vacinação

Fernando Gabeira: A política que mata

Há muito tempo que gostaria de escrever sobre outra coisa: a dimensão do realismo fantástico num país em que o presidente acha que vacina nos transforma em jacaré, oferece hidroxicloroquina para a ema do palácio e manda os jornalistas enfiarem uma lata de leite condensado no rabo.

Mas a urgência do drama proíbe digressão. Não absorvemos bem o que aconteceu em Manaus. Não quero dizer apenas que era necessário avaliar os estoques de oxigênio, planejar, em termos estratégicos, a produção e o consumo desse elemento vital.

Pazuello foi a Manaus defender a cloroquina e não percebeu a gravidade da falta de oxigênio. Quando percebeu a gravidade da falta de oxigênio, tarde demais, não percebeu outro fato decisivo: a presença de uma nova variante do coronavírus.

Desde quando os japoneses sequenciaram o mapa dessa variante em turistas que chegaram da Amazônia, era preciso acionar o alarme.

A variante brasileira tem características, ao que parece, semelhantes às mutações encontradas na Inglaterra e na África do Sul.

Todos se adaptaram de tal forma que podem se propagar com mais facilidade. Boris Johnson imediatamente decretou um lockdown para conter a nova onda que estava a caminho.

No Brasil, confirmada a existência da variante, não houve um debate nacional sobre o que fazer diante desse novo perigo. Na verdade, a variante brasileira é mais destacada nos jornais estrangeiros do que nos nossos.

Parece que, no Brasil de Bolsonaro, adotamos aquele velho lema: desgraça pouca é bobagem. Pazuello decidiu transferir os doentes de Manaus sem cuidados especiais de segurança. O aeroporto de Manaus durante algum tempo foi muito usado pelas UTIs aéreas que saíam do estado com os doentes mais ricos.

Somente Roraima e Pará, dois estados limítrofes, tentaram erguer uma tímida barreira sanitária. A variante já apareceu em São Paulo e no Rio Grande do Sul, sem contar seus voos mais longos: Estados Unidos e Alemanha.

Os voos do Brasil para Portugal foram suspensos. Biden manteve as restrições à entrada de brasileiros.

Muitos já notaram que Pazuello errou ao receitar hidroxicloroquina. Está sendo questionado por isso. Errou ao ignorar o avanço da crise de oxigênio, algo que não acontece de um momento para outro.

Mas não estamos cobrando do governo um projeto para conter a variante amazônica no norte do país. Na verdade, nem se toca no assunto, como se o vírus mutante fosse brasileiro e já tivesse o direito de circular livremente pelo nosso território.

Muito menos nos espantamos com o fato de os japoneses terem sequenciado e anunciado a variante. Na Fundação Oswaldo Cruz em Manaus, já era conhecida. Mas a verdade é que rastreamos pouco, sequenciamos pouco, por falta de recursos.

O negacionismo da política de Bolsonaro não se limita a tiradas verbais. Ele tem uma tosca base teórica. Prefere gastar com remédios a gastar com vacina e não se preocupa com testes. Milhares deles foram abandonados num galpão de São Paulo. O que adianta conhecer e monitorar? O que adianta sequenciar mutações de vírus?

Pelo que li, o governo já sabe que uma nova onda virá, dobrando o número de mortos. Diz que vai correr atrás da vacina. Para milhares de vidas, será tarde demais.

Quando Bolsonaro pagará por isso? Quem quiser pesquisar desde o início as frases, decisões, atitudes, omissões vai recolher um acervo, mais amplo ainda do que o enviado ao Tribunal Internacional.

Quando vejo Pazuello respondendo ao TCU pela compra da cloroquina, à PF pela omissão em Manaus, a sensação que tenho é de que tudo é um único e indivisivel processo: a história da negação e as mortes que ela produz diariamente no Brasil.E ele é apenas o homem que obedece.


Ruy Castro: À espera do curió

O canto de um passarinho pode ser o último alento antes da dissolução final

Em novembro último, escrevi duas colunas (5/11 e 9/11) a respeito de um curió cujo assobio me entrava pela janela toda manhã e me ajudava a saltar da cama e encarar o Brasil daquele dia —para se ter uma ideia da beleza do seu canto. O bichinho, segundo meu atento porteiro João, pertencia a um colega dele, porteiro do prédio em frente, e não era um curió qualquer. Tinha registro no Ibama e era um dos curiós mais populares do Leblon —transeuntes paravam sob sua gaiola na árvore para ouvi-lo cantar.

À distância, por causa da quarentena, juntei-me aos seus admiradores. A única restrição que lhe fazia era a relativa limitação de seu repertório, composto de um único tema —fiu-firiu fiu-firiu, fiu-fiu, fiu-fiu, fiu-fiu, tendo como coda mais um fiu breve e individual. Um ornitólogo me escreveu para dizer que não era uma limitação, mas o resultado de um longo trabalho do curió para chegar à perfeição daquela frase melódica. E que, provavelmente, o último fiu lhe tomara meses de ensaio.

Tudo isso é para dizer que, desde dezembro, deixei de ouvir o concerto matinal do curió. Hipóteses terríveis me assaltaram. Famoso como era, ele teria sido sequestrado e seu dono não podia pagar o resgate. Ou seu passe fora comprado por um milionário chinês que o levara embora. Ou, revoltado com os rumos do país, ele teria entrado em depressão e se recusava a cantar.

Dei alguns dias, voltei a João e lhe pedi notícias. Ele me tranquilizou: o dono do curió fora ao Norte ver a família e o deixara aos cuidados de um colega em Jacarepaguá. Logo estarão de volta ao Leblon.

Vou aguardar. O Brasil não está para que seus cidadãos pulem da cama e encarem o dia. O país, entregue a canalhas e omissos, à paisana ou fardados, está se dissolvendo sanitariamente, moralmente, institucionalmente. O canto de um passarinho pode ser o último alento antes da dissolução final.


Celso Rocha de Barros: O Congresso se vende nesta segunda-feira?

Se a eleição de Arthur Lira se confirmar, Bolsonaro terá três vitórias

Hoje acontece a eleição para presidente da Câmara dos Deputados. De um lado, concorre Baleia Rossi (MDB-SP), representando uma frente ampla com forças de esquerda e de direita. Do outro lado, Arthur Lira (PP-AL), representando o direito de Jair Bolsonaro pisar no tubo de oxigênio de 220 mil brasileiros que morreram asfixiados durante a pandemia. Lira é favorito.

Se a vitória de Lira se confirmar, Bolsonaro terá três vitórias.

A vitória menor será a eleição de Arthur Lira. Com um aliado seu na presidência da Câmara, Bolsonaro terá mais chances de colocar em votação suas pautas autoritárias. Se entregar cargos conversíveis em dinheiro for suficiente para eleger Lira, talvez também seja suficiente para aprová-las.

