vacinação

Cora Rónai: O silêncio cúmplice dos generais

Cada vez que um general na administração pública se revela incompetente ajuda a destruir a reputação das Forças Armadas

A Academia Militar das Agulhas Negras é uma escola de ensino superior do Exército Brasileiro. Copiei essa frase da Wikipédia para não errar na definição. Ensino. Superior.

Lá se formam os oficiais de carreira das Armas de Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Comunicações, do Quadro de Material Bélico e do Serviço de Intendência do Exército. Não é qualquer um que tem acesso à AMAN. Jovens militares entre 17 e 22 têm que prestar concurso público para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército, onde passam um ano antes de ser admitidos.

O ensino é puxado. Só no primeiro ano, por exemplo, os alunos têm que aprender idiomas estrangeiros, Economia, Estatística, Filosofia, Introdução à Pesquisa Científica, Informática, Língua Portuguesa, Técnicas Militares e Química, entre aulas de tiro e de treinamento físico. Eles têm ainda aulas de Direito e Psicologia no segundo ano e Metodologia do Ensino Superior no terceiro, e concluem os estudos com Direito Administrativo e Relações Internacionais, entre muitas e muitas matérias de cunho especializado.

Eu não conhecia os detalhes desse currículo até consultar a Wikipédia, mas, como todo mundo, conhecia a fama da AMAN, tida por formadora de pessoas disciplinadas e com bons conhecimentos técnicos.

Como os militares tiveram o bom senso de se manter em low profile depois da ditadura, muitos brasileiros passaram a acreditar no preparo dos seus generais. Eles podem não ser democráticos — ninguém que obedece hierarquia às cegas é inteiramente democrático —, mas imaginava-se que seriam bem preparados.

Bolsonaro é egresso da Academia Militar das Agulhas Negras, mas não teve sucesso como militar. Não mancha a imagem das Forças Armadas diretamente, porque elas tiveram a sorte (ou o bom senso: há divergências) de livrar-se dele a tempo.

Indiretamente, porém, os danos feitos pela sua eleição são incalculáveis. Cada vez que um general alçado à administração pública se revela incompetente, ou dá declarações fora de propósito, ajuda a destruir mais um pouco a reputação que as Forças Armadas levaram tantas décadas para recuperar.

Nenhum estrago, porém, se compara ao general Eduardo Pazuello, o “especialista em logística” que garantiu a pior resposta possível à pandemia — e que garante ao governo o vexame diário de ver os números da contaminação e da mortalidade divulgados por um consórcio de empresas jornalísticas, já que nos dados oficiais é impossível confiar.

Ele é a desmoralização concreta das FFAA, um homem que não se envergonha de faltar com a verdade, um estrategista incapaz de fazer uma simples licitação pública para comprar seringas, um ministro da Saúde que, até agora, não entendeu o que está acontecendo.

Um general que derruba, sozinho, o mito da boa preparação dos oficiais superiores do Exército Brasileiro.

Não é que não dê para se imaginar como chegou ao ministério: o fraco do presidente por pessoas inadequadas é bem conhecido. Num governo que tem Ricardo Salles no Meio Ambiente e Ernesto Araújo nas Relações Exteriores, Eduardo Pazuello faz todo o sentido na Saúde.

O que não dá para imaginar é como chegou ao generalato.

É duro constatar que, enquanto brasileiros morrem asfixiados pela sua incompetência, seus colegas de farda observam calados.

Tomem tenência, senhores: quem cala é cúmplice.


Bruno Boghossian: Carta de Bolsonaro a Biden só tem valor com outro chanceler ou outro governo

Lista de princípios elencados pelo brasileiro não casa com as diretrizes da diplomacia bolsonarista

Jair Bolsonaro se esforçou para construir a pior relação possível com o novo presidente dos EUA. Apoiou o candidato errado, alimentou falsas suspeitas de fraude eleitoral e ameaçou entrar em guerra. Foi preciso que Joe Biden pegasse as chaves da Casa Branca para que o governo brasileiro caísse de joelhos.

Depois da teimosia diante da vitória do democrata, Bolsonaro enviou uma carta em que deseja ao americano a “mais alta estima”. O presidente foi obrigado a engolir as próprias palavras –ou talvez tenha assinado o documento sem ler.

No texto, Bolsonaro declara que o país demonstrou “seu compromisso com o Acordo de Paris”. Em 2019, era diferente. O brasileiro copiava as promessas de seu ídolo Donald Trump e afirmava que deixaria a iniciativa global contra as mudanças climáticas. “Se fosse bom, o americano não teria saído”, declarou.

O presidente brasileiro também propõe ao democrata “continuar nossa parceria” na proteção ambiental. Bolsonaro não se preocupava com isso enquanto confiava na vitória de Trump. Quando Biden sugeriu impor sanções pela destruição da Amazônia e ofereceu fundos para conter a devastação, o brasileiro respondeu que não aceitava subornos.

Depois da vitória de Biden, em novembro, Bolsonaro ainda o chamava de “um grande candidato à chefia de Estado” e ameaçava reagir no campo bélico aos planos ambientais do americano. “Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”, disse.

O governo que afinou o tom depois da posse de Biden é o mesmo que relativizou a invasão do Capitólio para impedir a certificação do resultado eleitoral. O chanceler Ernesto Araújo afirmava que o ato era fruto da insatisfação dos americanos.

A carta enviada agora a Biden contém um catálogo humilhante das migalhas concedidas por Trump ao país e uma lista de princípios que não casam com as diretrizes da diplomacia bolsonarista. Para que o documento tenha algum valor, será preciso trocar o chanceler ou o governo –o que ocorrer primeiro.


