste momento com a matéria-prima disponível”, explicou em coletiva de imprensa. A embaixada do Brasil na China foi acionada para ajudar nas negociações. O Butantan precisa do insumo para conseguir entregar um total de 46 milhões de doses da Coronavac ao ministério até abril.
Necessidade de seguir negociando compras
“O que temos hoje são gotas dentro do oceano diante da magnitude territorial e populacional do Brasil”, define Melissa Palmieri, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Imunizações - Regional São Paulo. Ela diz que, apesar da capacidade de produção nacional, o país não pode se furtar de continuar negociando para adquirir outros tipos de vacinas diante da gravidade da crise sanitária e de problemas que podem atrasar a produção nacional, como a falta de insumos. Praticamente toda a população precisará ser vacinada para que o país chegue à imunidade coletiva, ou de rebanho. Questionado sobre as negociações para comprar 70 milhões de doses da Pfizer, o ministro Eduardo Pazuello disse apenas que “na hora que o laboratório trouxer propostas plausíveis, sou o primeiro a comprar”. Não falou sobre planos de comprar outras vacinas. O imunizante da Janssen, por exemplo, é apontado por especialistas como uma boa opção, caso os estudos confirmem eficácia com apenas uma dose, o que simplificaria a logística.
“Por enquanto, precisamos trabalhar full time para manter a negociação com outros laboratórios. Só podemos começar a desestressar quando a maioria da população estiver vacinada”, diz Palmieri. O secretário da Saúde de São Paulo, Jean Gorinchteyn, que tem defendido publicamente a necessidade do país adquirir mais vacinas, endossa o coro. “Precisamos de vacinas para vacinar em massa. Se não vacinarmos, ainda teremos o caos no nosso sistema de saúde. Isso só resolve com o impacto da vacinação, especialmente nos grupos prioritários”, argumenta.
A vacina chega a outros Estados do Brasil
O Governo Federal distribuiu as primeiras 6 milhões de doses de forma proporcional à população de grupos prioritários dos Estados. A meta da campanha é vacinar, com duas doses, os 2,8 milhões que têm prioridade nesta fase ― que inclui idosos que vivem em asilos, pessoas com deficiência internadas, indígenas aldeados e cerca de 35% dos profissionais de saúde do país. Após um mal-estar gerado pela decisão do governador de São Paulo, João Doria, em arrancar com a imunização no próprio domingo para angariar o capital político da primeira foto, governadores viajaram até Guarulhos para receber simbolicamente as doses pessoalmente do ministro Pazuello. A única vacina disponível no momento é fruto de uma iniciativa do Governo paulista, mas as doses foram adquiridas pelo Governo Federal ―cuja atuação foi marcada por uma certa inércia― após uma longa batalha ideológica.
A previsão era de iniciar uma campanha nacional na quarta-feira (20), mas governadores pressionaram para começar a vacinar antes, já que São Paulo havia se antecipado. A segunda-feira foi, então, de esforço logístico para fazer os imunizantes chegarem aos Estados. Durante o dia, aviões e caminhões transportavam toneladas de doses pelo país. Lotes foram fracionados para tentar acelerar a chegada das primeiras doses nas capitais e cidades metropolitanas e foram registrados alguns atrasos. O Rio de Janeiro começou a aplicar as doses no simbólico Cristo Redentor. Governadores se articulam agora em uma força-tarefa para fazer as doses chegarem aos municípios nos próximos dias. Na semana passada, vários deles já haviam começado a distribuir seringas, agulhas e refrigeradores às cidades do interior. O Governo do Amazonas ―Estado que vive uma crise sem precedentes no seu sistema de saúde e concentra também grandes dificuldades logísticas― reuniu nesta segunda (18) autoridades de saúde do interior e as preparava para uma “longa noite” de recebimento de vacinas.
Tudo foi feito às pressas. Só depois que aviões levantaram voo para a distribuição das doses no extenso território nacional, o Governo publicou uma portaria determinando a obrigatoriedade da notificação da vacinação nos seus sistemas. A aplicação de doses começou antes de todos os detalhes da campanha nacional estarem ajustados, embora a estratégia central já viesse sendo discutida com Estados e municípios. O Governo Federal ainda testa, por exemplo, um painel para colocar no ar o balanço da distribuição das vacinas e das doses aprovadas. Mas o mínimo estava pronto para começar a vacinar no país, que tem o seu programa de vacinação como referência global. Estima-se que 50.000 postos estejam aptos para vacinar, quando as doses começarem a chegar. Os municípios agora são os maiores protagonistas da campanha. São eles que executam a vacinação nas mais longínquas regiões do país.
Andrei Meireles: Vacinas escancaram o desleixo de Bolsonaro e seu general de fancaria
Além do puxão de orelha da Anvisa por receitas vigaristas, o maior vexame da gestão irresponsável de Bolsonaro é ter o melhor sistema de vacinar do mundo e não ter vacinas pela leviandade do governo
Esse foi um domingo de comemoração. A Anvisa finalmente falou. E falou bem, reiterou o compromisso com a ciência. Deu autorização emergencial para as vacinas aqui produzidas pelo Instituto Butantan e pela Fundação Oswaldo Cruz. Com a mesma unanimidade, censurou a vigarice do tal tratamento precoce com a cloroquina, o fermífugo ivermectina e outras baboseiras.
O presidente Jair Bolsonaro, que se finge de maluco por esperteza, saiu de cena e escalou o pau mandado general Eduardo Pazuello, que cumpre suas ordens no Ministério da Saúde, para pagar recibo e mico pelo fato do governador João Doria iniciar a vacinação em São Paulo. As imagens de vacinados, única preocupação de Bolsonaro na tal guerra das vacinas, foram exibidas em um show de marketing pelo governo paulista, com a escolha a dedo das protagonistas — Camila Calazans, uma enfermeira negra da linha de frente no combate a Convid-19 que mora na periferia e se formou com muita dificuldade, e a indígena Vanuzia Costa Santos, assistente social da aldeia multiética Filhos dessa Terra, em Cabuçu, no município de Guarulhos. Boas escolhas.
