vacinação
Ricardo Noblat: Se gritar pegar Centrão, não fica um meu irmão!
Aliança para sempre enquanto dure
Jair Bolsonaro já pagou parte da dívida que tinha com o Centrão ao liberar mais de 3 bilhões de reais para obras em Estados e municípios indicados por deputados e senadores que elegeram Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para presidir a Câmara e o Senado pelos próximos dois anos.
Se depender de auxiliares de Bolsonaro, porém, a outra parte da dívida – a da entrega de ministérios e outros cargos importantes da administração pública – será resgatada em suaves prestações. É para poder avaliar melhor o quanto o Centrão de fato lhe será fiel. Portanto, nada de reforma ministerial ampla.
O recomendável é que ela aconteça a conta gotas, na medida em que o governo consiga aprovar no Congresso projetos do seu interesse. Eles são muitos, e esse é um dos problemas que Bolsonaro enfrenta porque ele nunca sabe quais deveriam ser prioritários, e emperra na hora de bancá-los e de ir à luta.
Todo cuidado com o Centrão, pois, é pouco. Para o Centrão, a recíproca também é verdadeira: todo cuidado com Bolsonaro é pouco. Um não confia no outro e tem motivos de sobra para não confiar. Como candidato, Bolsonaro desancou o Centrão e disse que jamais governaria na base do toma-lá-dá-cá.
Quando começou a dar foi disfarçadamente para não chocar nem ser malhado por seus seguidores que haviam acreditado em sua palavra. E, queixa-se o Centrão, embora ultimamente tenha sido mais generoso na distribuição de cargos, posições e dinheiro, ele ainda está muito longe de entregar tudo que já foi empenhado.
Quem aderiu a quem – o Centrão a Bolsonaro ou o contrário? A discussão não faz sentido. O Centrão está onde sempre esteve – na antessala de qualquer governo que careça de sua prestimosa ajuda. Tem sido assim desde que ele nasceu durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1988. E assim será para todo o sempre.
Bolsonaro é filhote do Centrão. Enquanto deputado federal, passou por sete partidos do Centrão e aprendeu com eles o que pôde. Ficou sem partido quando abandonou o PSL pelo qual se elegeu – queria controlá-lo junto com os seus filhos e acabou perdendo a parada. Quis criar um novo partido para chamar de seu – perdeu.
Uma vez que perdeu a parada de intimidar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal para tocar o país como um governante autoritário, restou-lhe dar meia volta e pedir socorro ao Centrão. Socorro para salvá-lo de um pedido de impeachment, salvar os filhos enrascados com a Justiça e salvar o sonho da reeleição.
Não foram Lira e Pacheco que pegaram carona com Bolsonaro para se eleger. Foi Bolsonaro que pegou carona com eles para sobreviver. Bolsonaro elogiou Baleia Rossi (MDB-SP), adversário de Lira, que sempre votou alinhado com o governo, mas afirmou que não o apoiaria porque ele era apoiado pela esquerda.
Ora, ora, ora… A esquerda apoiou Pacheco para presidente do Senado e Bolsonaro não deu um pio. Lira apoiou Lula, apoiou Dilma, apoiou Temer e agora diz que apoiará Bolsonaro. Amor que será eterno enquanto dure e for conveniente.
A Câmara faz por merecer Arthur Lira e Bia Kicis
Uma coisa puxa a outra
Alto lá! Por que a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) não pode presidir a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara? Só por que ela é bolsonarista de raiz?
Só por que ela é investigada pelo Supremo Tribunal Federal no inquérito que apura a distribuição de fake news e o financiamento de movimentos hostis à democracia?
Só por que ela já postou vídeos nas redes sociais ensinando a não usar máscaras contra a Covid-19? Só por que em dezembro último ela incitou os amazonenses a romperem o isolamento social?
A Comissão é a mais importante da Câmara. Cabe a ela analisar a legalidade e a constitucionalidade de todos os projetos que ali chegarem – entre eles, pedidos de impeachment.
É verdade que a presidência da Comissão sempre foi reservada para políticos de renome, de passado ilibado e com grande conhecimento jurídico. Ou então para ex-presidentes da Câmara.
Kicis não atende a tais pré-requisitos. Mas, e daí? A Câmara também não é mais o que foi até o final dos anos 90. Há seis anos, seu presidente, Eduardo Cunha (MDB-RJ), foi cassado e preso.
De resto, se o deputado Arthur Lira (PP-AL) pode presidir a Câmara, por que Kicis não pode presidir a Comissão? O passado de Lira depõe mais contra ele do que o de Kicis contra ela.
Só no Supremo Tribunal Federal, Lira responde a cinco inquéritos. Três sobre a eventual prática de corrupção ativa e passiva – incluindo aquele onde se tornou réu.
O quarto inquérito investiga crime de formação de quadrilha. No quinto, ele foi denunciado por crime de lavagem de dinheiro.
Há ainda uma investigação no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5). A acusação, neste caso, é de crime contra a administração pública.
Lira é investigado no Tribunal de Justiça de Alagoas por crimes contra a honra. E tem contra si, ainda, uma acusação de agressão contra sua ex-mulher.
Presidente da Câmara é o segundo na linha de sucessão do presidente da República. Na ausência de Bolsonaro e do vice-presidente Hamilton Mourão, Lira os substituiria.
Deverá ser impedido de fazê-lo porque é réu em ação penal no Supremo. Quem substituirá Bolsonaro e Mourão é o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
Se a Câmara entende que está em boas mãos com Lira, por que não estará também com Kicis na presidência da Comissão? Os dois se merecem – e a Câmara merece os dois.
Elio Gaspari: O ocaso de Rodrigo Maia
Lira entrou em campo com um forró e uma canetada
Rodrigo Maia foi um bom presidente da Câmara e saiu da cadeira maior do que quando a ela chegou. Se não houvesse outro critério, três dos seus quatro antecessores passaram algumas noites na cadeia. Sofreu uma derrota amarga porque acreditou na própria mágica. Teve calma demais na partida e de menos na chegada. Seu candidato foi batido por Arthur Lira no primeiro turno.
Junto com o senador Davi Alcolumbre, Maia tentou uma reeleição inconstitucional e foi devorado pelo centrão, essa massa disforme de parlamentares, que já digeriu Dilma Rousseff e Fernando Collor, e agora mastiga Jair Bolsonaro.
Depois da maré eleitoral de 2018, que produziu o capitão e alguns jacarés, Maia preservou a autonomia do Parlamento. Naqueles dias estavam postas as cartas para uma aventura golpista com tinturas plebiscitárias. Passados dois anos, viu-se que as tais “bancadas temáticas” que formariam uma nova base parlamentar para o bolsonarismo eram conversa fiada.
Se o “posto Ipiranga” Paulo Guedes não conseguiu se entender com Maia, isso não se deveu às convicções do presidente da Câmara. Os desentendimentos vieram do caráter errático do Planalto e da dificuldade que Guedes mostrou em relação ao cumprimento das combinações que fazia.
De volta à planície, Maia poderá mostrar o vigor de suas ideias.
Ele conhece o Congresso e sabe que os protestos contra a liberação de verbas em troca de votos são choro de perdedor. Maia desafiou o Planalto, não conseguiu formar uma base de apoio e perdeu. Sofreu traições capazes de exasperar grandes políticos nordestinos. Perdeu para Arthur Lira, filho do senador Benedito de Lira. O novo presidente entrou em campo com um forró e uma canetada com a qual pretendia bloquear o acesso da oposição à Mesa Diretora. Com esse estilo, sua gestão promete.
Falando pouco antes da votação, Lira prometeu uma casa onde haja “menos eu e mais nós”. Nós queria dizer nós mesmo.
COVAS ZANGOU-SE
Tucano, quando sobe no salto alto, não desce nem para tomar banho. O prefeito Bruno Covas reelegeu-se, aumentou o próprio salário, retirou o benefício do transporte gratuito para os idosos e foi ao Maracanã ver o jogo do Palmeiras contra o Santos.
Criticado, disse que levou o filho para usufruir de “algumas horas inesquecíveis”. Podia ter visto o jogo pela televisão, mas quis ir ao Rio. Tudo bem, o doutor estava de licença depois de ter passado por sessões de radioterapia.