Mariliz Pereira Jorge: Tão cedo não teremos vacina para todos

Enquanto isso, o ministro da Saúde, o general Pesadelo, mente

Não teremos vacina para todos. Pelo menos não tão cedo. A incompetência e o descaso de Jair Bolsonaro e dos patetas dos seus assessores colocaram uma nação inteira na vergonhosa, sem dizer calamitosa, posição de levar um tombo na corrida da imunização.

Depois de um dia de esperança com o início da vacinação, a realidade. E a realidade é que estamos nas mãos dos chineses, que riem por último do festival de grosserias dos nossos representantes.

O estoque da Coronavac deve durar até o final de janeiro. A AstraZeneca só deve começar a chegar em março. Bolsonaro desdenhou, cancelou compras, pôs em dúvida a eficácia dos imunizantes, seu governo se opôs —e depois voltou atrás— à quebra de patentes proposta pela Índia. E agora não conseguimos matéria-prima para abastecer a Fiocruz e o Instituto Butantan.

Num evento em comemoração ao dia de São Sebastião, na Arquidiocese do Rio, a cientista Margareth Dalcomo, um dos principais nomes no combate à Covid-19, verbalizou a angústia de milhões de pessoas ao falar sobre a derrota do governo na compra dos imunizantes. "O que é que pode justificar que o Brasil não tenha as vacinas disponíveis para a sua população (...) A não ser a absoluta incompetência diplomática do Brasil..."

Enquanto isso, o ministro da Saúde, o general Pesadelo, mente que sua pasta nunca ofereceu tratamento precoce para a doença. Felizmente a notícia e o print são eternos. Para completar a lambança, um aplicativo do ministério indica cloroquina e antibiótico até para casos não comprovados de infecção pelo coronavírus. Tem náusea e diarreia? A solução, segundo o governo, é o "kit-Covid".

Cerca de 73% dos brasileiros disseram que pretendem se vacinar, segundo o Datafolha.

Se depender do governo, no dia de sabe-deus-quando. Quem diria, mas a vacina, mais precisamente a falta dela, ainda vai derrubar Bolsonaro.


Alon Feuerwerker: Soft power

A aguda demanda global por vacinas anti-Covid-19 é uma bela oportunidade para o exercício do soft power. Mas mesmo isso tem um limite: a óbvia premência de os países produtores atenderem em primeiro lugar suas próprias populações. Ter amigos mundo afora é sempre bom, essencial até, mas quem coloca ou derruba os governos são em última instância seus próprios povos.

Porém a oportunidade de soft power é real, e vem sendo mais bem aproveitada por três jogadores: Índia, Rússia e China. E o motor fundamental nessa disputa em escala mundial é a capacidade de fornecer vacinas na quantidade e velocidade desejadas, diante das circunstâncias. A partir daí, talvez seja precipitado achar que esses países vão sonegar o imunizante para fazer política (leia).

Mais provável é os três concorrerem entre si para ver quem faz mais amigos mundo afora com a vacina.

E a janela de oportunidade está aberta também pela situação do presidente americano hoje empossado, Joe Biden. O principal desafio dele no curto prazo é vacinar em massa nos Estados Unidos, país mais afetado em números absolutos pelo SARS-Cov-2. Não é demais suspeitar que ele vai gastar pelo menos uns 20 a 25% deste mandato quebrando a cabeça em torno do assunto.

E segurando o que puder de vacinas para aplicar lá mesmo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Maria Cristina Fernandes: O fósforo de Aras no paiol de Bolsonaro

Pressão sobre PGR o levará a denunciar autoridades sob risco de perder mandato

O estado de calamidade é a antessala do Estado de Defesa, assim como este antecede o Estado de Sítio, que é o prenúncio de um golpe de Estado. Quem faz esta escalada é um ministro do Supremo Tribunal Federal estarrecido com a nota em que o procurador-geral da República, Augusto Aras sugere a decretação de um Estado de Defesa.

O PGR não se limitou a perder os aliados ocasionais com os quais contava no Supremo. A autoridade cuja missão constitucional é a defesa do regime democrático acenou com uma medida que levaria o país, 35 anos depois do fim da ditadura, a um regime de exceção na véspera de os Estados Unidos se despedirem da maior ameaça autoritária de sua história. A conspiração do PGR também se deu 24 horas depois de o presidente da República declarar que são as Forças Armadas que decidem se um povo vive sob democracia ou ditadura.

Aras ofereceu tapete vermelho para um presidente cercado por livre e espontânea iniciativa. Jair Bolsonaro amplificou, com a gestão do Itamaraty e da Saúde, a tragédia da pandemia. Conseguiu brigar com as duas maiores potências do planeta de uma única vez e colocou, no ministério da Saúde, um titular cuja principal função é se manter como general da ativa e amarrar as Forças Armadas ao descalabro da administração federal. Não é com uma carta como aquela que enviou ao novo presidente americano que Bolsonaro apagará o prontuário de sua política externa.

A nota de Aras caiu em Brasília como um gesto desesperado do PGR pela última vaga que se abrirá no Supremo Tribunal Federal neste mandato de Bolsonaro, a do ministro Marco Aurélio Mello, em julho. Um outro ministro do Supremo lamenta que Aras tenha jogado fora todo o esforço de construção de medidas excepcionais para o enfrentamento da pandemia, como o Orçamento de Guerra, construído por dentro das instituições, para sugerir, de bandeja, um reforço unilateral dos poderes do presidente da República. O ministro Dias Toffoli foi o único a lhe prestar solidariedade (“Tem atuado do ponto de vista a não trazer problemas”).