No desespero palaciano, onde só se pensa na reeleição do chefe, sobrou para Pazuello, um general de fancaria que fala com a sociedade como um sargento de história em quadrinhos se dirige a seus subordinados. Um arremedo do sargento Tainha, genial criação do cartunista Mort Walker, com bem menos empatia. Como um robô, ele seguiu mais uma vez as ordens do chefe e alimentou a cega militância bolsonarista nas redes sociais. Disse, por exemplo, que do começo ao fim foi o governo Bolsonaro que bancou todos os investimentos na vacina do Butantan. ” O governo de São Paulo não pôs nenhum centavo”, afirmou de maneira categórica como se fosse uma grande revelação mantida até ontem em sigilo pela discrição com que o governo federal trata a pandemia. Nem o Fio Maravilha teria tanta humildade frente ao gol, na belíssima música de Jorge Ben. Pura cascata.
Uma surpresa também porque Bolsonaro sempre disse que não compraria a “vachina” chinesa do Doria. Com essa nova lorota, Pazuello levantou a bola e Doria marcou outro gol. Afirmou que o general mentiu e que tudo feito até agora no Butantan foi bancado exclusivamente pelo governo de São Paulo. E não houve tréplica. Soam, além de inacreditáveis, como tiros nos próprios pés as fantasias mutantes produzidas pelo Palácio do Planalto.
A última delas foi a convocação de governadores para uma solenidade na manhã dessa segunda-feira da operação em Guarulhos de distribuição país afora das vacinas recebidas do Butantan no final da tarde do domingo. O general Pazuello com certeza vai estar na foto. Resultado medíocre para o planejamento da abertura da campanha no Palácio do Planalto com vacinas da Fiocruz, barradas pelo governo da Índia, em mais um retrato da má vontade e imprevidência do governo federal em providenciar as vacinas que lhe foram ofertadas.
O que aumenta a decepção nessa absurda guerra política é que o Brasil, em uma bela construção durante décadas pelo show de bola que é o SUS, talvez seja o país mais preparado no planeta para vacinar. Só faltam as vacinas. Até quando?
A conferir.
Valor: Anvisa defende imunização e manda recados ao governo federal
Em reunião de cinco horas, diretores destacam a autonomia e a competência do corpo técnico da agência
Por Estevão Taiar, Valor Econômico
SÃO PAULO - A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou ontem por unanimidade o uso emergencial das vacinas Coronavac e da AstraZeneca, em uma reunião de mais de cinco horas em que os diretores fizeram defesas enfáticas da importância da vacinação e da ciência. Uma pendência burocrática, entretanto, ainda pode atrapalhar a distribuição da Coronavac. A decisão foi tomada em uma reunião de mais de cinco horas, em que os diretores fizeram defesas enfáticas da importância da vacinação, deram recados ao governo federal e destacaram a autonomia e a competência do corpo técnico da Anvisa.
A autarquia condicionou a aprovação ao envio de um termo em que o Instituto Butantan se compromete a submeter mais dados sobre imunogenecidade - a capacidade que uma vacina tem de estimular a produção de anticorpos. Além disso, tanto o Butantan quanto a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), responsável pela AstraZeneca, precisam continuar a realizar estudos e fornecer o dados para que as vacinas tenham registro definitivo.
Três gerências da Anvisa recomendaram a aprovação das duas vacinas: medicamentos e produtos biológicos; inspeção e fiscalização sanitária; monitoramento de produtos. A gerência de medicamentos e produtos biológicos fez questão de destacar que a recomendação estava baseada, entre outros fatores, na “ausência de alternativas terapêuticas”. O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, vêm defendendo um tratamento precoce à base de medicamentos como a cloroquina - cuja eficácia não tem comprovação científica. Bolsonaro afirmou até mesmo não se vacinará. Também foi levada em conta pela Anvisa o crescimento recente do número de casos. Outro ponto importante é que a decisão vale apenas para os imunizantes importados, não para os produzidos no Brasil.
Na sequência, os cinco membros da diretoria colegiada da diretoria votaram a favor do uso emergencial das vacinas.
“Ressalvadas algumas incertezas, os benefícios conhecidos potenciais das duas candidatas à vacina superam os riscos potenciais”, disse em seu voto a diretora Meiruze Freitas, relatora dos pedidos de análise. Para ela, o tema é uma questão de "segurança nacional".
A defesa do método científico e da vacinação foi uma constante nos discursos da cúpula da Anvisa. No voto que definiu a autorização, o diretor Alex Campos chamou a atenção para a situação registrada em Manaus (AM) nos últimos dias, afirmando que a “tragédia da morte pela falta do tratamento mais simples” - os cilindros de oxigênio - mostra a ineficácia do poder público brasileiro. Ele também agradeceu o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, demitido por Bolsonaro no começo da pandemia, pela sua nomeação.
Já o presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, afirmou que as vacinas “certamente” serão “acrescidas de outras”. "É o que esperamos, buscamos", disse.
Ele chamou, porém, a atenção para a “mudança de comportamento social” necessária para combater a pandemia, orientando a população a manter o distanciamento social, o uso de máscaras e a higienização das mãos. “O lobo ainda ronda o nosso quintal”, afirmou.
No início da pandemia, entretanto, Torres esteve ao lado de Bolsonaro na frente do Palácio do Planalto para acompanhar manifestações com centenas de pessoas a favor do governo.
O uso emergencial aprovado ontem não permite a comercialização das vacinas. Para isso, a Anvisa ainda precisa conceder o registro sanitário definitivo. A gerência de medicamentos e produtos no caso das duas vacinas "o monitoramento das incertezas e reavaliação periódica".
Os índices de eficácia da Coronavac e da elaborada pela AstraZeneca ficaram respectivamente em 50,39% e 70,42%.
Entretanto, conforme antecipado pelo Valor no domingo, a autarquia considerou insuficientes as informações a respeito da imunogenecidade da Coronavac.
Bruno Carazza: Vacina contra a incompetência
Estamos condenados a conviver com a covid e a escassez
A aprovação da Anvisa para o uso emergencial das vacinas produzidas pelo Butantan e pela Fiocruz e a aplicação das primeiras doses na população trazem esperança e alívio, mas estão longe de colocar um fim à tragédia que já levou à morte quase 210 mil brasileiros.