Covas subiu no salto quando atribuiu as críticas à “hipocrisia generalizada que virou nossa sociedade”. A sociedade brasileira não tem nada a ver com essa história. Nela há gente que talvez fosse ao Maracanã, se tivesse os meios. Falar mal do povo é coisa de quem não tem o que dizer.
Depois de ver Covas no estádio, o dono do restaurante Ponto Chic (berço do sanduíche bauru) resolveu descumprir a determinação que limitava o funcionamento de sua casa. Ele tem 110 funcionários, perdeu 30% do faturamento e não demitiu ninguém. Inesquecíveis são os baurus do Ponto Chic, e não podem ser comidos pela televisão.
Depois da rebelião do bauru o governador João Doria começou a admitir a reabertura dos restaurantes.
*Elio Gaspari é jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
Bernardo Mello Franco: Maia perdeu o bonde do impeachment
No último dia de reinado na Câmara, Rodrigo Maia ameaçou receber um dos 62 pedidos de impeachment que adormeciam em sua gaveta. A bravata gerou marola nas redes sociais, mas não chegou a assustar o governo. Aos ouvidos da classe política, soou apenas como um ato de desespero.
Maia teve diversas chances de frear a escalada autoritária do bolsonarismo. Ele viu o presidente tramar um autogolpe, estimular motins nas polícias e atiçar radicais que pregavam o fechamento do Congresso e do Supremo. Em vez de permitir a abertura de um processo de cassação, preferiu lavar as mãos e distribuir notas de repúdio.
Ao ser cobrado pela omissão, o deputado dizia não ver base jurídica para o impeachment. Crimes de responsabilidade não faltaram. Faltou coragem para enfrentar extremistas e contrariar agentes econômicos que lucram com o desgoverno.
No sábado, Maia engrossou a voz e acusou os bolsonaristas de adotar métodos do fascismo. Esses métodos estão em uso desde a campanha de 2018, quando o então presidenciável ameaçava fechar jornais e mandar adversários para a cadeia ou o exílio.
Sem a prisão de Fabrício Queiroz, o plano da quartelada poderia ter evoluído das palavras à ação. Bolsonaro foi contido pelo cerco judicial a seus filhos, não pela covardia do Legislativo.
Maia perdeu duas vezes o bonde do impeachment. Ele passou pela primeira vez entre março e abril de 2020, quando o capitão ejetou dois ministros da Saúde e virou alvo de panelaços diários. A inércia da Câmara permitiu que Bolsonaro continuasse a atuar a favor do vírus. Ele recuperou popularidade com o auxílio emergencial e conseguiu se equilibrar na cadeira.
O bonde voltou a passar no mês passado, quando ficou claro que o negacionismo federal deixou o país no fim da fila das vacinas. O deputado recebeu novos apelos para agir, mas estava mais preocupado em pedir votos para o aliado Baleia Rossi.
Ao vociferar no domingo, Maia já havia perdido o controle da eleição da Câmara. A abertura do impeachment era um imperativo ético, mas seria reduzida a um ato de vingança. Que seria anulado rapidamente por seu sucessor, ansioso para mostrar serviço ao Planalto.
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A frente ampla de Baleia Rossi encalhou na praia, mas produziu cenas inusitadas na eleição da Câmara.
Ex-líder do governo Bolsonaro, a deputada Joice Hasselmann foi aplaudida por deputados do PT ao chegar ao Congresso.
Eleita com um discurso feroz contra o ex-presidente Lula, ela rompeu com o Planalto e se aliou à esquerda na sucessão de Rodrigo Maia. Quase foi chamada de companheira.
Depois da recepção calorosa, Joice travou um animado bate-papo com a deputada Jandira Feghali, do PCdoB.
O tema da conversa foi a dieta que mudou a silhueta da ex-bolsonarista. Ela contou que perdeu 20 quilos em pouco mais de cinco meses.
Apesar das novas companhias, Joice se manteve fiel ao capitão em ao menos uma coisa. Ela chegou à Câmara sem máscara, e assim continuou ao confraternizar com os petistas.
Em tempo: no fim da noite, a deputada esqueceu o apoio a Baleia e participou da festa da vitória de Arthur Lira, o candidato do Planalto.
Zeina Latif: 'O liberalismo Viúva Porcina'
A política econômica no Brasil poucas vezes foi liberal em nossa história, menos ainda por convicção. O liberalismo só ganha ímpeto nas crises. Na atual, nem isso.
Historicamente, prevaleceu o nacional-desenvolvimentismo - mesmo quando não existia esse termo, do pós-guerra –, que defende a intervenção estatal para a promoção do desenvolvimento de economias atrasadas. Não há preocupação com o desequilíbrio fiscal e a política monetária é condicionada ao estímulo da economia.
Em vez de eliminar os problemas estruturais que obstruem o desenvolvimento, como a baixa qualificação da mão de obra e a insegurança jurídica, busca-se atalhos e privilegia-se alguns setores - em geral empresas ineficientes que não conseguem se tornar competitivas - em detrimento dos demais.
Enquanto isso, o liberalismo condena artificialismos e preconiza medidas horizontais, com resultados favoráveis também em países emergentes.
O fato é que a ação estatal fracassou. Não se trata de erros de implementação, como alguns argumentam, mas de concepção - como na “canetada” nas tarifas de energia em 2013. Políticas são renovadas mesmo quando não funcionam, como a Zona Franca de Manaus, que nem desenvolveu a região, nem preservou a floresta.
Erros de política econômica geralmente demoram para se materializar, como nos governos Geisel e Dilma, responsáveis pelas mais graves crises da nossa história. Isso dificulta a compreensão da sociedade, que muitas vezes hostiliza quem faz o ajuste. Este, por sua vez, não é lei da física; depende de convicção e liderança do presidente.
O liberalismo, por outro lado, não se apresenta satisfatoriamente à opinião pública como agenda republicana, do bem-comum.
Avalio que a fraqueza remonta à formação da intelectualidade ainda no Império, com predomínio dos bacharéis liberais da escola de direito de São Paulo. Na imprensa, na política e no serviço público, defendiam a liberdade para os negócios, mas se ajustaram ao patrimonialismo, como aponta Sérgio Adorno.
Os proprietários rurais defendiam o liberalismo de forma oportunista, pois demandavam proteção e ajuda estatal nos momentos críticos. Além disso, o pensamento liberal não acompanhou valores democráticos de igualdade. Como resultado, foi associado à elite conservadora.
A ditadura militar prejudicou bastante o liberalismo na opinião pública. A linha dura militar resgatou o nacional-desenvolvimentismo, depois das iniciativas liberais de Castello Branco, que combateu a inflação e conduziu reformas, como a criação do Banco Central com autonomia.
Com a crise aberta, o governo Figueiredo retomou a ortodoxia, que ficou associada ao autoritarismo. Mas ficou o saudosismo no nacional-desenvolvimentismo, ignorando o legado da década perdida dos anos 1980.
O governo Collor, com abertura comercial e privatização, tampouco contribuiu para reforçar o pensamento liberal, por conta do fracassado plano de estabilização.
FHC e Lula 1, por convicção ou pragmatismo, avançaram com políticas de cunho liberal, sob bombardeios. Escaldados, não apresentaram suas plataformas como sendo liberais, pela associação equivocada a entreguismo e elitismo.
O preconceito foi atenuado após o desastre de Dilma e com o caminho iniciado pelo impopular governo Temer, que compreendeu o momento. Bolsonaro, presidente eleito, desperdiça a oportunidade aberta.
Mais uma vez, monta-se um cenário de desmoralização do liberalismo. O governo se apresenta como liberal, mas não é. Pior, seu discurso está associado ao anticientificismo e a valores antidemocráticos, contaminando o debate público.
Não há avanços em abertura da economia, privatizações, redução de benefícios tributários e eliminação de privilégios do funcionalismo - temas que dependem de (inexistente) convicção e liderança do Executivo. Não se trata de bancar as eleições das presidências do Congresso.
A grave crise deveria fortalecer as reformas liberais, inclusive para se atender às demandas por recursos públicos sem ferir o compromisso com a disciplina fiscal. Não é ao que se assiste.
Somos um país de crenças estatizantes e com grupos organizados com capacidade de bloquear reformas. Liberalismo não é para os fracos. O governo pode estar comprometendo seu tardio e tímido avanço no debate público, podendo abrir espaço para retrocessos em momento crítico da economia brasileira.