Na nota, Aras se limita a prestar contas da investigação criminal sobre o governador do Amazonas e o prefeito de Manaus mas delega ao Legislativo a persecução de “eventuais ilícitos” que levem à responsabilização dos Poderes da República. No afã de se defender, o PGR se omite. Há registro de pelo menos 51 casos de asfixia por falta de oxigênio em Manaus, apesar de documentadas advertências ao Ministério da Saúde sobre a falta iminente do insumo.

Por mais que o ministro Eduardo Pazuello agora se exima da prescrição de medicamentos sem efeito para a Covid-19, há portarias que a registram e um aplicativo para celular, que o Ministério da Saúde colocou e depois tirou das plataformas, em que o cadastrado também recebe a mesma orientação para uso dos medicamentos. A conclusão de que o PGR prevarica é de um supremo togado: “Omite-se ante homicídio doloso”.

A avaliação no Ministério Público é a de que Aras, de fato, errou a mão depois que os procuradores, acuados por perseguições internas, foram acordados pela tragédia manaura. Hoje viram a noite para coletar evidências e instruir denúncias que, engavetadas pelo PGR, acabam chegando à imprensa. Da primeira vez em que foi acossado para representar contra o presidente, no primeiro semestre do ano passado, durante os atos antidemocráticos e ante as evidências de interferência na Polícia Federal, o PGR respondeu puxando o ex-ministro Sérgio Moro para a roda. Angariou simpatia tanto no Congresso quanto no Supremo Tribunal Federal. Naquele momento, Aras conseguiu transformar a pressão por uma denúncia contra o presidente numa revanche contra a Lava-jato.

Agora, sem poder lançar mão do mesmo recurso, o PGR foi para o tudo ou nada. A nota de Aras azedou a campanha do candidato governista à Presidência da Câmara. Arthur Lira já tinha até aderido ao auxílio emergencial na tentativa de pôr fim ao fla x flu na Casa. Sinalizou aos seus pares que, ao abrigar o auxílio emergencial, impediria a corrosão na popularidade do governo, mantendo viva a galinha dos ovos de ouro da rapaziada. A adesão enfureceu o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Quando parecia que Lira estava a caminho do pódio, Aras despejou a nota e reacendeu o nós contra eles, uma polarização amplificada e repaginada pela vacina. Tem até empresário bolsonarista raiz que hoje dá entrevista para cobrar a vacina sob a condição de não responder perguntas sobre seu apoio eleitoral ao presidente. Se há resistência parlamentar ao impeachment, maior ainda é o rechaço a um instrumento que restringe as liberdades individuais num momento em que as pessoas se vêem cerceadas em seu direito à saúde (vacina) e sobrevivência (auxílio).

Se a nota de Aras azedou a vantagem de Lira, no Senado ocorre o inverso. É o futuro do próprio PGR que está em jogo. Dê Rodrigo Pacheco (DEM-MG) ou Simone Tebet (MDB-MS), Aras não parece salvaguardado de um processo de impeachment. Em nenhuma instituição, porém, a pressão é tão grande quanto naquela encabeçada pelo PGR. Seis dos oito integrantes do Conselho Superior do Ministério Público manifestaram ontem um rechaço público à nota de Aras cobrando a responsabilização de agentes públicos como atuação mais condizente com o Estado de direito do que sua menção ao Estado de Defesa.

O próximo passo é a convocação do Colégio de procuradores. A última vez em que o colegiado se pronunciou foi na disputa de prerrogativas entre Ministério Público e Polícia Federal configurada na PEC 37. A defesa dos poderes do MP acabou por ser uma das principais bandeiras de mobilização das manifestações de junho de 2013.

Sob um cerco desta magnitude Aras ruma para se deparar com duas opções. A primeira é continuar a desafiar a missão que lhe foi conferida pela Constituição e perder seu mandato. A segunda é se conformar em ter chegado ao topo da carreira do Ministério Público e exercer seu papel de denunciar o ministro da Saúde e seu comandante-em-chefe.


El País: Os crimes de Bolsonaro durante a pandemia, segundo juristas que pressionam Aras

Representação apresentada contra presidente constrange PGR, alinhado ao Planalto, que rejeitou levá-la ao STF. Subordinados de Aras lançaram nota com mais pressão sobre ele

Joana Oliveira, El País

O presidente Jair Bolsonaro fomenta “sabotagens para retardar ou mesmo frustrar o processo de vacinação” contra a covid-19 no Brasil. Essa é a tese de um grupo de 352 notáveis, formado por juristas, economistas, intelectuais e artistas, que solicitaram à Procuradoria Geral da República (PGR) a abertura de uma ação criminal contra Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF). No documento, signatários como José Carlos Dias (ex-ministro da Justiça), ou Gonzalo Vecina, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), acusam o presidente de atentar contra a saúde e a vida dos brasileiros devido à gestão da pandemia. Também assinam a ação economistas como André Lara Resende, um dos responsáveis pelo Plano Real, e Luis Carlos Bresser Pereira, ex-ministro da Fazenda, além de artistas, como Marieta Severo e Paula Lavigne.