A saga da vacinação contra a covid-19 é mais um reflexo do problema de coordenação gerado deliberadamente por Bolsonaro desde o início da pandemia por motivos políticos e ideológicos. Sem uma gestão unificada para o enfrentamento da crise e a busca de soluções, os governos federal, estaduais e municipais lançaram-se numa corrida na qual toda a população saiu perdedora.
Ao contrário de outras nações, que desde o princípio negociaram com diversos fornecedores para minimizar o risco, o Brasil errou na sua estratégia de apostar todas as fichas em apenas dois laboratórios. As 160 milhões de doses contratadas junto à AstraZeneca e à Sinovac não serão suficientes para atender, em duas rodadas, um país com 210 milhões de habitantes - mesmo que a Fiocruz alcance o objetivo de produzir outras 110 milhões de unidades entre agosto e dezembro.
Segundo o Plano Nacional de Vacinação, haveria ainda a intenção de adquirir 108 milhões de ampolas da Pfizer/BioNTech e da Janssen, mas os contratos sequer foram assinados, e há a promessa de receber outras 42,5 milhões do consórcio Covax Facility, mas sem um cronograma de entrega definido.
É verdade que poderíamos recorrer aos países que pecaram pelo excesso e contrataram além do que precisavam, mas isso seria um feito surpreendente para um corpo diplomático cuja cúpula se especializou em destruir pontes nos últimos dois anos.
Enfim, mesmo no melhor dos cenários, em função do tempo necessário para a entrega, distribuição e aplicação em duas etapas, é fato que teremos que conviver com uma oferta limitada de vacinas por um bom tempo.
‘Contágio’, filme de 2011 dirigido por Steven Soderbergh, tornou-se um caso raro de sucesso tardio de audiência. Ao imaginar uma pandemia que se dissemina rapidamente pelo mundo a partir de uma contaminação em um mercado de alimentos silvestres na China, a ficção fez sucesso no ano passado tamanhas eram as semelhanças com o momento em que vivemos.
Na obra, a tão esperada proteção foi decidida por sorteio, de acordo com a data de aniversário dos indivíduos. Mas a vida, principalmente por aqui, é muito mais complexa do que a arte.
Com uma baixa disponibilidade imediata de doses e uma doença que se alastra em ritmos diferentes tanto em termos regionais quanto em relação a estratos sociais e demográficos, enfrentaremos em breve dilemas difíceis de serem equacionados - e a incapacidade governamental de lidar com eles será exposta de novo.
O plano anunciado pelo Ministério da Saúde estabelece os grupos prioritários (trabalhadores da área de saúde, idosos, aldeias indígenas, ribeirinhos, quilombolas etc); porém, não define os critérios que devem nortear sua distribuição.
Com poucas doses, como será a logística da aplicação das seringas e o seu cronograma de alocação ao longo das próximas semanas e meses? Qual será a “taxa de risco” anunciada ontem pelo ministro Pazuello para priorizar cidades em situação de colapso, como Manaus? E dentro de cada localidade, a quem caberá determinar quem recebe primeiro a imunização no âmbito de cada grupo? Como serão definidas as prioridades entre os prioritários? São respostas para as quais a equipe de Bolsonaro até agora não deu resposta.
Em países como Inglaterra e Portugal, que têm sistemas universais de saúde com prontuários unificados, foi possível organizar a oferta levando em conta as situações de cada indivíduo, de forma que as pessoas estão recebendo por correio, SMS ou email informações com local, dia e hora em que receberão as agulhadas.
Como ao longo de décadas o SUS não recebeu os investimentos necessários para ter tal grau de organização, em breve viveremos os efeitos típicos de uma escassez extrema.
O mais comum deles é a fila. Há poucos meses vimos milhões de brasileiros se aglomerando diante das agências da Caixa Econômica e da Receita Federal tentando resolver problemas relacionados ao auxílio-emergencial. Da noite para o dia “descobriram-se” 40 milhões de “invisíveis” - pessoas que não constavam nos cadastros sociais e estavam à margem do mercado formal de trabalho.
Por não conhecer a imensa maioria de seus cidadãos (onde moram, qual seu histórico de saúde, quem possui comorbidades), a desorganização se repetirá com a vacinação. Como resultado, nas próximas semanas seremos expostos a uma reprise de cenas de pessoas dormindo em filas ou se acotovelando na frente de postos de saúde em busca da imunização.
Sem critérios claros para a distribuição individual, em alguns casos prevalecerá a lei do mais forte (ou do mais próximo). Categorias começam a se articular para pressionar institucionalmente por atendimentos prioritários, como já aconteceu com membros da elite do Judiciário e do Ministério Público. Quando as doses forem entregues aos municípios, é bem provável que muitos espertalhões consigam furar a fila na base de relações de parentesco, amizade ou influência junto a poderosos locais.
A falta de vacinas também gerará oportunidades de corrupção. No país da impunidade, os incentivos estão dados para quem quiser cobrar “por fora” ou condicionar agulhadas a promessas de votos.
Como sempre acontece quando o Estado falha na prestação de seus serviços, florescerá também um vantajoso mercado. Laboratórios e grandes empresas já se movimentam para obter autorização governamental. Com baixos estoques e uma longa espera na rede pública, o setor privado terá condições de discriminar a oferta para quem se dispõe a pagar o preço que for cobrado.
Millôr Fernandes dizia que “o grande erro da natureza é a incompetência não doer”. A gestão da pandemia do governo Bolsonaro comprova que ela não apenas dói, como asfixia e mata.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Ricardo Noblat: Bolsonaro escolheu ser o coveiro dele mesmo
Doria fez barba, cabelo e bigode no presidente
Na medida em que se enfraquece, o presidente Jair Bolsonaro perde mais e mais o controle sobre os fatos produzidos ou não por seu governo. Dois episódios de ontem provam isso.
Os cinco diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), nomeados por ele, anunciaram ao país que não existe tratamento preventivo contra a Covid-19.