Alberto Aggio e Marcus Oliveira: Política e utopia na América Latina
O filosofo italiano Remo Bodei (1938-2019) lembrava que, dentre os primeiros utopistas, como Tomás Morus ou Tommaso Campanella, a utopia era mobilizada como pedra de toque para julgar o presente, com a ressalva de que era algo inatingível. No final do século XVIII, ainda segundo Bodei, mais precisamente em 1770, Louis-Sébastien Mercier escreveu um romance intitulado “L’anno 2440”, no qual desloca o tema da perfeição para o futuro, imaginando que partindo de um presente imperfeito os homens poderiam chegar a um futuro perfeito.
Esse pensamento utopístico invadiu o discurso de todas as revoluções depois da Revolução Francesa de 1789. A ele se incorporaria a epopeia judaica na construção da utopia secular presente nos discursos dos revolucionários dos séculos XIX e XX: assim como Moisés vê a terra prometida de longe e morre antes de chegar ao deserto, os revolucionários sabiam que sua terra prometida dizia respeito às gerações futuras. Em suma, segundo Bodei, a utopia não é outra coisa senão uma aproximação progressiva a uma ideia de perfeição que pode nunca ser alcançada, mas que, de toda forma, deve continuar a ser perseguida quase como um “dever moral”.
Já o historiador alemão Reinhart Koselleck (1923-2006), buscou a experiência temporal característica da modernidade para construir a sua visão sobre a utopia. Para Koselleck, a modernidade é experimentada a partir de uma separação entre a experiência e a expectativa. Essa separação implica numa fratura entre o passado, considerado como elemento a ser superado, e o futuro, aquilo que se busca atingir como culminância do progresso ou da racionalidade. A revolução, nesses termos, figura como o momento ruptural responsável por produzir essa superação radical do passado, anunciando a construção do futuro imaginado e desejado.
Desde a conquista e a colonização, as ideias utópicas se entranharam na autoconsciência da América, particularmente na América Latina. A invenção da América, como demonstrou Edmundo O’Gorman (1905-1996), é acompanhada de uma libertação dos potenciais imaginativos europeus. Impulsionadas pela certeza da novidade inesperada, as nações europeias se lançaram ao Novo Mundo munidas de um imaginário fecundado pelas possibilidades do maravilhoso.
Todavia, essa dimensão imaginativa convive com os aspectos trágicos da história do Novo Mundo. Além dos inúmeros genocídios, a construção dos Estados latino-americanos carregou consigo, três séculos depois, as terríveis heranças coloniais. Nesse sentido, a criação da modernidade na América Latina apresenta feições diversas dos modelos clássicos europeus. As grandes transformações históricas ocorreram, em geral, em hipoteca com o passado.
Essa configuração moderna implica experiências temporais diversas. O presente, ao carregar os fardos do passado é, concomitantemente, a desilusão melancólica daquilo que poderia ter sido e a esperança que orienta a construção daquilo que deveria ser. Portanto, essa complexa trama de temporalidades, ao contrário de cancelar, impulsionou o desenvolvimento das utopias na América Latina. Compreendida como o espaço por excelência do vir a ser, buscou-se, por diversos caminhos, a construção do maravilhoso.
Durante o século XX, a Revolução Cubana de 1959 configurou-se no momento mais expressivo e simbólico desse pensamento utópico. Embrenhados nas matas da Sierra Maestra, os guerrilheiros cubanos acentuaram a persecução do caminho utópico da Nossa América, conferindo tons revolucionários ao pensamento de José Martí. Em seguida, disputando a orientação das esquerdas latino-americanas com a URSS, o modelo cubano produziu inúmeras cisões e estimulou o surgimento de grupos guerrilheiros pelo continente. Com isso, a gesta revolucionária cubana fincou raízes no pensamento e na historiografia do continente.
HAVANA, 1959
Ao se reforçar a utopia da revolução, os obstáculos para a elaboração de um reformismo democrático por parte das esquerdas se intensificaram. No Chile de Allende (1970-1973), o anúncio da possibilidade de construção do socialismo por uma via pacífica, democrática e institucional, conviveu com ambiguidades revolucionárias que contribuíram para minar as bases de legitimidade política de Allende. Evidentemente, não se trata de imputar culpa à Unidade Popular pelo autoritarismo de Pinochet, mas de marcar a incapacidade de constituição de uma determinada hegemonia no Chile.
Em virtude dos traumas e exílios gerados pelos autoritarismos, a democracia passou a assumir a centralidade da reflexão política sobre o continente, em detrimento da revolução. Contudo, essa aproximação em relação à democracia não cancelou os horizontes utópicos para a América Latina, de modo que as derrotas e os pesos do passado continuam impulsionando imagens utópicas presentes, por exemplo, no bolivarianismo de Hugo Cháves e Nicolás Maduro, bem como em inúmeras correntes político-ideológicas da esquerda latino-americana.
Num cenário mundial no qual se superou, de há muito, a lógica política dos “assaltantes do céu” e, objetivamente, a revolução deixou de ser o fiat do desenvolvimento histórico, como afirmou Luiz Werneck Vianna no já longínquo ano de 1996, como ainda colocar a utopia como referência maior do pensamento crítico latino-americano? Como pensar o futuro na América Latina para além das utopias? Em seus desdobramentos, essas expectativas utópicas, ao invés de auxiliar, criam obstáculos para a vivencia ativa e produtiva do tempo da política e da democracia. O desejo revolucionário de um futuro redentor, paradoxalmente, comprime ou mesmo oprime a própria modernidade que lhe deu ensejo. Em razão disso, o regime político característico da modernidade, fundado na indeterminação dos espaços de poder, estaria de antemão preenchido, impedindo a expressão democrática dos sujeitos em busca de necessários consensos progressivos. Na América Latina, de forma geral, utopia e revolução foram acionados comumente como antagônicos à modernidade e à democracia.
O questionamento às utopias não significa adesão ao presentismo ou mesmo a uma determinada visão liberal que advoga o fim da história. Ao contrário, trata-se de pensar o futuro a partir da chave no qual a política democrática seja o caminho para a definição daquilo que se quer transformar ou conservar na sociedade.
*Publicado em parceria com o Estado da Arte: https://estadodaarte.estadao.com.br/utopias-al-horizontes-eda/
Vera Magalhães: Vida estraga-prazeres
Mais de 300 pessoas trocaram perdigotos na covidfest da vitória de Arthur Lira. Jair Bolsonaro e os filhos se refestelaram de comemorar nas redes sociais. O general Luiz Ramos teve um momento “vão ter de me engolir” pelo sucesso da articulação política da qual participou. Mas, passada a ressaca da eleição das Mesas do Congresso, a vida real bate à porta do governo e do Legislativo. E ela, sabemos, não anda nada festiva.
O primeiro para quem essa ficha caiu foi Paulo Guedes. Coube ao ministro da Economia ser o estraga-prazeres e lembrar um pequeno detalhe: o Orçamento de 2021 ainda não foi votado pelos senhores forrozeiros.
Sem essa providência básica, não há como falar em novo auxílio emergencial, a promessa mais repetida de Lira e Rodrigo Pacheco, levada pelos festeiros parlamentares às suas bases — as mesmas que eles ignoraram solenemente ao, no escurinho da urna, dar o controle das duas Casas do Parlamento a um presidente que já foi eleito internacionalmente como o pior do planeta no enfrentamento da pandemia.
Não foi só Guedes a jogar água no chope dos deputados e senadores. O novo presidente do Itaú, Milton Maluhy Filho, desafiou o coro dos contentes com os descalabros cometidos por Bolsonaro e Pazuello ao longo de um ano de transmissão descontrolada do novo coronavírus no Brasil, com mais de 225 mil vidas ceifadas, para dizer o óbvio: um atraso de seis meses no Programa Nacional de Imunização reduzirá à metade a previsão de crescimento de 4% para o PIB deste ano feita pelo banco.
O atraso já está dado. A vacinação acontece literalmente a conta-gotas, com doses contadas da CoronaVac, que Bolsonaro e Pazuello sabotaram enquanto puderam, e do imunizante de Oxford-AstraZeneca, em quantidade igualmente racionada.
