vacinação

Bernardo Mello Franco: O caminho do Capitólio

No dia seguinte à invasão do Capitólio por seguidores de Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro avisou que sua tropa pode replicar a baderna no Brasil. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, disse.

Trump questionou o resultado das urnas para mobilizar seus radicais contra a democracia. O capitão mina a confiança no voto eletrônico para justificar uma rebelião em caso de derrota. Na cabeça dele, o “problema” pode ser a solução para se manter no poder pela força.

Na véspera do carnaval, Bolsonaro editou novos decretos que facilitam o acesso a armas e munições. A iniciativa segue a cartilha anunciada na reunião ministerial de abril passado: “É escancarar o armamento no Brasil. Eu quero o povo armado”. Naquele momento, a ideia era fomentar um levante contra governadores e prefeitos. No ano que vem, a mira deve se voltar contra a Justiça Eleitoral.

No discurso de Bolsonaro, armar o “povo” significa municiar aliados e seguidores. Gente como o extremista Daniel Silveira, que incitou a violência contra o Supremo e se disse disposto a “matar ou morrer” pelo chefe.

O deputado marombado foi preso, mas suas ideias estão soltas na base bolsonarista. Na sexta-feira, o ogro foi tratado como mártir pelo Clube Militar. Em nota, a entidade exaltou a ditadura e falou em “arbitrariedades do STF”. Apesar de defender o regime autoritário, reivindicou “liberdade de expressão” para o conspirador.

A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, alerta que a ofensiva armamentista do governo nada tem a ver com o discurso de autodefesa do “cidadão de bem”. Um dos novos decretos permite que o mesmo atirador compre 60 armas.

“Bolsonaro incentiva abertamente a formação de milícias privadas. Esta é a principal ameaça à democracia no Brasil, junto da politização das forças policiais”, afirma a pesquisadora. Neste cenário, milícias que já elegem deputados e vereadores podem ser usadas para subverter a corrida presidencial.

Em entrevista recente à “Folha de S.Paulo”, o ministro Edson Fachin manifestou “preocupação agravada com a corrupção da democracia” no país. Entre os sintomas da doença, listou a “remilitarização do governo civil”, o “incentivo às armas”, as “declarações acintosas de depreciação do valor do voto” e os ataques ao Judiciário e à imprensa.

O ministro desenhou o caminho para uma invasão do Capitólio tupiniquim. Ele assumirá o comando do TSE em fevereiro de 2022, a oito meses da eleição presidencial.

Velhas novidades

O Partido Novo se diz liberal, mas não perde uma chance de lustrar as botas do capitão. Das 24 legendas na Câmara, foi a única a votar unida contra a prisão de Daniel Silveira.

O deputado Marcel van Hattem ousou comparar o bolsonarista ao ex-deputado Márcio Moreira Alves. Um defende a ditadura e queria surrar ministros do Supremo; o outro denunciou as torturas e foi cassado pelo AI-5.

Van Hattem foi o campeão de votos do Novo em 2018 e se tornou o primeiro líder da sigla em Brasília.


Merval Pereira: Preparando o futuro

Sem entender, ou se preocupar, com a importância de cada palavra sua, especialmente em questões sensíveis como a administração de uma estatal como a Petrobras, que tem acionistas em várias partes do mundo, o presidente Bolsonaro prometeu que na próxima semana teremos mais surpresas como a que derrubou o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, e colocou em seu lugar mais um general.

A politização vulgar de todos os temas nacionais, desde a questão das armas até o preço do diesel, faz com que o presidente Bolsonaro transforme o cotidiano brasileiro em um campo de batalha onde o que importa são os votos que esta ou aquela decisão poderá trazer para sua obsessiva busca de manter o poder que conquistou em momento de depressão nacional.

Emílio Delçoquio, um dos líderes da paralização dos caminhoneiros durante o governo Temer, é amigo de Bolsonaro, e o acompanhou nos feriados de Carnaval em Santa Catarina. Esta aproximação, no momento em que se discutia o aumento do óleo diesel, é preocupante e leva a uma ilação natural de que a mudança na Petrobras foi gestada naqueles dias.

O General Joaquim Silva e Luna, antes mesmo de assumir a presidência da Petrobras, disse que a estatal tem que se preocupar, além dos acionistas, com o povo brasileiro, que precisa encher o tanque de seu carro. A Venezuela também botou um General no comando da PDVSA, e se preocupava com o preço da gasolina nos postos. Tinha a gasolina mais barata do mundo, para alegria dos venezuelanos, e a popularidade de Chávez. Mas o país quebrou, e junto com ele a empresa estatal.

Tudo é tratado pontualmente, mesmo quando há um projeto político por trás, como é o caso do armamento. O presidente retirou o debate sobre o armamento da esfera da segurança pública e o levou para o da política, ao dizer que o povo tem que se armar para defender sua liberdade.

Nenhuma questão tomou mais a atenção da administração bolsonarista do que esta, com mais de 30 decretos e  regulamentações com o mesmo objetivo,  ampliar o uso e o acesso de armas de fogo ao cidadão comum, e o relaxamento do controle que anteriormente era feito pelo Exército ou pela Polícia Federal, e que passa a ser responsabilidade de clubes de tiros, ou liberado de uma burocracia que, nestes casos, servia para manter sob o controle de organismos do Estado o rastreamento de munições e o uso de armamentos e equipamentos antes restritos aos militares.

Como adverte o ex-ministro da Defesa Raul Jungman, agindo assim o presidente incorre em problemas sérios: está quebrando o monopólio da violência legal, fator constitutivo do Estado nacional, cuja existência se dá a partir do momento em que ele controla esse monopólio. As Forças Armadas, lembra Jungman, são a base desse monopólio, e com isso perdem o papel de garantidor da democracia.

Política de tal teor “está levantando o espectro terrível de uma guerra civil entre os brasileiros”, lamenta Jungman, que lembra que as milícias e o crime organizado saem vitoriosos desse afrouxamento de regras sobre o armamento, fazendo letra morta o Estatuto do Desarmamento. Os grupos protofascistas dos quais faz parte o deputado federal (ainda?) Daniel Silveira só cresceram em audácia pelo ambiente permissivo de violência, verbal e física, instalado no país por Bolsonaro.

A militarização dos quadros do Estado, que leva um general a substituir outro na binacional Itaipu, por exemplo, mistura o que deveria ser óleo e água, com políticos e militares disputando lugares na administração federal, cada qual garantindo a Bolsonaro imunidades a seus alcances. Quando um presidente da República anuncia que o regime democrático não é o que ele gostaria, está declarando que sua preferência é outra, deixando no ar que prepara um futuro mais adequado às suas inclinações ideológicas.

Cabe às forças democráticas barrarem esses delírios, como fizeram no caso do deputado parlapatão, e como anunciam que farão com os decretos de armas.