Com todas as suas imperfeições, Rodrigo Maia foi um limite para o autoritarismo de Bolsonaro. Lira parece ter menos disposição para sê-lo.

Até outro dia, diziam que o centrão de Lira havia moderado Bolsonaro. Da próxima vez, sugiro que a democracia brasileira não se defenda com um exército mercenário. O leilão do mercenário está sempre em aberto.

Mas, até por isso, mesmo, a vitória de Lira pode não ser uma vitória tão grande para Bolsonaro.

Se a maré virar contra o presidente, como parece estar virando, essa turma toda vai embora em cinco minutos, carregando até o material de escritório da Esplanada. E a munição usada para eleger Lira já está gasta; não haverá mais tantos cargos nem tantas verbas para distribuir na próxima disputa.

Mesmo assim, faz diferença. Em uma disputa apertada pelo impeachment, um presidente da Câmara que vacile por, digamos, dois meses a mais para ouvir a insatisfação popular pode ser decisivo. A mobilização pode arrefecer nesse período, a próxima eleição pode começar a ficar perto demais.

É bom lembrar que o presidente mais impopular de todos os tempos, Michel Temer, escapou do impeachment de manobra em manobra. Todas foram do tipo que Bolsonaro está fazendo agora.

Mas a vitória de Lira daria a Bolsonaro outras duas vitórias, talvez mais importantes.

A primeira é um novo salto na desmoralização do Congresso. Se, depois dos 220 mil mortos e da tentativa de autogolpe de 2020, o Congresso se vender para quem até outro dia queria fechá-lo, haverá menos gente para defendê-lo na próxima ameaça autoritária.

Tem gente no centrão que diz que parou o golpismo de Bolsonaro em 2020 sozinho, mas é mentira: havia uma resistência ao autoritarismo na opinião pública e o centrão entrou como mediador.

Se Lira vencer e fizer o que o bolsonarismo quiser, o centrão não será mais mediador de nada. Terá lado na disputa e mãos manchadas de sangue.

Além disso, se Lira vencer, a frente ampla terá fracassado de novo, depois da vez em que ela mais importava —o segundo turno de 2018— e daquela movimentação tímida de 2020.

Nesse caso, da próxima vez que a direita disser “nós votamos Bolsonaro porque do outro lado era o PT” bastará responder “meu amigo, vocês votaram no Bolsonaro quando do outro lado era o Baleia Rossi”.

Enfim, é hora do Congresso decidir o quanto os democratas brasileiros podem contar com ele. Gostaria de ter argumentos que convencessem os eleitores de Arthur Lira a mudar de ideia. Mas acho que acabaria gastando-os para comprar o Messi para o Flamengo.


Catarina Rochamonte: Eleições e cooptação do Congresso

Bolsonaro tenta sujeitar o Congresso para viabilizar um projeto autocrático

O presidente da República não tem disfarçado o indecoroso empenho em favor dos seus candidatos a presidente da Câmara (Arthur Lira) e do Senado (Rodrigo Pacheco), chegando até a invocar o nome de Deus para ajudá-lo na flagrante indecência de eleger, à custa de liberação de verbas bilionárias, quem esteja disposto a se subordinar. Nas eleições desta segunda-feira ver-se-á até onde o Congresso está disposto a ir na cumplicidade com um projeto autoritário.

Na Câmara, apesar de todas as negociatas que sustentam o favoritismo do candidato de Bolsonaro, que é réu por corrupção, há chance de a disputa ir para o segundo turno. No Senado, o quadro é mais difícil; desolador. Lá, de forma oportunista e desavergonhada, quase toda a esquerda —PT, PDT, Rede— uniu-se a Bolsonaro em favor do candidato chapa-branca, e o MDB, que havia lançado a candidatura de Simone Tebet, acovardou-se e resolveu rifá-la.

Bolsonaro tenta sujeitar o Congresso não apenas para barrar um processo de impeachment, mas também para viabilizar um projeto autocrático, aprofundando a erosão democrática já iniciada com as interferências indevidas na PF, na Receita, no Coaf...; e ainda a utilização para fins privados de órgãos como a Abin.

Na Procuradoria Geral da República, ele já colocou um cavalo de Troia. O atual PGR, lembremos, vem combatendo quem combate a corrupção, tendo como prioridade a destruição da força-tarefa da Lava Jato. No STF, Bolsonaro conseguiu emplacar alguém de notório não saber jurídico —plagiário de dissertação e falsificador de títulos— mas com a virtude da gratidão e o dom de adivinhar as intenções de quem o indicou.

As candidaturas governistas no Congresso são parte da estratégia de cooptação e aparelhamento das instituições que avança sob o olhar reticente dos que advogam a tese de que um novo impeachment debilitaria a democracia. Ao contrário, o impeachment é precisamente o instrumento democrático para frear o uso leviano do poder.

*Catarina Rochamonte é doutora em filosofia, autora do livro 'Um olhar liberal conservador sobre os dias atuais' e presidente do Instituto Liberal do Nordeste (ILIN).


Gustavo Loyola: O ano que não quer acabar

A extensão da renda emergencial não substitui o enfrentamento sério da crise sanitária

A economia brasileira deve se manter praticamente estagnada no primeiro trimestre do ano. Infelizmente, as expectativas de uma recuperação mais rápida e forte da atividade estão se frustrando, em razão principalmente dos sérios equívocos nas políticas de enfrentamento da pandemia da covid-19. A realidade dá uma dura lição a um país onde o presidente da República e parte de sua elite dirigente acreditaram (e, pasmem, acreditam ainda) que o caminho mais rápido para evitar a recessão econômica seria ignorar as medidas de distanciamento social e encorajar o fim das restrições de mobilidade adotada pela maioria dos governos locais.

O agravamento, a partir do final do ano passado, da disseminação da doença e do aumento do número de hospitalizações e óbitos, ao lado do aparecimento de novas cepas de vírus mais transmissíveis, não apenas está levando ao retorno a fases mais estritas de distanciamento social, mas também tem impactado as expectativas dos agentes econômicos, indivíduos e empresas, minando a confiança, com efeitos negativos sobre as decisões de investimento e consumo, vitais para a sustentação da retomada da atividade econômica. Tais incertezas são mais ainda amplificadas pela percepção de que nem sequer há, no curtíssimo prazo, disponibilidade suficiente de vacinas para o Brasil imunizar os grupos populacionais prioritários.

Não bastasse tudo isso, a nova fase de agravamento da pandemia coincide com o término da maioria dos programas governamentais de estímulo que, no ano passado, atenuaram de maneira relevante os efeitos negativos da pandemia, em particular o auxílio emergencial que evitou consequências sociais mais desastrosas sobre as populações mais vulneráveis.