Sem vacina e, portanto, sem retomada da economia, sem empregos e sem crescimento, o governo não terá outra saída a não ser reeditar alguma forma de auxílio emergencial, como pressiona o bloco de Lira — e teme Guedes.
Vem aí, portanto, um cabo de guerra no Congresso, que até ontem estava em festa, e o abraço da vitória do novo comando do Legislativo nos ocupantes do Planalto já é passado diante da pressão que vai começar.
De um lado, os parlamentares querem dar satisfação a seus eleitores a respeito de quando haverá vacina e de quando poderão retomar suas atividades, algo impossível com o ritmo de contágio e morte a que continuamos a assistir (e para que eventos irresponsáveis como a comemoração de Lira só contribuem).
De outro, os nobres congressistas querem ver entregues as emendas e os cargos prometidos. E também não há dinheiro suficiente para pagar essa fatura.
Diante de uma pauta assim congestionada pelas emergências da pandemia, da economia real e do fisiologismo, só os incautos da Faria Lima ainda podem acreditar que sairão dos escaninhos no curto prazo projetos como reforma tributária, reforma administrativa e privatizações.
Os financistas e empresários podem esperar sentados, como vêm fazendo enquanto assistem omissos e complacentes a Bolsonaro cometer crimes sucessivos contra a saúde pública e a democracia.
Também é muito etéreo e remoto traçar cenários para 2022 com base só no resultado do xadrez congressual, quando a vida nua e crua bate à porta dos políticos acompanhada pela sombra da morte. Quem me disse isso quando questionei a respeito do saldo da eleição das Mesas para a sucessão foi Ciro Gomes, que está acertadamente mais de olho nos indicadores do mundo real que nos conchavos entre um cada vez mais enfraquecido Bolsonaro e um Legislativo com apetite pantagruélico. Eis um encontro que nunca resulta bom para os governantes: o da fome dos políticos com a geladeira vazia do Orçamento e com a gritaria das ruas.
El País: Arthur Lira poderá fazer área ambiental ter saudades de 2020
Faltou ao caos ambiental brasileiro no ano passado um ingrediente básico tradicional: o Congresso
Sim, é verdade que tivemos um terço do Pantanal virando cinza, o maior desmatamento na Amazônia em 12 anos, a “boiada” passando, o ministro do Meio Ambiente desmontando a própria pasta, o combate à mudança do clima extinto, o Ibama manietado e o vice-presidente da República ameaçando controlar “100% das ONGs”. Mas faltou ao caos ambiental brasileiro no ano passado um ingrediente básico tradicional: o Congresso.
Todo o desastre que vimos, que não foi pequeno, resultou do Executivo operando praticamente sozinho. Isso não é normal por aqui. Em geral o Parlamento, dominado pela bancada ruralista, é a fonte da maioria dos retrocessos ambientais. Em 2020, dois fatores impediram que isso ocorresse. Um foi a pandemia, que interrompeu o trabalho das comissões e pôs no caminho de suas excelências coisas mais urgentes do que destruir o futuro do Brasil e ampliar nosso isolamento internacional. O outro foi Rodrigo Maia.
Apesar de todas as críticas que possam ser feitas a Maia (cole a sua favorita aqui), o deputado evitou que a caixa de Pandora ambiental fosse escancarada por seus colegas e pelo Palácio do Planalto. Maia engavetou o projeto sociopata de Bolsonaro de abrir terras indígenas a todo tipo de exploração comercial; deixou caducar na undécima hora a MP da Grilagem; e manteve em banho-maria até mesmo uma proposta de seu interesse, o desmonte do licenciamento ambiental. De forma inédita, o Congresso virou um amortecedor de choques ambientais produzidos pelo Executivo.
Com a retomada das atividades parlamentares, a demanda reprimida por favorecer lobbies de poluidores, avançar sobre terras públicas e eliminar regulações emergiria em 2021 de qualquer forma, principalmente via comissões ―mesmo com Baleia Rossi, Luiza Erundina ou o papa Francisco na presidência da Câmara. A vitória acachapante de Arthur Lira (PP-AL) nesta segunda, porém, pode colocar as ameaças e os retrocessos num outro patamar. Caso Lira tenha como uma de suas prioridades a agenda antiambiental costurada entre ruralistas e Bolsonaro, veremos no Congresso uma enxurrada histórica de tentativas de aprovação de retrocessos ambientais. Nesse cenário, o inferno é o limite.
Só para refrescar a memória: a última atuação de Arthur Lira no plenário num tema ambiental, no ano passado, foi uma articulação para aprovar a Medida Provisória que liberava a grilagem de terras no Brasil. O texto não foi a voto. Hoje é Lira quem controla o que vai ou deixa de ir para o plenário.
No dia do infame discurso da “boiada”, Ricardo Salles lamentou que o Governo precisasse operar o desmonte ambiental de forma “infralegal”, porque nada passava no Congresso. Com o Centrão no comando, esse óbice pode deixar de existir. Antigos sonhos do Governo, como ver anistiadas as invasões de terras praticadas por seus apoiadores na Amazônia e ter o garimpo legalizado em terras indígenas, ficam subitamente mais próximos.
As áreas protegidas do país também estão ameaçadas, no atacado. Em mais de uma ocasião Bolsonaro lamentou que a redução ou extinção de unidades de conservação ―como a Estação Ecológica Tamoios, onde ele foi multado por pesca ilegal― só possa ser feita por projeto de lei e não por decreto. O Governo trama desde 2019 contra o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. A extinção do Instituto Chico Mendes, que o Governo deseja levar a cabo o quanto antes, não será um ato isolado.
Juntem-se a essas propostas os clássicos imortais das bandas podres do ruralismo e da indústria na Câmara: o enfraquecimento do licenciamento ambiental, a flexibilização ainda maior do Código Florestal, a venda de terras a estrangeiros e a liberação da caça e de agrotóxicos. Algumas dessas “boiadas”, uma vez sacramentadas em lei, tornam-se irreversíveis.
Mas calma, porque fica pior. Além da agenda antiambiental, o consórcio entre Bolsonaro e o Centrão também pode ser campo fértil para fazer avançar a possibilidade de “hungarização” do Brasil ―o sonho do clã Bolsonaro e seus agregados militares de solapar a democracia. O primeiro ato do novo presidente da Câmara na noite de segunda-feira, dissolvendo o bloco da oposição, passa uma mensagem bem clara sobre o tamanho do apego de Lira à democracia. Assim, não seria espanto ver tramitando no Congresso propostas contra as instituições identificadas como inimigas pelo regime Bolsonaro: as ONGs (o “câncer”), a academia (os “baderneiros”) e a imprensa.
Compõe o rol de tragédias da nossa nacionalidade o fato de essa investida contra o desenvolvimento sustentável ocorrer justamente no momento em que a pauta ambiental assiste a uma virada histórica no mundo. A eleição de Joe Biden criou uma conjunção astral inédita entre EUA, Europa e China a favor da ação contra as mudanças climáticas. A recuperação pós-covid-19 desses países tem tudo para ser impulsionada pela economia de baixo carbono, fazendo da proteção ambiental e das populações tradicionais um ativo, além do respeito a nossa própria constituição. Porém, no Brasil, não apenas estamos ignorando vantagens comparativas nesse setor, como estamos deliberadamente implodindo suas bases. Infelizmente, o preço poderá ser cobrado em sanções comerciais e diplomáticas, investimentos e empregos.
Espero estar errado sobre tudo o que escrevi aqui, mas, se há coisa que a história recente do Brasil tem nos ensinado é que até podemos esperar o melhor, mas devemos sempre nos preparar para o pior.
*Marcio Astrini é secretário-executivo do Observatório do Clima, rede de 60 organizações da sociedade civil.
Folha de S. Paulo: Lira e Pacheco definem pauta econômica como prioridade e cobram agilidade na vacinação
Presidentes concordaram em definir prazos para entrega de relatórios da reforma tributária e da PEC Emergencial
Renato Machado e Danielle Brant, Folha de S. Paulo
Os novos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), divulgaram nesta quarta-feira (3) uma pauta conjunta que prioriza projetos econômicos e defenderam um processo de vacinação mais ágil no país.
Mesmo enfrentando a oposição manifesta do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), ambos declararam apoio a um auxílio emergencial dentro do teto de gastos.