Já está no ar edição 28 da Revista Política Democrática Online

Edição de fevereiro destaca entrevista com o ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga. Reportagem especial analisa como os impactos da pandemia aprofundam as desigualdades no Brasil

Já está no ar a edição 28 da Revista Política Democrática Online. Armínio Fraga é o entrevistado especial desta edição, que teve a participação de Raul Jungmann e Caetano Araújo como entrevistadores.

Clique para acessar a edição 28 da Revista Política Democrática Online

Nesta edição você também pode conferir a reportagem especial escrita pelo jornalista Eumano Silva, que faz uma análise de como os impactos da pandemia aprofundam as desigualdades no Brasil, com as incertezas aumentadas pelo fim do auxílio emergencial e as falhas na vacinação da população brasileira pelo Ministério da Saúde do Governo Bolsonaro.

A RPD 28 traz, ainda, artigos dos articulistas Mauro Oddo Nogueira, Ivan Accioly, Lilia Lustosa, Henrique Brandão, Nelson Tavares, Dora Kaufman, José Gomes Temporão, Luiz Antonio Santini, Dawisson Belém Lopes e André Amado, além da charge de JCaesar. Confira, também, o editorial da Revista Política Democrática Online.

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Cristovam Buarque: Labirinto de espelhos

Brasil está ficando para trás na marcha do progresso

Por nossos erros ao longo de décadas, o Brasil está ficando para trás na marcha do progresso. Em decadência pela desigualdade social, pobreza, fracasso educacional, sem produtividade nem inovação, um Estado esgotado fiscal, gerencial e moralmente, sistema de ciência e tecnologia insuficiente, democracia e instituições políticas frágeis, sociedade violenta e armada, cidades “monstropolitanas”. Para agravar, com governo despreparado, desumano, sem bússola, antidemocrático, antissocial, sem empatia, reacionário, armamentista, preconceituoso, negacionista do valor do conhecimento, desmoralizado no cenário internacional.

O Brasil precisa de um rumo para orientar-se no seu terceiro centenário, que se inicia no próximo ano. Mas antes mesmo de formular este rumo, o Brasil precisa de coesão no presente e evitar o desastre previsível para os próximos. Ao observar os movimentos dos candidatos a presidente em 2022, a sensação é de que eles estão passeando em um labirinto de espelhos: nenhum sabe o caminho e cada um olhando para si ou seu partido, não para o país. Não reconhecem os erros cometidos que levaram à derrota em 2018, nem assumem responsabilidade pelas consequências de reeleição do atual presidente. Ao final do labirinto de espelhos, os candidatos imaginam a cadeira presidencial lhes esperando, sem perceberem que os caminhos labirínticos podem levar a um abismo.

Além de não perceberem o labirinto de espelhos, os candidatos não estão buscando construir uma base eleitoral capaz de vencer e impedir à maldição de um segundo mandato de Bolsonaro. Evitando ficarmos ainda mais divididos e desiguais internamente, isolados internacionalmente, armados miliciamente, enganados pelo negacionismo. E ainda ameaçados de reforma constitucional para permitir mais de uma reeleição depois.

Nossa função imediata consiste em unir os candidatos e escolher aquele com mais condições de atrair o voto do eleitor, com a menor rejeição. Na tormenta, a âncora é mais importante que a vela. Precisamos de quatro anos que permitam o debate entre os candidatos, buscando um projeto de nação para o terceiro centenário da independência. Até lá, precisamos quebrar os espelhos: os candidatos olharem menos para seus partidos e mais para o país, se preocuparem menos com seus programas, visões e interesses pessoais e mais com a tarefa do presente, menos divisão personalista e ideológica e mais unidade democrática, desde o primeiro turno.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador


Paulo Fábio Dantas Neto: Emergência sanitária e paciência política - O fator Mandetta

Ao longo do ano de 2021 a situação de grave vulnerabilidade sanitária em que se encontra a população brasileira promete converter-se numa nefasta singularidade no mundo. Tudo parece indicar que seremos, ao final desse ano, o único país de relativa importância que não terá vacinado, em grau decente, a sua população. Além das centenas de milhares de vidas já perdidas, o acesso precaríssimo a vacinas condena os brasileiros à ausência de horizontes. À insegurança, à desconfiança e ao medo, que afetam a qualidade da vida de cada pessoa, corresponde a experiência comum de radical incerteza quanto ao momento de interrupção do círculo vicioso de adoecimento e morte, que afeta o ambiente social.

Ar rarefeito, dura e ameaçadora realidade enfrentada pelas pessoas enfermas, tornou-se metáfora precisa das condições possíveis de sobrevivência coletiva em nosso país. Elas são uma jaboticaba venenosa, plantada pelo desligamento paulatino e deliberado dos motores do Ministério da Saúde, a partir do final de abril de 2020. O atentado ao SUS, a virtuosa jaboticaba federativa que o processo de democratização nos deixou como legado, já produziu consequências irreversíveis. O que se pode - em angustiante médio prazo que requer ação imediata - é deter a marcha implacável da tragédia e mitigar seus efeitos, por meio de uma política de redução de danos. Inusitado convívio de emergência e paciência.

É dever da política providenciar o oxigênio. Inexiste explicação, argumento ou causa nobre que justifique deslocar a plano sequer concorrente qualquer outra prioridade do país. Suspender juízos doutrinários, moderar impulsos inovadores, adiar definições partidárias, repensar alianças políticas são procedimentos cabíveis para combater, da melhor forma possível, os danos sociais da pandemia. Esse o sentido mais objetivo e atual que podem assumir a política econômica, as políticas de auxílio a vulneráveis e as chamadas reformas, por mais que todas essas políticas remetam, também, a horizontes transcendentes ao contexto da pandemia. Prospecções e metas, sejam quais forem seus intervalos temporais, tendem ao fracasso se não dialogarem com esse contexto que as pauta. Pode-se dizer que entregar esse oxigênio é a prova de legitimidade a que se submete, hoje, nossa democracia.

A representação política é a forma institucional que permite conseguir o oxigênio para a sociedade não parar de respirar. Fora dela o sucesso é improvável. Contra ela, inviável. A ciência normativa da política ensina que, num país onde presidencialismo é tradição arraigada e instituição vigente, a representação política nacional realiza-se, de fato, por duas vias concorrentes, o Congresso e a Presidência da República, que repartem o governo. E sendo o Estado, ademais, federativo, essa bifurcação da representação desdobra-se em governadores e prefeitos, deputados e vereadores. 

No mesmo sentido há uma lição da política prática que a pandemia reitera de modo cabal. Passaram pelo crivo da representação política – sob guarda e vigilância do Judiciário - todos os instrumentos de que, bem ou mal, dispomos hoje para reduzir danos. E todos os fracassos que agravaram danos estiveram ligados à pretensão presidencial de desvirtuar a representação política, seja para tornar despótica a que ele exerce, seja para atacar as demais instâncias representativas e seus respectivos titulares, em quem vê inimigos.