Os juristas consideram que o presidente violou o Código Penal em atitudes reiteradas ao induzir o descrédito da população quanto à eficácia das vacinas, por exemplo, e empregar irregularmente verbas públicas para fabricação de medicamentos sem eficácia cientificamente comprovada para combater a covid-19 (no caso, a hidroxocloroquina). “Quando falamos de periclitação da vida e da saúde, nos referimos às discussões promovidas por Bolsonaro sobre os supostos riscos da vacina contra a covid-19, plantando essa dúvida na cabeça dos brasileiros; e, no caso do colapso sanitário em Manaus, a submissão do sistema local de saúde a uma contingência completamente evitável”, explica o advogado João Gabriel Lopes, um dos relatores da representação. No caso da tragédia na capital do Amazonas, o Governo Federal sabia do “iminente colapso do sistema de saúde” dez dias antes de pacientes morrerem asfixiados pela falta de oxigênio nos hospitais, conforme o ofício encaminhado nesta segunda-feira pela Advocacia Geral da União (AGU) ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em entrevista coletiva nesta segunda-feira, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, admitiu saber do problema desde 8 de dezembro.

Se Augusto Aras, procurador-geral da República aceitar a representação e apresentá-la ao STF —uma possibilidade remota dado o seu alinhamento político com Bolsonaro—, a Corte decidiria sobre a abertura de um processo criminal contra o presidente. Um processo desta natureza, de maneira similar a um impeachment, teria de ser enviado à Câmara, que, por sua vez, teria de autorizar o seu prosseguimento por dois terços dos votos.

A reação de Aras foi imediata ao documento. Na terça-feira, Aras afirmou, em nota, que eventuais processos por crime de responsabilidade de agentes públicos, inclusive do presidente da República, cabem ao Legislativo, não à PGR, e acenou com a possibilidade, ou risco, de decretação de Estado de Defesa diante da pandemia e de suas consequências sociais e políticas. É um instrumento, um estado de exceção, previsto na Constituição, mas considerado uma medida radical e com riscos democráticos. “O estado de calamidade pública é a antessala do Estado de Defesa”, disse. Foi desmentido e rebatido diretamente por subordinados e pela principal associação da categoria, revelando o mal-estar no Ministério Público. Nesta quarta-feira, seis subprocuradores da República, integrantes do Conselho Superior do MPF, reagiram: “O Ministério Público Federal e, no particular, o Procurador-Geral da República, precisa cumprir o seu papel de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e de titular da persecução penal, devendo dotar as necessárias medidas investigativas”, escreveram em uma manifestação que pressiona Aras e expõe a insatisfação dos procuradores com a falta de independência do órgão perante o Governo.

Marco Aurélio Carvalho, fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e do Grupo Prerrogativas, diz que a intenção da iniciativa contra Bolsonaro ―a representação contra o presidente e uma petição colaborativa (assinada por quase 15.000 pessoas)― é dar condições jurídicas sólidas e aumentar a pressão popular para que Bolsonaro seja responsabilizado e punido pelas mortes na pandemia. “Solicitamos uma reunião com o Aras, é o mínimo que ele pode fazer”, diz Carvalho. “Sabemos que Bolsonaro está blindado pela PGR, mas nosso papel também é o de constranger este Governo.”

O advogado João Gabriel Lopes lembra que, se não houver uma reação institucional, pode-se cogitar uma responsabilização do Estado Brasileiro no Tribunal Penal Internacional (TPI). Lopes argumenta que a conduta pessoal do presidente permite, por si só, identificar crimes de responsabilidade —passíveis de impeachment— quando ele contraria evidências científicas ao incentivar e participar de aglomerações. “Ele chegou a infringir até leis locais, como o decreto de distanciamento social do Distrito Federal”, exemplifica.

Na representação entregue à PGR, os juristas centram-se, no entanto, em crimes como o de periclitação da vida e da saúde, previsto no Artigo 132 da Constituição Federal. “São crimes que exigem uma conduta dolosa (intencional) e é necessária uma investigação, mas o Código Penal indica que basta provar que a atitude do presidente, ainda que de forma indireta, provocou a morte de pessoas”, explica Lopes. Nesse caso, não seria preciso comprovar, por exemplo, que o presidente teria sido diretamente responsável pela morte de um paciente sem oxigênio em Manaus, porque o crime de periclitação da vida e da saúde tem a ver justamente com colocar em risco a vida de outrem ―no caso de Bolsonaro, através dos seus discursos e ações à frente da Presidência.

Um dos momentos em que Bolsonaro teria cometido um ato ilícito, de acordo com a representação, foi no dia 31 de agosto de 2020, ao ouvir de uma apoiadora que lhe solicitou para não permitir “esse negócio de vacina”, respondeu-lhe que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina” e reiterou a declaração em 19 de outubro, quando confrontou o Governo de São Paulo sobre o plano de imunização: “Não quero acusar ninguém de nada aqui, mas essa pessoa está se arvorando e levando terror perante a opinião pública. Hoje em dia, pelo menos metade da população diz que não quer tomar essa vacina. Isso é direito das pessoas. Ninguém pode, em hipótese alguma, obrigá-las a tomar essa vacina”.

A acusação também destaca possíveis crimes do presidente em declarações nas redes sociais, quando afirmou que não compraria vacina com tecnologia chinesa simplesmente por motivações político-partidárias. “NÃO SERÁ COMPRADA!”. Assim, em maiúsculas respondeu Bolsonaro, no dia 21 de outubro de 2020, a um usuário no Facebook que dizia: “Presidente, a China é uma ditadura, não compre essa vacina, por favor. Eu só tenho 17 anos e quero ter um futuro, mas sem interferência da ditadura chinesa”.