Lira e Pacheco realizaram um evento nesta manhã, no qual leram um documento conjunto, com pautas prioritárias para o Congresso. Na sequência, os presidentes das Casas foram para o Palácio do Planalto para um encontro com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Inicialmente, Lira e Pacheco se reuniriam na noite de terça-feira (2), após a escolha da Mesa do Senado. No entanto, a sessão atrasou, pois não houve acordo para a composição e a vice-presidência da Casa precisou ser decidida na votação.
Pacheco, que discursou primeiro, defendeu que seja estabelecido um prazo de entrega do relatório final da comissão mista que analisa as PECs (Propostas de Emenda à Constituição) de reforma tributária 45, da Câmara, 110, do Senado, e a proposta de CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) apresentada pelo governo.
Na noite desta quarta, Lira e Pacheco se reunirão com os relatores das PECs, Aguinaldo Ribeiro (Câmara) e Roberto Rocha (Senado).
Os dois presidentes também defenderam um prazo para entrega do relatório da PEC Emergencial, que estabelece gatilhos de cortes de gastos e está a cargo do senador Márcio Bittar (MDB-AC).
Pacheco também sinalizou apoio a uma das prioridades de campanha de Lira, a votação da reforma administrativa. O presidente do Senado elencou ainda como prioridade destravar outras pautas econômicas, com a PEC dos Fundos e do Pacto Federativo.
“Começamos um alinhamento nas duas Casas, para os bons propósitos do país”, afirmou Pacheco.
Lira também disse que a decisão conjunta é um símbolo de como as duas Casas vão trabalhar. “Com muito diálogo e harmonia, procurando agilizar as pautas necessárias para o crescimento e desenvolvimento do nosso país”, disse.
“Neste momento o foco é união de forças para combater a maior pandemia em 100 anos e a busca de alternativas legislativas para a vacina e para alavancar a economia” afirmou o presidente da Câmara.
No documento conjunto, ambos manifestam solidariedade “com as dezenas de milhares de vítimas da pandemia e seus familiares” --atualmente, o país tem 226 mil mortos pela Covid-19.
Eles pedem para tornar mais ágil o acesso dos brasileiros às vacinas, assegurando que haja recursos “e que não faltem meios para que toda a população possa ser vacinada no prazo mais rápido possível.”
Além disso, se comprometeram a avaliar “alternativas de oferecer a segurança financeira através de auxílio emergencial para aqueles brasileiros e brasileiras que estejam enfrentando a miséria em razão da falta de oportunidade causada pela paralisia econômica provocada pela pandemia.
Pacheco recuou em relação a sua plataforma de campanha, quando defendeu que, não fosse possível conciliar com o teto de gastos, poderia extrapolar o instrumento de contenção de despesas.
Folha de S. Paulo: Veja como chefes no Congresso lidaram com presidentes da República
Histórico é marcado por impeachments e reformas aprovadas pelos parlamentares
Desde a redemocratização, a relação entre os chefes do Congresso e o presidente da República tem sido marcada por tensão, fossem os comandantes do Legislativo governistas ou oposicionistas.
Prestes a deixar o posto, Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, subiu o tom contra Jair Bolsonaro (sem partido), chamando o chefe do Executivo de covarde e irresponsável por atitudes tomadas na gestão da pandemia.
Ainda na Câmara, Eduardo Cunha (MDB-RJ) foi um dos principais responsáveis pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT).
Veja, abaixo, como foi a relação entre os Poderes nos últimos 30 anos.
CÂMARA
Ulysses Guimarães (SP) MDB
1985-1987/1987-1989
O “senhor Diretas” tinha sua imagem vinculada à de José Sarney. Com a posse do presidente, em 1985, Ulysses participou ativamente da composição do governo, até mais do que o chefe do Executivo. Em discurso em 2012 em homenagem a Ulysses, Sarney, então presidente do Senado, afirmou: “Era um exímio costurador e alinhavava com extrema perfeição a conspiração da boa causa”. A proximidade com Sarney, cujo governo foi marcado pela hiperinflação, acabou prejudicando a campanha de Ulysses à Presidência em 1989. Ele terminou em sétimo lugar, com apenas 4,4% dos votos.
Paes de Andrade (CE) MDB
1989-1991
Durante 1989, assumiu 12 vezes a Presidência da República. Nessas ocasiões, foi alvo de críticas por não seguir determinações de Sarney e quase demitir um ministro interino, Paulo César Ximenes, da Fazenda. Ao voltar para a Câmara, após passagem pelo Executivo, manteve o arquivamento de denúncias contra Sarney apresentadas pela CPI que investigou irregularidades na administração. A decisão havia sido tomada por Inocêncio de Oliveira, seu substituto no comando da Casa.
Ibsen Pinheiro (RS) MDB
1991-1993
Comandou a Casa durante o processo de impeachment de Fernando Collor.
Inocêncio de Oliveira (PE) PFL (atual DEM)
1993-1995
Votou a favor da abertura do processo de impeachment contra Collor. Já com Itamar Franco no Executivo, foi defensor do Plano Real, principal medida do presidente.
Luís Eduardo Magalhães (BA) PFL (atual DEM)
1995-1997
Próximo de Fernando Henrique Cardoso, atuou para que o PFL apoiasse a candidatura do tucano à Presidência. O partido acabou assumindo a vice, com Marco Maciel. Teve o apoio de FHC na campanha para o comando à Câmara. Morreu em 1998, quando era líder do governo na Casa.
Michel Temer (SP) MDB
1997-1999/1999-2001
Sua candidatura ao comando da Casa teve apoio do Planalto, que contava com o MDB para a aprovação da emenda da reeleição —a medida acabou passando. Em 1999, foi reeleito para o posto, sendo o único candidato na corrida. Barrou iniciativa da oposição que pedia abertura de processo de impeachment contra FHC.
Aécio Neves (MG) PSDB
2001-2002
Eleito em primeiro turno, derrotou o candidato do PFL, Inocêncio de Oliveira. Ao assumir o posto, disse que a relação com o Planalto seria “serena e sóbria, mas altiva”. “É possível ser presidente da Câmara, filiado ao partido do presidente e dar dignidade a esta Casa”.
Efraim de A. Morais (PB) PFL (atual DEM)
2002-2003
Assumiu o posto após Aécio Neves, eleito governador de Minas Gerais, renunciar.
João Paulo Cunha (SP) PT
2003-2005
Candidato único, foi eleito com 434 votos. Liderou propostas de reforma lançadas por Lula.
João Severino Cavalcanti (PE) PPB (atual PP)
2005
O “rei do baixo clero”, como ficou conhecido em 2005, aproveitou-se de um racha na base do PT e venceu a disputa contra o candidato oficial do governo Lula, Luiz Eduardo Greenhalgh. Passou apenas sete meses no cargo. Nesse período, barrou pedidos de abertura de impeachment contra Lula.
Aldo Rebelo (SP) PC do B
2005-2007
Antes de ser eleito, foi ministro de Lula. Identificado com os petistas, teve apoio do Planalto na corrida para o cargo
Arlindo Chinaglia (SP) PT
2007-2009
A eleição, vencida no segundo turno contra Rebelo, gerou um racha na base aliada do governo Lula. O bloco de apoio de Chinaglia, que contava com partido como MDB e PP, foi alvo de críticas por aliados do presidente.
Michel Temer (SP) MDB
2009-2010
A terceira passagem de Temer pela presidência da Câmara gerou preocupação do Planalto logo na eleição. O emedebista venceu Rebelo e Ciro Nogueira (PP-PI), de partidos aliados do governo. Na época, José Múcio Monteiro, ministro de Relações Institucionais, admitiu que a disputa deixaria sequelas na base governista.
Marco Maia (RS) PT
2010-2012
O petista foi eleito com 375 votos, contra 106 de Sandro Mabel (PR-GO, hoje PL), 16 de Chico Alencar (PSOL-RJ) e apenas 9 do então deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ). A eleição fez parte de um acordo costurado com o MDB. Maia foi escolhido o candidato oficial do Planalto, e sua vitória significou, portanto, uma vitória do governo.
Henrique Eduardo Alves (RN) MDB
2013-2014
O emedebista foi eleito amparado em um acordo entre PT e MDB que havia sido fechado seis anos antes. As siglas haviam acertado os termos de um rodízio no comando nos anos seguintes —embrião da indicação de Temer para a vice de Dilma. O pacto surgiu em meio ao racha da base de Lula na eleição para a presidência da Câmara em 2007. Mesmo assim, Eduardo Alves foi eleito com um discurso incômodo ao Planalto.