Estivessem as contas públicas brasileiras numa situação fiscal confortável, e houvesse margem de manobra para corte de despesas menos prioritárias, não haveria muita discussão a respeito da necessidade de extensão dos estímulos fiscais no mínimo por mais um semestre. Países como os Estados Unidos estão agindo dessa forma. Contudo, como fazê-lo aqui, onde, em consequência do enfrentamento da pandemia no ano passado, a dívida pública saiu de 75,8% do PIB para 90,7% do PIB e o déficit primário esperado para 2021 é de cerca de 2% do PIB?

O descolamento da moeda brasileira - excessivamente depreciada em relação ao dólar no contexto do enfraquecimento global da moeda americana e de alta do preço das commodities - é consequência direta da percepção do risco fiscal numa conjuntura que requer expansão do gasto para lidar com a pandemia sem que haja espaço nas contas públicas para tanto.

Uma decisão de simplesmente prorrogar o auxílio emergencial e outras medidas de estímulo tenderia a piorar ainda mais essa percepção negativa, agravando os problemas para a economia, como, por exemplo, a aceleração da inflação que resultaria da queda ainda maior do valor do real, pela piora do risco-país. O aumento da inflação, como vimos o ano passado, prejudicaria mais fortemente as camadas mais pobres da população, agravando um cenário que já lhes é extremamente desfavorável com a pandemia.

Por outro lado, o Banco Central já cogita iniciar o ajuste para cima da taxa referencial de juros, retirando ao menos parte do estímulo monetário que pratica desde o início da pandemia da covid -19 no ano passado. A ata da última reunião do Copom deixa claro que alguns diretores da instituição consideram que o grau de estímulo ora em vigor não é desejável, até porque as projeções de inflação se elevaram nas últimas semanas e se aproximam do centro da meta. Embora compatível com o regime de metas, o movimento de alta dos juros pelo BC, em meio a pandemia e simultaneamente à retirada dos estímulos fiscais tenderia a tirar ainda mais fôlego da economia.

Desse modo, o caminho sensato a percorrer é o de trocar a elevação emergencial e temporária da despesa pública - em razão da persistência dos efeitos da pandemia - por reformas que ajudem a ancorar as finanças públicas no médio e longo prazo, evitando que a dívida pública entre numa trajetória insustentável. Em razão da carência de recursos, os estímulos devem ser focados na população mais vulnerável e mais duramente atingida pela pandemia, não podendo ter a abrangência observada em 2020. Uma solução dessa natureza poderia ao mesmo tempo contribuir para a mitigação dos efeitos da covid-19 e aumentar a confiança dos agentes econômicos, reduzindo os prêmios de risco e aliviando a pressão sobre o câmbio.

A questão é que uma negociação do gênero com o Congresso esbarra nas dificuldades da articulação política do governo, em grande parte devidas à agenda ideológica do presidente da República, mais inclinado a satisfazer seguidores radicais do que forjar consensos em prol da governabilidade.

Finalmente, é preciso não cultivar falsas ilusões. A extensão da renda emergencial e de outras medidas paliativas de estímulo econômico jamais substituirá o enfrentamento competente, sério e enérgico da crise sanitária, principalmente por meio da imunização abrangente e rápida de parcela relevante da população brasileira.

*Gustavo Loyola, doutor em Economia pela EPGE/FGV. Ex-presidente do Banco Central 


Bruno Carazza: Dinheiro na mão é vendaval

Do ponto de vista eleitoral, auxílio emergencial foi efêmero

Foram R$ 293 bilhões injetados no bolso de quase 70 milhões de pessoas. A maior transferência direta de recursos federais para o cidadão brasileiro na história rendeu dividendos fugazes para Bolsonaro. Foi só anunciar o fim dos pagamentos do auxílio emergencial que a sua reprovação voltou a subir.

É bem verdade que existem outros fatores para explicar a queda de popularidade neste início de ano. Houve também o recrudescimento das mortes pelo coronavírus, o colapso no sistema de saúde de Manaus e os erros do governo no começo da vacinação.

Mas há algumas evidências de que o auxílio emergencial influenciou bastante o humor da população durante a pandemia. Comparando-se o pior momento de Bolsonaro, em junho passado, quando o país sofria a primeira onda da covid-19 em sua força máxima, com dezembro (mês do pagamento da última parcela do benefício para a maior parte dos contemplados), a rejeição ao presidente reduziu-se significativamente em todos os segmentos sociais.

Entre os que se enquadravam como seu público-alvo, porém, o efeito foi mais intenso, com as notas de ruim e péssimo caindo mais fortemente entre os nordestinos (de 52% para 34%), as pessoas que recebem até 2 salários (de 44% para 27%) e quem possui apenas o ensino fundamental (de 40% para 26%). Porém, como diria o príncipe do samba, “dinheiro na mão é vendaval”.

Não se passou um mês do fim do alívio financeiro, e com algumas pessoas ainda recebendo um rescaldo de pagamentos atrasados, o apoio a Bolsonaro voltou a cair fortemente junto ao grupo que foi mais contemplado com os desembolsos. A avaliação negativa de seu governo em janeiro/2021 voltou a piorar junto aos mais pobres (41% de ruim/péssimo), menos escolarizados (35%) e no Nordeste (43%). Entre os desempregados, a desaprovação ao governo já bate em 48%; para se ter uma ideia, há um mês ela estava em 31%.

A deterioração repentina na imagem do presidente junto ao eleitorado aumenta a pressão por uma nova fase da ajuda governamental. Mas não é só isso: as perspectivas de demora na vacinação e as aterrorizantes notícias sobre as novas cepas do coronavírus indicam que a tal recuperação está mais para W do que para V. Assim, independentemente de quem vença as eleições para as mesas diretoras da Câmara e do Senado logo mais, o auxílio emergencial voltará a ser destaque na ordem do dia.

Três possibilidades parecem estar colocadas para Bolsonaro: I) obter um novo decreto de calamidade pública e contratar o gasto extra para reativar o benefício; II) conceder uma nova rodada tendo como contrapartida uma mini-reforma fiscal, aprovando a PEC Emergencial; e III) retomar a ideia inicial de Paulo Guedes, lançando um novo programa de transferência de renda com a extinção de políticas públicas já existentes.

Simplesmente repetir em 2021 a mesma tática do ano passado, como prevê a primeira opção, seria plantar vento para colher tempestade às vésperas do início da campanha para a reeleição. Com a dívida pública batendo em 89,3% do PIB, o espaço fiscal ficou extremamente limitado. Racionalmente, os potenciais efeitos sobre o câmbio, a inflação e aos juros nos próximos meses não justificam a concessão de novas prestações que, como vimos, têm efeitos efêmeros sobre a avaliação do governo.

