vacinação

Alon Feuerwerker: Concorrência benigna

Em tempos de pessimismo, dada a realidade crua do números de casos, hospitalizações e óbitos, nada como um pouco de otimismo para equilibrar a balança. Hoje o diretor do Butantan, Dimas Covas, disse que os entraves ao fornecimento de insumos para a produção da CoronaVac foram removidos. E que a entrega do imunizante vai se dar em bom ritmo (leia).

E a Fundação Oswaldo Cruz, com a ajuda do governo federal, conseguiu liberar matéria-prima para produzir 45 milhões de doses de vacinas Oxford/AstraZeneca (leia). Olha só a concorrência benigna. E se cada um dos pretendentes ao Planalto em 2022 se esforçasse para arrumar mais vacinas que os demais? Por falar nisso, o governador da Bahia trabalha para trazer a russa Sputnik V.

Aliás, parece que felizmente superamos a fase das disputas ideológicas sobre a proveniência das vacinas, ou pelo menos estamos perto de superar. Pena que tivemos de chegar aos tristes números de agora para desvencilhar-nos das amarras do preconceito. A única posição razoável sobre vacinas é querer todas. E que, numa situação como a de agora, a urgência seja a prioridade.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Hélio Schwartsman: Sem medo de patógenos

Temos muita dificuldade para converter achados da ciência em ações

No fundo, o ser humano não acredita em microrganismos patógenos. Essa é a melhor explicação para o fato de governadores e prefeitos estarem aliviando restrições a contatos sociais enquanto a curva de infecções pela Covid-19 se acelera e redes hospitalares colapsam.

A relação causal entre maior distanciamento social e diminuição do contágio está bem estabelecida, na teoria e na prática. Não obstante, a ideia de que doenças podem ser transmitidas por seres invisíveis é uma que relutamos em aceitar. Com um pouco de estudo, nós a acatamos no plano intelectual, mas não tão facilmente no circuito das emoções, que são motivadoras muito mais eficientes do que a razão.

A natureza não nos deixou inteiramente à mercê do contágio. Ela nos dotou com a sensação de repulsa que experimentamos ao visualizar, cheirar e até imaginar material potencialmente perigoso, como fezes, vômito, carne podre. De modo geral, mantemos prudente distância desses itens.

O problema é que não são só coisas nojentas que transmitem moléstias. Picadas de insetos, toques humanos (incluindo sexo), fômites, perdigotos e aerossóis também o fazem. E um bicho hipersocial como o homem jamais poderia desenvolver um instinto de afastamento social --o que nos deixa particularmente vulneráveis a vírus respiratórios como o Sars-CoV-2.

Seria tentador atribuir nossa desdita ao fato de estarmos nas mãos de políticos ignorantes que se dobram a interesses econômicos. Isso até pode ser verdade, mas o problema é mais profundo. A prova disso é que médicos, que mais do que ninguém sabem da importância de lavar as mãos, também fracassam nessa tarefa. O índice de higienização de mãos entre profissionais de saúde não passa muito dos 50%, mesmo em hospitais-escola do Primeiro Mundo.

Temos muita dificuldade para converter achados da ciência em ações, e o preço dessa incapacidade aumenta exponencialmente na epidemia.


Evandro Milet: O futuro é o conhecimento, a educação, a tecnologia, e não mais o petróleo

O episódio recente da mudança do presidente da Petrobras trouxe o problema do petróleo para as redes sociais com comentários desinformados, além de raivosos naturalmente, como é praxe nesse ambiente.

Um comentário dizia que o Brasil é autossuficiente em petróleo e não precisaria seguir preços internacionais. Se conseguisse refinar e usar todo o petróleo que produz, isso seria verdade, mas não é. Quando o Brasil construiu refinarias, principalmente entre 1950 e 1980, não produzia petróleo, mas necessitava de combustível para enfrentar o crescimento do número de veículos. As refinarias foram então construídas para processar petróleo leve importado do Oriente Médio. Quando o país descobriu petróleo, este era mais pesado, e as refinarias não processavam.

Os novos campos do pré-sal já têm óleo mais leve, mas mesmo assim o Brasil precisa exportar e importar petróleo e derivados pela capacidade e tecnologia de processamento das misturas de leve e pesado de cada refinaria. E, claro, que paga a importação no dólar vigente e no preço do barril do mercado. Se a Petrobras comprar pelo preço internacional e vender com preço subsidiado no mercado interno vai ter prejuízo. Isso aconteceu no governo do PT para segurar a inflação e gerou um prejuízo de R$ 100 bilhões à empresa. Junto com os investimentos políticos errados em novas refinarias e a corrupção, a empresa quase quebrou, com uma dívida de 140 bilhões de dólares, que vem sendo reduzida.

A recuperação passa por vender ativos menos rentáveis como algumas das refinarias e redes de postos e se concentrar na altamente lucrativa produção do pré-sal. O problema agora é saber o apetite de possíveis compradores de refinarias, desconfiados que o representante-mor do acionista controlador da Petrobras, o Presidente da República, pode interferir nos preços de derivados.

Quem vai comprar uma refinaria se o concorrente pode baixar o preço do produto artificialmente? Os produtores de etanol, por sua vez, ficam perdidos com o preço atrelado à gasolina. Empresários que montaram operações de importação de derivados, liberada desde 2002, como ficam com essa concorrência com preços artificiais?

Há outras consequências: milhares de investidores prejudicados com a queda das ações da Petrobras, inclusive fundos de pensão de trabalhadores e fundos em geral, do mundo todo, que passam a desconfiar de investimentos no país. Compradores de papéis da Petrobras, no Brasil e no exterior pedirão mais juros nas próximas vezes, aumentando a dívida. Fora a desconfiança geral sobre a segurança jurídica e política de investir no Brasil.

A intervenção de Bolsonaro na Petrobras afugentou os investidores estrangeiros — que sacaram 9,2 bilhões de reais da bolsa de valores, sendo 6,8 bilhões de reais somente num único dia. Consequência, sobre o dólar, da lei da oferta e da procura: o dólar aumenta, o diesel aumenta, a inflação aumenta e a cobra morde o rabo. “Era mais barato dar 100 bilhões de reais aos caminhoneiros”, disse o ministro da Economia, Paulo Guedes, a um integrante da pasta (Veja).

Mas quem ganha com a venda de refinarias e a importação de petróleo e derivados? Ganha o consumidor que vai se beneficiar da concorrência aberta e certamente do aumento de produtividade e novos investimentos pelos novos proprietários. Surgirão até mini-refinarias privadas para atendimento localizado.

Mas, diriam alguns estacionados na década de 1950, o petróleo não é estratégico? Não mais. Se o Brasil não extrair esse petróleo rapidamente, em não muitos anos vai ficar com o mico. O mercado vai reduzir o preço do petróleo gradativamente antes de acabar a era do petróleo. Aliás, como se sabe, a idade da pedra não acabou por falta de pedra.

Se algum país quiser prejudicar o futuro dos Estados Unidos é melhor jogar uma bomba no Vale do Silício do que em algum poço de petróleo. O futuro é o conhecimento, a educação, a tecnologia e não mais petróleo, substituído aos poucos pelas energias alternativas, com preço caindo rapidamente com novas tecnologias de equipamentos e baterias.

Tratemos de aproveitar os anos que restam ao petróleo para desenvolver uma cadeia de fornecedores de equipamentos e serviços que podem migrar depois para outros setores e aproveitar os royalties e participações especiais para investir em educação, tecnologia, infraestrutura e energias alternativas, que se viabilizam com o preço alto de combustíveis fósseis, como o meio ambiente pede.

Oscilações bruscas do preço de combustíveis, que sempre acontecem nesse mercado, podem ser atenuadas em articulações não histéricas, respeitando a governança corporativa da Petrobras, pela redução de carga fiscal, mecanismos inteligentes de compensação e estratégia antecipada de mudança de perfil das empresas de transporte, da tecnologia usada nos veículos e da composição de meios logísticos.

Interferir em preços de mercado nós já vimos quando caçavam boi no pasto no Plano Cruzado. Não dá certo.