Desmentiram Bolsonaro em transmissão nacional de rádio e de televisão. Até o ministro da Saúde, o general de peito estufado Eduardo Pazuello, também o fez com todo o cuidado do mundo.
Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) deu início à vacinação em massa, o que o Ministério da Saúde disse que só poderia acontecer depois de sua autorização.
Doria também reteve a cota paulista de doses da vacina fabricada pelo Butantan que o Ministério da Saúde esperava receber para em seguida devolver a São Paulo. Uma estupidez, por certo.
Foi um ato de rebeldia do governador que, ao ser acusado por Pazuello de promover um “golpe de marketing”, respondeu que há 11 meses Bolsonaro promove um “golpe de morte”.
O presidente da República vai fazer o quê? Processar Doria? Pressionar a Justiça para que mande prendê-lo por crime de desobediência civil? Se o fizer, perderá.
Vamos ao mantra adotado por 9 entre 10 estrelas da política: presidente pode muito, mas não tudo. Bolsonaro, por mais que diga o contrário aos berros, cada dia que passa manda menos.
A derrota que colheu com a aprovação emergencial das vacinas foi a maior derrota desde que acidentalmente se elegeu há dois anos e tomou posse da presidência sem estar preparado para isso.
Mais de 70% dos brasileiros queriam se vacinar. O percentual crescerá com o início da vacinação em massa. Bolsonaro sempre desacreditou a vacina e diz que não se vacinará.
Em todos os países onde começou, a vacinação foi festejada pelos chefes de Estado. Aqui, Bolsonaro não deu um pio. Desapareceu. Apareça, Bolsonaro! Livre-se do colete à prova de vacina. Não dói.
No passado, quando um time goleava o outro, dizia-se que fez dele barba, cabelo e bigode, lembrou o jornalista Ricardo Kotscho. Perfeito! Doria fez barba, cabelo e bigode em Bolsonaro.
O 7 x 1 da Alemanha sobre o Brasil na Copa do Mundo de 2014 é pouco para dar a verdadeira dimensão da surra que Bolsonaro levou de Doria. Outras surras virão em breve.
Os bolsonaristas e seus cúmplices construíram a falsa narrativa da invencibilidade de Bolsonaro, fizesse ele o que fizesse. E que ele se tornara de alguns meses para cá um presidente normal.
Jamais Bolsonaro será um presidente normal porque como ser humano jamais foi normal. Não pode ser normal quem defende a tortura, tem fixação em armas, detesta gays e sabota a vida.
Aturá-lo por mais dois anos será insuportável, mas talvez sirva para ensinar os brasileiros a votar melhor.
Luiz Carlos Trabuco Cappi: Acredite nas oportunidades
Depois da pandemia, o Brasil de 2021 precisa do sentimento de urgência e de superação
A sensação, neste começo de ano, é a de abrir um livro em branco, que será escrito por todos os brasileiros. As possibilidades positivas são muitas. O ano de 2020 foi quase sabático para o mundo. A atual pandemia do novo coronavírus mudou a visão de futuro do Brasil – e, como todas as anteriores, provocou transformações importantes na estrutura econômica e social dos países.
A praga Justiniana, em 542, matou entre um quarto e metade da população romana, abalou o poder econômico e militar de Roma.
A peste negra teve seu pico de contaminação entre 1347 e 1351, com surtos até o século 18. A estimativa de mortes chega a 200 milhões, e teve como uma de suas consequências o declínio do sistema feudal. Com menos gente, a escassez de mão de obra incentivou inovações na agricultura, como o arado, a rotação de culturas, a fertilização com esterco e a urbanização. Abriu caminho para o início do Renascimento, um período de grandes mudanças e ganhos de produtividade.
Há paralelos entre essas pandemias e a dos dias de hoje. Mostraram que se pode mudar rápido e o mundo se reinventar, com o meio ambiente no centro das prioridades. A inclusão social é outro pilar da mudança.
A Segunda Guerra Mundial foi a maior crise do século XX. Como resultado, fez com que o mundo avançasse na sua integração, a partir da criação da ONU, da OMC, do Banco Mundial e do FMI, cujos objetivos incluem trabalhar em convergência pela paz e pelo crescimento.
A pandemia continua, mas o início da vacinação em massa abre esperanças de que ela pode ser controlada. A recuperação econômica tende a ser desigual, muitas empresas se recuperarão, algumas deixarão de existir e outras se reinventarão.
Na política econômica, o desafio é a gestão dos estímulos e os auxílios aos mais pobres, gerenciando a dívida pública. O que se percebe é que a expansão das dívidas fiscais pode aumentar a tributação em quase todos os países.
Milhões de empregos foram destruídos e é, portanto, importante focar na criação de opções.
Os indicadores apontam para a recuperação econômica, com crescimento de cerca de 4% do PIB, e equilíbrio externo.
O foco, agora, precisa ser o futuro. Aprovação das reformas, incentivos ao empreendedorismo e inclusão digital são necessários para gerar mais investimentos e mais empregos.
Seria possível aumentar a produtividade da economia com o ensino a distância, pela ampla oferta de educação individualizada e material didático de qualidade a todos os brasileiros. E revolucionar o papel dos professores.
Estão aí as novas descobertas em saúde. Possibilitam diagnósticos mais rápidos e seguros. A telemedicina, em lugares remotos, ajuda os médicos locais. Aproxima e iguala o acesso aos nossos centros de excelência, que estão entre os melhores do mundo. É um caminho viável para melhorar a saúde de toda a população.
O setor bancário brasileiro vive uma das maiores transformações de sua história. Mudanças na estrutura de mercado, avanços em tecnologia e novo ambiente institucional, além do open banking, vão dar nova configuração competitiva ao setor.
Todas as empresas devem redesenhar seus modelos de negócio e promover mudanças organizacionais. O papel das áreas de recursos humanos tornou-se ainda mais central na gestão da transformação, com vistas à geração de outros valores e propósitos do capital humano.
Finalmente, vamos torcer pela realização das Olimpíadas adiadas no ano passado, com o melhor do esporte mundial em Tóquio. Recordes seriam batidos. Um paradigma da vontade do ser humano de se superar, no esporte e na vida.