Eduardo Cunha (RJ) MDB
2015-2016
A vitória em primeiro turno do emedebista marcou uma derrota histórica para o governo Dilma. Considerado um aliado pouco confiável, já que liderou rebelião no Legislativo contra Dilma em 2014, Cunha, cassado e hoje em prisão domiciliar, bateu o petista Arlindo Chinaglia (SP), nome bancado pelo Planalto, por 267 votos contra 136. A previsão se concretizou, e ele rompeu oficialmente com o governo, levando a votação diversos projetos que criaram gastos extras, agravando a crise econômica enfrentada pelo país. No fim de 2015, em retaliação ao PT e ao Planalto, que não asseguraram votos para enterrar seu processo de cassação, o deputado acatou pedido de impeachment contra Dilma, que cairia depois de oito meses.
Rodrigo Maia (RJ) DEM
2016-2021
Reeleito em 2019, o demista era um dos principais defensores da agenda econômica do governo. Maia assumiu o protagonismo de costurar acordos para aprovar a reforma da Previdência. Em julho de 2019, pouco antes de anunciar o resultado da votação da medida em plenário, aprovada com placar elástico, fez uma crítica velada a Bolsonaro, dizendo que os problemas do país seriam resolvidos a partir do Congresso. No ano passado, o deputado foi um dos grande críticos da condução da crise pelo governo federal. No começo deste ano, subiu o tom, chamando o presidente de covarde e irresponsável. Maia disse ainda que a discussão sobre o impeachment será “inevitável” no futuro.
SENADO
José Fragelli (MS) MDB
1985-1987
Participou das articulações em torno da candidatura de Tancredo Neves, em 1983. Dois anos depois, deu posse ao então vice, José Sarney, diante do quadro de saúde de Tancredo.
Humberto Lucena (PB) MDB
1987-1989
Durante a elaboração da Constituição, apresentou emenda que mantinha o presidencialismo. Era a favor de dar prioridade à Constituinte, mas também defendeu que o Congresso seguisse votando legislação ordinária.
Nelson Carneiro (RJ) MDB
1989-1991
Presidiu a sessão do Congresso que empossou Fernando Collor.
Mauro Benevides (CE) MDB
1991-1993
Presidiu a Casa na época de instalação da CPI voltada a apurar denúncias contra Paulo César Farias, tesoureiro da campanha de Collor. Rebateu crítica do presidente, que havia classificado a oposição a seu governo como “sindicato do golpe”. Votou a favor do afastamento do chefe do Executivo.
Humberto Lucena (PB) MDB
1993-1995
Em seu segundo mandato, travou disputa com a Câmara pela direção dos trabalhos de revisão da Constituição. Na época, em entrevista à Folha, disse que “não [ficava] bem para a opinião pública uma disputa dessa natureza (...), porque [dava] a impressão de um conflito de natureza institucional”. As duas Casas acabaram chegando a um acordo, e a presidência da comissão ficou com o Senado.
José Sarney (MA) MDB
1995-1997
A segunda passagem de Sarney no comando da Casa foi marcada por atritos com o Executivo, principalmente em torno de medidas provisórias. Para o grupo do senador, o governo FHC vinha abusando do instrumento e desacelerou a tramitação dessas iniciativas.
Antônio Carlos Magalhães (BA) PFL (atual DEM)
1997-1999/1999-2001
Ao tomar posse, declarou que iria cooperar o máximo com o governo, “mas isso não significa que o Executivo vai fazer o que quiser aqui dentro”. Sua promessa era acelerar as reformas constitucionais, incluindo a emenda que permitiria a reeleição —a medida acabou passando. Também levou a votação medidas de ajuste econômico que interessavam ao governo. Na sua gestão, os senadores aprovaram a lei que criou o contrato temporário de trabalho, por exemplo. Mas também usou o poder de pautar projetos para retardar a votação de medidas provisórias e acelerar a derrubada de vetos do Planalto.
Jader Barbalho (PA) MDB
2001-2001
O maior atrito do emedebista durante seu mandato foi com outro senador, Antônio Carlos Magalhães. ACM se recusou a cumprimentar Barbalho na transmissão do cargo. Os desentendimentos começaram ainda em 1999, na gestão do parlamentar baiano. Na época, a discussão girava em torno da criação de CPIs. ACM era a favor de criar uma para investigar o Judiciário. Já Barbalho era a favor da instalação de uma comissão com foco nos bancos.
Edison Lobão (MA) PFL (atual DEM)
2001-2001
Assumiu o cargo interinamente após Barbalho, alvo de acusações de corrupção, se licenciar.
Ramez Tebet (MS) MDB
2001-2003
Então ministro da Integração Nacional, teve sua candidatura patrocinada pelo Planalto. A vitória na disputa ocorreu na esteira do conflito entre MDB e PFL, alimentada pela troca de acusações entre ACM e Barbalho.
José Sarney (MA) MDB
2003-2005
Atuou para inviabilizar duas CPIs incômodas ao governo. Uma delas visava investigar denúncias de lavagem de dinheiro por meio de bingos e caça-níqueis. A outra tinha como objetivo apurar as supostas relações entre o assassinato do petista Celso Daniel, prefeito de Santo André (SP) na época, e um esquema de corrupção na administração local.
Renan Calheiros (AL) MDB
2005-2007/2007-2007
Eleito com apoio de Lula, atuou em consonância com o Executivo. Ainda assim, disse ser “presidente do Congresso, não líder do governo”. Na época da instalação das CPIs dos bingos, dos Correios e do mensalão, defendeu que, “se houver algum culpado, que seja punido”. Em 2005, atuou junto à bancada do MDB para conquistar votos para Aldo Rebelo, candidato de Lula para o comando da Câmara. Em 2006, articulou o apoio de seu partido à campanha de reeleição de Lula. Em seu segundo mandato à frente do Senado, foi alvo de diversas denúncias, incluindo o pagamento de despesas pessoais por um lobista ligado à construtora Mendes Júnior. Acabou renunciando ao posto.
Tião Vianna (AC) PT
2007-2007
Ocupou o posto interinamente após a saída de Calheiros.
Garibaldi Alves Filho (RN) MDB
2007-2009
Candidato único, foi eleito com 68 votos. Durante seu período à frente da Casa, criticou o “número excessivo” de medidas provisórias encaminhadas pelo Executivo, que tirariam o tempo dos senadores para discutir outros projetos. Mais tarde, foi nomeado por Dilma para o Ministério da Previdência Social.
José Sarney (MA) MDB
2009-2011/2011-2013
O emedebista enfrentou diversas acusações durante seu terceiro mandato. Uma delas envolvia a nomeação, por ato secreto, de um de seus netos para o cargo de secretário parlamentar de um senador. Lula saiu em defesa do emedebista, dizendo que Sarney não poderia ser tratado “como se fosse uma pessoa comum”. Reeleito para a posição, fortaleceu seu posto de aliado do governo.
Renan Calheiros (AL) MDB
2013-2015/2015-2017
Eleito com apoio do Planalto, pediu “serenidade” na época em que o então presidente Michel Termer foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República por corrupção passiva no caso JBS. Defendeu, na mesma época, uma pauta própria para o Congresso.
Davi Alcolumbre (AP) DEM
2019-2021
A eleição do demista foi uma vitória para o governo. A candidatura de Alcolumbre foi bancada pelo então ministro da Casa Civil, Onys Lorenzoni (DEM). Entre os senadores, é visto tanto como “pacificador” quanto como “office boy de luxo” de Bolsonaro. Conseguiu o apoio do presidente para o seu candidato à sucessão no Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
Folha de S. Paulo: Alcolumbre divide opiniões ao deixar comando do Senado
Senador deixa o posto após dois anos visto como habilidoso ao construir pontes com oposição e situação
Renato Machado, Folha de S. Paulo
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), encerra nesta semana seu período de comando da Casa, quando passou de um parlamentar relativamente desconhecido a um político poderoso, que se mostrou bom articulador e ganhou respeito de governo e oposição.
Por outro lado, é criticado por não encarnar a "renovação" que sua candidatura instigou, há dois anos. E também teve uma posição em relação ao Palácio do Planalto que dividiu opiniões: para alguns se mostrou um "pacificador", enquanto senadores mais críticos preferem expressões como "office boy de luxo" de Jair Bolsonaro (sem partido).