RPD || Reportagem especial: Tecnologias de vacinas contra Covid lançam luz sobre tratamento de outras doenças graves

Estudos em andamento mostram que técnicas genéticas podem ser aplicadas em tratamento contra câncer e esclerose múltipla

Cleomar Almeida, da Assessoria de Comunicação da FAP

A pressão da pandemia da Covid-19 impõe um iminente risco de colapso hospitalar em boa parte dos hospitais pelo mundo, mas também mostra o avanço da ciência para abrir um leque de esperança até para pacientes com outras moléstias. Estudos sinalizam que a tecnologia genética exclusiva de vacinas contra o coronavírus pode ser aplicada no tratamento de pessoas com doenças graves, como câncer e esclerose múltipla.

Novas tecnologias para produção de vacinas, notadamente aquelas que usam o material genético do vírus Sars-Cov-2, podem rapidamente ser adaptadas para novos agentes causadores de doenças, de acordo com o médico Alexander Precioso, diretor da Centro Farmacologia, Segurança Clínica e Gestão de Risco do Instituto Butantan.

A tecnologia genética exclusiva das vacinas Moderna e Pfizer/BioNTech contra a Covid-19 é uma das que podem ser aplicadas no tratamento de outras doenças, incluindo câncer. O método mRNA, usado na imunização, tem o potencial de fornecer grandes avanços médicos em outras áreas, de acordo com a Innovations Origins.

As grandes corporações farmacêuticas CureVac, Moderna e BioNTech já estão trabalhando em drogas anticâncer, junto com drogas para a gripe comum e outras doenças, usando a fórmula de RNA mensageiro, que já existe há mais de uma década.

Os pesquisadores da vacina contra a Covid-19 descobriram uma maneira de entregar o RNA mensageiro às células sem ser destruído prontamente pelo sistema imunológico. Eles embrulharam o mRNA em uma armadura protetora de moléculas de gordura para disfarçar o material.

Funciona da seguinte forma: com é entregue com segurança às células, o mRNA programa o corpo para produzir proteínas do vírus contra o inimigo. Neste caso, é a proteína spike do SARS-CoV-2, o vírus que causa o Covid-19. Ao receber mensagem genética escrita em uma molécula de RNA, o organismo faz suas próprias células produzirem proteínas de que necessita para imunizar-se.

Dessa forma, de acordo com Innovations Origins, os pesquisadores podem desenvolver vacinas contra o câncer para treinar o corpo a reconhecer células cancerosas e destruí-las de maneira semelhante.  

O médico Gabe Mirkin, palestrante de renome mundial em pesquisa de saúde, afirmou à Newsmax que o corpo normalmente reconhece as células cancerosas como inimigas e matá-las. “Se o sistema imunológico perder a capacidade de dizer que célula cancerosa é diferente de célula normal, as células cancerosas podem crescer e se espalhar por todo o corpo”, disse.

Mirkin explicou que, durante anos, os cientistas tentaram encontrar maneiras de fazer cópias de células cancerígenas que podem ser enviadas por meio do mRNA para restaurar a capacidade do corpo de reconhecer e destruir o inimigo.

Esta pesquisa está sendo acelerada pelos recentes sucessos no desenvolvimento da vacina contra o coronavírus”, afirmou ele. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer, os testes clínicos estão em andamento, nos Estados Unidos.

A ideia por trás das vacinas de RNA mensageiro contra a covid-19 é considerada muito simples, e os cientistas acreditam que não há limites de aplicação a outras infecções e doenças. A equipe que desenvolveu a vacina da BioNTech, a primeira eficaz contra o coronavírus, publicou estudo em fase inicial que exemplifica o potencial dessa técnica.

De acordo com as informações preliminares, os pesquisadores já conseguiram, por exemplo, reverter em animais a esclerose múltipla, uma doença cuja causa é desconhecida e para a qual não há cura, a esclerose múltipla. É uma doença neurológica, crônica e autoimune, ou seja, as células de defesa do organismo atacam o próprio sistema nervoso central, provocando lesões cerebrais e medulares.

A esclerose múltipla não tem cura e pode se manifestar por diversos sintomas, como fadiga intensa, depressão, fraqueza muscular, alteração do equilíbrio da coordenação motora, dores articulares e disfunção intestinal e da bexiga. Os sintomas são variados, incluindo, ainda, leve formigamento nos membros e paralisia quase completa.

Alguns médicos chamam de doença das mil faces. “No mundo, é a segunda causa de incapacidade física entre jovens, perdendo só para trauma”, disse o neurologista Rodrigo Thomaz, especialista em esclerose múltipla do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

Katalin Karikó: Cientista é considerada a mãe da vacina da BioNTech contra a Covid-19
Foto: Jessica Kourkounis

A cientista Katalin Karikó, considerada a mãe da vacina da BioNTech contra a covid-19, e o CEO da empresa e cientista Ugur Sahin publicaram um estudo recentemente no qual mostram que uma molécula de RNA mensageiro pode fazer o sistema imunológico de ratos com doença semelhante à esclerose múltipla aprender a tolerar a mielina e, assim, parar de causar danos.

Publicado na Science, a pesquisa mostra que tratamento baseado em RNA mensageiro modificado foi bem tolerado por animais. A injeção é essencialmente muito semelhante à da vacina contra a covid-19, mas, neste caso, produz uma proteína capaz de modular o sistema imunológico.

De acordo com o estudo, os ratos tratados mostraram, no primeiro momento, a interrupção dos primeiros sintomas e, em seguida, a reversão da doença. Houve casos de a vacina reverter paralisia dos animais. Os pesquisadores mostraram, ainda, que a vacina não impede o sistema imunológico dos animais de identificar outros patógenos, como o da gripe.

O desafio atual é impedir a progressão da doença, segundo a cientista Vanessa Moreira Ferreira, pesquisadora no Brigham and Women’s Hospital, da Escola de Medicina de Harvard. “As medicações mais recentes reduzem inflamações em curso e previnem novas lesões, mas ainda não temos drogas capazes de reparar danos já ocorridos e impedir a progressão das incapacidades”, afirmou ela.

Atualmente existem mais de 10 tratamentos aprovados contra a esclerose múltipla em humanos. São drogas que modulam a resposta do sistema imunológico, mas têm efeitos colaterais, como reduzir a eficácia das defesas contra outros patógenos.

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Um dos desafios dessa doença é que quase todo paciente apresenta um tipo diferente de aflição, mediada por diferentes antígenos, proteínas que causam uma reação do sistema imunológico, no caso, autoimune, pois ataca o próprio corpo.

O trabalho da equipe da vacina da BioNTech e demais especialistas de universidades e hospitais alemães destaca que a nova abordagem tem um tipo barata de se produzir, o que, segundo eles, poderia permitir o desenvolvimento de moléculas de RNA mensageiro específicas para cada paciente.

Isso é algo que a empresa e outras, como a Moderna, já estão tentando para pacientes com diversos tipos de câncer. Esses tipos de vacinas poderiam ajudar no controle de “doenças autoimunes complexas”, destacam os autores da pesquisa.

A pesquisa, porém, está em estágio muito inicial e ainda são necessários muitos estudos para demonstrar a eficácia em humanos daquilo que funciona em ratos, sem causar problemas.

Fernando de Castro Soubriet Especialista em esclerose múltipla, Fernando de Castro Soubriet, considera o avanço “muito interessante”. “Os resultados são espetaculares, mesmo quando a doença [encefalomielite autoimune experimental] já começou a apresentar sintomas. Mais do que uma vacina, acho que isso pode ser interessante como um possível tratamento”, explicou à imprensa.

De acordo com o cientista, alguns dos tratamentos mais eficazes da atualidade – como os anticorpos monoclonais que geram tolerância à mielina – tem os medicamentos mais caros do mundo, com um preço que pode beirar os 80 mil euros, o equivalente a R$ 520.000, por paciente.


Vacinas seguem protocolos rígidos e têm técnicas diferentes

Foto: Breno Esaki/Agência Saúde

O início da vacinação no Brasil levantou muitas dúvidas na população. Todas as vacinas, no entanto, seguem protocolos rígidos até começarem a ser aplicadas nas pessoas e, no caso do Brasil, devem ser aprovadas antes pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). No país, por enquanto, apenas a Coronavac e da AstraZeneca/Oxford estão permitidas.