Teremos, outra vez, novas fontes de inspiração para seguirmos em frente.
A pandemia mostrou como o tempo pode ser acelerado. O Brasil de 2021 precisa do sentimento de urgência e de superação, pois as possibilidades de construção de um país melhor só dependem da união de todos nós. Vamos aproveitar as oportunidades.
*PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS
Eliane Catanhede: Vacina é vitória do Brasil, derrota de Bolsonaro
Bolsonaro, que, em vez de se empenhar pela vacina, guerreia contra ela, saiu do ar e deixou o general Eduardo Pazuello na linha de frente contra Doria
Antes tarde do que nunca, o Brasil entra na lista de mais de 50 países que já imunizam suas populações contra a covid-19 e o domingo, 17/01/21, é “o dia da vitória, da vacina, da verdade e da vida”, como comemorou o governador de São Paulo, João Doria. Quanto mais isso é real, mais lamentável fica a guerra política, até no dia D, entre Doria, o vitorioso, e o presidente Jair Bolsonaro, o grande derrotado.
Doria foi quem planejou, se dedicou obstinadamente à Coronavac, é o primeiro a vacinar um brasileiro no Brasil e não desperdiçou seus 15 minutos de glória, com direito a emoção e choro. Bolsonaro, que, em vez de se empenhar pela vacina, guerreia contra ela, saiu do ar e deixou o general Eduardo Pazuello na linha de frente contra Doria. E Pazuello não disfarçou a dor de cotovelo.
Enquanto Inglaterra, França, Alemanha, EUA, Chile, Argentina, México... já vacinam seus cidadãos, o Brasil uniu indigência e guerra política. Sem estratégia, sem rumo, o Ministério da Saúde não negociou nas diferentes frentes e pendurou-se numa única vacina, a Oxford/Astrazeneca, que até agora ninguém sabe, ninguém viu no Brasil.
Além de não mexer uma palha para garantir imunização, Bolsonaro atacou a Coronavac como “vacina do Doria” e “vacina da China”, atiçou sua tropa de internet contra a vacina, bateu no peito ao dizer que não se vacinaria. Com que cara fica agora? A foto da primeira vacina é do Doria. E Pazuello só consegue anunciar o início da vacinação nacional na quarta graças à Coronavac. Nesta segunda, às 7 da manhã, ele vai fazer o que acusou Doria de fazer: “golpe de marketing”. Ops! E com a vacina do Doria...
A derrota de Bolsonaro arrasta os bolsonaristas de internet. Eles, que comemoraram a quebra do lockdown em Manaus e agora se calam diante do resultado, compararam as vacinas com a talidomida, desmoralizaram a Coronavac, ironizaram a China e, no próprio Dia D, antes do aval da Anvisa, postavam que idosos doentes se vacinaram e morreram na Noruega. Privilegiaram a guerra ideológica, desdenharam da guerra pela vida. Mas o Brasil vai sobreviver à pandemia. E a eles.
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Jamil Chade: Vacina chega após arrogância e erros homéricos de uma diplomacia limitada
Brasil deixou de aderir inicialmente a uma coalizão global pelas vacinas em abril, que daria prioridade aos brasileiros com vacinas. Optou por uma política que minava a confiança na Coronavac e investiu num pacote negacionista que explica o colapso de Manaus e a dor de milhares de famílias
Aqui jaz os restos conceituais da política externa do governo de Jair Bolsonaro, responsável por isolar o país do grupo das grandes democracias do mundo e destruir a reputação de uma nação. Na lápide da diplomacia do Brasil, essa bem poderia ser a descrição para quem um dia for visitar o memorial dedicado às ideias, projetos e políticas que não sobreviveram à pandemia.
Entre 2020 e 2021, o Brasil foi vítima de um vírus que desconhecia ideologia, a noção de soberania e zombava de fronteiras. Mas só nas últimas semanas, o Governo descobriu que o país está de joelhos diante de uma pandemia que ganha força. Descobriu que está sem imunizante, sem oxigênio, sem plano e sem alternativas. Nada disso, porém, é culpa exclusiva do Sars-Cov-2. Depois de ter politizado a origem do vírus, a máscara e tratamentos, o governo tomou a decisão deliberada de repetir esse roteiro com o imunizante.
A demora e indefinição para começar a vacinação não foram acidentes de última hora. Trata-se de o resultado dramático de decisões políticas adotadas ao longo de meses. O primeiro passo nesse longo processo foi o de não aderir inicialmente ao projeto de uma coordenação global. Em abril de 2020, a OMS iniciou a construção de um sistema que permitiria uma distribuição equitativa da vacina pelo mundo. Uma espécie de fundo de vacinas que permitiria que, uma vez autorizados os produtos, a coalizão garantiria a distribuição do imunizante para todos os países, atendendo inicialmente a 20% das populações de cada nação.
A ideia era simples: se for deixado às forças do mercado ou ao sistema internacional, os países emergentes e pobres poderiam ficar para o fim da fila na vacinação. Exemplos já existiam disso. Quando o H1N1 se abateu sobre o mundo, países ricos foram os primeiros a imunizar suas populações. Quando a vacina chegou aos países pobres, o surto já tinha terminado.
A Aids também trouxe uma história similar. Por anos, as economias mais pobres ficaram sem acesso aos tratamentos, enquanto o coquetel já era uma realidade nos EUA e Europa. Quando os remédios finalmente desembarcaram na África, os países mais pobres já somavam 9 milhões de mortes.
Na OMS, técnicos e diretores estavam convencidos de que, na atual pandemia, esses erros não poderiam se repetir. Mas a ordem no Itamaraty era a de não permitir que, durante a pandemia, os organismos internacionais ganhassem força ou fossem os locais de coordenação de uma resposta global. Mergulhado em seu combate contra o “globalismo” que destruiria as identidades nacionais, o Itamaraty ficou de fora de reuniões internacionais e, quando participou, fez questão de usar o palanque para rejeitar qualquer ideia que significasse um reconhecimento da necessidade de um plano global contra o vírus.