Alcolumbre foi eleito em fevereiro de 2019, revertendo o favoritismo de Renan Calheiros (MDB-AL), que queria se tornar presidente pela quinta vez. A eleição para a presidência do Senado tornou-se então um embate entre a nova e a velha política.
Os dois anos da presidência de Alcolumbre coincidem com o início da gestão Bolsonaro, período de turbulência institucional e da pandemia do novo coronavírus.
Enquanto o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), se tornou um crítico frequente do presidente, Alcolumbre foi mais reservado.
As poucas manifestações que bateram de frente com o Planalto se deram no início da pandemia, quando considerou "grave" o pronunciamento de Bolsonaro em que atacou as medidas de isolamento social. Também divulgou nota afirmando ser "inconsequente" promover aglomerações, após a participação do presidente em manifestação.
"Se ele fosse ficar com um balde de gasolina, iria acabar incendiando tudo. Então ele foi um pacificador", afirmou Otto Alencar (PSD-BA), líder da bancada no Senado.
Crítico mais feroz do presidente da Casa, o senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO), por sua vez, disse que a posição de Alcolumbre frente ao Palácio do Planalto foi de submissão, comprometendo a independência do Senado.
"Ele [Alcolumbre] foi aceitando tudo. A relação dele com o presidente era só falar 'sim', era um office boy de luxo", afirmou Kajuru.
Alcolumbre defende sua atuação, afirmando que respeita as críticas, embora ressalte que trabalhou com "altivez, respeito, independência e equilíbrio entre os Poderes da República", segundo nota de sua assessoria de imprensa.
Se a relação com o Planalto divide opiniões, Alcolumbre conseguiu construir reputação dentro do Senado, construindo alianças com situação e oposição.
Prova disso é a articulação para a candidatura de seu apadrinhado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que reuniu no mesmo bloco dez bancadas, colocando no mesmo lado o presidente Bolsonaro e o PT.
Senadores próximos ressaltam sua habilidade política para "construir pontes".
"O presidente atendeu pautas de interesse do governo e da oposição. Para nós, foi positiva a possibilidade de ter pautas de interesse dos trabalhadores", afirmou o líder do PT, senador Rogério Carvalho (PT-SE), apontado como próximo a Alcolumbre.
Carvalho citou como exemplos as medidas provisórias que tramitaram durante a pandemia, como a que resultou na redução da jornada de trabalho e cancelamento de contratos, para evitar demissões.
Outros senadores, por outro lado, afirmam que a popularidade de Alcoumbre se deve ao aumento de privilégios.
"Ele conseguiu aumentar ainda mais os privilégios dessa capitania, aumentou os gastos, as contratações", afirmou Kajuru.
Lasier Martins (Podemos-RS) também citou a distribuição de emendas de relator, usada para ampliar o seu leque de alianças e rachar algumas bancadas oposicionistas. O parlamentar destacou emendas obtidas para estados e municípios, que não foram divididas com todos os senadores.
"Houve uma seleção discriminatória. E dessa forma ele estava pavimentando o caminho para a sua recondução, se não fosse o STF [Supremo Tribunal Federal]", afirmou.
O senador se referiu à decisão do Supremo, em dezembro, que barrou a reeleição dos presidentes das Casas Legislativas em uma mesma legislatura. Alcolumbre considerava como certa a possibilidade de disputar a reeleição.
Lasier Martins é integrante do grupo Muda Senado, que se mostrou fundamental para a eleição do senador amapaense, mas depois afirmou ter sido traído.
O grupo defende pautas anticorrupção, como a condenação em segunda instância, a instauração de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) e a abertura de processo de impeachment contra ministros do STF.
O grupo afirmou que perdeu espaço no diálogo com a presidência do Senado, vendo sua pauta ser preterida. Alcolumbre também não abriu nenhuma CPI e, no último mês de sua gestão, arquivou 38 petições para impeachment de autoridades do Judiciário, a maior parte delas de ministros do STF.
Em outra crítica, o presidente é acusado de blindar Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), no caso das "rachadinhas". O Conselho de Ética não abriu processo contra o filho 01 de Bolsonaro, assim como não o fez contra Chico Rodrigues (DEM-RR), então vice-líder do governo no Senado, flagrado com dinheiro em sua cueca.
Alcolumbre, por outro lado, é exaltado por dar procedimento aos trabalhos legislativos durante a pandemia do novo coronavírus, adotando o sistema remoto de sessões.
Os aliados lembram a aprovação rápida de medidas de enfrentamento à pandemia ou para estimular a economia, como o orçamento de guerra, auxílio emergencial aos trabalhadores informais e a liberação de recursos para vacinas contra a Covid-19.
Por outro lado, não houve o funcionamento das comissões e portanto Alcolumbre ganhou "superpoderes", levando matérias direto para a votação em plenário, escolhendo os relatores de sua preferência.
De saída da presidência do Senado, Alcolumbre vinha afirmando que queria ser vice-presidente da Casa, mas as articulações para atrair o MDB envolvem esse posto.
Se continuar na Casa, deve ficar então com a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça). Outra possibilidade é se tornar ministro do governo, no Desenvolvimento Regional ou na Secretaria de Governo.
Paulo Gontijo: Vacinação pode ser pontapé para conter ataques à liberdade
Além do coronavírus, precisamos vencer o vírus do autoritarismo, voltar a tomar as ruas
O início da vacinação é o primeiro passo para o País sair da pior crise enfrentada por esta geração. Em momentos de grandes dificuldades, nossa espécie anseia por grandes líderes apontando caminhos de superação. Infelizmente, no Brasil, nós nos deparamos hoje é com o gigantismo da estupidez guiando a desordem e provocando instabilidades.
Não há ação técnica coordenada entre União e Estados. Onde precisamos de um governo para preservar a vida dos brasileiros, há apenas um comitê eleitoral. No lugar de distribuir vacinas, distribuem-se palavrões em churrascarias e cenas grotescas lambuzadas de leite condensado. O preço é alto e permanecerá sendo pago em largas prestações.
Após meses de negacionismo, Jair Bolsonaro ensaiou falar o óbvio: a vacina é essencial para a retomada econômica. Mas antes que sentíssemos qualquer alívio, o presidente retomou a sua narrativa insana, defendendo a ideia de que basta ao povo coragem para voltar à normalidade e enfrentar o vírus que já vitimou mais de 220 mil brasileiros.
Há, porém, algo pior do que seus discursos irresponsáveis: o boicote à vacinação. Fruto de uma combinação entre aloprados ideológicos, generais incompetentes e a pura omissão, seja na diplomacia ou na falta de implantação de um sistema de gestão do programa de imunização. E assim seguimos patinando, com consequências graves para a vida de todos os brasileiros e também para a economia.
As piores repercussões humanitárias ainda estão a caminho. Há risco de reedições da catástrofe de Manaus. Segundo projeções do economista Daniel Duque, com o fim do auxílio emergencial e a segunda onda da doença a extrema pobreza pode atingir até 20 milhões de brasileiros e a pobreza, que antes da pandemia era a condição de menos de 25% da população, pode chegar a mais de 30%. Quando aplicadas no ano passado, políticas de transferência de renda foram consenso. Agora voltam ao centro das atenções. Interrompido sem uma transição minimamente estruturada, o auxílio emergencial acabou significando um custo fiscal muito maior em razão da desorganização, da falta de planejamento e do caos político do governo Bolsonaro.
Criar uma ampla rede de proteção com transferências diretas para os mais pobres e vulneráveis é uma política herdeira do pensamento de liberais como Thomas Paine, Stuart Mill, Friedrich Hayek e Milton Friedman. Indiscutível do ponto de vista social, essa necessidade ilumina um problema crônico e estrutural do Estado brasileiro: apesar de consumir 40% da riqueza nacional todos os anos com um orçamento trilionário, nosso poder público, engessado em despesas obrigatórias, não foi capaz de construir uma proteção minimamente robusta para os mais vulneráveis. Mudar essa realidade deveria ser o centro das preocupações políticas.