Outras farmacêuticas seguem os trabalhos de negociação junto ao governo brasileiro. O comum de todas é o uso da tecnologia para alcançar a maior eficácia possível da imunização contra a crescente e intensa onda de disseminação do coronavírus no mundo e, especialmente, no Brasil.

Vacina de origem chinesa, a Coronavac, também desenvolvida pelo Instituto Butantan, é feita com o vírus inativado. Ele é cultivado e multiplicado numa cultura de células e depois inativado por meio de calor ou produto químico. Assim, o corpo que recebe a vacina com o vírus — já inativado — começa a gerar os anticorpos necessários no combate da doença.

 As células que dão início à resposta imune encontram os vírus inativados e os capturam, ativando os linfócitos, que são as células especializadas capazes de combater microrganismos. Os linfócitos produzem anticorpos, que se ligam aos vírus para impedir que eles infectem nossas células.

Já a vacina de AstraZeneca, de Oxford, produzida no Brasil pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocfuz), usa tecnologia conhecida como vetor viral não replicante. Por isso, utiliza um "vírus vivo", como um adenovírus, que não tem capacidade de se replicar no organismo humano ou prejudicar a saúde.

Armazenamento de vacinas Coronavac produzidas pelo Instituto Butantan
Foto: Breno Esaki/Agência Saúde

O adenovírus é modificado por meio de engenharia genética para passar a carregar em si as instruções para a produção de uma proteína característica do coronavírus, conhecida como espícula. Ao entrar nas células, o adenovírus faz com que elas passem a produzir essa proteína e a exibam em sua superfície, o que é detectado pelo sistema imune, que cria formas de combater o coronavírus e resposta protetora contra um.

No caso da Pfizer/BioNTech, a tecnologia chamada de mRNA ou RNA-mensageiro é diferente da usada para a CoronaVac ou AstraZenca/Oxford, que utilizam o cultivo do vírus em laboratório. Os imunizantes são criados a partir da replicação de sequências de RNA por meio de engenharia genética, o que torna o processo mais barato e mais rápido.

O RNA mensageiro mimetiza a proteína spike, específica do vírus Sars-CoV-2, que o auxilia a invadir as células humanas. Essa "cópia", no entanto, não é nociva como o vírus, mas é suficiente para desencadear uma reação das células do sistema imunológico, que cria uma defesa robusta no organismo. O imunizante da Pfizer precisa ser estocado a -75ºC.

Assim como a da Pfizer, a vacina da Moderna também utiliza a tecnologia de RNA mensageiro, que mimetiza a proteína spike — específica do vírus Sars-CoV-2 — e o auxilia a invadir as células humanas.

No entanto, essa "cópia" também não é nociva como o vírus, mas é suficiente para desencadear uma reação das células do sistema imunológico, que cria uma defesa robusta no organismo. A única diferença para a vacina da Pfizer é que esta necessita de armazenamento de -20ºC.

Fabricação da Sputnik V, no Distrito Federal
Foto: Renato Alves/Agência Brasília

Assim como a da AstraZeneca, a Sputnik V, desenvolvida pelo Instituto Gamaleya de Pesquisa da Rússia, é uma vacina de "vetor viral". Ela utiliza outros vírus previamente manipulados para que sejam inofensivos para o organismo e, ao mesmo tempo, capazes de induzir uma resposta para combater a covid-19.

Uma vez injetados no organismo, os outros vírus entram nas células e fazem com que elas passem a produzir e exibir essa proteína em sua superfície. Isso alerta o sistema imunológico, que aciona células de defesa e, desta forma, aprende a combater o Sars-CoV-2


RPD || Entrevista Especial – Alberto Aggio: 'Bolsonaro não é só um mau soldado. É um fascista incapaz'

O desastre do governo Bolsonaro se configura num bloqueio civilizatório, um retrocesso com sérias repercussões para toda a sociedade brasileira, avalia Alberto Aggio, entrevistado especial desta edição da Revista Política Democrática Online

Por Caetano Araujo, Viniicius Müller e Rogério Baptistini

Desde seu início, o Governo Bolsonaro se notabilizou por suas ações voltadas ao enfraquecimento da democracia brasileira e de olho na reeleição. Com a recente decisão do STF de restaurar os direitos políticos do ex-presidente Lula, o Brasil caminha para a eleição de 2022 num cenário difícil, de muita divisão, avalia Alberto Aggio, entrevistado especial desta edição da Revista Política Democrática Online.

A estratégia do presidente brasileiro sempre foi a do confronto, minimizando a epidemia do novo coronavírus, atacando governadores e prefeitos, a mídia e demitindo ministros da saúde, além de ter apoiado manifestações públicas que pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, avalia Aggio. “Bolsonaro sempre praticou um jogo duplo, ambíguo, alternando um discurso tendente ao fascismo e um movimento político de composição e de ocupação das instituições”, completa.

Mestre e doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP), Aggio é professor titular em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), com pós-doutorado nas universidades de Valência (Espanha) e Roma3 (Itália). Dedica-se à história política da América Latina Contemporânea, em especial à história política do Chile. Atualmente é diretor do Blog "Horizontes Democráticos" voltado para o debate da política contemporânea no Brasil no mundo. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista à Revista Política Democrática Online.

“Os cenários para 2022 são, de fato, obscuros. Bolsonaro é um flagelo, mas vem mantendo sua base eleitoral”

Revista Política Democrática Online (RPD): O governo Bolsonaro constitui ameaça real à democracia?  

Alberto Aggio (AA): Acho que o Bolsonaro se configura como um governo, se não ameaçador à nossa democracia, pelo menos um governo que visou, desde o início, a um enfraquecimento dela; visou objetivamente confrontar suas principais instituições por meio de ações bastante agressivas do presidente e de seus apoiadores, que chamei de guerra de movimento. Essa guerra de movimento, essa agressividade às instituições democráticas, percorreu todo o primeiro ano de governo e, a partir da pandemia, já em 2020, com a necessidade de enfrentar a repercussão na opinião pública, Bolsonaro começa a mudar. Sua estratégia de movimento carecia de atores convencidos de que o projeto era - não apenas de ameaça – mas de derrubada da democracia da Carta de 88. 

RPD: E quando ocorreu isso? 

AA: Quando houve o bombardeio fake ao Supremo Tribunal Federal, estimulado por um discurso raivoso, um discurso de ódio, incapaz, no entanto, de transformar essa retórica em violência direta às instituições e a seus representantes. É importante ressaltar que, desde os primeiros meses do mandato, Bolsonaro declarou seu objetivo maior: a reeleição. Contudo, havia aí um paradoxo, o choque entre uma tática agressiva e a tentativa de cativar o eleitorado; objetivamente o golpe não necessitaria da reeleição. Sobretudo depois do início da pandemia, Bolsonaro deve ter concluído que a agressividade dessa guerra de movimento não era compatível com seu projeto eleitoral. Passou, então, a buscar acordos, no sentido de uma guerra posicional, ou seja, fazer política combinando ataque e defesa nas pautas que lhe interessavam. E isso caracterizou boa parte de 2020 e é isso que se vê em 2021. 

RPD: Mas Bolsonaro mudou ou continua o mesmo? 

AA:  O fato é que Bolsonaro nunca se deixou domesticar. Sempre praticou um jogo duplo, ambíguo, alternando um discurso tendente ao fascismo e um movimento político de composição e de ocupação das instituições. Como parte dessa guerra de posições, cuidou, primeiro, em manter os militares dialogando com o Palácio do Planalto, evitando, assim, conspirações nos quartéis, e, segundo, não acionou uma linha miliciana que pudesse incluir as polícias militares dos Estados em confrontação direta com seus adversários. Vem cozinhando isso em fogo morno, que nunca apaga completamente. 