Os juristas também destacam o emprego irregular de verbas e rendas públicas, conforme previsto no Artigo 315 do Código Penal, por Bolsonaro ter investido recursos públicos na compra e fabricação de medicamentos sem eficácia comprovada contra o novo coronavírus. “Ele usou o Exército Brasileiro para construir um estoque de cloroquina para 18 anos. Esse é um patente desvio de finalidade dos recursos do SUS, o que contraria, inclusive, o Artigo 52 da própria lei de criação do Sistema Único de Saúde”, afirma Lopes.

Outro “crime explícito”, nas palavras do advogado, é o de prevaricação (Artigo 319), que teria sido cometido por Bolsonaro ao usar atos de ofício e competência para satisfazer interesses pessoais. “Como fez com a campanha de vacinação, que ele sabota ao espalhar desinformação sobre os imunizantes. Suas palavras têm força de ato político, mesmo quando ele diz uma coisa e faz outra”, ressalta Lopes. Se essa hipótese for acatada, Bolsonaro poderia responder, por exemplo, por quando disse que “não gastaria um real para comprar a vacina chinesa” —a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório Sinovac—, ainda que o Ministério da Saúde, posteriormente, tenha comprado nove milhões de doses desse imunizante.

Impeachment

Para Marcelo Válio, advogado especialista em Direito Constitucional, a representação entregue à PGR é “importante do ponto de vista da pressão política”, mas, juridicamente, não deve ter o efeito desejado. “A melhor medida de responsabilização hoje é a acusação de crime de responsabilidade, que poderia desencadear um impeachment por infração ao direito social. Bolsonaro deveria tomar medidas para proteger o bem mais caro previsto na Constituição Brasileira, que é o direito à vida, mas o que ele faz é desestimular medidas de proteção da sociedade”, argumenta.

Válio diz que Bolsonaro também fere o Artigo 85 da Constituição ao negar à população o direito social de acesso à saúde quando planta dúvidas sobre a eficácia das vacinas, por exemplo. Para o jurista, trata-se de uma violação do princípio de moralidade, porque, independentemente de o ato ser formal ou informal —quer dizer, tanto faz se o presidente faz uma declaração na rua aos apoiadores ou dentro do Palácio do Planalto, ele pode ser responsabilizado. “Isso porque ele usa a armadura de presidente da República durante 24 horas. Os atos de palanque que ele faz ao dar essas declarações também pode gerar responsabilização, porque ele fala em nome da sociedade.”

O jurista considera que Bolsonaro está “muito mal assessorado juridicamente” quando tenta argumentar —como tem feito nos últimos dias— que o STF o deixou de mãos atadas para gerir a crise sanitária. “Ele quer responsabilizar o Supremo pela sua omissão, mas o STF não tira competência do presidente da República”, diz Válio. O que o plenário da Corte decidiu, conforme explicado em nota do próprio STF, é “que União, Estados, Distrito Federal e municípios têm competência concorrente na área de saúde pública”, ou sejam que Estados e municípios têm autonomia para adotar, por exemplo, medidas de distanciamento social ou quarentenas. “Se Bolsonaro continuar repetindo esse argumento, se enfraquecerá juridicamente. A primeira orientação de qualquer equipe jurídica seria mostrar que o presidente deve cumprir minimamente os preceitos da Constituição, o que ele não faz”, conclui Válio.


Elio Gaspari: 2021 começou bem

Há luz no fim do túnel: quando serei vacinado, onde?

Ao meio-dia de hoje, Joe Biden deverá assumir a Presidência dos Estados Unidos, e Donald Trump foi-se embora. No Brasil, começou a ser aplicada a vacina contra a Covid-19. Mudou o jogo. Dois centros irradiadores de ansiedade e morte perderam a iniciativa. O capitão Bolsonaro e o general Pazuello podem dizer o que bem entenderem, mas há luz no fim do túnel: quando serei vacinado, onde? Trump continuará dizendo que ganhou a eleição, mas Biden estará no Salão Oval.

Bolsonaro e Pazuello continuarão em guerra contra João Doria, mas foi ele quem acelerou a chegada da vacina. No caso do relacionamento com o governo de Joe Biden, o problema será outro. Noves fora todas as pirraças de uma diplomacia que se sente bem colocando o país na condição de pária, haverá uma nova realidade na Casa Branca. (Na Índia, a vacinação maciça imunizará seus párias, antes que as vacinas do general Pazuello cheguem aos marajás de Pindorama.)

No lugar de um delirante vulgar, estará na Casa Branca um mandarim que passou oito anos na vice-presidência e 36 no Senado. Para o atual governo brasileiro, a chegada de Biden irá além das diferenças entre republicanos e democratas, ambientalistas e agrotrogloditas. Trump levou consigo a capacidade de operar numa realidade paralela, dimensão frequentada por Bolsonaro, pelo venezuelano Nicolás Maduro e pelo filipino Rodrigo Duterte.

O veterano diplomata americano Thomas Shannon, ex-embaixador no Brasil e ex-subsecretário de Estado no início da administração de Trump, já disse que as relações entre os dois países estavam fora do eixo. Numa linguagem que não faz seu estilo, Shannon comentou o negacionismo eleitoral endossado por Bolsonaro: “É algo que não será facilmente perdoado e não será esquecido”.

Tendo perdido o farol trumpista, se o governo brasileiro continuar na sua órbita de realidade paralela, ficará falando sozinho, prisioneiro de suas fantasias. Os americanos poderão controlar a agenda com um parceiro malcriado.