Na última semana começou-se a discutir a alternativa de condicionar uma nova fase de transferência de renda, mais delimitada e diluída no tempo, à aprovação da PEC Emergencial. Essa opção, contudo, esbarra na falta de credibilidade do presidente em tomar medidas impopulares, como reduzir carga horária e cortar salários de servidores públicos para alocar recursos para o auxílio emergencial 2.0.

Restaria, então, a possibilidade de retomar a ideia inicial de Paulo Guedes, realocando recursos hoje comprometidos com programas sociais menos eficientes (como o auxílio-defeso, o abono salarial e a farmácia popular) num programa mais focalizado e perene que seria chamado de Renda Brasil ou Renda Cidadã. Apesar de Bolsonaro ter torpedeado a ideia em seu nascedouro, avisando que não iria “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”, essa poderia ser uma estratégia viável caso pretenda chegar forte em 2022 e sem explodir o teto. E ele não seria o primeiro a seguir esse caminho.

No final de 2003, Lula empacotou três políticas sociais assistenciais criadas ainda no governo FHC - Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Auxílio-Gás, cada qual com regras próprias, públicos-alvo diferentes e órgãos de execução distintos -, e as consolidou num único benefício social permanente: o Bolsa Família.

Graças a essa mudança - impulsionada também pela política de valorização do salário mínimo -, o líder petista conseguiu fazer a mais impressionante migração de eleitorado da história brasileira. Se no pleito de 2002 Lula extraiu a maioria dos seus votos das regiões metropolitanas do Centro-Sul, onde a população é mais rica e escolarizada, quatro anos depois seus eleitores estavam localizados entre os mais pobres, com menos anos de estudo e moradores do interior do Norte e do Nordeste do país.

Não por acaso, é justamente no público com perfil de beneficiário do Bolsa Família que Bolsonaro tem mais dificuldade de penetração - e onde a ajuda emergencial mais fez diferença.

Na semana passada, o colunista do New York Times Ezra Klein, analisando os desafios do governo Biden, escreveu que, em geral, um presidente nunca é reeleito por políticas que o eleitor não sabe que foi ele quem fez. Acredito que esse pensamento caiba perfeitamente na discussão sobre o dilema da ajuda aos mais atingidos pela pandemia. Um programa permanente, nos moldes de um Bolsa Família turbinado, seria muito mais bem avaliado pela população do que uma miríade de benefícios dispersos, como existem hoje.

Ao lançar-se abertamente na direção do Centrão, Bolsonaro demonstra que, para vencer em 2022, decidiu render-se ao pragmatismo. Ouvir a equipe econômica nesta questão do auxílio-emergencial deveria ser o próximo passo.


O Estado de S. Paulo: Atraso em vacinação deve custar R$ 150 bi ao PIB do País em 2021

Segundo cálculo da consultoria LCA, caso 70% dos brasileiros fossem vacinados até agosto contra a Covid-19, a economia poderia crescer 5,5%; mas, com esse patamar de imunização previsto só para dezembro, avanço deve ser reduzido em 2 pontos porcentuais

Luciana Dyniewicz, O Estado de S.Paulo

A lentidão e a desorganização no programa nacional de vacinação contra a covid-19 vão retirar pelo menos dois pontos porcentuais do Produto Interno Bruto (PIB) do País em 2021. Segundo cálculos do economista Bráulio Borges, da consultoria LCA, caso 70% da população recebesse a vacina até agosto, a economia brasileira cresceria 5,5% neste ano. Se a vacinação atingir esse patamar apenas em dezembro – hipótese que hoje já é considerada otimista –, o crescimento do PIB deve ficar entre 3% e 3,5%. Nesse cenário, o País deixará de movimentar R$ 150 bilhões.

Borges também traçou uma hipótese otimista: estimando o impacto de uma vacinação mais ágil na economia, em um ritmo semelhante ao de Israel – país mais avançado na imunização contra o novo coronavírus. Nesse cenário, 70% seriam vacinados até junho, permitindo que as medidas de distanciamento social fossem relaxadas e garantindo o retorno de atividades em que há aglomeração. O PIB poderia, nesse caso, avançar 7,5%, um incremento de R$ 260 bilhões.

O crescimento de 3% a 3,5% esperado para a economia no pior dos cenários (com a maior parte da população vacinada até o fim do ano) pode parecer positivo, dado que a última vez que o País avançou 3% foi em 2013. Na prática, porém, significará que a economia passou o ano todo estagnada. Isso decorre do que os economistas chamam de “carrego estatístico” – quando a base de comparação é baixa (o resultado médio do PIB em 2020), mas o ponto de partida é elevado por conta da recuperação ao longo do último semestre do ano.

A alta de 3,5% também significará que o País terá, no fim de 2021, um PIB 1% abaixo do registrado em 2019. A economia per capita terá um resultado ainda mais negativo: 2,5% inferior ao de 2019. “Esses cálculos são um exercício simplificado que mostra como podemos ter um crescimento econômico se andarmos mais rápido com a vacinação, o que hoje parece uma realidade bem distante”, afirma Borges.

Por enquanto, a LCA projeta que o PIB ficará nos 3,5% neste ano. Mas Borges reconhece que talvez a realidade “seja ainda pior que esse cenário ruim”.

Tendências Consultoria é mais pessimista e estima um PIB de 2,9%. “Nossa projeção é cautelosa porque já tínhamos uma preocupação com o quadro pandêmico e não tínhamos a perspectiva de que haveria um movimento de vacinação afetando parte relevante da população no primeiro semestre. Outra preocupação é com a situação fiscal”, diz a economista-chefe da consultoria, Alessandra Ribeiro.

Classificação de risco do Brasil

O economista-chefe da Austin Rating, Alex Agostini, afirma que há inclusive um risco de o Brasil ter sua classificação de risco novamente rebaixada por causa do atraso na imunização. “Há um risco indireto porque, à medida que não temos uma vacinação em massa, a confiança dos agentes econômicos cai. As pessoas também ficam mais em casa e isso afeta um componente que é analisado para determinar o risco, que é o PIB.”

A economista Zeina Latif  alerta que a perda de doses de vacinas, como tem sido verificado em algumas cidades por problemas técnicos, e a eficácia de 50% da Coronavac, que está sendo produzida no Instituto Butantan,  fazem com que seja mais difícil atingir a imunidade de rebanho. “Esse fator de incerteza vai pesar em 2021. Ainda vamos passar um bom tempo com limitações para a atividade econômica. E o setor de serviços é o mais impactado pela pandemia, além de ser o que tem maior peso no PIB. Acho difícil a gente não ter decepções com a economia.”