RPD: De qualquer forma, permanece a ameaça 

AA: Sim, permanece. Contudo, Bolsonaro demonstra não ser capaz de transformar essa ameaça em ação efetiva, numa palavra, num golpe. Acho que a situação é a seguinte: as sensações de ameaça às vezes crescem e, às vezes, são contidas em um terreno onde as disputas são localizadas, quase moleculares, com Bolsonaro tentando manter seu grupo de apoio, marcadamente antidemocrático, autoritário, que não crê na democracia como regime e tampouco como sociedade, como civilização. As sensações de ameaça variam, portanto, conforme a conjuntura e o movimento dos atores. É uma situação muito complexa, ambígua, paradoxal. Imagino que ele gostaria de ganhar cada vez mais posições institucionais com personagens puro sangue.

Mas, nem partido ele tem. Tem que negociar com uns e outros; é tudo pantanoso, difícil de compreender o alcance dessa estratégia. Mas, tudo isso é muito ruim para o país, especialmente num contexto de pandemia, de diminuição da atividade econômica. Não dá para imaginar o que vai a acontecer, sobretudo quando aumentam as ameaças à democracia, em meio a uma governança errática, de orientação ambígua, onde se muda a toda hora para tentar sanar erros cometidos e responder seja à opinião pública seja aos seus apoiadores. A intervenção na Petrobrás é prova disso, ocasião em que Bolsonaro decerto terá perdido muitos aliados, mesmo que tenha tentado depois apresentar os projetos de privatização dos Correios e da Eletrobrás, gestos mais preocupados com a mídia do que com uma ação política mais efetiva. 

“Bolsonaro espelha melhor um regime autoritário a la Salazar ou Franco, do que a la Mussolini ou Hitler”

RPD: Embora já tenham sido explorados, indiretamente, os conceitos de guerra de movimento e guerra de posições, talvez coubesse ainda uma palavra adicional para melhor caracterizar os referidos conceitos.  

AA: Usei os conceitos tendo em conta que Bolsonaro é um ator da guerra, ele vê a política como guerra, vê a política como a destruição de inimigos; pessoas, lideranças, instituições. Contudo, tecnicamente não se trata de uma ação militar, é uma ação política. E não importa se ele tem consciência ou sabe vocalizar isso. Pensando mais amplamente e convocando Gramsci que é o pai dessa conceituação, o conceito de guerra de posições identifica como se faz política contemporaneamente, especialmente depois da estabilização capitalista, depois da Revolução Russa de 1917, e mesmo depois da Crise de 1929 e da Segunda Guerra.

É como a política contemporânea tem se estabelecido, com os atores, especialmente os atores antagonísticos, buscando conquistar posições institucionais, culturais, sociais, etc. Alguns fracassam e desaparecem, como o comunismo; outros imaginam que ganharam tudo, como em um certo momento se supôs que a história tivesse acabado. Nas sociedades democráticas mais avançadas seria possível imaginar que essa guerra de posições poderia até mesmo se diluir e a metáfora perderia o sentido, com o seu desaparecimento no terreno da ação política. Possivelmente, a partir daí o debate pela hegemonia mudaria diluindo-se no corpo da sociedade; falaríamos então em “hegemonia civil”, hegemonia como um ato civilizatório. Acho que a democracia precisa estar muito mais avançada, ser muito melhor compreendida pelos cidadãos, para que se supere a metáfora da guerra na política. 

RPD: Bom, mas como vincular Bolsonaro a essa discussão? 

AA:  Ao exacerbar a guerra de movimento, Bolsonaro mostrou que não foi capaz de finalizá-la, de vencer. Ele altera a tática, mas também não consegue sustentar-se: não tem partido, não tem intelectuais, não tem projeto, nem acredita no projeto do Paulo Guedes, não acredita nem mesmo no antigo projeto desenvolvimentista da ditadura militar, porque ele não é um homem do regime militar, ele é um homem da ala extremista do regime militar, que não venceu, que foi derrotada dentro do próprio regime pelo avanço do seu projeto de autorreforma. Em certo sentido, Bolsonaro é um ressentido porque é um homem solitário, sem projeto claro que possa apresentar “grande política”, e por isso começou seu mandato isolado politicamente, embora com voto e popularidade. Ele não é capaz de exercer uma liderança para além do seu narcisismo, para além do que ele mesmo é, expressão desse grupo de pessoas que o apoia. Isso não tem como se ampliar, a não ser na lógica da antipolítica, uma outra face do narcisismo que passou a predominar entre nós. Essas limitações comprometem sua capacidade de lidar com a guerra de posição. Com ele, o Brasil se distanciou enormemente da possibilidade de agregar maior qualidade a sua democracia. O desastre do governo Bolsonaro se configura num bloqueio civilizatório, um retrocesso com sérias repercussões para toda a sociedade.  

“Não haverá futuro algum quando se diz que se quer voltar ao poder para resgatar o que se fez no passado”

RPD: Considerando a nomenclatura utilizada pela História, pode-se fazer analogias entre Bolsonaro e o fascismo do início do século 20, sem correr o risco de prejudicar a tática e a estratégia política dos democratas?  

AA: Bolsonaro gostaria de ser efetivamente um fascista, de ser um líder fascista, mas ele fez a vida dentro do Estado, como militar e como parlamentar. O fascismo nasceu da sociedade, das agruras do pós-Primeira Guerra. No fundo, Bolsonaro é não só um mau soldado, como disse o General Geisel, mas é também um fascista incapaz. Fora essa ligação com os militares, sua vinculação com a religião é instrumental, a pauta de costumes reacionária, tradicionalista. Bolsonaro espelha melhor um regime autoritário a la Salazar ou Franco, do que a la Mussolini ou Hitler, esses, sim, carregaram um projeto ativo e moderno de mundialização, mas foram derrotados. Bolsonaro não tem nada disso. Não ultrapassa o tradicionalismo.  

O fascismo do Bolsonaro é caricatural. Sua inclinação é muito mais tradicionalista, de uma sociedade fechada. Bolsonaro é o anti-Popper, é visceralmente contra a sociedade aberta, para usarmos aqui uma referência muito ao gosto do Vinícius Müller. Eu não insistiria muito nessa coisa de fascismo. Bolsonaro é um pragmático, mas por ser mentalmente restrito é alguém que não tem capacidade de ampliação pelo que ele representa. Em suma, não é efetivamente um líder. Pelos acordos políticos ele está conseguindo impedir o impeachment, pode conseguir a reeleição, se seus opositores errarem muito, e infelizmente sabemos que isso pode acontecer.   

RPD: O modo como Bolsonaro faz política estaria reproduzindo em parte o que se fez na Nova República e, em caso afirmativo, poderia ele estar inaugurando uma nova fase na política brasileira, na condição do último presidente da Nova República?   

AA: Se vencer em 2022, isso estará em questão. Mas se isso ocorrer, ele vai ter de fazer um governo diferente, não poderá ser “puro sangue”. Bolsonaro é a face mais deletéria, mais grave da política da Nova República. É um político que não valoriza os partidos nem a negociação política, um político que pensa que negociação é corrupção. Esse tema tem possibilitado a Bolsonaro alguns acordos desde o início do governo, mas depois da saída de Moro, a coisa se complicou. Ele tem que encontrar novos pares. E quais seriam eles? O Centrão terá dificuldades em se vincular a esse tema. Daí a regressão que estamos assistindo nessa matéria. Quais seriam as novas chaves do discurso de Bolsonaro? Não se sabe. Mas o fato é que ele prosperou num contexto em que perdemos a perspectiva de organização democrática e cosmopolita da Nação brasileira. E isso ocorreu a partir dos governos do PT, não do primeiro Lula, mas depois, com Dilma. Configurou-se, então, um cenário extraordinariamente paradoxal: um projeto de resgate do nacional desenvolvimentismo, e, na base, a valorização do consumo, que vem desde o primeiro Lula.