Lidando com a pandemia, Bolsonaro investiu-se de poderes que não tem. Como o mercado brasileiro é grande, ele supôs que os vendedores de vacinas e de seringas fariam fila à sua porta. Acabou pendurado no imunizante “do João Doria” que demonizou, garantindo que “NÃO SERÁ COMPRADA” (maiúsculas dele).

A ideia de que o Brasil está no centro do mundo é pobre. O pelotão palaciano poderia ir à página 113 do livro “Kissinger e o Brasil”, do professor Matias Spektor. Ele conta um encontro do secretário de Estado Henry Kissinger com o chanceler soviético Andrei Gromyko, ocorrido na manhã de 11 de julho de 1975. O Brasil acabara de assinar um Acordo Nuclear com a Alemanha, e Gromyko estava preocupado com a possibilidade de o Brasil vir a fabricar uma bomba atômica.(O embaixador americano em Brasília também desconfiava disso.) O chanceler soviético queria a ajuda americana para bloquear o projeto: “Vocês estão mais perto do Brasil geográfica e politicamente”.

Poderia ter começado uma discussão sobre as características do acordo, mas Kissinger deu uma resposta curta, de três frases, combinou manter Gromyko informado e arrematou:

—Tudo bem. Vamos almoçar?

O Acordo Nuclear foi sumindo, sumindo, e sumiu.


Conrado Hübner Mendes: Impeachment Pró-Vida

Não se combate vandalismo constitucional sem tirar vândalos do poder

O negacionismo pandêmico pode matar qualquer um de nós. Já o negacionismo político, aquela displicência soberba diante do custo democrático e humanitário que Jair Bolsonaro nos impõe, parece mais inofensivo e pode poupar nossa vida. Basta manter o bom comportamento e não abusar da liberdade (científica, acadêmica, artística, de imprensa).

O casamento de ambos tem permitido a Bolsonaro inviabilizar uma política sanitária responsável e ao mesmo tempo se livrar de sanções pelo vandalismo constitucional que imprimiu em seu governo. O tamanho do dano é intangível e transcende a morte de centenas de milhares de pessoas.

Vandalismo constitucional, expressão que voltou à tona no debate anglo-saxão sobre o que Boris Johnson e Donald Trump infligiram às normas do jogo democrático, denota um estilo governamental de confrontação permanente. A confrontação não se dá exatamente com a lei, que vândalos ignoram por vocação, mas com a capacidade de resistência das instituições de controle. Preocupam-se com inimigos, não com a legalidade.

Vândalos não cometem um crime de responsabilidade. Cometem crimes de responsabilidade seriais e continuados. Foi, talvez, como Carlos Ayres Britto tentou definir Bolsonaro dias atrás: governa "de costas para a Constituição", tem "o pé atrás com essa Constituição", caminha "na contramão da Constituição", adota como estilo "um ódio governamental de ser".

Eleições são o método ordinário para premiar ou punir agentes políticos por seu desempenho. Quando vândalos eleitos ameaçam a ordem constitucional ou põem em xeque a própria integridade das eleições futuras, o impeachment e o julgamento por crime comum são as válvulas de escape de que dispomos. São formas de proteger a vontade dessa instituição chamada povo.

Não há qualquer nuance na avaliação moral do governo federal. Menor ainda é a complexidade da avaliação jurídica. Tudo é demasiadamente bruto, sem zona cinzenta. Nenhum presidente brasileiro eleito chegou tão perto de gabaritar a Lei do Impeachment.

Começou antes da pandemia, mas a crise sanitária precificou essa postura numa moeda indisfarçável: número de mortes diárias, de UTIs sem oxigênio, de testes vencidos, de placebos estocados, de protocolos ironizados em praça pública, de seringas não compradas, de vacinas não negociadas. Fatos duros que vencem até mesmo a indústria da desinformação.

E não foi só por incompetência de um general estúpido convertido em dublê de ministro que comete crimes sem se tocar. O projeto está documentado, tuitado e televisionado. Não adianta desmentir no grito porque a esfera pública não é quartel e cidadãos não somos recrutas que seguem ordens de cima para baixo.

Se não há dilemas morais ou jurídicos, o cálculo político ainda atrapalha o disparo de processo de impeachment. A ciência política detectou algumas leis gerais da competição democrática. A primeira constata que um presidente se elege quando tem base partidária capilarizada que lhe dê palanque, recursos e tempo de TV. A segunda observa que um presidente cai quando há crise econômica, algum consenso popular e gente nas ruas.

A eleição de Bolsonaro fugiu da primeira lei. Sua eventual destituição pode ter que adaptar a segunda lei. No contexto de pandemia, e com mais de 60 pedidos de impeachment na gaveta da presidência da Câmara dos Deputados, prognósticos sobre como e quando aquelas condições se apresentarão ainda geram muita dúvida.Contudo, após dois anos de vandalismo constitucional turbinado por uma pandemia, vamos percebendo que os mesmos argumentos de prudência que desencorajavam o impeachment começam a virar de lado.Não basta mais argumentar que um processo de impeachment tira o foco da pandemia, gera instabilidade e produz novo trauma institucional, pois isso o presidente também faz, e bem.

É necessário mostrar o quanto a sobrevivência política de Bolsonaro é menos custosa que tudo isso. Estamos falando de operação de salvamento, não de consolidação da democracia. Com receio de banalizar o impeachment, vamos banalizando o crime de responsabilidade.

*Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.