É fato, porém, que, mesmo subvertendo instituições e os padrões de interação política próprios da democracia, o presidente exerce um mandato representativo. E para que não se incorra em autoengano, é bom entender que seu mandato foi conquistado em arena eleitoral diversa daquela que cria a representação legislativa, sendo exercido, portanto, conforme lógica personificada, oposta à que preside a dinâmica partidária do Legislativo.  Portanto, não será propriamente uma aberração Bolsonaro enfrentar com sucesso uma nova eleição presidencial mesmo se estiver novamente, como já esteve, isolado, no Congresso.

Do mesmo modo poderá se dar mal na reeleição, mesmo com todo o centrão em seus braços. Retomo um ponto que mencionei em artigo recente (“Crônica de um revés parcial: duas arenas e a política de resistência democrática” – Revista eletrônica Política Democrática / fevereiro 2021para frisar que a dinâmica eleitoral e parlamentar do Congresso é uma, a da disputa e exercício da Presidência, outra.  O fato de Bolsonaro ser um protofascista não deve cegar para o fato de que não apenas ele é um líder plebiscitário, mas também é plebiscitária a lógica da instituição que ele preside, embora o faça de modo exacerbado, capaz de levar a lógica à sua nêmesis. Competir implica atentar a esse aspecto.

Conclamações, no interior da sociedade política, a um esforço comum dos Poderes da República, acima dos partidos e grupos, para haver vacina e vacinação refletem crescente consenso a partir de uma gradativa noção da gravidade do problema e do perigo intrínseco que ele traz de esgarçar o tecido social e assim trincar a legitimidade do sistema político. Porém, é da própria natureza da política democrática, que a coordenação de ações cooperativas ocorra tendo como premissa a competição política.

Nada mais inócuo do que o apelo - ingênuo ou demagógico - para que se sacrifique crenças e interesses parciais para abraçar crenças e interesses comuns. O repertório de crenças é sempre plural e o interesse comum são pontos. Portanto, fala-se aqui não de sacrifício, mas de boa compreensão. Os termos da competição mudam em presença da pandemia, reforçando o hábito de alianças e a construção de consensos.  Mas não se cogita suspender a competição. Precisamente nisso consiste uma diferença crucial entre saídas democráticas e autoritárias da crise.

Resulta, daí, que é possível pensar numa ampla frente por vacinação no Congresso, que vá do centrão à esquerda, quase uma unanimidade e ser necessário fazer, na outra arena, oposição frontal à política (ou antipolítica) de Bolsonaro na Saúde. O mesmo vale para o auxílio emergencial e todos os demais pontos da agenda política. Consensos legislativos constroem-se pela média das posições. Eles não excluem que o que ficou à margem do consenso seja objeto de renhida disputa na arena presidencial.

Considerar assim a competição implica em saber que o governo federal, em que pese ter posto em prática, durantes vários meses, uma ação negacionista aniquiladora dos meios institucionais de combate à pandemia, acena agora a uma reversão de turbina no objetivo, sem, no entanto, desistir do método de desconstruir instituições. Declara agora querer apressar a vacina e sob esse pretexto procura desqualificar tecnicamente a Anvisa, por uma manobra legislativa que a submeteria a comandos políticos. Sob o mesmo pretexto, o ministro Pazuello altera o critério da vacinação e desorienta prefeitos a não mais guardarem segundas doses, ainda que ao risco de criar um contingente de sub vacinados.  Seriam folclóricos, se não fossem delituosos, os arroubos ilusionistas do ministro, fazendo projeções fictícias com vistas a acalmar os sobressaltos, adiando-os até que se tornem novos e trágicos fatos consumados. Para não falar na manutenção, em meio à guinada retórica, da mesma omissão do MS nas tarefas de coordenação do SUS, do que resulta uma ausência de padrão nacional no modus operandi da vacinação e a insensata definição de 80 milhões de pessoas como prioritárias. A demagogia é filha primogênita do negacionismo. Quais serão os frutos podres seguintes?

Há, portanto, novidades nos movimentos atuais do Bolsuello na Saúde e quem quiser se opor a eles de modo consequente precisa entender o mal desde a gênese. É errado narrar o processo como desastre iniciado só quando o Eichmann da logística sentou-se na cadeira de ministro. Assim como erra quem supõe que o mal é banal como ele e se irá com ele caso as instituições o expilam, como devem fazer.  A operação militar cujas consequências mais drásticas talvez o país ainda não tenha sofrido não pretendeu, a princípio, implantar coisa alguma, só intentou destruir um arranjo institucional de política pública com alta capacidade de agregação política, que dava a esse arranjo também um potencial eleitoral. A imprensa brasileira e os meios políticos enxergaram bem que Bolsonaro, ao retirar Luiz Mandetta do ministério da Saúde, no auge da pandemia, queria afastar um potencial adversário nas urnas. Mas não estavam igualmente atentos – ou se estavam subestimaram – ao fato de que o script era, mais que afastar Mandetta, destruir o arranjo que ele armou. 

A memória dessa pandemia precisa corrigir um equívoco: ela não se divide em antes e depois de Pazuello e sim entre um durante e um depois de Mandetta. É inaceitável colocar como análogas a sua experiência no MS e a de Nelson Teich. Mas é o sistematicamente dito, desde aquela época. E, no entanto, cá estamos, um ano depois, falando de Mandetta. Por que, se nenhum partido o adotou? Atribuo o fato à consistência do legado de uma gestão.

Uma oposição realista que se deseje digna do substantivo e do adjetivo não fará movimentos em círculo para reinventar a roda.  Se quiser um roteiro para uma condução alternativa à irresponsabilidade do MS, irá encontrá-lo naquela curta experiência. A propósito, permitam-me fazer nova autorreferência, agora ao artigo “Desconstrução de memória da gestão Mandetta é ameaça ao SUS” (Revista Política Democrática / maio 2020). Relembro aqui partes dele, indicando que Pazuello ainda não era ministro e já não se sabia aonde fora parar a ênfase engajada no isolamento como conduta prudente e solidária; a conexão estreita com o mundo da ciência e a área técnica da saúde pública; a articulação federativa que gerava sintonia fina entre o MS e os governadores; a articulação com o Congresso, para opinar sobre o conteúdo das medidas a serem votadas.

Pazuello ainda era o segundo do MS e já se notava a lassidão federal face à velocidade da crise sanitária e era notória a indiferença do ministro sucessor à dimensão política da crise. Já ali a intervenção começara, através da secretaria executiva do ministério, desconectada da área de saúde e assumida por um militar interventor que já rondava a cadeira do ministro.  E já ali se interrompia o fluxo de informação segura, realista, transparente e diária com a qual o MS vinha a público, substituída por informação rarefeita e filtrada na forma de monólogos.

Infelizmente não se deu a esse imediato contraste a atenção devida. O fato do novo ministro ser um médico permitiu uma benevolência que gerou um lapso curto, mas fatal. Os meios de comunicação e as forças políticas do País não esboçaram, diante do gesto absurdo do presidente contra um gestor comprometido com uma política pública geradora de moderação e de grande empatia social, uma reação sequer aproximada à que se deu quando, logo depois, o ministro Sergio Moro saiu do governo atirando. Bem pesadas as coisas, merece reflexão crítica a prioridade dada, como fato digno de reação política e civil, à indicação do superintendente da PF do Rio de Janeiro, objeto de intervenção judicial, enquanto a demissão do ministro da Saúde sequer suscitara declarações de intenção de embargo. Contudo, o contraste foi instantaneamente gritante entre a sensação de segurança relativa de antes, em meio ao temor e a impressão, já então presente, de que o governo desligara os motores do MS para descer na banguela a ladeira da pandemia.

Hoje já está em curso mais do que uma ação destrutiva. Apesar dos danos que ela causou e causa, o governo pretende ser beneficiário de ações da coalizão pró vacina que se articula no Congresso Nacional. Entendendo o paralelismo das arenas, é papel da oposição reforçar a coalizão sem permitir essa fraude. A marcação cerrada sobre o MS, com ou sem Pazuello, não poderá descansar. Precisa envolver a sociedade civil e ter clareza sobre o que propor.

Os pontos que alinhavei sugerem que cabe ao ex-ministro da Saúde papel de coliderança no grande esforço nacional para enfrentar a crise sanitária sem ceder ao caráter antissocial da política do governo e ao mesmo tempo sem dispensá-lo das pressões possíveis para que cumpra o seu papel. Sua imagem pública lhe permite agir ao modo usual da sociedade civil .

Ele também é um quadro da sociedade política que se conectou com o andar de baixo do eleitorado  sem a mediação de uma prévia identidade partidária. É um perfil incomum no âmbito do que se tem chamado de centro do espectro político. A dificuldade desse campo construir alternativas politicas viáveis na arena eleitoral presidencial possivelmente tem a ver com a lógica parlamentarista que costuma guiar a práxis dos seus quadros. Nesse sentido, Mandetta é um ponto fora da curva, porque funde uma prudência política centrista e afeita à arena parlamentar, com a conduta assertiva nos campos da gestão e da comunicação política, típica de protagonistas da arena de competição presidencial.

Por esse motivo penso que está em patamar diverso de outros nomes do chamado centro, que se concentram em entendimentos interpartidários, típicos da arena parlamentar, como possíveis plataformas de lançamento a projetos voltados a eleições majoritárias. Será bom caminho trocar a imagem do médico que não abandona o paciente pela de pré-candidato à procura de um partido? Ademais ele já faz parte de um, cujo rumo em 2022 é incerto e influenciável pela paciência. Visitar a planície do mercado partidário agora não parece ser caminho para que ele contribua efetivamente ao debate nacional em momento de emergência sanitária.  

O diálogo com parlamentares e partidos pode correr frouxo e a eles poderá retornar sempre, amarrando as coisas no devido tempo e com suficiente familiaridade porque outsider não é e possui, além do mais, posição ideológica clara, que costuma declarar. Sem ser de esquerda e jamais cogitar sê-lo, pode com ela dialogar e pontualmente convergir. Sendo da centro-direita e sem deixar de sê-lo, pode, dentro dela, divergir e levá-la a viagens mais interessantes do que as cercanias do palácio. Se nada disso ocorrer, mais uma vez, paciência. Terá travado o bom combate, numa emergência.

*Cientista político e professor da UFBa


Luiz Sérgio Henriques: Antagonismos em equilíbrio

Um ambiente plural e diversificado é o único antídoto contra aspirantes a ditador

No momento em que somos tentados a fazer o balanço de perdas e danos, lamentando, depois de 30 e poucos anos, as ilusões precocemente perdidas, convém lembrar os bons pressupostos e o início auspicioso deste período mais recente da nossa História política. A impressão generalizada em seguida ao regime militar era de que o País estava finalmente pronto para integrar, de corpo e alma, o grupo de nações que conseguem conjugar, com um grau mínimo de coerência, capitalismo e democracia, economia de mercado e integração social. Um grupo relativamente reduzido, é certo, mas habituado a sinalizar rumos e a atrair a esperança de quem vive sob regimes fechados mundo afora.

Na verdade, essa não era uma ideia surgida aleatoriamente na acidentada trajetória de modernização por que passamos. Na saída de uma dessas ditaduras que conformaram duradouramente as relações entre Estado e sociedade, a ditadura do Estado Novo, um grande conservador como Gilberto Freyre chamava a atenção para a plasticidade da formação social brasileira. Segundo ele, tal plasticidade, própria de um exuberante povo em formação, seria até capaz de irradiar para outras latitudes o amor à diferença, o propósito de conciliar elementos heterogêneos, étnicos ou culturais que fossem.

Freyre, no texto a que aludimos (A Nação e o Exército, de 1948), fechava os olhos para os aspectos novamente repressivos do governo da época, imerso na guerra fria e mecanicamente alinhado a um dos seus polos. Nada desprezível o impacto que teriam em futuros eventos a ilegalização do Partido Comunista e as intervenções arbitrárias no movimento sindical. Não era esse o caminho do Ocidente político que aspirávamos a ser, como o demonstravam, na mesma altura, os casos exemplares de França e Itália. Mesmo assim, o sociólogo nos descrevia como um país cujo destino tinha raízes na capacidade de manter o equilíbrio de antagonismos ou, o que assegurava ser a mesma coisa, a tolerância entre contrários.

Ocidente político não é nenhuma expressão cifrada, ainda que exija rigor conceitual e adesão consciente. Trata-se de uma situação, descrita classicamente por Gramsci, em que entre sociedade política e sociedade civil há um saudável equilíbrio. A primeira não esmaga a segunda nem tolhe arbitrariamente seus movimentos. Partidos, ONGs, imprensa, vida sindical, associativismo popular, tudo isso compõe um ambiente plural e diversificado, que, na verdade, é o único antídoto contra a permanente insídia dos autoritários e aspirantes a ditador. Para falar a verdade, é o anticorpo infalível contra a repetição das experiências totalitárias do século 20, entre as quais, ao lado dos fascismos, cabem muito bem o comunismo stalinista e suas derivações.

Freyre, apesar do tempo transcorrido entre o seu e o nosso tempo, estava bem consciente desse requisito “ocidental”. Um Estado “organizado” – particularmente o Exército, a instituição da força por excelência – e uma sociedade “desorganizada” caracterizam estruturas politicamente subdesenvolvidas, fadadas a sofrer periódicas recaídas autoritárias e recorrentes candidatos a Bonaparte. E foi essa lição decisiva que liberais, progressistas e até ampla parte da esquerda incorporaram como patrimônio na saída da segunda experiência de governo “forte” da modernização, entre 1964 e 1985. Um patrimônio que, como é de conhecimento público, tomou corpo na Carta de 1988, que passou a ser desde então a linha discriminatória entre democratas e não democratas.

Nem sempre os governos de esquerda estiveram à altura da ideia democrática rigorosamente concebida. Não me refiro só ao desvirtuamento do Parlamento ou a práticas de loteamento de estatais poderosas, mas também, e talvez principalmente, a orientações anacrônicas de valor, como concessões ao horizonte da “revolução” que se tentava reatualizar em outros contextos. Mas é forçoso admitir que hoje as democracias de tipo ocidental, entre as quais obstinadamente nos queremos incluir, estão sob evidente ameaça da extrema direita arregimentada sob a bandeira do nacional-populismo. Como em tempos sombrios do século passado, essa direita não democrática mimetiza o gesto revolucionário, produzindo paródias grotescas de assalto aos palácios de poder, como a vista no 6 de janeiro norte-americano. Efeito paródico que também se sente quando, por aqui, setores desgarrados do establishment desenham planos e balbuciam palavras de ordem antiestablishment, como se jacobinos fossem.

A democracia de 1946 durou menos de duas décadas e, no fim, não teve quem a defendesse, dada a variedade de atores que apostavam no confronto. Nada consolador o fato de que o regime nascido desse confronto viria a ser desenvolvimentista, remodelando a sociedade no sentido de “mais capitalismo”. A conta apareceu na forma de incultura cívica, menoridade intelectual e atraso político, que agora voltam a se manifestar como negação da tolerância e do equilíbrio de antagonismos. Um preço alto demais que, estejamos à direita ou à esquerda, devemos rejeitar com convicção.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Alon Feuerwerker: Como anda a luta pelo poder

Os dois principais acontecimentos políticos ao longo da semana ajudaram a sedimentar a configuração de poder em Brasília a esta altura do agitado mandato presidencial. O desenho passa, naturalmente, pelo presidente da República; pela relação cada vez mais estreita dele com os oficiais-generais da reserva que as crises vão aspirando para a máquina; e pelo domínio que hoje se pode chamar de absoluto dos partidos do dito centrão sobre o Congresso Nacional, especialmente sobre a Câmara.

O episódio do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) vem sendo exemplar. O parlamentar entrou numa briga que não era dele, com o objetivo de catapultar musculatura política. Deu tudo errado. Acabou oferecendo ao antes acossado Supremo Tribunal Federal a oportunidade de um contra-ataque no ponto mais vulnerável do front adversário, o Legislativo. Mas isso abriu para o presidente da Câmara uma via rápida de cristalização da autoridade sobre os pares. 

E atraiu para ele a simpatia de um setor da opinião pública que o via com um pé atrás. Ou, pelo menos, tirou-o momentaneamente da linha de tiro.

O segundo fato, a mudança no comando da Petrobras, ainda em curso, traz ao presidente da República a brecha para, finalmente, colocar uma cunha na, lá atrás, toda poderosa equipe econômica. Erros têm consequências, e a insensibilidade da petroleira diante da possibilidade de sua política de preços provocar uma greve nacional de caminhoneiros acabou custando a cabeça do presidente da estatal. Trocado convenientemente por um general, ex-ministro da Defesa e atual presidente de Itaipu.

Uma greve de caminhoneiros em meio às seriíssimas dificuldades provocadas pela pandemia teria forte potencial de desestabilização. É natural que os adversários desejem e estimulem. E é esperado que o Planalto procure evitar.

Vida que segue. Se tudo se passar como habitual no Brasil, haverá ainda alguma turbulência nos dois casos, mas rapidamente o mundo político-jornalístico retornará para o infindável debate sobre as vacinas da Covid-19 e sobre o novo auxílio emergencial, com que nome for. E o Congresso, agora mais arrumado politicamente, não deixará fechar a janela das reformas. Que precisarão ser negociadas, claro, mas cuja esperança de aprovação é o respirador a manter acesas duas luzes: a tranquilidade do Legislativo e o protagonismo do ministro da Economia.

Tudo pode desandar, dar errado para o Planalto? Sempre pode, mas a impressão de momento é as melancias continuarem se ajeitando na carroceria do caminhão conforme os solavancos da estrada. Um problema é o encolhimento da popularidade presidencial, causado pela atitude diante da pandemia e pela parada nas medidas de apoio emergencial. Mas em alguns meses estão previstas vacinas abundantes, da Fiocruz e do Butantan. E o Congresso vai acabar dando um jeito no socorro econômico. 

E quedas de popularidade, algo sempre arriscado no Brasil, podem ser mais confortavelmente administradas quando há aliados comandando as casas congressuais.

Para o projeto de Bolsonaro, o prestígio dele só precisa estar tinindo daqui a um ano e meio. O risco da popularidade baixa no meio do mandato é atiçar os apetites pelo impeachment. Isso está, no momento, muito distante depois das eleições no Legislativo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Evandro Milet: A espiral do silêncio sufoca o centro moderado e racional

Em meados da década de 70, a cientista política Elisabeth Noelle-Neumann formulou a Teoria da Espiral do Silêncio, após análise das pesquisas eleitorais na Alemanha. A ideia central é que as pessoas omitem sua opinião quando conflitantes com a opinião dominante devido ao medo do isolamento, da crítica, da zombaria, ou do que se chama hoje de cancelamento. O silêncio enfraquece ainda mais a opinião minoritária, e fortalece a opinião que parece prevalecer.

A propaganda política(e as redes, robôs e fake news) tenta então convencer que determinadas opiniões são majoritárias na sociedade para abafar a opinião contrária, o que nem sempre é verdade. As pessoas que concordariam com os que se calam  ficam constrangidas  e intimidadas e evitam se manifestar, em um crescendo nessa espiral do silêncio. Isso fica perceptível no Facebook em likes discretos que não se transformam em comentários. Há até uma expressão própria para essa síndrome, cunhada pelo psicólogo americano Michael Gervais: chama-se FOPO (“fear of other people’s opinion” ou medo das opiniões alheias)”. 

Durante muitos anos no Brasil, esse silêncio acontecia na direita, sem canais para se manifestar, principalmente nos costumes, onde a Rede Globo despontava com uma pauta civilizatória de avanços, engolida a contragosto por essa ala. O crescimento do número de evangélicos e a violência descontrolada, que desaguaram na eleição de Bolsonaro, desnudou esse pensamento, cujos simpatizantes se acharam maioria e passaram a cancelar o pensamento contrário. O duelo de cancelamentos fez com que a espiral do silêncio atingisse duramente o pensamento de centro, ora classificado como isentão, ora acusado de petista por um lado. Do outro lado, era culpado de ter apoiado o suposto golpe contra Dilma e ter permitido a eleição de Bolsonaro ao deixar de votar no professor Haddad, como se o PT merecesse ser votado, apesar do partido ter comandado o maior roubo da história.

A espiral do silêncio que atinge as posições de centro nas redes sociais libera cada vez mais uma espiral de sandices pouco contestadas, onde mesmo as manifestações mais absurdas sobre terraplanismo, remédios ineficazes, teorias da conspiração e mentiras são propagadas e defendidas vigorosamente. Ao mesmo tempo, o desastre que acontece nas áreas da saúde, educação, cultura, meio ambiente, relações exteriores, ciência e tecnologia e direitos humanos é solenemente ignorado ou justificado. Do outro lado prevalece a espiral da amnésia seletiva e a falta de autocrítica das lideranças petistas, mesmo diante do imenso volume de recursos devolvidos a partir de delações que colocavam tesoureiros do partido recolhendo percentuais de propinas em mochilas.

A suposta atual maioria, que as pesquisas de opinião restringem a no máximo 25%, são turbinadas por uma malha de propagadores, humanos e robôs, centralmente alimentadas. Amigos advertem amigos sobre postagens contra o governo como se não fossem patriotas ou avisam que “está ficando feio”, falando de dentro da sua bolha, supostamente majoritária. A espiral do silêncio provoca também o voto envergonhado que desmoraliza pesquisas ou o voto em quem se imagina que vá ganhar, para “não perder o voto”.

O centro democrático tem o defeito de ser moderado e racional em uma época que valoriza os extremos populistas, os discursos radicais e o ringue do “nós contra eles”. Que 2022 devolva a voz ao centro com a moderação, o racionalismo, o iluminismo, o desarmamento de espíritos para que o país possa crescer forte, com menos desigualdade e mais pacificado.


Pablo Ortellado: Um populista em ascensão

O deputado André Janones (Avante-MG) é o político mais popular sobre quem você não leu nos jornais — até agora. Embora seja o único político que consegue rivalizar em audiência e engajamento nas mídias sociais com o presidente Jair Bolsonaro, Janones é o que se poderia chamar de um deputado do baixo clero.

Seus números nas mídias sociais são impressionantes. Ele tem mais visualizações, mais compartilhamentos e mais engajamentos no Facebook do que Lula, Haddad, Ciro ou Doria. Só perde nesses quesitos para o presidente da República. Uma live que fez em 26 de março do ano passado explicando como acessar o auxílio emergencial teve 19 milhões de visualizações, aproximadamente 13% do eleitorado brasileiro.

Nada disso impediu que sua candidatura independente a presidente da Câmara tivesse apenas 3 votos. Antes, em 2019, sofreu um processo de cassação no Conselho de Ética por quebra de decoro, após dizer que seus colegas no Congresso eram “bandidos, corruptos e ladrões”. Sua live conclamando os apoiadores a defendê-lo teve 38 milhões de visualizações, surpreendentes 27% de todo o eleitorado.

Embora jovem (37 anos), Janones tem uma longa trajetória política, que passa pela UNE, uma militância em defesa dos direitos dos usuários do SUS no Triângulo Mineiro (“o Celso Russomanno da saúde”), até despontar como liderança do movimento dos caminhoneiros em 2018 e conseguir se eleger deputado federal. Foi filiado ao PT na juventude, passou pelo PSC e hoje está no Avante (antigo PTdoB).

Sua forma de fazer política, com uma carregada retórica anticorrupção e antissistema, além de uma conexão direta com os eleitores, dispensando a mediação dos partidos ou da imprensa, configura o que os cientistas políticos chamam de populismo —termo que, na sua acepção técnica, ele reconhece e adota.

Janones tem, porém, uma particularidade que o distingue de outros populistas brasileiros: tem uma agenda social forte. Ele votou contra a reforma da Previdência, defendeu as vítimas de Brumadinho contra os abusos da Vale e foi o mais aguerrido paladino do auxílio emergencial.

A combinação de uma pauta social com um discurso anticorrupção punitivista, embora muito comum entre os eleitores, é muito incomum no meio político brasileiro. Janones diz que prefere ser coerente com o povo do que com os políticos.

Essa postura lhe permite tomar equidistância tanto de Lula como de Bolsonaro, tentando escapar da polarização política e ampliar sua base de apoio. Essa tentativa de evitar a polarização se manifesta mais em independência política do que na adoção de uma agenda centrista.

O deputado tem também evitado os temas divisivos das guerras culturais, como ideologia de gênero, escola sem partido e armamento da população civil.

O esforço em não se definir como esquerda ou direita, como lulista ou bolsonarista, e em não tomar partido nas guerras culturais permite que se identifique apenas com o “povo”, esse termo vago e indefinido que o teórico político Ernesto Laclau chamava de um “significante vazio”. 


Ascânio Seleme: Cabo Daciolo faria melhor

O Brasil não assinou os contratos nos momentos adequados graças ao negacionismo do presidente Jair Bolsonaro. Hoje estamos no fim da fila.

O custo que pagamos em vidas pela imprevidência governamental será aumentado exponencialmente até que vacinas em larga escala comecem a chegar ao Brasil. Não faltam vacinas ou insumos para a sua fabricação nos centros produtores. O que há são cronogramas de entregas que atendem a ordem de assinatura dos contratos firmados com os fabricantes. O Brasil não assinou os contratos nos momentos adequados graças ao negacionismo do presidente Jair Bolsonaro. Hoje estamos no fim da fila.

O exemplo da vacina da Pfizer/BioNTech é particularmente ilustrativo. Bolsonaro exigiu que se mudasse no contrato uma cláusula pela qual a empresa não se responsabiliza por efeitos adversos que porventura ocorressem aos imunizados. Ele disse que se concordasse com aquela cláusula seria obrigado a exigir de cada brasileiro que assinasse um termo de responsabilidade ao ser vacinado. Bobagem do tamanho da ignorância do presidente. “Se você virar jacaré, é problema seu”, resumiu o homem eleito para proteger o Brasil e seu povo. O contrato poderia ter sido assinado em julho.

Em qualquer bula de remédios vendidos no país há uma lista de efeitos colaterais que eles podem gerar. São muitos. Há bulas que relatam até mesmo a ocorrência de alguns óbitos. Nem por isso esses medicamentos foram recolhidos das prateleiras das farmácias. Tampouco as pessoas deixaram de usá-los se esta foi a recomendação do médico. A asneira presidencial, portanto, só se entende se lida politicamente. Bolsonaro julgou que ganhava pontos com a bravata, apostou, perdeu e agora os brasileiros arcam com seus custos.

Há um outro elemento perturbador na disputa política que o presidente introduziu maleficamente na questão da pandemia. A Anvisa, que deveria ser autônoma, foi instrumentalizada por Bolsonaro. Embora defenda-se sua independência, havendo mesmo um ganho de respeitabilidade quando o deputado Ricardo Barros (Centrão) resolveu enquadrar a entidade em favor de negócios da sua turma, a verdade é que a Anvisa prestou alguns claros desserviços ao Brasil e aos brasileiros durante a saga negacionista do capitão.

Três exemplos da boa vontade da Anvisa com a política bolsonarista: 1) Interrompeu os testes da CoronaVac em razão de uma morte por suicídio, quando estava claro que não se tratava de resultado da vacina. A entidade mandou parar a testagem e deu palanque ao presidente. Só deixou os testes seguirem depois de muita gritaria; 2) Exigiu que vacinas fossem testadas no Brasil para aprovar o seu uso. Uma loucura, como se os brasileiros tivessem uma natureza especial. Acabou voltando atrás; 3) Tentou vergonhosamente proibir o uso no Brasil de vacinas aprovadas por diversas entidades do porte da FDA, a gigante similar americana da Anvisa.

O Brasil, que tem a melhor e mais bem preparada rede de postos de vacinação entre as grandes nações do mundo, e que poderia vacinar até dez milhões de pessoas por dia, segundo o ex-ministro Henrique Mandetta, imunizou até aqui tanto quanto nanicos como Israel e Emirados Árabes Unidos. Enquanto os Estados Unidos vacinaram 57 milhões até quinta-feira, o Brasil imunizou 6 milhões. Mas o problema é outro. Aqui a vacinação parou e ao que parece seguirá por espasmos, com chegadas de pequenos lotes até abril, quando espera-se que a oferta de insumos e vacinas poderá ser aumentada.

De hoje a primeiro de abril, mantida a média de mil mortes diárias, 39 mil brasileiros perderão a vida em decorrência da Covid-19. A vacinação em escala do SUS reduziria drasticamente este número. Muitas dessas mortes poderiam ser evitadas se nosso país fosse governado por Fernando Haddad, Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, João Amoêdo ou Cabo Daciolo. Nenhum deles seria tão estúpido quanto Bolsonaro. Já disse antes, mas não custa repetir, o custo da catástrofe brasileira deve ir para a conta do presidente do Brasil. E ele que não se engane, um dia esta conta vai chegar.

Bravateiro

As ameaças do troglodita Daniel Silveira de não deixar em paz os ministros do STF não significam nada, são bravatas. No futuro, se estiver solto e voltar a abusar da retórica, que de resto sequer deveria ser publicada, tornará a ser encarcerado. Isso não significa que os ministros não precisem de medidas de segurança especiais. As práticas do indigitado são típicas de milicianos. E… você sabe.

Eleitores

Quem elege um brutamonte desse é desconforme como ele ou estúpido como uma porta. Há também a hipótese de ter sido obrigado a votar nele. Difícil é imaginar o eleitor indo à urna para sufragar o sujeito, e pensando: “Meu deputado vai trabalhar pela minha comunidade, pelo meu município, pelo meu estado”.

Promiscuidade

O hipopótamo preso por atentar contra o STF foi tratado como um amigo por alguns policiais federais durante o tempo em que ficou detido na sede da PF do Rio. Tanto que na sua breve saída para a audiência de custódia foram encontrados dois celulares no local. As imagens dele circulando na casa demonstram a promiscuidade. Risinhos, olhares amigáveis, boa vontade, está tudo lá na coleção de vídeos feitos pela TV Globo. A certa altura, ele ofereceu uma bala a um agente, que aceitou. Teve um problema, foi com uma funcionária do IML, que exigiu dele o uso da máscara. Ele a desacatou nas barbas de outro policial, que nada faz. Se foi assim na PF, imagina como está sendo na PM, onde já foi visto passeando no pátio interno sem máscara. Aliás, o que ele ainda faz em carceragem especial? Seu lugar é Bangu.

Tudo tem limite

“Pela bondade de Deus, temos em nosso país três preciosidades fundamentais: a liberdade de expressão, a liberdade de consciência e a prudência de nunca praticar nenhuma delas”. Este alerta de Mark Twain recomenda implicitamente que não se ultrapassem certos limites, que podem ser legais, morais, éticos, religiosos. Todos podem ser ignorados, claro, mas o bom senso recomenda que não. A imprudência pode resultar em crimes, e alguns deles acabam mandando o quadrúpede para a cadeia.

Rio reforma

O projeto é ambicioso, mas se andar será uma revolução. O governo estadual quer modernizar o regime tributário do Rio reduzindo o número de leis fiscais. Hoje são 300, que se quer diminuir para alguma coisa entre cinco e dez. A Assembleia gosta da ideia, mas sua aprovação vai exigir negociações quase caso a caso. E é aí que residem os perigos e os percalços do projeto. Os grupos de pressão tentarão puxar e esticar a corda de acordo com seus interesses. Até aí, nenhum problema, é este mesmo o papel dos parlamentos. O importante é que os órgãos de fiscalização, inclusive a imprensa, mantenham vigilância permanente.

Armas 1

Bolsonaro poderia ir um pouco mais ao norte buscar exemplos para sua administração. Veja o caso do Canadá, onde armas automáticas foram banidas há anos, e nenhuma arma legal no país pode disparar mais de cinco balas antes de ser recarregada. O Canadá é o sexto país do ranking de violência do Índice Global da Paz, atrás apenas de Islândia, Nova Zelândia, Portugal, Áustria e Dinamarca. O Brasil é o 126º de um total de 163 países pesquisados, à frente do Haiti, do Zimbábue e de Mianmar, que está sob estado de sítio após um golpe militar.

Armas 2

O Centrão que abra o olho. Ao armar e municiar sua gangue mais radical, Bolsonaro está dando energia àqueles que veem fantasmas em todo lugar. Esta turma acha, equivocadamente, que no Congresso só tem ladrão. E que o símbolo dos ladravazes é justamente o Centrão. Foi isso o que aprenderam com o velho líder general Heleno.

General Pesadello

Ao contrário do que o mundo fez, isolando o Brasil em razão da nova cepa amazônica do coronavírus, o Ministério da Saúde espalhou contaminados entre diversos estados. Não se pode mesmo exigir muito do incompetente general Pazuello, que Vinicius Torres Freire, da “Folha de S. Paulo”, adequadamente chama de general Pesadello. Aliás, parabéns à “Folha” pelos seus cem anos.

A gravata do Lula

Foi o escritor e jornalista Ingo Ostrovsky quem observou. O general Eduardo Pazuello tem aparecido com uma gravata igual às que Lula e comitiva usaram em todos os eventos preparatórios da candidatura do Rio para sediar a Olimpíada de 2016. A estreia da gravata do Lula, como ficou conhecida, foi na Olimpíada de Pequim, em 2008. Ela tem fundo azul marinho com listras diagonais em verde, amarelo e branco, é de seda e foi fabricada na Itália por encomenda da Tie Rack, de Londres. Lula gostou tanto da gravata que continuou a usá-la em seu dia a dia. Seria interessante saber onde Pazuello foi buscar a sua.

Mulheres na direção

Por lei, todas as empresas públicas da Califórnia devem ter pelo menos uma mulher em sua diretoria. A lei exige ainda a presença de um membro que se identifique como parte de comunidades consideradas sub-representadas no estado, sejam LGBTQ+ ou minorias étnicas e raciais. Nos EUA, 30% das vagas na direção das 500 maiores empresas são ocupadas por mulheres. O Brasil não faz feio nesse quesito. Tem 34% das vagas de cargos de liderança sênior com mulheres. Acima da média global que é de 29%. Nosso maior problema são as minorias.

Descolonização francesa

Emmanuel Macron inicia ainda neste semestre o cumprimento de uma promessa feita em 2017, devolver ao continente africano tesouros artísticos e históricos levados para a França por colonizadores e que hoje repousam em museus do país. Vai começar pelo Benin, para onde serão devolvidas 26 peças do reinado de Dahomey. Grécia e Egito também querem de volta objetos que contam a sua História. Mas aí, o Louvre teria de fechar uma de suas três alas.


Míriam Leitão: Bolsonaro quer demitir presidente da Petrobras, mas só o Conselho pode

O presidente Jair Bolsonaro quer demitir o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, mas o problema é que ele só pode fazer isso com a concordância do conselho de administração. Por isso fez a declaração na quinta-feira na transmissão em rede social, criticando o dirigente da empresa, para provocar um pedido de demissão do próprio Castello Branco. O problema é que o atual dirigente da estatal não tem essa intenção. 

A informação que apurei é que há risco de o conselho de administração  renunciar. E mais: se a pressão continuar e o presidente da Petrobras for demitido, a diretoria também sairá. O impasse se torna aí mais forte.  A Companhia deve anunciar no próximo dia 24 um excelente resultado. A tensão é crescente entre a empresa e o governo.Para Bolsonaro, a saída pode não ser fácil e suas declarações de quinta à noite criticando diretamente o presidente da Petrobras e deixando no ar essa frase enigmática de que “alguma coisa vai acontecer” vai provocar muita volatilidade no mercado nas ações da empresa.

Bolsonaro quer com isso agradar aos caminhoneiros que voltam a falar de greve como informado aqui no blog. O presidente tem tido uma crise de raiva a cada aumento que a Petrobras anuncia, o problema é que o que ele quer controlar os preços da empresa e voltar ao tempo do congelamento como houve no governo Dilma e que levou a um prejuízo bilionário. A administração de Roberto Castello Branco tem reduzido o maior problema que é o alto endividamento da empresa. E a intenção na empresa é continuar seguindo a paridade internacional dos preços.

O corte nos impostos vai significar R$ 3 bilhões ou mais só a zeragem por dois meses dos impostos federais, e pode chegar a R$ 5 bi somando com a suspensão até o fim do ano dos tributos sobre gás de cozinha, como foi dito aqui. O governo terá que dizer de onde vai tirar, de acordo com o ordenamento fiscal do país e isso tem que ser dito hoje pela equipe econômica. Aliás a equipe está tentando cortar R$ 10 bi em orçamento que sequer foi aprovado e ele ja está criando mais despesas. 

O presidente se irritou até com a forma como o presidente da Petrobras chegou para a última reunião. De máscara e com óculos de EPI, para a proteção contra o coronavírus. No palácio, o uso da máscara e da rigidez das medidas protetivas é vista como uma atitude política contrária ao governo. O máximo que se faz é por a máscara, aparecer em público e depois tirar na hora de falar.

O Instituto Brasileiro do Petróleo soltou uma nota em que defende o mercado aberto. De acordo com o comunicado, o IBP afirma que somente com um mercado aberto, competitivo, dinâmico, ético, com segurança jurídica e previsibilidade regulatória, "o segmento será capaz de atrair novos atores e investimentos, de médio e longo prazo, em infraestrutura logística, produção de combustíveis e derivados, além da garantia do abastecimento nacional". 

Ainda de acordo com a nota, a "dinâmica de preços livres deve ser preservada, com alinhamento à paridade internacional, equilibrando a oferta e a demanda". 


Hélio Schwartsman: O que a Folha me ensinou

Errando e acertando, é jornalismo o que a Folha procura fazer

A Folha faz nesta sexta (19) 100 anos de existência. Eu, dentro de um par de meses, farei 33 anos de Folha. Foi meu primeiro e único emprego, ao qual cheguei por acidente.

É verdade que desde pequeno eu lia o jornal. Meu pai assinava a Folha e o Estado, e foi sobre o diário da alameda Barão de Limeira que minha atenção naturalmente recaiu. A Folha era visivelmente menos sisuda que o Estado na segunda metade dos anos 70. Nunca, porém, imaginei que um dia trabalharia no jornal.

A guinada veio em 1988. Recém-formado, em busca de algo para fazer antes de me dedicar integralmente ao que seria uma tese sobre a verdade em Platão, respondi a um anúncio da Folha em que ela recrutava tradutores. Não era bem assim. A vaga, na realidade, era para uma posição de redator na editoria de Exterior. Fiz a prova, a entrevista, fui chamado, aceitei e estou no jornal até hoje. Jornalismo vicia. A tese nunca foi escrita.

Esses 33 anos me ensinaram duas lições ontológicas. A primeira é sobre o papel do acaso, muito maior do que estamos dispostos a admitir. Uma edição de jornal nada mais é do que o catálogo dos principais acontecimentos fortuitos do dia anterior, do sorteio da Mega-Sena aos terremotos e acidentes. Assim como o acaso foi decisivo para a minha carreira, o é para tudo.

A outra é sobre a verdade. Cada um tem a sua. Platão estava errado. Mas, mesmo admitindo que objetividade e imparcialidade sejam uma quimera, não precisamos necessariamente concluir que o jornalismo é a realização diária de uma impossibilidade teórica.

Entre o dogmatismo com tons religiosos e o cinismo niilista, sobra bastante espaço para relatos que, sem a pretensão de verdade acabada, procuram honestamente estar tão perto dos fatos quanto possível.

Errando e acertando, é o que chamamos de jornalismo, e é o que a Folha procura fazer. Ao menos foi isso o que testemunhei ao longo de 1/3 dos 100 anos desta Folha.