A mensagem era o individualismo no consumo e o mercado como o vetor capaz de reconfigurar a Nação; um “aggiornamento” capitalista, mas que não podia ser “puro sangue”. Isso de certa maneira contraditava o projeto nacional-desenvolvimentista que tinha por base o grande capital, os “campeões nacionais”, etc., uma espécie de visão coreana do desenvolvimento do capitalismo. Essa contradição desorganizou completamente o país, a economia, a sociedade. Bolsonaro se apresentou como aquele que era capaz de consertar essa desorganização, prometendo um capitalismo sans frase, que também não consegue impor – e hoje talvez nem queira. Nossa desorientação, portanto, não vem do impeachment, vem dessa contradição, é a política do petismo no último governo com Dilma que impossibilita que a sociedade, a Nação, se solde. Podemos lembrar muito bem os discursos dos petistas em busca de alguma unidade com o PSDB, por exemplo, no momento de crise aguda do governo Dilma. Temer ainda tentou algo, mas não conseguiu estabelecer um novo padrão. A vitória do Bolsonaro, por fim, abriu caminho para avançar a degradação. 

RPD: O que efetivamente mudou na Nova República e que não se ajustou em tempo hábil? 

AA:  Vínhamos de um cenário em que se ultrapassava a democracia de partidos e se adentrava na democracia de audiência. A Nova República, de acordo entre diferentes, da Lei de Anistia, da Constituição de 1988, teria que se adequar. As instituições ficaram, mas o resto gradativamente sofre uma erosão. Na verdade, o Brasil passou por rupturas sem ruptura, que gerou desorganização e uma Nação à deriva. Bolsonaro venceu nesse quadro onde já havia degradação e isso não só se manteve como se aprofundou. Não se confia mais em ninguém. O jogo político piorou. Não é nem um jogo de grandes máfias, é um jogo da pequena política. E olha que o Brasil viveu “trasformismos positivos”, como identificou Luiz Werneck Vianna, como foi o período JK, que fizeram avançar a modernização. Hoje, com Bolsonaro, não se divisa nada. O que me parece terrível é que entramos em uma situação de guerra a partir de um terreno completamente desorganizado. E ele se desorganizou porque perdemos qualquer projeto de pensar o Brasil no mundo. O PT fracassou e depois dele não surgiu nenhum outro ator que pudesse recompor isso.  

RPD: As projeções feitas para 22 ainda não esclareceram uma questão relevante. Desde 2014, 18, 16, o PT perde votos; na última eleição, Bolsonaro perdeu votos, mas não se sabe ainda para onde foram esses votos, quem os ganhou, os cenários continuam obscuros. Quais perspectivas de curto prazo existiria, então, para a formação e atuação de um centro democrático na disputa eleitoral de 2022?  

AA: Os cenários são, de fato, obscuros. Bolsonaro é um flagelo, mas vem mantendo sua base eleitoral. Estudei o Chile e muitos se surpreendiam ao verificar que, no final da ditadura, a direita tinha bases sociais muito fortes, tendo um eleitorado que ultrapassava 40%. Do outro lado, Concertación, mesmo sem os comunistas, conseguia superar a direita e isso durou 20 anos. No caso do Brasil, é quase impossível acreditar que se possa formar algo parecido. Muito falam em “frente democrática”. Entendo que os obstáculos à construção da frente democrática são fortes. O primeiro é que os atores de maior projeção na esquerda ainda não estão convencidos disso. Muito pelo contrário, o PT discursa no sentido de resgatar o que foram os governos petistas.

“Bolsonaro não é capaz de exercer uma liderança para além do seu narcisismo, para além do que ele mesmo é, expressão desse grupo de pessoas que o apoia”

Fernando Haddad acabada de declarar que todos – exceto o PT e seus aliados mais próximos – são de direita e que a oposição tem de se unir no segundo turno. É um non sense. Fazendo política assim, o PT demonstra que é narcisista tanto quanto Bolsonaro. Não se pode fazer política democrática a partir de uma concepção narcisista, uma posição antipolítica.  A segunda dificuldade vem do nosso sistema eleitoral de dois turnos. Isso anima mais a competição do que a composição. Não creio que se possa montar uma frente democrática no primeiro turno. Certamente haverá alianças. Anunciam-se três polos, mais uma ou outra candidatura desgarrada deles, todos se opondo a Bolsonaro, o polo governista. 

O PT deverá ser um dos polos. Ciro Gomes vai concorrer, mas não tem força para se constituir num polo. O chamado “centro democrático” está dividido, até o momento, em muitos nomes e não se pode dizer que já tenha um projeto para o País. Na sociedade, como mostram as pesquisas, Sérgio Moro e Luciano Huck têm melhor presença. João Doria Jr, governador de São Paulo, é uma força, sobretudo por seu protagonismo na questão da vacina, um tema crucial. Cogita-se também o nome do ex-ministro da Saúde, Henrique Mandetta. Nesse campo, os articuladores serão fundamentais. Até o momento, Rodrigo Maia, juntamente com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-deputado Roberto Freire, parecem dispostos a cumprir esse papel. Em suma, caminhamos para a eleição de 2022 num cenário difícil, de muita divisão, sem um projeto para o futuro. E não haverá futuro algum quando se diz que se quer voltar ao poder para resgatar o que se fez no passado.

O passado não deve ser esquecido, mas ele não é garantia de futuro. Por outro lado, a ideia de combater os extremos em si, não legitima nem sustentará candidatura alguma.  Com as eleições municipais no retrovisor, recordemos que o PT perdeu uma quantidade significativa do seu eleitorado, mas venceu em lugares importantes do Nordeste e que Bolsonaro perdeu nas capitais, mas sua resiliência, como demonstram as pesquisas, ainda é forte. Tudo isso sublinha o quão importante é a conjugação de esforços na recuperação da política democrática, porque, de alguma maneira, todos estivemos envolvidos, ainda que em parte, no processo de permitiu a Bolsonaro chegar ao poder. 

Post-scriptum

Em razão da decisão de 08 de março do Ministro Edson Fachin, do STF, que, no fundamental, garante elegibilidade de Lula (PT) na corrida presidencial de 2022, a relação de forças sofre alterações.

 A musculatura do polo petista sai fortalecida não só em função da popularidade de Lula, mas também porque isso gera desestabilização em outras candidaturas por seu poder de atração. Antigos aliados serão desafiados, e o próprio Centrão, até agora em movimento inercial rumo à candidatura de Bolsonaro, deverá repensar seus futuros passos. O polo Bolsonaro também se revigora porque, em tese, pode recuperar a narrativa antissistema, criticando a decisão que favorece Lula.

 É inevitável que Ciro Gomes mantenha sua beligerância tanto contra Lula e o PT, quanto contra o ex-juiz Sergio Moro. Envolvido diretamente, Moro será forçado a se pronunciar: ou contra-ataca, lançando-se definitivamente candidato ou se retira de uma vez da contenda eleitoral.

 Por fim, o chamado “centro político”, cuja identidade primeira é se postar contra os “extremos”, está forçado a se definir pelo critério da popularidade, diante de duas potências de audiência. Se não tiver Moro, à primeira vista, aparentemente, só Huck teria esse atributo.


RPD || Editorial: O novo patamar da crise

Hoje, um ano depois da identificação dos primeiros sinais da pandemia em território nacional, as perspectivas que se desenham para os brasileiros nos próximos meses são sombrias. Do ponto de vista sanitário, assistimos à segunda onda da doença, transportada por novas variedades do vírus, mais perigosas que seu antepassado comum, algumas gestadas em nosso país. Do ponto de vista econômico, é de se prever o agravamento da crise, com a redução da atividade e as dificuldades evidentes de manter o necessário auxílio emergencial por períodos maiores que o previsto inicialmente. Finalmente, do ponto de vista político, observa-se a consolidação da base parlamentar do governo, com o afastamento, provisório ao menos, dos riscos de abreviação do mandato presidencial.

Não é possível subestimar a responsabilidade do governo federal pela situação de vulnerabilidade crescente em que os cidadãos brasileiros se encontram hoje. Todos os itens da agenda negacionista foram por ele perseguidos com empenho. Na contramão de toda evidência fornecida pela ciência, houve campanhas, que perduram até hoje, em favor de aglomerações e contra o uso de máscaras. A política de testagem massiva, chave do sucesso de muitos países, aqui foi simplesmente ignorada. Insiste-se ainda entre nós na falsa dicotomia entre economia e saúde, como se o controle da pandemia não fosse requisito da retomada econômica. Finalmente, todas as oportunidades de contratação de vacinas na quantidade necessária foram desperdiçadas, o que nos condenou a retardar o passo da imunização por falta de imunizantes.