Alon Feuerwerker : Saúde pública

Com o início da vacinação em larga escala mundo afora, começam a aparecer alguns problemas. Nada muito grave por enquanto, mas a situação naturalmente merece atenção. Há casos de efeitos colaterais importantes (leia), possíveis achados de reinfecção pelas novas cepas, mais contagiosas, em quem já tinha anticorpos (leia) e dúvidas sobre a efetividade anunciada pelos fabricantes (leia).

É absolutamente esperado que essas circunstâncias deem a cara quando a vacina de fato começa a rodar em grandes populações. Afinal, estamos terminando de montar o avião em pleno voo. Mas vale a pena. Vacinas não precisam ser infalíveis. Precisam reduzir significativamente o número de infectados, e portanto de hospitalizados, e portanto de falecidos.

É isso que interessa. Pois vacinas são importantes para proteger o indivíduo, e mais fundamentais ainda para proteger populações. E indivíduos tomados isoladamente estão tão mais protegidos quanto mais protegida está a população no seu conjunto. Vacinações são antes de tudo campanhas de saúde pública. Essa é a ideia que nunca deveria ser esquecida.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Andrea Jubé: Quem desdenha sempre quer comprar

Doria perdeu chance de tapa com luva de pelica em Bolsonaro

”É uma vacina emergencial, 50% de eficácia. É algo que ninguém sabe ainda se teremos efeitos colaterais ou não".

Essa foi a declaração do presidente Jair Bolsonaro ontem a um grupo de apoiadores na saída do Palácio da Alvorada sobre a CoronaVac, vacina do Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac.

Nas redes sociais, ele se manifestou com o silêncio sobre a única vacina disponível aos brasileiros num universo de 200 mil famílias enlutadas, e com um atraso de 41 dias, em relação à inauguração da temporada de vacinações com a britânica imunizada no Reino Unido. Hoje pelo menos 50 países estão imunizando seus cidadãos.

O Brasil só começou anteontem e quem saiu na foto foi o governador de São Paulo, João Doria - provável adversário de Bolsonaro em 2022.

Essa declaração de Bolsonaro aos apoiadores, voltando a desacreditar a CoronaVac, é contraditória, senão, estapafúrdia.

Isso porque neste sábado, depois que veio a público o fracasso do governo na importação da Índia de dois milhões de doses da vacina da Universidade de Oxford, em parceria com a AstraZeneca, o Ministério da Saúde tentou confiscar as seis milhões de doses da CoronaVac, para dar largada, com ela, no Plano Nacional de Imunização (PNI) em uma competição burlesca com o governo de São Paulo.

Na mesma conversa com apoiadores, Bolsonaro ainda ressaltou que as vacinas do Butantan, as quais ele pejorativamente chamou de “vacina chinesa”, são “do Brasil, não de um governador”.

Bolsonaro demonstra, dessa forma, que quem desdenha quer comprar.

Se o brasileiro tem memória curta, a das redes sociais é afiada, para revés de Bolsonaro em seu reduto mais cativo. As críticas do presidente à CoronaVac circularam intensamente nas plataformas nos últimos dois dias confrontando sua postura negacionista frente à vitória política de Doria.

Centenas de perfis relembraram a postagem de Bolsonaro há três meses, no dia 21 de outubro, afirmando em tom incisivo: "não compraremos a vacina da China".

Na véspera, o ministro da Saúde, o general da ativa Eduardo Pazuello, havia informado Doria, em uma reunião com mais 23 governadores, que o governo federal iria comprar 46 milhões de doses da CoronaVac que seriam distribuídas a todo o país por meio do plano nacional.

Cobrado pelos seguidores, Bolsonaro desautorizou Pazuello, e ainda o submeteu à humilhação pública. Na transmissão ao vivo pela sua conta do Facebook, um ministro visivelmente abalado pela doença - o general estava no início do ciclo da Covid-19 - e constrangido pela situação, declarou: "Senhores, é simples assim: um manda e o outro obedece”.

Pazuello chamou o gesto de Doria, ao sair na frente com a vacinação no domingo, de jogada de “marketing”, mas não fez diferente. Adiou de domingo para ontem a entrega aos governadores de seus respectivos lotes da CoronaVac para sair na foto ao lado dos mandatários estaduais. Com as vacinas embrulhadas nas bandeiras de cada Estado, o recado de Pazuello era de que a CoronaVac não pertence a São Paulo.

O ministro ainda queria que os governadores esperassem até amanhã para começar a vacinar a população, mas eles reagiram.

“Isso caiu por terra logo, explicamos que a ansiedade é muito grande, não dava para esperar”, disse à coluna o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM). “Se a vacina está disponível, todo prefeito vai ser pressionado pra vacinar o quanto antes no seu município”.

Na sessão de fotos com Pazuello, os governadores acordaram que todos que estivessem em poder de seus respectivos lotes começariam a vacinar suas populações às 17 horas dessa segunda-feira.

O custo político do negacionismo de Bolsonaro materializou-se pela primeira vez na pesquisa XP/Ipespe divulgada ontem. Segundo o levantamento, a avaliação do classificada como péssima ou ruim subiu de 35% para 40%, segundo parcela da população ouvida pela rodada de janeiro. É a primeira vez, desde julho do ano passado, que a avaliação negativa superou a positiva.

Em paralelo, o percentual dos que veem a gestão Bolsonaro como ótima ou boa caiu de 38% para 32%. Também foi a primeira vez, desde maio, que a sondagem identificou um aumento no percentual dos críticos ao governo, e na redução do número de apoiadores.

O movimento coincide com uma piora na percepção da atuação de Bolsonaro no enfrentamento da pandemia.