Naquele mês de abril de 2020, o Ministério da Saúde informaria que não faria parte da aliança, batizada de Covax. Sua explicação: temos outros acordos bilaterais sendo costurados. Nunca explicaram quais eram esses planos. Pressionado, porém, o Brasil acabou cedendo alguns meses depois e aderiu ao projeto, mas sem grande entusiasmo. Ao fazer seu pedido por vacinas no fundo global, solicitou o mínimo que poderia ser comprado: o equivalente a 10% de sua população. Pelas regras, países poderiam ter solicitado até 50% de sua população.
Hoje, sem apoio internacional suficiente, sem recursos e diante de governos pseudo-nacionalistas como o do Brasil, a aliança sofre para começar a distribuir vacinas. Em Genebra, não são poucos os negociadores que acreditam que um envolvimento mais direto do Brasil no projeto poderia ter convencido outros a aderir e teria transformado a aliança numa realidade imediata.
Se a via multilateral não interessava, a escolha por acordos bilaterais também se mostrou inapta e permeada por considerações ideológicas. Tentando frear a expansão da influência da China no mundo e mais preocupado em atacar o “comunavírus”, o Governo optou por promover uma campanha contra as vacinas chinesas. Diversas empresas, nos últimos meses, relataram como entregaram propostas ao Governo e se surpreenderam com respostas frias por parte do Planalto. No governo federal, a ideia era de apenas a vacina da AstraZeneca seria suficiente.
Enquanto isso, pelo mundo, países tomaram a decisão de evitar a todo custo colocar todas suas apostas em apenas uma ou dois fornecedores de vacinas. Em Bruxelas, por exemplo, a União Europeia fechou acordos com seis empresas diferentes. Nos EUA, mesmo o governo de Donald Trump decidiu estabelecer acordos com seis fornecedores.
Na Coreia do Sul, o país garantirá seu abastecimento com três empresas, além de desenvolver projetos de uma vacina nacional com outros 15 laboratórios nacionais. Na China, além de ter quatro vacinas já em negociações com a OMS para conseguir uma aprovação global, o governo fez questão de fechar um acordo com os alemães da BioNTech para um abastecimento extra de 100 milhões de doses. Outros também estão sendo negociados com empresas ocidentais.
Sim, existe uma profunda escassez de vacinas no mundo. Mas é justamente num momento de crise que a capacidade de um país navegar e recorrer a aliados se mostra vital. No caso do Brasil, a aposta se mostrou desastrosa. Quando precisou de ajuda, descobriu que seus parceiros nacionalistas eram, de fato, nacionalistas.
Num dos episódios mais reveladores do amadorismo do Itamaraty, o governo preparou um avião para ir buscar os insumos da Índia, necessários para a vacina da AstraZeneca. Com pires na mão, Bolsonaro escreveu ao primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. Mas, por enquanto, Nova Delhi rejeitou fazer a entrega ao Brasil, dando (obviamente) prioridade para o início de sua campanha nacional de vacinação.
Opções começam a ser buscadas em Israel e mesmo nos EUA. Mas, ao apagar das luzes do Governo Trump e o desembarque de Joe Biden, o Governo já começa a descobrir a tradução da palavra pária. As opções para pedir ajuda ainda são limitadas. Afinal, a chancelaria fez questão de dedicar parte de seu tempo, esforço e dinheiro dos contribuintes brasileiros nos últimos anos para ofender líderes estrangeiros e queimar pontes que tinham sido construídas por décadas com parceiros internacionais.
O mais irônico e trágico disso tudo é que a história poderia ter sido radicalmente diferente. O Brasil é um dos únicos países do mundo com uma capilaridade no sistema de saúde, experiência, conhecimento científico e capacidade de mobilização para vacinar milhões de pessoas por dia. A crise brasileira, não por acaso, chama a atenção internacional. Nos bastidores da OMS, diretores não escondem o espanto sobre a situação do Brasil. “Vocês são um país com ótimos cientistas, orgulhosos de seu passado de saúde pública. O que ocorreu?”, perguntou um dos líderes da agência no esforço contra a pandemia.
A resposta não se limita à dimensão da incompetência daqueles no poder. O fracasso é um resultado direto de uma política externa que tem como pilar a ideologia, e não os interesses dos cidadãos.
Quando for iniciada, nesta quarta-feira, a maior campanha de vacinação da história do país dependerá num primeiro momento de uma vacina chinesa, justamente aquele que havia sido desprezada, ironizada e evitada pelo governo federal. Independente da ironia de uma cena digna do realismo mágico, a demora do país em começar a vacinação e a falta de imunizantes suficientes não são acidentes. Mas consequência de uma diplomacia que mostrou todos os seus limites e fracassou ao ser confrontado por seu maior teste. Gestos como o de minar a confiança em uma vacina apenas por sua origem ou se negar a promover uma resposta global fazem parte de um pacote negacionista que explica o colapso de Manaus e a dor de milhares de famílias brasileiras. Nesse caso, o impeachment seria insuficiente.
*Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
El País: Vacinas trazem alento ao Brasil em dia de redenção para a ciência e revés político para Bolsonaro
Aprovação de uso emergencial de imunizantes pela Anvisa coroa triunfo simbólico dos cientistas sobre negacionismo, mas vacinação ainda tem obstáculos logísticos e políticos pela frente
Breiller Pires e Carla Jiménez, El País
A decisão da Anvisa, que, neste domingo, aprovou por unanimidade o uso emergencial das vacinas de Oxford e AstraZeneca no Brasil, é celebrada não apenas como um alento diante do recrudescimento da pandemia de coronavírus, mas também como uma vitória do aparato científico sobre o negacionismo e os discursos antivacinas que ecoam até mesmo no Governo federal. Decisiva para o desenvolvimento dos imunizantes contra a covid-19, a ciência foi aclamada, sobretudo, nas análises técnicas e justificativas de votos favoráveis ao aval para o início da vacinação em território brasileiro.