Para coroar a sucessão de erros, uma consequência inesperada, apesar de previsível, da situação de caos que se criou. A circulação do vírus por grandes concentrações de pessoas, sem vacina e sem distanciamento social, parece ter propiciado o surgimento das novas variantes, capazes de infectar novamente pacientes já curados. A ilusão da imunidade natural da população ao preço alto de milhares de óbitos evaporou-se. Os óbitos aconteceram, mas nenhum benefício perdurou, e o Brasil é hoje potencial fonte de risco para os países que lograram êxito no enfrentamento da pandemia.

O governo errou de forma contumaz e persiste nos seus erros. É tarefa de todas as forças democráticas, nos estados, nos municípios, em todas as instâncias do Legislativo, persistir na resistência: suprir a omissão e a oposição do governo para trabalhar em prol do distanciamento social, do uso de máscaras, da obtenção no número suficiente de doses das vacinas disponíveis, assim como do acesso ao auxílio emergencial por parte daqueles que dele necessitam.

Com o sucesso da campanha de vacinação nos Estados Unidos, corremos o risco de ver em pouco tempo nosso país como número um no mundo em número absoluto de óbitos. Tentar evitar esse resultado é premente para nós. Igualmente importante, contudo, é deixar claro, para o conjunto dos cidadãos, os verdadeiros responsáveis pelo percurso trágico que estamos a seguir.


RPD || Sérgio Vale: Os desafios da economia brasileira

Governo Bolsonaro falha ao enfrentar a realidade de manter regras fiscais importantes e, ao mesmo tempo, gerar a estabilidade necessária que acelere o crescimento econômico do país

Desde as manifestações de junho de 2013, o Brasil tem passado por série ininterrupta de instabilidades de difícil solução, tanto mais porque as demandas da classe média continuam não sendo atendidas.  

Em artigo seminal da década de 70, Albert Hirschman criou o conceito de efeito túnel, segundo o qual a classe média ganhou terreno na aquisição de bens com o aumento da renda, mas a contrapartida de serviços públicos de qualidade não seguiu a mesma trajetória. É como se, depois das conquistas materiais individuais, tivesse caído a ficha da população quanto à necessidade de demandar serviços públicos de qualidade do governo. Esse foi o grande tema das manifestações de 2013, depois de anos de forte crescimento de renda e do consumo da classe média e da ascensão de parte da classe mais baixa de renda para a classe média. 

Não tendo sido atendidas de maneira satisfatória, o descontentamento da classe média fez crescer a pressão sobre o setor público no sentido da qualidade da prestação dos serviços. Só que a conjunção de incerteza, que afugentou investimento e diminuiu o ritmo de crescimento, com a necessidade de responder à população via mais gastos públicos colaborou para agravar a crise fiscal que já se avizinhava. Seria difícil naquele momento de descontentamento da população para um governo de esquerda fazer um ajuste fiscal. 

Vivemos nesse dilema desde então, com diversos graus de incerteza que foram se acumulando na economia, diminuindo de forma duradoura o ritmo de crescimento, com a população cada vez exigindo respostas eficazes do governo.  

O governo Bolsonaro enfrenta, hoje, a dura realidade de manter regras fiscais importantes e, ao mesmo tempo, gerar a estabilidade necessária que acelere o crescimento. Há muita desconfiança quanto à capacidade de o governo de entregar o ajuste fiscal reclamado pela população, assegurando espaço fiscal para o gasto de qualidade em educação e saúde, por exemplo. Parece contraditório, mas, de certa forma, o ajuste de privatização e o fim da corrupção foram temas prioritários das plataformas eleitorais de Bolsonaro, que sensibilizaram os eleitores no tocante ao desempenho eficiente futuro da máquina pública no setores. A pauta de 2013 afinal ainda vivia, mesmo que de forma extremada ao se apostar em um presidente com o perfil de Bolsonaro. 

A situação brasileira torna-se ainda mais desafiante, porque investir depende de horizonte estável de longo prazo. Para isso, demanda-se do ordenamento político uma configuração mínima de respeito às regras econômica, capazes para dar confiança a investimentos mais agressivos. Esse foi o cenário que existia no primeiro mandato do presidente Lula, em que as regras econômicas do governo FHC foram mantidas em sua maioria e os investidores viram um país amadurecido em que a troca de centro direita (FHC) pelo centro esquerda (Lula) não tiraria o país do rumo. 

Os excessos fiscais do final do governo Lula, todo o governo Dilma e a atual polarização são prejudiciais para quem quer investir em contratos de concessões de longo prazo, por exemplo. O recente encampamento da linha amarela pelo governo carioca, ainda em discussão no STJ, e a troca agressiva do presidente da Petrobrás mostram como o investimento no Brasil ainda está à mercê de baixa qualidade regulatória. 

Isso não significa que o país não vai crescer. As commodities, que, embora não se reconheça, envolvem grande inovação tecnológica industrial, seguirão sendo o carro-chefe do crescimento brasileiro nos próximos dois anos, pelo menos. Espera-se forte incremento nos preços de commodities por questões tanto de demanda quanto de oferta, além da taxa de câmbio depreciada pelos riscos fiscais que nos acompanham há muitos anos. Estamos falando de cerca de 35% a 40% do PIB brasileiro que terá forte expansão e que precisamos aproveitar para entender seu importante papel no crescimento de regiões dependentes delas. Por exemplo, a região que mais teve queda na desigualdade de renda nos últimos anos foi o Centro Oeste pelo avanço do agronegócio, do qual todos acabam ganhando. Reforço que as commodities – o setor mais aberto da economia brasileira – são justamente o que tem trazido mais resultados positivos para o país e assim seguirá sendo. 

Repito: o governo precisa gerar crescente estabilidade política com eficiência fiscal para que os investimentos nos outros setores não dependentes do setor externo voltem a acontecer. Resgatar a pauta de 2013 de forma coerente é o melhor que os governos poderão fazer para viabilizar condições de crescimento para o país. 

*Economista-chefe da MB Associados 


RPD || Rubens Barbosa: Biden e o Brasil

De forma pragmática, Biden adotou uma atitude de não confrontação com o governo Jair Bolsonaro, iniciando conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Diferenças em relação a clima, direitos humanos e democracia podem prejudicar o Brasil 

A divulgação de uma série de documentos cobrando medidas duras contra o Brasil procurou influir na política externa do governo Biden. O documento assinado por ex-altos funcionários e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e reclama medidas contra o Brasil, caso não haja mudança nas políticas de proteção à Amazônia e de mudança de clima. O trabalho “Recomendações sobre o Brasil para o Presidente Biden e Para a Nova Administração”, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos a política ambiental, direitos humanos, democracia e pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas como Defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.

O presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao Ministro Ernesto Araújo pedindo explicações e retratação de declarações, julgadas favoráveis a invasão do Congresso de Washington. Por fim, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado requisitando a suspensão de alguns programas de cooperação na área de defesa pelos problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara. O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com a divulgação da política ambiental do presidente Biden, com referência específica à Amazônia, gerou preocupação pelos eventuais impactos sobre o Brasil.

Do lado do governo brasileiro, houve três ações concretas para tentar evitar medidas contra o Brasil. A carta do presidente Bolsonaro a Biden em que manifesta “disposição a continuar nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado”. O telefonema do Ministro Araújo com o Secretário de Estado Blinken e a reunião telefônica entre o Chanceler e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com John Kerry. O setor privado também se manifestou com Nota da Câmara Americana de Comércio e da US Chamber sobre as perspectivas favoráveis para o intercâmbio comercial.  

A forma como Biden no início de sua gestão vai tratar o Brasil foi definida pelas recentes declarações das porta-vozes da Casa Branca e do Departamento de Estado, segundo as quais “a prioridade é manter o diálogo e buscar oportunidades para trabalhar conjuntamente com o governo brasileiro em questões em que haja Interesse Nacional comum pois existe uma relação econômica estratégica entre os dois países e o governo Biden não vai se limitar apenas a tratar de áreas em que haja discordância, seja em clima, direitos humanos, democracia ou outros”.  