Neste momento, cabe às vozes liberais o cuidado com os mais frágeis no presente, sem lhes sacrificar o futuro. Nosso esforço de guerra contra a covid-19 não pode perder de vista o pós-guerra. A reconstrução da economia e do mundo que herdaremos será mais ágil, ampla e inclusiva na medida em que tivermos a capacidade de implementar políticas públicas que sejam fruto da urgência, mas não se contaminem pelo desespero. Não apenas é possível, como necessário, aliar sensibilidade social à responsabilidade fiscal, a reformas que aumentem a eficiência do Estado brasileiro, à proposta da Lei de Responsabilidade Social – elaborada pelo Centro de Debate de Políticas Públicas após debate surgido no movimento Livres –, que remaneja programas sociais já existentes em busca de mais efetividade.
Em direção oposta a esse esforço, porém, o que assistimos é a proposições para ampliar poderes de forma abusiva, diminuir a transparência ou simplesmente promover líderes do Executivo. São exemplos o alargamento de prazos das medidas provisórias e da Lei de Acesso à Informação, a injustificável menção a decreto de estado de defesa pelo procurador-geral da República e a ameaça aberta de insurreição antidemocrática em 2022 pelo próprio presidente, inspirado na invasão dos trumpistas ao Capitólio. Com isso, antes de avançar, é preciso assegurar que não vamos retroceder.
O alerta liberal contra excessos do poder estatal está mais pertinente do que nunca. Não à toa, nós, do Livres, ingressamos com ação civil pública para convocar Jair Bolsonaro a apresentar em juízo as provas que ele reiteradamente alega possuir sobre a suposta fraude eleitoral em 2018. Não há espaço para omissão. A credibilidade do sistema eleitoral é pilar da legitimidade da democracia liberal. Utilizar o prestígio da Presidência da República para minar as bases da democracia é um atentado à Constituição. Em meio a uma pandemia, faltam até palavras para classificar. Além do coronavírus, precisamos vencer o vírus do autoritarismo. Em ambos os casos, a vacina será o passaporte para que possamos voltar a sair de nossa casa, tomar as ruas e desfrutar, juntos, o prazer da liberdade. E, sobretudo, encarar a responsabilidade de defendê-la.
*Analista político, especialista pela universidade de Georgetown (Washington, D.C), é Diretor Executivo do Movimento Liberal Livres.
O Globo: 'O governo não vai aprovar tudo o que quiser’, diz o sociólogo Carlos Melo
Para professor do Insper, efeito da pandemia na popularidade de Jair Bolsonaro testará fidelidade dos deputados do centrão ao Palácio do Planalto
Eduardo Salgado / O Globo
SÃO PAULO — Para o professor sênior de Sociologia e Política do Insper Carlos Melo, a possível vitória do deputado Arthur Lira (PP-AL) na disputa pela presidência da Câmara deve sacramentar uma aliança cujo principal objetivo é a “blindagem para evitar um eventual processo de impeachment”. Leia a entrevista com o sociólogo:
Qual é o tamanho do favoritismo de Arthur Lira, apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro, em relação a Baleia Rossi (MDB-SP), do grupo do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ)?
As promessas do governo de liberação de recursos e reforma ministerial indicam uma vitória de Lira. Mas é claro que existem movimentações de última hora. Como é uma votação secreta, pode haver traições.
Na campanha de 2018, Bolsonaro prometia não fazer o que ele chamava de “velha política”. O apoio do presidente a Arthur Lira, expoente do centrão, configura uma quebra de promessa de campanha?
Certamente. Bolsonaro está mordendo a língua. É um estelionato eleitoral. O apoio mostra a inconsistência daquele discurso demagógico. E, em virtude disso, a aliança com o centrão aumenta o desalento em relação aos políticos e ao sistema político. O fisiologismo, desprovido de programa, não tem freio. Quando ouço promessas de acesso a recursos e ministérios, pergunto: a troco de quê? Em troca de blindagem para evitar um eventual processo de impeachment e para proteger os filhos. No máximo, um projeto de poder exclusivamente eleitoral. Não se discute como superar essa crise econômica, social, política e sanitária.
A agenda do governo, inclusive a ideológica, ganha fôlego no caso da vitória de Lira?
O governo não vai aprovar tudo o que quiser. Quando a prática é fisiológica, cada nova votação exige nova negociação e concessão de recursos. Não há fidelidade. Há interesses cruzados. O centrão não devota essa fidelidade a ninguém. Cada parlamentar do centrão é fiel a si mesmo. O desgaste popular do presidente e do sistema tende a continuar. O ex-presidente Tancredo Neves tinha uma frase ótima: “O político vai com o outro até a sepultura, mas não se joga”.
Como essa união entre o governo e o grupo que apoia Lira deve impactar a base de apoio do presidente?
Vamos considerar que o apoio a Bolsonaro seja de um terço do eleitorado. Dentro desse grupo, há uma parcela de extrema direita, que sempre existiu no Brasil. Algo em torno de 15% do eleitorado, talvez. Esse grupo Bolsonaro não perde. Outro setor que ainda está com o presidente são os ultraliberais, que se frustram e se descolam à medida que as respostas para a economia não vêm. Há também um grupo que apoia o presidente por causa do auxílio emergencial, cuja tendência natural é diminuir. Por fim, há os antipetistas. A corrosão do apoio pode, sim, chegar num ponto em que acabe a blindagem popular. Isso aconteceu com Fernando Collor e Dilma Rousseff.
Quais serão os fatores de definirão a longevidade do casamento entre o governo e o centrão?
Enquanto houver uma expectativa de um projeto de poder, o centrão estará com o presidente. O objetivo é ter acesso continuado a recursos públicos. A meta é a reeleição de Bolsonaro e de cada parlamentar do grupo. A eventual eleição de Lira sela o abraço institucional de Bolsonaro no centrão. Agora, se a popularidade do presidente cair e a possibilidade de poder se dissipar, o centrão vai abandonar o navio. Se o país quiser sair dessa crise, vai precisar de uma agenda que exige três quintos dos parlamentares nas duas casas do Congresso, além do apoio da sociedade. Essa maioria é necessária para fazer reformas, criar impostos e reeditar o auxílio emergencial, o que me parece inevitável. Conseguir 257 deputados para eleger o Lira é uma coisa. Chegar a 308 votos na Câmara e 49 no Senado para mudar a Constituição é completamente diferente.
O senhor acredita no apoio voluntário dessa base que sustenta a candidatura de Arthur Lira às reformas?
O que interessa para eles é a dependência de Bolsonaro. Temos um presidente corporativista e sem habilidade política, que amaldiçoa a política, com uma base que demoniza o centrão. Se, lá na frente, Bolsonaro recuperar o apoio popular e plenas condições de governabilidade, quem garante que ele não abandonará seus novos amigos?
Em que medida o sucesso no enfrentamento da pandemia afeta a relação entre o presidente o Congresso?
A pandemia está sem controle. A chance de estancá-la a médio prazo é pequena. O desemprego e o desalento estão elevados e, com o fim do auxílio emergencial, devem aumentar. A pressão por medidas imediatas será muito forte. Já no Congresso, o processo de negociação do fisiologismo é lento porque os recursos são escassos. Uma das possibilidades é que o presidente venha a ter novos abalos na popularidade. Quando o apoio popular cai, a governabilidade mingua. Um influencia o outro. Quanto menos apoio popular Bolsonaro tiver, maior o poder de barganha do centrão. Isso se mantém até que exista oxigênio para combustão. Se acabar o oxigênio, é possível que um processo de impeachment seja votado ou que o Centrão decida não entrar no barco da reeleição de Bolsonaro.
E se Baleia reverter as previsões e ganhar a disputa na Câmara?
Com o Baleia, há um elevado grau de fisiologismo também, mas não da mesma ordem do de Lira. Não tenho ilusão. Baleia não é um estadista. Também não creio que iria facilmente para o impeachment. Mas é verdade que Maia construiu uma agenda, e Baleia poderia ser sua continuidade. Uma agenda de defesa da autonomia do Congresso e da permanência de um núcleo reformista. Maia surpreendeu no período em que esteve no comando da Câmara, salvando Bolsonaro do desastre que o próprio presidente construía. A reforma da Previdência era necessária e foi feita por Maia, a despeito de Bolsonaro. O auxílio emergencial também saiu do Congresso. Com Baleia, a agenda de costumes do presidente não teria chance e haveria algum ambiente para reformas.