Segundo estimativa do Ministério da Saúde, a vacinação deve levar “até 12 meses após a fase inicial”. Isso, no entanto, dependerá “do quantitativo de vacinas disponibilizadas para uso”. A epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o Programa Nacional de Imunizações por oito anos, lembra, porém, que já houve atrasos no recebimento das primeiras doses de imunizante e que não é possível ter certeza de que o prazo será cumprido. “Mesmo quem comprou as vacinas antecipadamente está com problema (para recebê-las). Imagina quem não comprou. Esse vai para o fim da fila, porque a demanda mundial é muito grande.”

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El País: 'Bolsonaro busca a polêmica para disfarçar a incopetência', diz Flávio Dino

O governador do Maranhão, um comunista com peso político superior ao que lhe confere seu Estado, surge como uma das vozes alternativas da esquerda brasileira

Naiara Galarraga Gortázar, El País

O governador do Maranhão, Flávio Dino (São Luís, 52 anos), tem uma presença no debate nacional brasileiro muito acima do que indicaria o peso real desse pequeno estado litorâneo, muito desigual, situado no extremo leste da Amazônia Legal. Juiz e deputado antes de romper, há seis anos, a hegemonia da oligarquia local, combina sua filiação ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) com um esquerdismo pragmático e a fé católica. Dino recebeu este jornal no impressionante palácio do governador, em sua cidade natal, momentos depois da posse de Joe Biden nos Estados Unidos. Falou de Bolsonaro, da pandemia, da Amazônia... Só tirou a máscara para posar rapidamente para as fotos.

Pergunta. Como um governador comunista convive com um presidente de extrema direita?

Resposta. É uma relação difícil porque tem a diferença político-ideológica e, neste caso, há uma singularidade. Bolsonaro é uma figura que prioriza o confronto, é o que integra sua identidade política desde a origem. Ele busca sempre uma polêmica até para disfarçar as suas incompetências. A convivência é muito difícil com todos os Estados. É o período da nossa história em que há o maior afastamento entre o Governo federal e os Governos estaduais de um modo geral.

P. O senhor afirmou em seu Twitter que “o fim do Governo Trump é (...) um anúncio da alvorada que virá no Brasil”. Acredita que isso influenciará tanto nas possibilidades de reeleição de Bolsonaro?

R. É um fator que amplia o isolamento de Bolsonaro. Ele já tem muitas dificuldades no cenário internacional. Trump era, praticamente, seu único aliado e agora ele ficou totalmente sem apoio. Em um mundo interconectado, esse isolamento acaba sendo um problema maior do que seria 200 anos atrás. Vemos consequências em vários âmbitos. Um Governo isolado tem muita dificuldade em encontrar saídas para problemas que transcendem as fronteiras nacionais. Os fluxos de comércio, a temática ambiental e a da saúde pública em um contexto de pandemia são temas que ultrapassam as fronteiras do país, então obviamente as soluções são supranacionais. Quando você tem um Governo que pratica e se orgulha do isolamento, isso implica em dificuldades práticas, como estamos vendo agora com as vacinas.

P. Como Maranhão está se organizando em relação à vacina?

R. Desde o início da pandemia, tivemos a criação de uma novidade, que é uma diplomacia dos entes subnacionais. Tradicionalmente, quem faz relações internacionais é a esfera Federal, não a estadual. Ocorre que por conta desses fatores, o Governo Federal deixou uma lacuna que tem que ser preenchida de algum modo. Desde o início da pandemia procuramos compensar isso. Isso se deu com os respiradores, por exemplo, e com insumos de um modo geral. Agora todos nós estamos procurando saídas que complementem o programa nacional [de imunização]. Mas, até agora o mercado está realmente muito difícil. Os países produtores de insumos e vacina estão priorizando as suas próprias nações. Não vislumbro que consigamos, a curto prazo, vacinas por vias próprias. Não descartamos nenhuma vacina. Temos dialogado muito com a Pfizer também, mas na medida em que o Governo brasileiro não se interessou pelas vacinas da Pfizer, isso dificultou o acesso dos Estados. E esse foi um dos grandes erros do Governo Federal: ele deveria ter ao menos oferecido aos Estados. Eu teria comprado uma parte, outros também. E hoje nós teríamos uma conjugação de esforços entre a esfera federal e estadual.

P. O fim do auxílio emergencial para atenuar os efeitos da pandemia é outro problema grave. Agora toda a pressão recairá sobre os Estados e municípios. Como enfrentará essa situação?

R. É um problema muito profundo. Além de a probreza extrema se configurar ainda mais nitidamente, temos também o fato de que pessoas serão excluídas do mercado de consumo e isso repercute na criação de empregos. É um erro monumental terminar o auxílio emergencial. Se ele foi criado para mitigar os efeitos da pandemia e ela continua tão viva quanto está, não há razão material para extingui-lo. Acredito que a responsabilidade fiscal não pode caminhar separada da responsabilidade social. São dois pilares de um bom Governo. Só existe equilíbrio fiscal quando existem também compromissos sociais, pois isso explode de algum jeito, inclusive do ponto de vista fiscal. Se as pessoas não comem, elas adoecem. Você tira a despesa do auxílio emergencial e objetivamente joga em outras políticas públicas, como o próprio sistema de saúde. O certo seria prorrogar a ajuda até meados deste ano, quando acredito que veremos os efeitos da vacinação. Mas temos que procurar, de algum modo, diminuir o desastre. Não tenho um Banco Central, não emito moeda, não posso contrair dívida, então a margem de manobra fiscal é muito menor. Tenho procurado adotar políticas para determinados públicos. Implementamos um auxílio para os catadores de resíduos sólidos, desde abril distribuímos mais de 300.000 cestas básicas para famílias e vou lançar um cheque de 600 reais [pagamento único] para que algumas famílias possam comprar produtos para permitir algum tipo de consumo, para ajudar o comércio. E fizemos um plano de obras públicas de 559 milhões de reais. São ações de reduções de danos.

P. Como presidente do consórcio de governadores da Amazônia legal o senhor tem medo que Biden faça pressão comercial para que o Brasil mude sua política ambiental?

R. É um risco. Temos uma preocupação global justa. Mas há também outros interesses que se manifestam e que se aproveitam da temática ambiental. Sabemos que a agricultura brasileira enfrenta dificuldades desde que o Bolsonaro assumiu porque ele liberou geral na questão ambiental, chancelou políticas de desmatamento e de queimadas ilegais. No cenário internacional, os concorrentes do Brasil podem querer se aproveitar. Isso tudo se junta com o isolamento do Brasil, um país que não tem hoje alianças. E isso compõe um cenário de muita fragilidade. Na esfera internacional, mais importante do que punir o Brasil é fortalecer os esforços de quem quer proteger a Amazônia, por exemplo, o consórcio de governadores da Amazônia, que tem uma posição diferente daquela do Governo Federal. Há muito pluralismo político-partidário no consórcio, mas todos concordam que é negativa para o Brasil essa ideia de que não existe lei ou controle na Amazônia. Os grandes produtores do Mato Grosso, que faz parte da Amazônia Legal, sabem que o risco de sanções internacionais é grave. Biden falou de um fundo de 20 bilhões de dólares. Ótimo. Quer constituir um fundo internacional, que envolva, inclusive, capitais privados? O consórcio tem todo interesse nisso. Esse fundo poderia servir para o pagamento de serviços ambientais porque isso vai viabilizar que comunidades sejam financiadas, que se ofereça práticas alternativas para que as pessoas vivam sem devastar a floresta.