Nessa primeira fase do relacionamento com o Brasil, Washington decidiu adotar uma atitude de não confrontação, demandada pela ala progressista do Partido Democrata, e iniciar as conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Foi uma atitude pragmática, vista pelo governo brasileiro como um avanço positivo na relação bilateral. Durante os meses de março e abril, a convite do governo norte-americano, o Brasil deve participar, a nível presidencial, nas conferências sobre Clima e sobre Democracia (com forte ênfase nos Direitos Humanos), além da Cúpula das Américas, na Florida. Nesses encontros, todos os assuntos mais importantes no contexto das relações bilaterais e hemisféricas deverão ser tratados.

Dependendo das posições defendidas por Bolsonaro, começarão a aparecer as diferenças de políticas entre Brasília e Washington, em especial. Vão surgir, também, com força, nessa fase, as diferenças na área de mudança de clima e preservação da floresta Amazônica. Tudo vai depender da reação do governo brasileiro (defensiva ou com ajuste na retórica e em anúncios de medidas com resultados verificáveis). A posição defensiva – que tem mais chances de prevalecer – poderá ter “consequências econômicas”, como disse Biden.

No telefonema com John Kerry, Araújo e Salles concordaram em iniciar encontros regulares para examinar formas de colaboração mútua e como transferir recursos ao Brasil para preservação da floresta amazônica. O problema reside no fato de Bolsonaro e Ernesto Araujo acreditarem em que a situação está sob controle e que avançará “business as usual”, como mencionado na carta a Biden, o que não deverá acontecer, na minha visão. Assim, os desdobramentos das políticas de Biden devem começar pelo meio ambiente, em relação à preservação da Amazônia e das comunidades indígenas, passando para as questões de Direitos Humanos, comércio (SGP e restrições a produtos brasileiros), defesa (Alcântara) e outras áreas de cooperação. 

As relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021. Estamos apenas no início.  

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE).  


RPD || Raul Jungmann: Armamento, riscos à democracia e 2022

"A desconsonsolidação democrática não precisa envolver violações a constitucionalidade. E os governos reacionários têm desfrutado de um apoio popular consistente. A esperança de que cidadãos pudessem ameaçar governos que cometessem transgressões contra a democracia, impedindo-os, com isso, de seguirem esse caminho, infelizmente é infundada."

A citação é de Adam Przeworski, professor de política e economia da Universidade de Nova York, com vasta produção na área da ciência política. Ela bate com que estamos vivendo no Brasil e, especialmente, com o que vivenciamos na segurança pública. Uma população que se sente indefesa diante da violência e não vê da parte do poder público a prestação de serviços de segurança compatíveis com a sua a proteção da sua vida e família, sanciona atsques a democracia em nome da sua defesa. É o caso das mais de trinta normas editadas pela Presidência da República ou órgãos de controle do executivo, afrouxando as regrass ou visando a massificação do armamento pela população. Nesse ponto, o armamento da cidadania, cruzamos os limites da área da segurança pública, onde há duas décadas se travava o debate, e passamos a seara da política, e do ideológico.

Ao propor armar a todos, o Presidente está, consecutivamente: (i) quebrando o monopólio da violência legal, privativa do Estado Nacional, (ii) ferindo o papel constitucional da Forças Armadas, esteio e última ratio da integridade e da soberania e (iii) acenando com a hipótese de um conflito de brasileiros contra brasileiros, uma guerra civil.

Isso nos motivou a redigir uma carta aberta ao Supremo Tribunal Federal, onde tramitam ações contrárias a política de armamento massivo, alertando para os riscos para a segurança pública e para a estabilidade democrática. Lembrando, ao final, o ocorrido recentemente nos Estados Unidos, quando da invasão do Capitólio por vândalos. No curso da sua divulgação, a repercussão da carta superou nossas expectativas na mídia tradicional, nas redes, colunas de opinião e junto a vários formadores de opinião. O que talvez queira dizer da preocupação das pessoas com o tema e a percepção dos riscos envolvidos numa política armamentista. E existem razões concretas para tal.

Segundo a Polícia Federal, em 2020 o registro de armas de fogo cresceu 90% face o ano anterior, o maior crescimento de um ano para outro já registrado pela série histórica. Do outro lado da moeda, as mortes violentas, que iniciam uma queda em 2018 (ano em que éramos Ministro da Segurança Pública) e continuaram caindo em 2019, retomaram sua escalada em 2020. A ADIN impugnando os quatro decretos supracitados tem como relatora a Ministra Rosa Weber, que solicitou informações ao executivo e, nos próximos dias, decretos editados em 2019 sobre o mesmo tema e objetivo irão ao plenário do Supremo, tendo como relator o Ministro Edson Fachin.

Entidades diversas da sociedade civil e ongs, se mobilizaram promovendo um abaixo assinado em apoio a nossa Carta Aberta, que já conta com mais de dez mil assinaturas. Devendo ser entregue aos dois ministros em breve.

Embora não se manifestem, as Forças Armadas, devem estar debruçadas sobre essa questão. Recentemente, o Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército teve duas portarias suas sobre rastreamento de armas e munições revogadas por ordem do Planalto, logo após o que o seu responsável desligou-se da sua direção. Pablo Ortellado nos diz que cansados de escândalos de corrupção e de uma elite política que apenas pensa na solução dos seus problemas e não dos seus representados, o eleitor em 2018 buscou um “ultradiferenciação”, votando naquele que rompia simbólica e retoricamente com o status quo.

Pode ser. Mas a questão é que essa opção do eleitorado veio a reboque de uma operação Lava Jato, que no combate a corrupção desestruturou a dinâmica política desde a redemocratização para cá, a tríade de partidos que organizava o jogo congressual e das alianças (PMDB, PT e PSDB) e suas lideranças nacionais. Se for incapaz de reconstruir uma narrativa que supere e incorpore soluções para o mal estar, desânimo e mau humor da população, decorrente da percepção da corrupção da política e da insegurança endêmica, a afirmação inicial de Adam Przeworki continuará valendo, para 2022 e além.

*Raul Jungmann é ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


RPD || Luiz Augusto de Castro Neves: Relações Brasil-China - Um olhar de longo prazo

Desde 1974, quando o Brasil reatou relações com a China, muita coisa mudou no país asiático, agora detentor do maior produto interno bruto do planeta e principal parceiro econômico brasileiro, com investimentos em 25 estados da Federação

O Brasil estabeleceu relações com a China em 1974, em plena vigência do regime militar, inequivocamente anticomunista. Examinando com alguma atenção as relações da China com a América Latina verificamos, em primeiro lugar, que a quase totalidade desses estabelecimentos de relações teve lugar a partir do ingresso da China nas Nações Unidas e da histórica viagem do presidente Richard Nixon a Pequim. Um exame mais acurado dá conta de que afinidades ideológicas tiveram pouco ou nenhum papel no relacionamento chinês com os países latino-americanos – a maior parte desses países estava, ao longo da década de 70, submetida a regimes militares de direita, adeptos de uma decidida retórica anticomunista. Houve duas exceções: Cuba, cujas relações foram estabelecidas após a ascensão de Fidel Castro, e Chile, logo no início do governo de Salvador Allende.

Mesmo em relação a Cuba, à época o único país marxista-leninista da região, as cubano-chinesas foram até 1995 marcadas por desacordos e distanciamentos, decorrentes em boa medida da controvérsia sino-soviética. Em 1966, Fidel Castro denunciou o governo chinês na abertura da conferência tricontinental de Havana e acusou a liderança chinesa de “senilidade”. A posição cubana refletia, na verdade, seu alinhamento com a política externa soviética, e sua reaproximação com Pequim só teve lugar a partir do desaparecimento da União Soviética. 

O reatamento de relações com a China em 1974 foi objeto de intensa controvérsia entre as autoridades militares brasileiras, boa parte das quais expressamente contrária ao reatamento. O então ministro do Exército, general Sylvio Frota, apresentou por escrito seu parecer, alegando que “a orientação político-ideológica do mestre do comunismo chinês, verdadeiros deus de uma religião sincretizadamente professada por mais de 800 milhões de amarelos ansiosos por expandirem-se e ocuparem os vazios do ecúmeno, hoje já carentes no globo terrestre, mas cobiçados, em especial, no Brasil e na África Negra”.  