Entretanto, se o comportamento negacionista de Bolsonaro está em xeque, o gesto de João Doria para faturar politicamente com a entrega do primeiro imunizante disponível aos brasileiros, ao sair na frente dos outros Estados na campanha de vacinação, foi duramente criticado pelos colegas.

“Ele poderia ter dado um tapa com luva de pelica no Bolsonaro, e convidado os governadores para começar junto com ele”, disse à coluna um governador que pediu para não ser identificado.

Este governador reconheceu, entretanto, que pelo papel relevante de Doria para viabilizar a primeira vacina brasileira, o conjunto dos governadores acabou relevando a postura do tucano.

Coube ao governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), verbalizar a indignação dos colegas. “Ele fez da vacina um instrumento político, existe uma distância entre a campanha eleitoral e a política de saúde pública”.

O goiano ponderou que Doria poderia ter tido a “humildade” de fazer um gesto político e convidar os demais colegas a começar a campanha de vacinação junto com São Paulo. “Isso constrangeu os colegas, ninguém quer ser tratado como segunda categoria”.

Bolsonaro é candidato declarado à reeleição. Doria é pré-candidato. Ambos estão se precipitando em um jogo em que movimentos atabalhoados tiram pontos dos concorrentes antes do começo da partida.


Cristina Serra: A ciência derruba mitos

Início da vacinação é a derrota mais espetacular de Bolsonaro nestes dois anos

dia 17 de janeiro de 2021 deveria assinalar o começo do fim do desgoverno Bolsonaro. Foi sua derrota mais espetacular nestes dois anos em que tentou com máximo empenho destruir o Brasil. As luzes da ciência brilharam com todo o seu esplendor, mesmo numa agência reguladora dirigida por um seguidor do negacionista.

A Anvisa aprovou o uso emergencial de duas vacinas importadas e produzidas em parceria de instituições científicas brasileiras com farmacêuticas e uma universidade estrangeiras. Aos cientistas e servidores públicos do Instituto Butantan e da Fundação Oswaldo Cruz devemos a vitória deste domingo inesquecível.

O sabotador-mor da República chegou a dizer que a "vacina chinesa" teria como efeitos colaterais "morte, invalidez, anomalia". "Mais uma que Jair Bolsonaro ganha", comemorou, quando o suicídio de um voluntário levou à interrupção dos testes. A frase agora é outra: "Mais uma que Jair Bolsonaro perde". E vai perder mais, porque a história mostra que a marcha do Iluminismo é irreprimível e que a ciência derruba mitos.

Já temos a vacina e amanhã é a posse de Joe Biden nos Estados Unidos. Bolsonaro perde seu maior suporte internacional. Seus atos e omissões na pandemia são um roteiro de crimes de responsabilidade. O holocausto de Manaus não será o ponto final desta tragédia. O criminoso tem que ser contido.

O ex-presidente do STF, Ayres Britto, deu a senha, nesta Folha. Segundo ele, o impeachment se aplica ao presidente que adota "mandato de costas para a Constituição"; a nação tem que dizer "a Constituição ou o presidente" e "a opção só pode ser pela Constituição."

Alguém dirá: falta combinar com os financistas, privatistas, carniceiros do Estado, agronegócio, centrão, impostores pentecostais, Forças Armadas, milicianos e mais um rol de cúmplices. Aos que que não se envergonham de faturar com a desgraça do país, faço coro com o colega Juca Kfouri: "Genocidas! Genocidas! Genocidas!".


Hélio Schwartsman: Doria derrota Bolsonaro

Depois de dizer 'NÃO SERÁ COMPRADA', Bolsonaro comprou 46 milhões doses da Coronavac

João Doria é valente. Em seu lugar, eu não teria entregado as vacinas contra Covid-19 ao governo federal antes de o cheque pela compra do biofármaco ter sido compensado. Para não dizer que Jair Bolsonaro e seus prepostos são um bando de salafrários, afirmo apenas que a confiabilidade do Planalto tende a zero.

Nem precisamos nos afastar da vacina para constatá-lo. Menos de três meses atrás, ao ser questionado por um apoiador sobre o anúncio de que o Ministério da Saúde iria adquirir a Coronavac sino-doriana, o presidente desautorizou seu ministro e escreveu no Facebook: "NÃO SERÁ COMPRADA". Comprou, 46 milhões de doses, com opção de mais 54 milhões.

Obviamente, não me queixo de o presidente ter descumprido a palavra. Mas, se tivesse dignidade, ofereceria uma explicação para a mudança de atitude, além de um pedido de desculpas aos chineses e ao governador paulista.

Daí não decorre que o comportamento de Doria tenha sido exemplar. Na comparação com Bolsonaro, ele é um farol de iluminismo, mas isso não o impediu de envolver o Instituto Butantan num constrangedor espetáculo televisionado de "cherry picking", desastroso para quem pretende fazer ciência a sério.

Devemos lamentar a politização da vacina, mas só até certo ponto. Se Bolsonaro e Doria não tivessem entrado numa irrefreada disputa pela foto da primeira agulhada, que o Bandeirantes venceu, o Planalto dificilmente teria se mexido, e estaríamos ainda mais atrasados na imunização.

Há, porém, um lado mais sombrio na politização da vacina. Existem discussões como a do aborto e a da legalização das drogas que, por envolver crenças filosóficas e valores, são quase que naturalmente politizadas. Mas há outras, como a mudança climática ou a vacinação, em que o espaço para o subjetivismo é menor. Quando elas se politizam, em geral é porque um dos lados se tornou imune às evidências, o que é sempre perigoso.