P. Será possível forjar uma frente ampla de oposição a Bolsonaro para as eleições presidenciais de 2022?

R. Acredito que num primeiro momento teremos uma ou duas candidaturas mais para a esquerda, e candidaturas mais a centro-direita. Estamos vivendo um processo interessante que é a eleição da Mesa da Câmara dos Deputados em que se formou uma frente ampla em torno de Baleia (Rossi), que é do MDB, de centro-direita, mas que praticamente toda a esquerda está apoiando. Isso sinaliza um momento diferente. Há dois anos, na eleição da Mesa da Câmara, apenas nosso partido na esquerda apoiou Rodrigo Maia. E fomos muito criticados. A história mostrou que estávamos certos porque Maia, que não é da esquerda, foi muito importante na contenção dos intuitos golpistas e ditatoriais de Bolsonaro. É um sinal positivo de que mesmo que no primeiro turno você não tenha uma união ampla, no segundo é possível. É uma mudança qualitativa importante. Todos em torno da compreensão de que o Brasil, a Amazônia, não aguenta mais quatro de Bolsonaro.

P. O que o senhor tem de comunista?

R. É claro que o conceito de comunismo e socialismo não é o mesmo do século XIX. O mundo não é mais o mesmo e a temática do trabalho é diferente. Costumo dizer no PCdoB que o símbolo da foice e do martelo não expressa mais o mundo do trabalho. Não se tem mais uma classe operária como se imaginava no século XIX porque se tem uma economia de outro feitio. O fator de distinção [da esquerda] é como você lida com a desigualdade. Não se pode tratar a desigualdade como algo inevitável, natural. Por isso me considero de esquerda, porque sou um militante contra as injustiças sociais e acredito que o papel do Estado e das políticas públicas é insubstituível para corrigir uma tendência do mercado de concentração de riqueza na mão de poucos. Não é eliminar o mercado. E essa é outra distinção importante do nosso pensamento em relação à esquerda clássica.


Affonso Celso Pastore: O grito do silêncio

O dano causado pelo governo continuará a se manifestar através do pífio desempenho da economia

É compreensível que parte do setor privado evite criticar publicamente o governo, mas seu silêncio não significa aprovação: os preços dos ativos gritam por eles. Ao longo de 2020, a piora da situação fiscal decorrente da péssima reação do governo à pandemia provocou um crescimento sensível dos prêmios de risco, destacando-se a depreciação do real, que, após uma pausa no final do ano, prosseguiu recentemente com acentuada volatilidade. Embora poucos acreditassem que Bolsonaro pudesse reconhecer seus erros, e passasse a exercer a Presidência com uma competência nunca demonstrada, muitos apostavam que a liquidez internacional levaria à valorização do real, reduzindo a pressão sobre a inflação. Com isso, o Banco Central, que mantém uma elevada credibilidade, talvez pudesse retardar um pouco o início da inevitável normalização monetária, fazendo o que está ao seu alcance para ajudar na recuperação da economia. 

É possível que a política fiscal expansionista de Biden venha a reforçar o enfraquecimento do dólar, mas este já vem ocorrendo significativamente desde maio de 2020, quando teve início uma política monetária com níveis recordes de estímulos. Foi em maio que o Federal Reserve derrubou a taxa dos Fed funds para 0,25% ao ano (o seu zero bound), foi em maio que comprou mais de US$ 2,5 trilhões de treasuries, que é perto de 2 vezes o total de ativos financeiros comprado durante o QE da crise de 2008, e não por acaso foi em maio que o dólar começou a se enfraquecer. Se a liquidez internacional fosse decisiva para valorizar o real, a partir de maio este teria de seguir a trajetória da mediana de uma amostra de 20 países emergentes, que se valorizou acompanhando de perto o enfraquecimento do dólar. Em 2020 e no início de 2021, o comportamento do real não tem nada a ver com o enfraquecimento do dólar. É explicado apenas por causas domésticas. 

O setor privado nunca teve ilusões a respeito de Bolsonaro, mas agarrava-se a uma narrativa “construtiva”. A existência de mais de uma vacina com eficácia comprovada levaria a uma recuperação já em 2021, melhorando o mercado de trabalho, e o desembolso da “poupança precaucional” (ou circunstancial) neutralizaria a contração vinda do “despenhadeiro fiscal”, parte do qual era devida ao fim da ajuda emergencial. Mas, para ser “construtiva”, a narrativa tinha de subestimar a incompetência do governo.

Foram patéticos os lances de ópera bufa na busca desesperada pela obtenção de algumas vacinas vindas da Índia com o único objetivo de apressar a cerimônia de início da vacinação, enquanto o governo se omitia em enviar o oxigênio que minorasse a tragédia de Manaus. Mas Bolsonaro não estava interessado na vacinação e no sofrimento dos atingidos pela pandemia, e, sim, em iniciar a vacinação antes de Doria, em São Paulo. O que estava em jogo não era a solução do problema sanitário, e, sim, o aumento de seu cacife na disputa para 2022. 

Como reagirá o governo à queda da popularidade, à desaceleração do crescimento econômico e ao risco de abertura de um processo de impeachment? Especialistas afirmam ser difícil a sua aprovação diante dos 30% de apoio mantidos pelo presidente. Mas lembro que estes 30% não são uma constante da natureza, e que juristas de renome já alinharam abundantes razões para a abertura do processo de impeachment.

A perda de popularidade e a piora do estado da economia não deixarão inertes nem o governo e nem o Centrão. A este interessa que Bolsonaro continue presidente, não porque seja bom para o Brasil, mas por lhe garantir a ocupação de ministérios e outras benesses do governo. Contudo, é difícil acreditar que sejam aprovadas reformas impopulares que contrariem interesses de grupos políticos, inclusive os do próprio Centrão. O mais provável é que seja enviada ao Congresso uma nova emenda emergencial permitindo o aumento de gastos que não serão computados para o cálculo do teto, que por isso será cumprido. Mas diante do desastroso desempenho do governo, não posso sonhar que imporá as necessárias medidas compensatórias que levem à consolidação fiscal, com a qual nunca se comprometeu de fato.