“No nosso vocabulário, não há espaço para negação da ciência nem para a politização das vacinas. Verdadeiramente, não há”, disse Alex Machado Campos, ex-chefe de gabinete de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, ao proferir o voto que decretou maioria para a aprovação das vacinas. Antes, o diretor da Anvisa elogiou o rigor científico do parecer conduzido pela relatora Meiruze Freitas, que, ao esmiuçar seu relatório, cobrou que autoridades e governos sensibilizem a população sobre a importância de se vacinar. “A vacinação contra a covid-19 ajudará na proteção individual e coletiva. Uma vacina só é eficaz se as pessoas estiverem dispostas a tomá-la”, discursou. Ela ainda criticou a prescrição de medicamentos sem comprovação científica.
Durante a apresentação técnica da análise das vacinas, o gerente geral de Medicamentos e Produtos Biológicos, Gustavo Mendes, destacou que o panorama de “muita tensão pela falta de insumos necessários para o enfrentamento da doença” no Brasil justifica a autorização para o início de aplicação dos imunizantes. Ao longo da reunião, a Anvisa deixou claro que um dos motivos que embasaram a decisão de liberar o uso emergencial é a “ausência de alternativas terapêuticas” para o vírus, contrapondo a tese de “tratamento precoce” —sem comprovação científica— defendida pelo Governo Bolsonaro.
Miguel Nicolelis, colunista do EL PAÍS e coordenador do projeto Mandacaru, um coletivo de pesquisadores voluntários no combate à pandemia, encara a aprovação em caráter de emergência das vacinas no Brasil como um marco para a ciência global. “É um ponto de partida muito importante, uma vitória da ciência em termos gerais”, diz o neurocientista. “Presenciamos uma ampla colaboração entre a ciência chinesa, que desenvolveu a tecnologia das vacinas com uma agilidade sem precedentes, e a ciência brasileira. Se Butantan e Fiocruz não tivessem sido capacitados ao longo de décadas, não viveríamos esse momento. É uma prova de sucesso do método de colaboração científica sem fronteiras, e de que as instituições de Estado devem ser sempre apoiadas, independentemente de quem governa o país.”
Nas redes sociais, a autorização da Anvisa também foi comemorada sob ares triunfais pela comunidade científica. “Estamos vendo a história ser escrita e transparência é fundamental. Assim como critérios técnicos”, escreveu o pesquisador Atila Iamarino ao elogiar a exposição minuciosa da agência reguladora. “Nós temos a solução que a ciência nos trouxe: vacinas seguras e eficazes.” Segunda pessoa a ser vacinada no Brasil, logo após a enfermeira Mônica Calazans, o também enfermeiro Wilson Paes de Pádua, 57, exaltou o trabalho científico por trás da batalha contra o coronavírus. “Nós temos de lutar pela vacina, lutar pela ciência, para melhorar a saúde e sair dessa pandemia. Eu me sinto muito orgulhoso de fazer parte desse momento histórico.”
Em São Paulo, o governador João Doria (PSDB) acompanhou a reunião da Anvisa ao lado de uma comissão científica, congregando, segundo ele, “alguns dos mais renomados cientistas do país”. Assim que foi anunciada a aprovação, Doria publicou um vídeo para comemorar o início da imunização de profissionais da saúde no Estado. “Dia histórico para ciência brasileira”, afirmou o governador. “A vacina do Butantan é uma vitória da ciência. Vitória da vida. Vitória do Brasil.” Para ele, particularmente, uma vitória política sobre o presidente Jair Bolsonaro, com quem passou a travar corrida para exibir a primeira foto de uma pessoa vacinada no país.
O baque do espetáculo midiático protagonizado por Doria, que chegou ao fim do dia com mais de 100 pessoas imunizadas em São Paulo, foi rapidamente acusado pelo Governo. Enquanto o governador paulista posava para as câmeras com a enfermeira Mônica Calazans, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, abria uma coletiva de imprensa irritado com o que qualificou como “jogada de marketing” do rival de Bolsonaro. “Nós poderíamos iniciar a primeira dose em uma pessoa hoje mesmo, num ato simbólico. Em respeito a todos os governadores, não faremos isso. Não podemos desprezar a lealdade federativa”, disse o ministro.
Pazuello ainda fez uma espécie de desabafo, em que cobrou do Instituto Butantan, ligado ao Governo de São Paulo, exclusividade sobre as 6 milhões de doses atualmente disponíveis da Coronavac. Para o ministro, a aplicação de doses neste domingo “está em desacordo com a lei” e acusou “movimentos políticos e eleitoreiros” de capitalizarem com a pandemia. “Ouço calado, o tempo todo, a politização da vacina. A produção do Butantan, por exemplo, foi bancada com recursos do Ministério da Saúde.” Doria, por sua vez, rebateu o ministro, afirmando que não houve investimento da pasta nem nos testes nem na fabricação da Coronavac. “Não há um centavo do Governo Federal na produção da vacina”.
De acordo com o Ministério da Saúde, a distribuição proporcional das vacinas aos Estados começará a partir das 7h desta segunda-feira, e a data inicial da vacinação segue mantida para quarta, 20 de janeiro, apesar do atraso na remessa de 2 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca e do embate político com São Paulo pelo estoque de 6 milhões da Coronavac. Por enquanto, Doria só assegura o envio de 4,7 milhões de doses, pois 1,3 milhão ficam em São Paulo. O governador dedicou grande parte do tempo de coletiva de imprensa para criticar o Governo Bolsonaro e identificá-lo como afeito à morte, uma característica cruel em plena pandemia.
Pazuello, por sua vez, também fará seu ‘marketing’ num ato simbólico às 7 da manhã em Guarulhos, na grande São Paulo, para marcar a distribuição das doses da Coronavac. O ministro espera que, até o fim da semana, a Índia libere o lote retido dos insumos produzidos pelo Serum Institute. O Ministério da Saúde não detalhou como pretende distribuir o percentual de cada Estado nem como será a logística de entrega das vacinas. A única sinalização do Governo é de que o Ministério da Defesa auxiliará o transporte por via aérea.