Nos primeiros anos, o reatamento não levou a maiores iniciativas de parte a parte, por razões chinesas e brasileiras: a China estava imersa naquele momento no grande pandemônio político-ideológico, a chamada revolução cultural. Além disso, a saúde precária de Mao Zedong já propiciava o início de surda batalha por sua sucessão. No Brasil, por sua vez, o reatamento causara celeuma, sobretudo em meios militares que davam sustentação regime. O ministro do Exército dizia que o reatamento era uma iniciativa do Itamaraty (e não do presidente, como que a subtrair-lhe importância política). Além disso, o governo do general Geisel estava às voltas com o processo de abertura política, que acabou por levar, alguns anos mais tarde, à demissão do próprio ministro do Exército. Assim, não houve incialmente clima propício, nem de um lado, nem de outro, para iniciativas concretas de maior envergadura entre o Brasil e a China. 

Hoje vivemos em outro mundo. A China consolida-se como ator de primeira grandeza no cenário internacional, seu produto interno bruto já é o maior do planeta, se medido em paridade de poder de compra (e provavelmente será o primeiro a preços de mercado ainda nesta década), e sua presença já se faz sentir em todos os quadrantes do mundo. No Brasil, os investimentos chineses estão presentes em 25 Estados da federação. As relações econômicas e comerciais sino-brasileiras têm sido fundamentais para evitar o agravamento da crise econômica que atravessamos, na medida em que a China continua a crescer muito mais do que a média da economia mundial, e sua demanda por produtos brasileiros não para de crescer. Nosso desafio, nesse contexto, é buscar aproveitar plenamente as janelas de oportunidade que se nos abrem na China. As relações entre o Brasil e a China podem ganhar outra dimensão quando se examina a parceria entre os dois países com um olhar de longo prazo, sobretudo quando se tem em mente que a demanda externa desempenhará um papel central na retomada do crescimento da economia brasileira. O profundo desequilíbrio fiscal em que nos encontramos dificilmente será corrigido nos próximos anos, levando a um crescimento modesto da demanda interna. 

O aproveitamento pleno das janelas de oportunidade já mencionadas requer, de nossa parte, aumentar nossa competitividade internacional mediante investimentos em infraestrutura, em capital humano, bem como fortalecer o ambiente de negócios. Em suma, precisamos ter estratégia de longo prazo em nossas relações com a China e, sobretudo, fazer nosso “dever de casa”. As oportunidades são imensas, desde que saibamos aproveitá-las, o que me leva a concluir com a citação de Candide, personagem de Voltaire: “celà est bien dit, mais il faut cultiver notre jardin” (Está tudo dito, mas precisamos cultivar nosso jardim)

* Luiz Augusto de Castro Neves  é Presidente do Conselho Empresarial Brasil-China. Embaixador no Japão, na China, e no Paraguai. No Itamaraty, foi Secretário-Geral Adjunto das Relações Exteriores e Diretor-Geral para as Américas.  Presidente do CEBRI e atualmente é Vice-Presidente Emérito. Membro do Conselho de Administração do Grupo Pão de Açúcar, Cursou Ciências Econômicas na UFRJ e é Mestre em Economia pelo University College da Universidade de Londres.


RPD || Guilherme Acciolly: A miopia de curto prazo e o desmatamento da Amazônia

País precisa conter imediatamente o processo de desmatamento da Amazônia e evitar a chegada ao “ponto de não retorno”, quando será impossível deter a destruição da floresta 

O desmatamento na Amazônia continua aumentando. Segundo os dados oficiais do INPE, entre 2018 e 2020, portanto durante o governo Bolsonaro, a taxa de desmatamento na Amazônia cresceu 47 %. 

Os motivos para isso são muitos. Mas certamente a política simpática aos setores responsáveis pelo desmatamento (grileiros, alguns madeireiros e pecuaristas, garimpeiros ilegais) e o cerceamento à atuação do IBAMA e demais órgãos encarregados da repressão ao desmatamento contribuíram de forma decisiva para esse resultado. 

Essa postura é suicida no longo prazo, mas faz sentido numa perspectiva míope de curto prazo. Não há dúvida de que é popular para grande parte da opinião pública local e nacional. De fato, num primeiro momento, há relevante aumento da renda na região da fronteira do desmatamento. A retirada da madeira, a instalação ou ampliação de serrarias, a compra de maquinário, a implantação de pastos no lugar da floresta, a comercialização da carne bovina, a recepção dos novos habitantes, tudo isso gera renda e emprego. Muito mal distribuídos, mas com impacto positivo no início. 

Esse avanço é incentivado por se dar majoritariamente sobre terras públicas (e crescentemente sobre Áreas Protegidas) – e, portanto, com custo de aquisição nulo. Porém, logo depois, a receita madeireira se extingue ou decresce muito, a agricultura é prejudicada pela má qualidade do solo na Amazônia, e resta a pecuária de baixíssima produtividade. Ou seja, a prosperidade chega e vai embora. Aí o que se faz é repetir o processo mais adiante.  

Essa dinâmica vai empurrando a fronteira, avançando pela floresta. Só que esse recurso, a floresta, não é infinito. Já desmatamos cerca de 20% da Amazônia. Se nada for feito, um dia, nem tão remoto, ela acaba e teremos matado a proverbial galinha dos ovos de ouro. Na verdade, isso não ocorrerá. Muito antes disso, a própria destruição parcial da floresta a levará ao colapso, ao se interromperem os processos e fluxos naturais de regeneração. 

Há evidência científica indicando que esse “ponto de não retorno” já está muito próximo. Ou seja, se não houver a contenção imediata do processo de desmatamento da Amazônia, ela em pouco tempo deixará de existir. 

E qual o problema? É até bom, pois facilita o desenvolvimento agrícola e a exploração mineral na região (olha o nióbio!). Esse argumento, tão típico dos dias atuais, exige resposta. Se a floresta amazônica acabar, se extinguirá toda a riqueza potencial advinda da atividade madeireira sustentável e da extraordinária biodiversidade ali encontrada. Ninguém sabe tudo que pode ainda ser descoberto e aproveitado. Trata-se de uma riqueza literalmente incalculável. Provavelmente inúmeras vezes maior que o potencial agropecuário e mineral. 

Mas o prejuízo não se limita a isso. A eventual extinção da floresta amazônica – o que é possível que ocorra em breve – prejudicaria decisivamente o agronegócio, bem como toda a população do Centro-Oeste e Sudeste. O regime de chuvas seria fortemente afetado com a interrupção da chegada da umidade oriunda da Amazônia, que tem volume equivalente ao Rio Amazonas, no fenômeno conhecido como Rios Voadores.  

Ou seja, o processo de desmatamento da Amazônia é popular na região e em boa parte do país (embora haja também ampla parcela da população que a ele se opõe), até porque traz alguma prosperidade no curto prazo. Entretanto, no médio e longo prazo, é um baita tiro no pé. A miopia curtoprazista pode ser extremamente prejudicial para a região, para o Brasil e para o planeta. 

Não é novidade para o Brasil. No início de século passado, a prosperidade advinda da exploração da borracha foi assombrosa e, aos olhos da sociedade local – e nacional – da época, infinita e perpétua. Até as plantações asiáticas aniquilarem essa riqueza. O Brasil hoje é importador líquido de látex. 

Essa mesma miopia faz com que setores do governo se deem ao luxo de destratar gratuitamente nosso maior parceiro comercial, a China. O raciocínio é que “a China não pode ficar sem nossa soja”. Isso é verdade hoje. Mas os chineses (que certamente não podem ser acusados de não ter uma visão de longo prazo) não devem ser subestimados. Em janeiro deste ano, o Ministro da agricultura chinês declarou que “As tigelas chinesas devem ser enchidas com grãos chineses, e os grãos chineses devem ser cultivados a partir de sementes chinesas.” Isso ainda está longe de acontecer, mas a estratégia já está definida. É questão de tempo (olha o longo prazo aí). 

*Guilherme Acciolly é economista