O dano causado pelo governo continuará a se manifestar através do pífio desempenho da economia e dos preços dos ativos, sobretudo da taxa cambial. Mas a contagem regressiva para a reeleição já está correndo, e as reformas necessárias, mas impopulares, ficam cada vez mais distantes, aumentando a cada dia o custo da complacência com o governo atual.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados. 


Roberto Romano: Palácio e picadeiro, incontinências de Bolsonaro

Se o líder pensa com os intestinos e não domina ódios pessoais, perde acatamento político

Das cenas grotescas protagonizadas pelo presidente Jair Bolsonaro, a que foi exibida no último dia 27 de janeiro é das mais repulsivas. Cercado por tietes, ele exibiu todo o ódio à imprensa. A causa do destempero encontra-se na denúncia sobre os estranhos gastos do Executivo federal com alimentos. Um estadista responderia com números e documentos. Mas, ao proferir, sorrindo, vocábulos pornográficos, o governante recebeu ovações de arruaceiros e chaleiras. Tal vitupério exige processo judicial por indecente uso do cargo. Frases que no pior bordel são evitadas, nos lábios de um presidente causam asco.

O “mito” não entenderá a citação abaixo, pois sua força cognitiva é pequena. Mas entre ministros, políticos que a ele se aliam e antigos apoiadores talvez exista algum saber. A eles me dirijo. Ao discutir a governabilidade, diz Spinoza: “A república não pode fazer com que os homens (...) respeitem o que gera riso ou náusea. (...) Para garantir o poder é preciso guardar as causas do medo e do respeito, caso oposto não há mais um Estado. É impossível para os que operam o mando político (...) bancar o palhaço, violar ou desprezar abertamente as leis por eles mesmos estabelecidas, pois assim eles perdem a majestade e mudam o medo em indignação e o estado civil em estado de guerra” (Tratado Político). Tais enunciados vêm de Maquiavel, pensador das práticas que permitem manter o poderio civil.

Repito: o presidente nada compreende de semelhantes teses. Mas quem negou sua utilidade perdeu cargos, para não mencionar a cabeça. Assim foi com Carlos I da Inglaterra e Luís XVI na França. Sempre chega a vez de quem imagina a si mesmo como impune e infenso às leis.

O decoro na fala e na postura corporal integra toda autoridade política, jurídica, religiosa, militar. Menciono outro escrito que certamente não será compreendido pelo sr. Jair Bolsonaro e seus marombeiros. Trata-se de Hannah Arendt: “Se for preciso verdadeiramente definir a autoridade, deve-se fazê-lo opondo-a ao mesmo tempo ao constrangimento pela força e à persuasão por argumentos”. No setor público ou privado cada um reconhece a superior hierarquia de quem ostenta autoridade. Não é pelo vezo de prender ou censurar, perseguir ou caluniar aos berros os oponentes que alguém consegue respeito público.

Dito de outro modo: se você precisa gritar para que lhe obedeçam, sua autoridade não existe. Inteligência, decoro, respeito à hierarquia, autoridade: um estadista pode receber da vida doses desiguais desses elementos. Ele compensa a fraqueza de um com a força de outro. Mas o dirigente que enxovalha o seu cargo não tem autoridade, só lhe cabe o título atribuído por Spinoza: palhaço.

Todo clown possui dupla face: a risível e a trágica. A primeira é exibida a cada novo dia pelo sr. Jair Bolsonaro. A trágica surge em decisões imprudentes e impudentes durante a pandemia. Tantas sandices comete o “mito” – e aí vai um alerta aos militares responsáveis pela força física estatal – que podemos temer: a indignação diante do descalabro pode “mudar o estado civil em estado de guerra”.

Aliás, são hábitos do líder a mão armada e o incentivo aos instrumentos da morte que impulsionam fraturas civis. Junto vem o boicote pérfido a vacinas como a Coronavac – esperanças de vida – por mesquinhos alvos políticos. A teoria infame de Carl Schmitt é praticada por ele: a política como forma de gerar o inimigo. E assim são corroídos os elos que garantem a união interna do Estado.

Recordo o dito usado por João de Salisbury (Policraticus) sobre governantes desprovidos de saber. Rex illiteratus quasi asinus coronatus est (um rei iletrado é quase um asno coroado). Para governar urge mover conceitos políticos, militares, filosóficos, jurídicos e outros. A edificação do Estado moderno se norteia pelo preparo do governante. Erasmo publicou um tratado sobre o tema, Institutio Principis Christiani. Ele cita Salisbury: “Liberdade real e virtude só podem ser obtidas onde existe a liberdade de palavra. O bom príncipe do bom Estado deve aceitar pacientemente as palavras livres, quaisquer que elas sejam”. Os turpilóquios de Bolsonaro contra a imprensa ameaçam o verbo independente. Erasmo adverte contra os aduladores. Na educação do príncipe o cavalo ensina a governar, pois não aceita violência e recusa imperícia ou lisonja. O sáfaro que ignora tais peculiaridades equinas vai ao chão. Aduladores, como os do espetáculo obsceno indicado no início deste artigo, lambem botas do poderoso ocasional. Se ele perde força, as línguas de aluguel procuram outra fonte de poder.

Gabriel Naudé, autor das Considerações Políticas Sobre os Golpes de Estado (1640), louva o saber do governante e recorda o dito de Luís XI: “Quem não sabe dissimular não sabe governar”. Se o líder pensa com os intestinos, em vez do cérebro, e não domina ódios pessoais, perde acatamento político.

Os destemperos de Jair Bolsonaro evidenciam carência de autoridade, decoro, saber. Ele quer os poderes do Legislativo e do Judiciário. O lugar que lhe cabe, no entanto, não é no palácio, mas na arena ou picadeiro.

*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)


Eliane Cantanhêde: Com o Congresso no bolso

Bolsonaro constrói os pilares do governo sobre os escombros de suas promessas em 2018

Eleições e jogos de futebol não se ganham de véspera, mas, pelo andar da carruagem, dos cargos e emendas extras, os dois grandes vencedores na disputa de amanhã pelo comando da Câmara e Senado serão o presidente Jair Bolsonaro e o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). O grande derrotado tende a ser o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), que teve importante papel na longa presidência da Câmara, mas tropeçou na reta final.

Assim como os militares aderiram à velha boquinha e à subserviência por conveniência que tanto criticavam nos políticos, Bolsonaro mergulhou de cabeça na velha política, na compra de votos, no toma lá dá cá, no Centrão e até nas mordomias que estufava o peito para condenar. Era tudo de boca para fora. Agora cai o pano, caem os pruridos, os escrúpulos.

Na mesma semana em que o governo anunciou o maior rombo das contas públicas da história, com um déficit de R$ 743,1 bilhões, ou 10% do PIB, o Estadão nos informa que o Planalto despejou R$ 3 bilhões em recursos “extras” – além das emendas parlamentares tradicionais – para 250 deputados e 35 senadores. Não é pura coincidência ser justamente agora, às vésperas das eleições no Congresso.

Dinheiro para prorrogar o auxílio emergencial não há e fórmulas para ampliar a abrangência e o valor do Bolsa Família ainda não estão no ar, mas o site Metrópoles revelou gastos de R$ 2,2 milhões com chicletes e R$ 15,6 milhões com leite condensado, para dar “energia” aos soldados. Bolsonaro, sendo Bolsonaro, reagiu atacando a imprensa e contaminando o ar com palavrões. E se fosse no governo Lula?

É sobre os escombros de suas promessas de 2018 que o presidente vai construindo a sustentação de seu governo, de suas ideias, projetos e pautas demolidoras. Foi assim que ele moldou uma vitória e tanto no Congresso, onde desfilou por 28 anos. A gente achava que não tinha aprendido nada, mas aprendeu tudo direitinho.

Com a faca e o queijo na mão, mais chiclete e leite condensado à vontade, Bolsonaro usa cargos e acena com ministérios para satisfazer a gula da turma. É preciso explicar: o Centrão está louco pelas vagas, mas Bolsonaro está louco é para cooptar parte do DEM (o próprio Alcolumbre?), MDB e PSDB para o governo. Seu objetivo é rachar o centro. A esquerda racha sozinha.

No Senado, Alcolumbre escolheu o favorito Rodrigo Pacheco (DEM-MG), o levou de bandeja para Bolsonaro e viabilizou sua vitória, enquanto o MDB fazia a lambança de sempre e a senadora Simone Tebet (MDB-MS) achava possível ganhar com uma campanha de ideias, princípios e juras de independência. Um sonho de verão. 

Na Câmara, o líder do Centrão Arthur Lira (PP-AL) é favorito e única chance de mudança de última hora é que, com nove candidatos, três têm potencial para ter uns votinhos, forçar o segundo turno e se unir em torno de Baleia Rossi (MDB-S). Outro sonho de verão.

Bolsonaro perdeu a guerra da primeira vacina e da primeira foto para João Doria, mas ri à toa diante da perspectiva de vitória para Rodrigo Maia, candidato a ser o grande derrotado amanhã. Uma pena. Em três mandatos consecutivos na Presidência da Câmara, ele se superou, galgou vários degraus na hierarquia política e assumiu a cara e a voz da oposição a Bolsonaro.

Sempre pode haver surpresas (vide Severino Cavalcanti em 2005), mas Maia blefou com a reeleição no STF, demorou a definir um candidato, superestimou suas armas diante do arsenal do Planalto e, assim, ameaçou sua posição de ponte entre líderes e partidos de centro para 2022.

Ele, porém, tem 50 anos e oxigênio político nesse deserto de homens e ideias. O mundo dá voltas, a política é como nuvem e o Brasil precisa, mais do que leite condensado e chiclete, de seus principais quadros para enfrentar o que está aí.


Arminio Fraga: Vamos insistir?

A boiada está passando e nós estamos, sim, correndo risco

Esbarrei recentemente no livro “A Bahia do Rio de Janeiro – Sua História e Descripção de suas Riquezas”, por Augusto Fausto de Souza, publicado em 1882.

Logo de cara, o autor nos brinda com umas linhas do poeta Velho da Silva (1880): “Guanabara gentil, formosa e bela, remanso côr de anil, de alvas espumas”.

Listando fatos do século 16, o autor menciona (pág. 28) “o estabelecimento da Armação para a pesca das baleias, que infestavam a bahia”.

Mais adiante (pág. 157), citando o “celebre capitão inglez Cook (1768)”: “O Rio de Janeiro é uma optima estação para a escala dos navios; a bahia é segura e commoda, o clima é bom, ainda que quente, e eu nunca vi, como ahi, tanta variedade de peixes, para cuja pesca o sitio é muito apropriado”.

Passados quase 150 anos, cá estamos, natureza destruída pelo homem, torcendo para que, com o novo marco legal do saneamento, seja possível a despoluição prometida para a Olimpíada. Imagino que em São Paulo a história do rio Tietê seja parecida e permita sonhos semelhantes. O exemplo do rio Tâmisa em Londres sugere que é possível. Seriam símbolos de uma virada maior.

Será que vamos permitir semelhante degradação da Amazônia? A ciência nos informa que estamos próximos de um “tipping point” a partir do qual a floresta não mais se regenerará. As consequências seriam bem mais graves do que os desastres das águas do Sudeste. É inaceitável correr este risco, suicida mesmo. Mas a boiada está passando e estamos, sim, correndo risco.

O risco ambiental é uma enorme ameaça que nos assola, mas nem de longe a única. O Brasil vive um período prolongado de agressões frequentes à imprensa, balas e armas desmarcadas, descaso pela imagem do país, e muito mais. O caso da saúde talvez seja o mais dramático, pois envolve desprezo escancarado pela ciência e suas recomendações, falta de planejamento e, portanto, descaso com a vida e enormes e desnecessários custos sociais e econômicos. Não são fatos aleatórios —são sintomas de um mesmo fenômeno, de uma mesma origem.

Sem minimizar o impacto da devastadora pandemia, parece-me claro que carecemos de um rumo.

A política partidária é fragmentada, despida de posições programáticas claras, sem visões e propostas abrangentes para submeter ao eleitorado. Sim, o Congresso tem dado respostas importantes aqui e ali, mas tipicamente mais reagindo a problemas do que criando soluções.

A agenda econômica cantada liberal enfrenta cada vez mais dificuldades de desenho e execução, interditada em boa parte pelo próprio mandatário máximo da República. A recessão do ano passado foi menor do que se previa, mas a situação fiscal permanece insustentável e a social, precária.

No que tange às agendas de costumes e de combate à desigualdade, o quadro é ainda mais desolador, pois tem havido retrocesso.

Diante das dificuldades patentes neste início de 2021, o tema do impeachment entrou no radar, com manifestações abertas de atores de diferentes setores.

Inegavelmente não é bom sinal que um país esteja a toda hora “impichando” seu presidente. Por outro lado, me parece bem mais grave que um país conviva com crimes de responsabilidade nos altos escalões de sua hierarquia. Intolerável mesmo.

Sem essa intolerância fica impossível abraçar o Estado de Direito e o império da lei para todos, condição necessária para o pleno desenvolvimento de uma nação.

Na prática, a imputação de responsabilidade nem sempre é clara. Há crimes e crimes, com diferentes consequências. Cabe ao Congresso examinar cada caso em seu contexto, avaliar se abre o processo e, em caso afirmativo, ponderar sobre as consequências e decidir.

Posso apenas dizer que, do ponto de vista econômico, social e institucional, os custos de mais do mesmo são imensos e insustentáveis.