Ainda na entrevista coletiva, o ministro Eduardo Pazuello afirmou que a China não tem dado celeridade aos trâmites burocráticos para fornecimento de matéria-prima das vacinas ao Brasil. Remessas de Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), necessário para a produção tanto do imunizante de Oxford quanto da Coronavac, ainda não chegaram à Fiocruz. Segundo o ministro, o ministério está mapeando essas “resistências” para avançar na produção.O ministro só esqueceu que o Governo Bolsonaro, os filhos do presidente e seus seguidores, tem se notabilizado por ataques à China, inclusive com deboches ao composto desenvolvido pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac, pejorativamente chamado de “vachina” pela tropa de choque bolsonarista.
Neste domingo, o esforço de bolsonaristas em assumir a paternidade do imunizante era escancarado. “Governo Bolsonaro bancou a vacina do Butantã!”, escreveu em letras maiúsculas o senador Flavio Bolsonaro, filho do mandatário. Uma ironia aos brasileiros que viram seu pai questionar até os efeitos nos sistema imunológico de quem tomasse a Coronavac, incluindo virar “jacaré”.
Para além da vitória de Doria neste domingo, a guerra pública entre ele e Bolsonaro até mesmo durante o dia de uma boa notícia nacional deixa claro que o caminho para a vacinação tem percalços políticos pela frente. O tucano anunciou que enviaria diretamente 50.000 doses da Coronavac a Manaus por não confiar no ministério numa provocação explícita. As frases causam desconforto em quem conhece as engrenagens da saúde pública por entender que não há benefício numa relação tensa entre um Estado que vai responder pela produção de vacinas e o governo federal.
Em que pesem as barreiras políticas e logísticas para a distribuição dos lotes, a vacinação em massa da população brasileira tem pela frente processos ainda mais complexos que a autorização de uso emergencial. Vacinas como a de Oxford e a Coronavac ainda precisam requisitar a aprovação definitiva na Anvisa, algo que não ocorrerá de imediato, já que a agência reguladora informou que há pendências de documentação para a manutenção do aval provisório votado neste domingo. Por outro lado, o país observa um crescimento alarmante dos números de casos e mortes por coronavírus em todas as regiões.
Para Nicolelis, a aprovação das vacinas não pode gerar a ilusão de que o Brasil está próximo de superar a pandemia. “A decisão da Anvisa é uma vitória a ser celebrada, mas existem ações em paralelo que precisam ser tomadas imediatamente”, afirma o cientista, que defende que o país deveria adotar um lockdown nacional, de duas ou três semanas, para frear a onda de novas infecções e ganhar tempo para a imunização gradual, citando o drama vivido pelo Reino Unido —onde a vacinação começou em dezembro, mas o número de contágio ainda não desacelerou de maneira significativa. “O impacto desse avanço sincronizado do vírus pelo Brasil tende a ser pior que o da primeira onda. A vacina vai demorar meses para fazer efeito por aqui e neste momento, temos um percentual mínimo de doses. É hora de reimplementar as medidas restritivas. Não podemos abandonar o barco enquanto a vacina está longe de contemplar a maioria da população.”
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Alon Feuerwerker: A urgência faz a diferença
A pandemia da Covid-19 está demorando mais a passar do que inicialmente se previa, ou sonhava. A gripe espanhola durou mais de dois anos. Nessa hipótese, estamos a meio caminho no ciclo. E se a duração projetada está mudando, ou se a ficha está caindo (tanto faz), mudam junto os cenários políticos. Alguns personagens entram em zona de risco e outros veem abrir-se a janela de oportunidade. E na política não tem mercê.
Se olhados só os números, uma bela quantidade de países estão mal na foto, ou ficando mal. Quem ainda navega bastante bem é a Nova Zelândia, sempre lembrada como exemplo positivo. Mas é uma pequena ilha, ou um conjunto de pequenas ilhas. Fácil controlar a entrada e a saída. Claro que não é só isso, há muitas outras ilhas sem os mesmos bons resultados. Mas ajuda bem.
O Brasil nunca esteve bonito nos números da Covid-19. Porém algumas estrelas na largada agora também sofrem. Um exemplo é a Argentina, do lockdown mais longo e rígido (pelo menos no papel). Quase um ano depois, os vizinhos estão numericamente acima do Brasil em mortes por milhão de habitantes e terão registrado ano passado uma recessão mais que o dobro da nossa. A notícia boa? Os números da pandemia ali parecem estar caindo. Sorte aos hermanos.
Um país em que a curva de mortes vai firme para cima é a Alemanha, cuja chanceler é um prodígio global de construção de imagem, pois vai passando incólume por este último grande teste de management e popularidade do seu longo reinado. Outro ex-exemplo de eficiência é Portugal, que nas taxas proporcionais de mortes pela Covid-19 anda junto com seu irmão maior e mais poderoso da União Europeia.
O que Argentina, Alemanha e Portugal têm em comum, além dos números ruins e de seus governantes estarem apesar disso atravessando a borrasca só com escoriações leves, até agora? Claro que as simpatias político-ideológicas explicam em parte, mas creditar só a isso teria algo de teoria da conspiração. Melhor procurar outras razões. Uma? Seus líderes costumam exibir na pandemia um sentimento de urgência, até quando erram.
Na véspera das festas de fim de ano, a chanceler alemã fez um apelo dramático para as pessoas não confraternizarem presencialmente com os entes queridos de mais idade. Nunca se saberá se foi atendida, mas pelo menos mostrou estar preocupada. Mesmo quem não a atendeu - e os números destes dias podem ser um indicador de que muitos não deram mesmo pelota - notou que Angela Merkel estava sinceramente preocupada. Ou pelo menos parecia.
Se além de mostrar preocupação o líder também consegue agir, aí já sobe para outro patamar. Em Israel, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu enfrenta crises políticas sucessivas provocadas por acusações seriais de corrupção e precisa sobreviver mostrando serviço. A Covid-19 para ele foi um achado. É lockdown atrás de lockdown, e agora opera a maior (proporcionalmente), mais rápida e mais bem propagandeada vacinação do planeta.
Ninguém está certo o tempo todo, e errar é humano. Mais que provar que estão com a razão, governos precisam mesmo é mostrar nas grandes crises que têm senso de urgência e estão tomando providências. Do contrário, viram alvos fáceis para o inimigo. E a política, de novo, é como a guerra: quem pode mais chora menos.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação