vacinação

Bernardo Mello Franco: O levante dos governadores

Depois de atirar contra o Congresso, o Judiciário e a imprensa, Jair Bolsonaro voltou a culpar os governadores pelo descontrole da pandemia. No domingo, o presidente atiçou sua matilha virtual com números distorcidos. O ministro Fábio Faria completou o serviço. Tuitou que os estados tiveram “tempo e dinheiro sobrando” para conter a tragédia.

As contas do capitão estavam turbinadas. Ele somou repasses obrigatórios, verbas do Fundeb e até royalties do petróleo destinados aos estados. Num dos truques de ilusionismo, Bolsonaro disse aos eleitores que o Espírito Santo recebeu R$ 16,1 bilhões de Brasília. Os repasses extraordinários não passaram de 10% disso, esclareceu o governador Renato Casagrande.

Além de não entregar as vacinas prometidas, a União deixou de financiar cerca de nove mil leitos de UTI desde dezembro, segundo os secretários de Saúde. O dinheiro sumiu no momento em que os hospitais voltaram a lotar. No fim de semana, a ministra Rosa Weber ordenou a liberação dos repasses a três estados. Ainda é pouco para desarmar a sabotagem em escala nacional.

A provocação de Bolsonaro é tosca, mas aumentou a pressão sobre os governadores. Ontem dois deles se deixaram envolver num bate-boca rasteiro. Ibaneis Rocha, do Distrito Federal, acusou Ronaldo Caiado, de Goiás, de ter “problemas psiquiátricos”. Ouviu de volta que “só pensa em negociatas”. Ambos são aliados do Planalto.

A estratégia de dividir para conquistar ajudou Bolsonaro a vestir a faixa. Ao exagerar na dose, ele arrisca enfrentar um levante inédito. Diante de uma oposição inerte, os governadores começaram a ensaiar uma união para enquadrar o Planalto.

Na segunda, 19 deles acusaram o presidente de fabricar “informação distorcida” para “atacar governos locais”. Entre os signatários da carta, estão três bolsonaristas. O texto foi redigido pelo gaúcho Eduardo Leite, que votou no capitão e agora diz que ele “despreza a sua gente”.


Vera Magalhães: Tribunal da História é já

O que mais se ouve diante da sucessão de imagens e notícias que atestam nossa calamidade é: “Que horror!”. Sim, um horror. Mas que tem nome e sobrenome: Jair Bolsonaro.

Sem Jair Bolsonaro, nunca teríamos Eduardo Pazuello como o ministro da Saúde mais longevo de um ano de pandemia desenfreada.

Sem Jair Bolsonaro, já teríamos superado a idade da pedra da pandemia e não veríamos boçais repetirem o presidente em que se espelham e colocarem em dúvida a necessidade básica de usar uma máscara.

Sem Jair Bolsonaro, governadores não ficariam com medinho de adotar medidas mais que urgentes, na verdade atrasadas, para conter internações e mortes, pois não teriam hordas de arruaceiros atrás de si propagando absurdos.

Se é tão óbvia a responsabilidade do presidente da República, por que seguimos bovinamente repetindo “que horror”, em várias esferas da vida nacional, e nada acontece a ele?

Graças a pensamentos como o do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), para quem os crimes cometidos pelo capitão são colocados na conta dos “exageros retóricos” ou de “comportamentos pessoais condenáveis”, e qualquer medida de contenção prescrita na Constituição é descabida no momento.

Para Pacheco, a História tratará de apontar as responsabilidades pelos crimes da pandemia. Enquanto isso, a missão do Congresso, segundo ele, é garantir que o auxílio emergencial seja aprovado logo e que as vacinas cheguem em profusão aos braços dos brasileiros.

Se a omissão ao menos levasse a esses objetivos, vá lá. A História trataria de julgar também os parlamentares.

Mas não! A negociação do auxílio está emperrada na absoluta ausência de projeto, que deveria ter sido pensado ainda na virada do ano, para garantir o mínimo de compensação fiscal a que Paulo Guedes tenta se apegar.

Não só não existe essa engenharia, como também nada garante que o pagamento de R$ 250 por quatro meses passará no Congresso sem majoração de prazo e valor. O que levará Guedes, Pacheco e companhia de volta à estaca zero e postergará em dias ou semanas o pagamento.

Da mesma maneira, a tal “planilha” que o imperdoável Pazuello apresentou a Pacheco, Arthur Lira e companhia no domingo não passa de mais um papel de pão sem validade. O Ministério da Saúde não tem como garantir as quantidades de vacinas que tem prometido. Não com os acordos que assinou até aqui, preto no branco.

Existem protocolos de intenções com vacinas ainda não aprovadas pela Anvisa, e não existe nem sinal de compra daquela única já aprovada em definitivo pela agência, a da Pfizer! Um atestado simples da mais completa incompetência e falência do Plano Nacional de Imunização.

Mas, ainda assim, os órgãos de controle, o Ministério Público, o Congresso e parte da sociedade seguem num misto de pensamento mágico de que tudo vai se resolver, negação da gravidade e ilusão de que seja possível levar uma “vida normal”.

Diante de tal cenário, o ministro da Economia, para justificar seu apego a um cargo de que já foi destituído na prática pelo presidente, pede que lhe apontem se está indo no caminho errado, porque assim ele sairá. É embaraçoso que o responsável pela Economia, no momento de maior solavanco na vida econômica do país, não tenha GPS.

Ainda falta mais de um ano para as eleições, e os que podem agir agora, porque têm mandato e atribuição legal para tal, seguem fingindo que não é com eles.

Enquanto não se exigir de Bolsonaro que pare de sabotar as medidas de distanciamento e o plano de imunização, sob pena de pagar com o que lhe é mais caro, a cadeira, o Brasil seguirá com o nefasto título de pior país do mundo hoje no enfrentamento à pandemia.

Uma música de protesto de um tempo igualmente macabro da vida brasileira dizia que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Esperar o tal tribunal da História significa assumir e aceitar que pessoas continuarão morrendo aos milhares. E, assim, ser cúmplice de Bolsonaro.


Cristiano Romero: 'O Brasil é administrado por um software'

Vinculação de receitas foi instituída na hiperinflação

Durou poucos dias, menos de uma semana, a chance de o Congresso Nacional analisar a possibilidade de desvincular receitas orçamentárias. O relator da PEC Emergencial no Senado, Marcio Bittar, tirou a proposta da emenda, antes mesmo de levá-la à votação. Quem perde são justamente aqueles que os maiores defensores das vinculações dizem representar: os mais pobres, os que, na "corrida" de oportunidades da democracia, largam atrás dos ricos, dos corporativistas, dos donos do Estado, enfim, dos donos do poder.

As vinculações orçamentárias existem há muito no tempo não só na Ilha de Vera Cruz, mas em muitos outros países. No caso brasileiro, o atual sistema de vinculação foi instituído pela Constituição de 1988. Esta, lembremo-nos, foi debatida e formulada na saída de uma longa ditadura, quando, naturalmente, a sede de justiça social neste território marcado secularmente pela iniquidade social estava reprimida.

A Assembleia Nacional Constituinte reuniu as mais díspares forças políticas para escrever a Carta Magna da democracia que teríamos dali em diante. Nasceu, então, a Constituição "cidadã", como a batizou a principal liderança política da Nova República, o deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, morto num acidente de helicóptero em 1992.

Se por um lado, aproximou-nos de um projeto de civilização ao consagrar como cláusulas pétreas direitos e garantias fundamentais a igualdade entre nós, independentemente da etnia, da origem, do sexo, da idade etc, bem como ao acabar com a censura e ao dar a todos acesso universal gratuito à educação e à saúde, a Constituição de 1988 acolheu interesses de grupos específicos, acostumados historicamente a receber mais do Estado do que a maioria.

A Constituição de 1988 foi elaborada em meio a um contexto macroeconômico aterrador: o descontrole inflacionário, a hiperinflação, as sucessivas derrotas do país no enfrentamento do mal que vinha desorganizando o sistema produtivo nacional, concentrando renda e sabotando o futuro.

É evidente que, num ambiente como aquele, criou-se terreno fácil para a adoção de dispositivos de caráter populista, como a fixação de um limite para a taxa de juros (12% ao ano), a vinculação de receitas para obrigar os governantes a aplicarem recursos em educação e saúde, a indexação do piso da Previdência Social à variação do salário mínimo e a concessão de benefícios impagáveis ao funcionalismo, como a aposentadoria integral, estabilidade no emprego para todas as categorias e a paridade de reajuste salarial entre servidores públicos da ativa e aposentados.

O texto constitucional determina que a União aplique, anualmente, nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os municípios, 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, incluída aquela proveniente de transferências, "na manutenção e desenvolvimento do ensino". Segundo os dados oficiais, a União tem se mantido com folga acima do patamar indicado, e o texto de gastos, instituído por emenda constitucional em 2017, não alterou isso.

A vinculação, talvez, tenha tido seu mérito nos primeiros pós-1988 porque, de fato, era preciso ter mais recursos para cumprir uma das metas fixadas pela nova Constituição: universalizar o acesso das crianças ao ensino fundamental (o antigo 1º grau). No fim da década de 1980, o índice de matrícula nessa faixa estava em 80%, um vexame em qualquer lugar, mas, especialmente, num país que figurava entre as dez maiores economias do planeta. No fim da década de 1990, a taxa subiu para 97%, certamente, uma conquista comemorada por todos.

Nota do redator: em 1953, ano da campanha popular "O Petróleo é Nosso", que resultou no ano seguinte na fundação da estatal Petrobras, detentora de monopólio na exploração de petróleo nos 44 anos seguintes, apenas 25% das crianças estavam na escola. Isso mostra como, na Ilha de Vera Cruz, os mais pobres nunca são consultados sobre quais devem ser as prioridades do país.

O que vemos hoje, porém, é o desgaste do modelo de vinculações orçamentárias. A despesa da União com previdência está hoje em torno de 60% das receitas orçamentárias. Atribua-se a maior parte dessa conta às benesses concedidas ao funcionalismo e o atrelamento do piso do INSS ao salário mínimo, ambos previstos na Constituição de 1988. Some-se a isso as vinculações com saúde e educação, o gasto com pessoal, outras vinculações menores e o sem-número de incentivos fiscais e subsídios concedidos a grupos de interesse específico, o que se tem é um orçamento engessado, onde apenas 5% das receitas são discricionariamente gastas a partir de decisões tomadas pelo presidente eleito pela maioria dos eleitores. A rigidez se repete, evidentemente, nos orçamentos de Estados e municípios.

"O Brasil é administrado por um software", disse, antes de deixar o cargo de secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, numa feliz referência à rigidez orçamentária que nos governa.

A primeira reação ao debate da desvinculação de receitas é: "Os governantes não investirão mais nada em educação e saúde". Ora, isso é uma enorme bobagem, afinal, a despesa deixará de existir? É claro que não! Hoje, a vinculação é um incentivo perverso ao gasto ineficiente, ao desperdício e à corrupção.

No interior do Ceará, modelo de avanço nos índices de atendimento e qualidade na educação fundamental, os municípios com melhor desempenho no Ideb são os que têm desembolsado recursos abaixo da vinculação. Como explicar isso?

Dias e Ferraz (2020) demonstram que pode haver ganhos, ainda que modestos, no número de votos para prefeitos candidatos à reeleição em municípios em que o Ideb foi divulgado e em que houve algum aumento nos índices de qualidade em educação. Da mesma forma, para municípios com escolas com pior desempenho, a divulgação da informação levou a uma redução na proporção de votos recebida pelo prefeito incumbente.


Fernando Exman: Agenda da retomada deixada para depois

Relação federativa enfrenta novas dificuldades

Na primeira quinzena de 2021, talvez ainda comovidos com as festividades de fim de ano e o novo ciclo que se iniciava, alguns governadores demonstravam relativo otimismo em relação ao primeiro semestre.

O programa nacional de imunização contra a covid-19 acabava de ser apresentado pelo Ministério da Saúde, após pressão do Judiciário e intensos embates entre o Executivo, governadores e prefeitos. Havia a esperança de que seria realizada, a curto prazo, uma reunião com o presidente Jair Bolsonaro e seus auxiliares para a discussão não só de como rapidamente imunizar a população, mas do reaquecimento da economia.

Embora hoje essa ideia pareça tão distante quanto a imunização total da população brasileira, à época a expectativa era até justificável. Ainda se acreditava na possibilidade de confirmação da tal recuperação em formato de “V”, tão prometida pelas autoridades federais e que depois foi sendo substituído no discurso oficial para algo como “o símbolo da Nike”. Ou seja, uma retomada menos vigorosa, após o fundo do poço ter sido atingido. Ainda se aguarda a concretização desse rebote.

A rápida recriação do auxílio emergencial era vista, pelos governadores, como um pressuposto para que melhores perspectivas surgissem no horizonte. Isso sem contar o fato de que a economia local e a arrecadação de Estados e municípios também dependeriam da manutenção do poder de compra da população. Os governadores estavam confiantes que não haveria muitas dificuldades para o repasse de novas parcelas de R$ 300 para as contas das famílias mais miseráveis do país.

Na sequência, seria natural que governo federal, governadores e prefeitos debatessem em conjunto formas de melhor direcionar o investimento público. Não só as verbas discricionárias dos ministérios, mas também os recursos sob os cuidados dos Estados e municípios, de modo a otimizar esforços, gerar empregos e rapidamente melhorar a imagem do Brasil entre os investidores estrangeiros. Constaria da pauta, ainda, formas de destravar concessões e parcerias-público-privadas (PPPs) - iniciativas que não representariam riscos ao teto de gastos e, ao mesmo tempo, colocariam novamente as engrenagens da economia para se mover nas mais diversas regiões do país.

Era o plano. E o gatilho que gerava esse sentimento entre os governadores era justamente a apresentação do aguardado programa nacional de imunização. Não é de surpreender, portanto, que esse planejamento inicial não se confirmou.

O conflito entre o presidente da República e os governadores voltou à pauta extrapolando os limites antes delineados por Bolsonaro. Seus ataques não se direcionam mais apenas aos governadores que poderiam lhe representar algum risco direto nas eleições de 2022, como João Doria ou Wilson Witzel. Passaram a ser horizontalizados. Colocaram todos os governadores, de partidos aliados inclusive, na linha de tiro.

Primeiro o presidente enviou ao Legislativo um projeto de lei complementar propondo mudanças no cálculo do ICMS sobre combustíveis, uma das fontes de arrecadação dos Estados. O objetivo é dar mais estabilidade aos preços, facilitando principalmente a vida dos caminhoneiros, categoria alinhada a Bolsonaro.

A equipe econômica argumenta que o projeto não gera necessariamente perdas aos Estados e ao Distrito Federal, pois estes manteriam autonomia para fixar alíquotas e garantir os atuais patamares de arrecadação. Por outro lado, o simples ato de apresentar a proposição já gerou um ônus político aos governadores, que irão se ver obrigados a explicar aos eleitores por que o governo federal estaria sozinho na busca para reduzir os preços dos combustíveis. O projeto tenta ressuscitar uma ideia que já foi bombardeada duas vezes no Congresso e acabou não prosperando, mas para o presidente o que interesse mesmo é um álibi a apresentar durante a campanha à reeleição.

Mais deselegante foi a recente postagem de Bolsonaro detalhando repasses federais para cada Estado, entre elas transferências obrigatórias. A publicação incluiu valores para a saúde, a suspensão ou a renegociação de dívidas, até o auxílio emergencial cujo valor foi elevado após pressão dos congressistas. Novamente os governadores ficaram politicamente expostos, mas desta vez o interesse deles se uniu a um movimento já em andamento em Brasília.

Entre a linha de tiro e os alvos do presidente, posicionou-se o Congresso. Bolsonaro ajudou a acelerar as articulações entre os governadores e a nova cúpula do Legislativo, que vem intensificando os esforços para que deputados e senadores tenham cada vez mais poder sobre o manejo das verbas orçamentárias. O que os parlamentares querem acabar é justamente com a personificação das benesses resultantes da execução do Orçamento-Geral da União na figura do chefe do Poder Executivo. Bolsonaro pode acabar facilitando a vida dos defensores da ideia.

Essa aliança tática pode gerar ainda outros constrangimentos a Bolsonaro. Deputados e senadores insistem, por exemplo, no estabelecimento de prazos para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovar as vacinas, na liberação da compra dos imunizantes pela iniciativa privada e podem aliviar a situação dos Estados e dos municípios na PEC emergencial.

O governo precisará de apoio para que o programa nacional de imunização, o plano gerido pelo Ministério da Saúde, seja o único instrumento de imunização da sociedade. As discussões sobre “lockdown”, que Bolsonaro tenta evitar, necessariamente passarão por eles.

Prefeitos e empresários pressionam o Congresso para que isso seja flexibilizado. Laboratórios estão sendo procurados para que importem ou produzam de forma autônoma as vacinas o mais rápido possível, inclusive unidades veterinárias que poderiam rapidamente ser adaptadas. Os gestores estaduais também se preparam para os debates que a pandemia fomentará em 2022 e com certeza cobrarão a falta de resposta à agenda de retomada.


Conrado Hübner Mendes: Manifesto alarmista

Para desbolsonarizar o futuro, nada é mais arriscado que o compasso de espera

Há presidentes que governam por decreto. Outros, por iniciativa legislativa, emendas constitucionais, tudo isso combinado e mais um pouco. Jair Bolsonaro governa por crimes comuns e de responsabilidade, na ação e na omissão. Sua insubordinação performática à lei, ao decoro e à civilidade sempre foi tratada como caricata. Na Presidência, rotinizou a agressão à liberdade, à vida e à soberania. Durante a pandemia, a técnica se fez mortífera em massa.

Diante da ameaça que se materializa, para começar, em 260 mil mortes (em parte evitáveis), o alarmismo resta como única postura realista e racional frente aos fatos. Em nome da honestidade, o alarmismo torna-se demanda ética e chamado pragmático de sobrevivência.

O alarmismo pode vir para o bem e para o mal. Pode ofuscar o problema, explodir pontes, produzir pânico, ruído e ação ineficaz. Soar o alarme quando o perigo não existe cobra seu preço. Na história, soar o alarme cinicamente contra os inimigos imaginários levou a golpes, intervenções militares, fúrias redentoras e lavajatistas ou a recusas da vacina chinesa.

A vocação antialarmista, quando fatos desaconselham, também tem custo. Alertava-se, por exemplo, contra os alarmistas dos anos 30. Quando Churchill fez discurso assustado diante da anexação da Áustria, em 1938, um conservador de cachimbo tranquilizou os espíritos: “Ele gosta de sacudir a espada, mas você tem que tratá-lo com um grão de sal”.

O pacto antialarmista vigente, sem nenhum grão de sal, neutralizou a possibilidade de entender o Brasil de hoje e imaginar o Brasil que se avizinha. A esse pacto já se reagiu com mais de 70 pedidos de impeachment, representações criminais, ações judiciais, denúncias internacionais, furos jornalísticos, gritos incrédulos pelos hospitais do país.

Para contar essa história com o devido senso de urgência, esboço aqui um manifesto alarmista. Não é contribuição à literatura distópica, mas crônica realista em pelo menos seis postulados.

1) “O negacionismo mata, a complacência anestesia.” Na enciclopédia do negacionismo brasileiro, não há risco à democracia, nem ameaça sanitária, aquecimento climático, racismo, homofobia, corrupção e violência policial. O ilusionismo sequestra as emoções primárias e espalha violência.

2) “Bolsonaro se fez inimputável, infalível e irresponsável. Só não é inacreditável.” Bolsonaro não está errando e avisou o que faria. Já estava no seu prontuário, na ficha corrida, nos registros parlamentares e na biografia.

3) “A Constituição está sendo revogada.” A campanha de liquidação de ativos constitucionais esvazia seus compromissos civilizatórios sem mudar seu texto.

4) “Instituições de Estado se rendem, em parte, às tentações colaboracionistas e às investidas de cooptação e captura.” Não é só Judiciário e Parlamento. A politização de instituições de Estado atravessa o Ministério Público, a advocacia de Estado, as profissões militares e um grande edifício de instituições de controle dentro do Executivo e políticas públicas.

5) “O mantra ilusionista ‘povo armado não será escravizado’ pavimenta a república das milícias, não a segurança, muito menos a liberdade.” Armamento e degradação ambiental são as linhas vermelhas de Bolsonaro, pelas quais irá às últimas consequências.

6) “Democracia não é máquina de contar quem tem mais votos.” Vamos aprendendo na marra o que a filosofia política e a história já tentaram ensinar: não bastam eleições para se ter democracia nem uma turba qualquer para se ter povo. Tampouco precisa de golpe para se implantar ditadura.

O que vem pela frente será pior. Politicamente, pior que os últimos 30 anos e pior que os últimos dois anos. Do ponto de vista sanitário, 2021 será pior que 2020. Climaticamente, a devastação ambiental contribui para um futuro mais grave que qualquer outro momento da era industrial. As consequências sociais e econômicas cabe a nós imaginar.

Não há vacina para imunização instantânea contra um ethos bolsonarista que sofre mutações e se multiplica. Mas há remédio e terapia para tentarmos desbolsonarizar o futuro. Nada é mais arriscado que o compasso de espera, como se o jogo fosse o mesmo de antes, nos termos de antes.

*Conrado Hübner Mendes, professor de Direito Constitucional da USP, é doutor em Direito e Ciência Política e Embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.


Vinicius Torres Freire: Remendo medíocre evita a explosão de fome e dívida no governo Bolsonaro

Para salvar Bolsonaro, PEC do auxílio e dos gastos empurra problema com a barriga

Nestes dias, o país discute como vai sobreviver a Jair Bolsonaro, ao morticínio, a fomes e a intervenções econômicas que podem danar até o crescimento medíocre previsto para 2021. Além do mais, o Brasil passa por uma guerra civil federativa, de estados e cidades em conflito com o governo federal.

Esse tumulto fúnebre tira de vez a atenção de um assunto sempre difícil ou francamente chato, mas essencial: as possíveis mudanças no gasto e na dívida do governo previstas pela proposta de emenda à Constituição (PEC) 186, a que também vai regulamentar a nova rodada de auxílio emergencial.

A PEC 186 na prática vai servir para empurrar com a barriga a mesmíssima situação em que estão as contas do governo. Isto é, se emenda não for ainda mais amputada ou lipoaspirada quando for a votação. Impede alguma explosão e sururu radical na finança (alta de dólar e juros em caso de rachaduras no “teto”), mas basicamente não muda a situação. Logo, apenas adia a discussão fundamental do que o país vai fazer de teto, gasto, dívida, investimento em produção e civilização, debate impossível até que voltemos a ter um governo e política civil.

Aprovada como estava até terça-feira (2), a PEC deve permitir que o “teto” de gastos federal resista pelo menos até o início do mandato do próximo presidente. A despesa de investimento em obras (como estradas ou hospitais), ciência ou saúde ficará no mesmo nível arrochado de agora, no máximo, na mais otimista das hipóteses.

Sem entrar em tecnicalidades, a despesa obrigatória será contida em até 95% da despesa total (como prevê a PEC) por meio da contenção do gasto com servidores públicos, no grosso. Na prática, tal despesa não poderá crescer mais do que a inflação em 2022 e 2023 (além do crescimento vegetativo, como promoções automáticas etc.) e, depois desses anos, nem isso. É o que indicam contas feitas com base em dados da Instituição Fiscal Independente, de acompanhamento de contas públicas, ligada ao Senado, dirigida por Felipe Salto

A PEC prevê também aumento de impostos, na prática. Isto é, define que devem ser canceladas certas renúncias de receitas (reduções de impostos para certas empresas ou indivíduos). Mas há tantas exceções que será impossível reduzir essa renúncia em cerca de 0,25% do PIB a cada um dos próximos oito anos, como se deduz da PEC (não vai se chegar nem a 40% disso). Por exemplo, a PEC permite acabar com a dedução de saúde e educação privadas no IR, mas isso deve cair também. Logo, difícil que saia alguma receita daí.

Na previsão da IFI, a receita do governo até 2030 fica abaixo da média dos anos Dilma 1 em pelo menos 1% do PIB. A arrecadação (como proporção do PIB) aumentaria mais apenas em caso de crescimento acelerado da economia com ênfase em setores mais formais e que pagam mais impostos. Esse milagre de crescimento dependeria de um dilúvio de investimento privado, o que não está no horizonte até pelo menos 2022.

A PEC em tese prevê uma mudança no modo de lidar com as contas públicas. Diz lá que uma lei complementar vai estipular algum limite para a dívida pública e quais os meios de controlá-la (com metas de contenção de gastos ou outras). Pode dar em reviravolta, em revolução fiscal ou em nada, virando letra morta, o que no caso talvez não seja má ideia.

A PEC não tem “contrapartidas” para o gasto com o novo auxílio emergencial. Isso tudo era conversa mole e pano passado para Paulo Guedes e turma. A PEC não resolve nada. É um remendão para a coisa não explodir até 2022.


Bruno Boghossian: Combustíveis devem ser mais um foco de atrito entre Bolsonaro e governadores

Presidente quer reforçar visão de que age no front econômico enquanto governos restringem atividades

Jair Bolsonaro fez uma jogada dupla ao zerar tributos sobre o diesel e o botijão de gás. Ainda que o efeito sobre o preço final seja modesto, o presidente vai mobilizar a máquina de propaganda do governo para colher benefícios com a medida. De quebra, ele deve reabrir uma disputa com governadores e tentar fustigar aqueles que atualmente são seus principais adversários políticos.

O Planalto vai fazer o possível para mudar de assunto na fase crítica de mortes por Covid-19 que o país voltou a enfrentar. Uma medida econômica com impacto sobre os caminhoneiros da base bolsonarista e milhões de brasileiros que usam botijões de gás já começou a ser explorada como válvula de escape.

Bolsonaro prepara um pronunciamento na TV para tirar proveito da redução. Segundo auxiliares, ele deve citar ações ligadas à compra de vacinas, mas também vai aproveitar o espaço para citar o corte de tributos. A ideia é reforçar a visão de que o Planalto age no front econômico no momento em que governos locais restringem as atividades para conter o colapso da rede hospitalar.

A opção de dobrar a aposta no negacionismo e atacar as medidas de redução da circulação vem acoplada a uma disputa econômica com os governadores. Num momento de escalada da tensão entre o Planalto e os estados, Bolsonaro tenta pintar seus rivais como alguns dos principais vilões dos combustíveis caros.

Ao comentar a redução dos tributos nesta terça (2), o presidente destacou que cartazes deverão discriminar a composição do que é cobrado dos consumidores, “para a gente começar a apurar os verdadeiros responsáveis pelo preço alto dos combustíveis”. Ele citou as distribuidoras, os postos e os estados.

Essa batalha é antiga. No ano passado, Bolsonaro desafiou governadores a zerar o ICMS para baratear os combustíveis. Ninguém topou, já que o tributo é uma fonte de receita importante nos estados. Num país que bate recordes diários de mortes, o presidente só trabalha com afinco para alimentar desavenças políticas.


Ruy Castro: Sem limites morais ou humanos

Bolsonaro segue uma estratégia já vitoriosa no passado --a de Mao Tsé-tung na China

Na sexta-feira última (26), Jair Bolsonaro foi na mosca ao escolher o Ceará para cometer novos crimes contra a vida, induzindo o país a ignorar o isolamento, aglomerar-se nas ruas e não usar máscara. O Ceará é um dos estados em escuro no mapa, em que a taxa de ocupação das UTIs passa de 90%. Significa que muitos de seus apoiadores cearenses —ou os pais ou mães deles—, eventualmente apanhados pela Covid, podem estar morrendo na porta do hospital por falta de leito.

Vindo de um presidente da República, tal atitude só seria natural num irresponsável. Mas Bolsonaro sabe o que faz —o que tem a ganhar com isso é mais importante. Suponha que tal convite à insubordinação, assim como suas mentiras, seu poder corruptor e sua truculência, faça parte de uma estratégia anterior a ele, já provada vitoriosa.

Há mais de 50 anos, outro governante rompeu com seu partido, traiu os aliados e dedicou-se a desmoralizar o Congresso, o Judiciário e até as Forças Armadas. Esvaziou também a ciência, o ensino, a segurança pública e a própria administração e exortou seus seguidores a exercer a chamada democracia direta, através de grupos paramilitares livres para atuar. Esse governante —o "mito" que garantia tamanho caos— se chamava Mao Tsé-tung. E essa política foi a Revolução Cultural, que, enquanto durou, de 1966 a 1976, praticou toda espécie de violência em nome da "verdade".

Bolsonaro está cumprindo à risca esse plano, que não conhece limites morais ou humanos. Seu objetivo é o poder absoluto, e, para isso, corrompe e paga bem os que lhe são úteis --enquanto lhe são úteis. Virada a página, Bolsonaro os abate e abandona na estrada, donde os de farda, terno ou toga que se julgam seus aliados por ideologia preparem-se para surpresas. O poder só é poder se absoluto.

Mao morreu em 1976, aos 82 anos, e a Revolução Cultural acabou. Nem o poder absoluto é eterno.


Ricardo Noblat: Brasil, um país à deriva e com o apocalipse sanitário à vista

Fala, Bolsonaro!

Quem diria… Há dois anos, a maioria dos que se preparavam para votar em Jair Bolsonaro, o Mito, como era chamado, dizia que uma vez eleito, ele combateria a corrupção como nenhum presidente havia feito antes, defenderia os sacros valores da família brasileira e ofereceria uma vida melhor aos brasileiros.

Como essa gente estará se sentindo depois de ver Sergio Moro fora do governo, a Lava Jato sendo enterrada, o senador Flãvio Bolsonaro envolvido no escândalo da rachadinha e obrigado a justificar a compra de uma mansão de 6 milhões de reais em Brasília, e o novo recorde de mortes provocadas pela Covid?

Nas redes sociais, por enquanto, é de desânimo o estado de espírito dos defensores do ex-capitão. Os fatos se sucedem a uma velocidade alarmante e eles mal têm tempo para respirar, quanto mais agarrar-se a bóia de uma narrativa que pareça convincente. Não significa que ficarão órfãos. Há quem sempre pense por eles.

O próprio Bolsonaro ensaiou uma explicação ao reunir-se com devotos nos jardins do Palácio da Alvorada. “Querem me culpar pelas 200 e tantas mil mortes”, disse ele. “O Brasil é o 20º país do mundo em mortes por milhão de habitantes. A gente lamenta? Lamentamos. Mas tem outros países [em pior situação]”.

As famílias e os amigos dos 1.726 mortos pela Covid nas últimas 24 horas aceitarão de bom grado a desculpa oferecida pelo presidente? Morreram até ontem 257.562 pessoas, e 10.647.845 foram contaminadas. A média de mortes por dia é 23% maior do que a registrada há duas semanas.

Em média, são 55.318 novos casos por dia, 22% a mais do que 14 dias atrás. Portanto, a tendência é de alta nos casos e também nos óbitos. São 15 Estados e mais o Distrito Federal com alta na média de mortes. Com queda, três. Apenas 3,36% da população receberam a primeira dose de vacina, e 1,02% a segunda dose.

Acendeu a luz vermelha em todo o país com o agravamento da pandemia – menos, naturalmente, no Palácio do Planalto e no Ministério da Saúde do general Eduardo Pazuello. No palácio, a preocupação com o filho mais velho de Bolsonaro ocupou quase todas as rodas de conversa e os despachos de rotina.

Entre si, assessores presidenciais chegaram a sugerir que Bolsonaro repreendesse publicamente Flávio como fez no caso da rachadinha em janeiro de 2019. Naquela ocasião, o presidente afirmou em resposta à pergunta de um jornalista:

– Se, por acaso, ele errou e isso ficar provado, eu lamento como pai, mas ele vai ter que pagar o preço por essas ações que não podemos aceitar.

Resposta civilizada, não foi? Um ano depois, Bolsonaro começou a mandar jornalista calar a boca. Com mais alguns meses, ameaçou encher de porrada a boca de um jornalista. Há dias, indagado por um jornalista do Acre sobre uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que beneficiou Flávio, Bolsonaro encerrou a entrevista.

Flávio é um aplicado agente imobiliário. Desde que se elegeu pela primeira vez deputado estadual pelo Rio de Janeiro, já comprou e vendeu 20 imóveis, saindo sempre no lucro. Parte da compra dos imóveis foi feita com dinheiro vivo, hábito compartilhado com seus irmãos, pai, mãe e ex-madrastas. É mais fácil assim, sabe?

Era para Bolsonaro ter falado ontem ao país em rede nacional de rádio e televisão. Estava tudo pronto para a gravação quando ele achou melhor transferi-la para hoje. Temia ser recepcionado por um panelaço no dia em que só se falava da história da mansão milionária do filho dono de renda modesta.

Ainda muito se falará. Dado o momento que o país atravessa, dia de panelaço é todo dia.

Com Ciro e Haddad como coveiros, frente de esquerda é enterrada

Poderá ou não ressuscitar no segundo turno

Cada um culpará o outro e explicará o fato de acordo com suas conveniências. Mas se parte da esquerda ainda alimentava o sonho de uma frente ampla para enfrentar Jair Bolsonaro no primeiro turno da eleição do ano que vem, o sonho acabou.

Na semana passada, Ciro Gomes (PDT), derrotado três vezes para presidente da República, jogou uma pá de cal na proposta de unir a esquerda:

 “Quem for contra o Bolsonaro no segundo turno tem a tendência de ganhar a eleição. O menos capaz disso é o PT. Por isso, a minha tarefa é necessariamente derrotar o PT no primeiro turno”.

Fernando Haddad (PT), autorizado por Lula a viajar em campanha pelo país, jogou, ontem, a segunda pá de cal:

“A direita tem o Ciro, Moro, Mandetta, Huck, Dória, qual é o problema? Isso tudo tem um ano e meio para se discutir. Não faz sentido inibir uma pessoa de se apresentar e conversar com a sociedade”.

Ciro antecipou que não conversará com o PT porque sua tarefa é impedir que ele dispute o segundo turno com Bolsonaro. Haddad respondeu excluindo Ciro, por ser de direita, de qualquer conversa sobre a construção de uma frente ampla de esquerda.

A esperança de Haddad é que ele seja o candidato do PT e do resto da esquerda no primeiro turno. A de Ciro, que ele vire o candidato da direita não bolsonarista e de uma parte da esquerda que prefira distanciar-se do PT.

Não haverá frente de esquerda, muito menos ampla. Haverá mais de um candidato. Quanto ao segundo turno, é cedo para especular a respeito. Por ora, a esquerda de todos os matizes diz que apoiará o nome que possa derrotar Bolsonaro, não importa qual.

A ver, a ver.


Com pandemia, PIB despenca 4,1% em 2020, maior queda desde o confisco de Collor

Resultado vem em linha com a expectativa de mercado e faz país encerrar dezembro com a pior década em 120 anos. No último trimestre, economia avança 3,2%

Carolina Nalin e João Sorima Neto, O Globo

RIO — A pandemia derrubou o Produto Interno Brasileiro (PIB) em 2020, levando o país a enfrentar a mais profunda recessão em décadas. A economia encolheu 4,1%, segundo dados divulgados nesta quarta-feira pelo IBGE, a maior queda desde 1990, quando houve o confisco do presidente Fernando Collor de Mello.

Naquele ano, o PIB brasileiro desabou 4,35%. O desempenho do ano passado veio em linha com as expectativas de mercado, que projetava queda de 4,20%.

O resultado de 2020 também leva o país a um desastre econômico mais grave que o vivenciado na década de 1980, a chamada década perdida, quando estagnação e hiperinflação faziam parte do cotidiano dos brasileiros.

Segundo estimativas do Ibre-FGV, a economia cresceu 0,3% ao ano na década encerrada em 2020, desempenho pior que o registrado nos anos 1980, quando avançou 1,6% anualmente. Com isso, a última década terá sido a pior em 120 anos.

A série histórica do IBGE, pela atual metodologia do instituto, teve início em 1996. Mas estatísticas do Ipea e da FGV trazem dados para o PIB desde 1901.

Com tamanho tombo da economia e elevado desemprego, a renda per capita foi a menor da História em 2020. Ficou em R$ 35.172, baixa de 4,8% em relação a 2019.

Serviços e indústria puxam queda

Segundo o IBGE, o setor de serviços encolheu 4,5% e a indústria, 3,5% no ano passado. Somados, esses dois setores representam 95% da economia nacional. Por outro lado, a agropecuária cresceu 2%, puxada pelas safras recordes se soja e café.

O fechamento de hotéis, academias e restaurantes foi o segmento dentro da área de serviços que teve o pior desempenho, pois foram muito afetados pelas medidas de distanciamento social.

 “O resultado (do PIB em 2020) é efeito da pandemia, quando diversas atividades econômicas foram parcial ou totalmente paralisadas para controle da disseminação do vírus”, analisa a coordenadora de Contas Nacionais, Rebeca Palis.

Ela continua:

"Mesmo quando começou a flexibilização do distanciamento social, muitas pessoas permaneceram receosas de consumir, principalmente os serviços que podem provocar aglomeração".

Construção civil despenca

Na indústria, o segmento de construção civil foi o mais fortemente afetado. Apesar do recorde de financiamento com recursos da poupança para compra da casa própria no ano passado, a construção civil desabou 7% em 2020.

A indústria da transformação recuou 4,3%, principalmente devido à queda na produção de veículos. Já a chamada indústria extrativa avançou 1,3%, com alta na produção de petróleo e gás, que compensou a queda da extração de minério de ferro.

Pelo lado da demanda, todos os componentes recuaram em 2020, na comparação com o ano anterior. O consumo das famílias  caiu 5,5%, o pior resultado da série histórica do IBGE, iniciada em 1996.

Consumo das famílias tem queda histórica

Isso pode ser explicado, segundo a coordenadora de Contas Nacionais, principalmente pela piora no mercado de trabalho e a necessidade de distanciamento social.

A queda no consumo do governo também foi histórica (-4,7%),com o fechamento de escolas, universidades, museus e parques ao longo do ano.

Já os investimentos (Formação Bruta de Capital Fixo) caíram 0,8%, encerrando uma sequência de dois anos positivos.

Perda de fôlego no 4º trimestre

Ao longo do ano, o PIB despencou no segundo trimestre, quando as restrições à circulação foram mais rígidas. Os três meses seguintes apontaram para uma recuperação, ainda que lenta.

No quarto trimestre, porém, a economia voltou a perder fôlego. O PIB cresceu 3,2% entre outubro e dezembro. A mediana das expectativas do mercado era de alta de 2,8%.

O país até teve certo dinamismo no último trimestre, fruto do arrefecimento da Covid-19 a partir de setembro, o que permitiu o afrouxamento das medidas de distanciamento social.

No entanto, o recrudescimento da doença nos meses seguintes e a redução do valor do auxílio emergencial fizeram a atividade econômica perder força e o ritmo de recuperação desacelerar.

Projeção de queda no 1º trimestre

O ritmo lento de vacinação por conta da falta de vacinas, o fim do auxílio emergencial a partir de janeiro e sem a definição de um novo programa, além da preocupação com o endividamento público têm levado analistas a estimarem uma queda no PIB no primeiro trimestre de 2021.

A Tendências projeta um pequeno crescimento do PIB no primeiro trimestre, seguido de uma leve queda no segundo. Mas a consultoria não descarta a possibilidade de um cenário com duas quedas consecutivas do PIB no ano, levando o país de volta à chamada recessão técnica:

— Viemos de dois trimestres positivos. Então, a base de comparação é mais elevada, e a ressaca do fim dos auxílios e a piora da pandemia sugerem um contexto de acomodação da atividade, o que pode acabar resultando em dois trimestres de pequena perda do PIB. É um risco bastante presente que está no radar — aponta Silvio Campos Neto, economista da consultoria.


Alon Feuerwerker: Na balbúrdia, ordens ao vento

Em nenhum momento antes nesta pandemia viu-se uma descoordenação de tais dimensões. Um exemplo? Enquanto secretários de Saúde por todo o país pressionam por lockdowns (leia), secretários de Educação manifestam-se contra a suspensão das aulas presenciais (leia).

Sendo que em cada estado, ambos, o titular da Saúde e o da Educação, têm o mesmo chefe.

Entrementes, autoridades vão cedendo aos lobbies para afrouxar o isolamento social no mesmo momento em que os números são unânimes ao apontar o extremo stress do sistema hospitalar. E enquanto essas mesmas autoridades dão entrevistas para alertar sobre a gravidade do quadro.

As notícias correm em trilhos paralelos. Num, as péssimas estatísticas. Noutro, a disfuncionalidade do sistema político. Agora crescentemente invadido e apropriado pelo sistema judicial. Ele próprio crescentemente disfuncional.

O potencial destrutivo da descoordenação já vinha diagnosticado desde um ano atrás (leia este texto de março de 2020). Não chega a ser atenuante, mas precisa ser constatado. Com um agravante: em meio à balbúrdia, parte da população decide simplesmente não seguir ordem nenhuma, se puder.

Sobre o stress hospitalar, aparentemente a força da segunda onda pegou o sistema político-sanitário no contrapé. Mas esse fenômeno não chega a ser original. Na Gripe Espanhola, a onda mais mortífera das três foi exatamente a segunda (leia).

De volta à política, o foco das autoridades do momento é que os adversários levem a culpa pelo problema.

Esse é o estado da guerra.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Igor Gielow: Levante de governadores pressiona Bolsonaro no auge da crise da Covid-19

Mundo político acorda para a tragédia em curso no país, mas Congresso ainda não embarcou

O apocalipse sanitário à espreita do Brasil provocou um levante de governadores contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Tal clima de indignação pela falta de rumo e sabotagem intencional de ações coordenadas por parte do Planalto já havia sido registrado em abril do ano passado, mas agora a situação é muito mais grave.

Quase um ano se passou e, sem o devido preparo, o país se depara com variantes novas do Sars-CoV-2 mais transmissíveis e talvez mais letais para pessoas mais jovens, segundo a observação empírica nos hospitais.

As cenas de revolta se repetem. Aliados de Bolsonaro, como Ratinho Jr. (PSD-PR) e Ronaldo Caiado (DEM-GO), coassinam carta de 19 mandatários estaduais rebatendo a campanha de desinformação promovida por Bolsonaro.

O presidente, acentuando o que já havia feito em outros momentos, resolveu culpar os governadores pela a ameaça de o Brasil virar uma grande Manaus, do ponto de vista epidemiológico. Em vez de dizer que "o Supremo me tirou o poder", agora questiona "onde está o dinheiro que enviei?" a estados e municípios.

Pegou mal. A aliados, Ratinho Jr. se disse inconformado com o tratamento dispensado pelo presidente, que mentiu ao listar repasses federais obrigatórios como parte de um "pacote contra a pandemia", além de ignorar os R$ 1,48 trilhão de impostos recolhidos nos estados que param na mão da União.

O governador baiano, Rui Costa (PT), chorou ao comentar a dificuldade de implementar medidas de restrição de circulação de pessoas em seu estado. Ações que são bombardeadas dia sim, dia sim por Bolsonaro e por seu entorno em redes sociais.

Candidato a maior protagonismo no cenário nacional, o gaúcho Eduardo Leite (PSDB) disse que Bolsonaro "despreza sua gente" e a está "matando".

Algo bem diferente do que há menos de um mês, quando ele ponderava em entrevista que seu partido não teria como fazer oposição sistemática a Bolsonaro porque buscava diferenciar-se de João Doria, o tucano paulista que é o maior antagonista do presidente na crise.

A questão do controle da transmissão do vírus é cultural, alguns alegam, mas quem enalteceu a revolta de brasilienses na frente da casa do governador Ibaneis Rocha (MDB) devido ao seu ensaio de lockdown no domingo (28) foi o presidente da República.

O questionamento do uso de máscaras e a empáfia ao dizer que "não errou nenhuma" acerca da pandemia, quando a realidade está à sua volta, causaram revolta no grupo de WhatsApp do Fórum dos Governadores.

Cientes de que a fatura sempre cai no colo de quem está na ponta primeiro, especialmente no momento em que há um crescimento de demanda por vacinas ainda inexistentes, os governadores se reorganizaram.

Estados voltaram a pressionar pela compra avulsa de vacinas, como a russa Sputnik V, de forma a não contar com os cronogramas fantasmas do Ministério da Saúde. E houve o embate das verbas, provocado por Bolsonaro.

Leite teve papel de protagonismo na elaboração da nota, com apoio de outros chefes estaduais que querem moderar o destaque de Doria.

As nuances do embate político subjacente à tragédia em curso no país se mostraram também na dura carta do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde na segunda, na qual era pregado o toque de recolher e eventual lockdown em locais mais afetados do país

Jean Gorinchteyn, o secretário de Doria, não apoiou o texto por considerar lockdown inviável agora —em entrevista à rádio CBN, falou que pessoas irão "morrer de fome" caso a medida ocorra sem contrapartidas de natureza financeira.

Em São Paulo, Doria está sob ataque de bolsonaristas a cada movimento que faz para tentar controlar o vírus, e busca consenso com prefeitos. Há pressão interna, também. O Centro de Contingência da Covid-19, montado por Doria como um marco na transparência e no cientificismo no trato da pandemia, costuma sugerir medidas mais duras.

Mas ele é uma instância sem poder decisório, e as recomendações são filtradas em inúmeras reuniões com integrantes de outras áreas do governo, onde a palavra lockdown é um palavrão, para ficar num exemplo.

Saindo de São Paulo e das pretensões presidenciais de Doria e, como gostariam alguns tucanos, de Leite, a questão é que atores do mundo político parecem ter acordado para o tamanho do problema.

Dois presidentes de partidos do centrão que celebravam há pouco tempo o apoio de Bolsonaro à eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara disseram, sob reserva, que Bolsonaro "está maluco" na condução da crise.

Para eles, o ministro Eduardo Pazuello (Saúde) deveria ser substituído já. Noves fora o interesse específico do grupo em retomar as polpudas verbas da pasta, é um termômetro da fervura em Brasília.

Lira, que passou as duas últimas semanas preocupado cozinhando medidas para aumentar a impunidade de parlamentares, também teve seu momento de lucidez e buscou pegar carona no levante dos governadores, convocando um almoço nesta terça para discutir medidas contra o caos.

Não foi exatamente um embarque, mas uma sinalização.

Não se vê tal disposição ainda no pacato Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que assumiu o Senado neste ano. Enquanto alguns membros da Casa pedem uma CPI sobre a crise, ele não conseguiu fazer críticas objetivas a Bolsonaro nas entrevistas que concedeu ao desfilar por São Paulo na segunda.

Mas um correligionário dele afirma que é uma questão de tempo, lembrando que até Romeu Zema (Novo-MG), um dos governadores mais amigáveis em relação ao Planalto, foi a Brasília discutir a crise com Lira.