vacinação
Alon Feuerwerker: Com firma reconhecida
Documento oficial do governo americano informa que os Estados Unidos atuaram (ainda atuam?) junto ao Brasil para evitar que usássemos (usemos?) vacinas russas contra a Covid-19 (leia). Aparentemente, essa pressão tem sido feita sem a oferta de contrapartidas. Por exemplo, os americanos poderiam oferecer-nos vacinas deles em lugar das do concorrente geopolítico.
Pressões desse tipo são esperadas num ambiente global de acirramento das disputas. A principal hoje é entre os Estados Unidos e a China, mas a polarização entre americanos e russos também vai adquirindo desenhos assemelhados aos da Guerra Fria, que durou do pós-2a. Guerra até o colapso e a consequente extinção da União Soviética.
Mas não é normal que o poder de barganha de um país esteja tão diminuído para uma pressão desse tipo não vir acompanhada de ofertas compensatórias. Afinal, vacinar os brasileiros deveria em teoria interessar ao mundo todo. Ou, pelo menos, ficar bem com o Brasil deveria ser do interesse do ocupante da Casa Branca, qualquer que fosse ele.
O debate político aqui dentro vai muito aquecido, com cada jogador tentando tirar o máximo proveito da desorganização no combate à Covid-19. Parece faltar, entretanto, quem esteja pensando antes de tudo no interesse nacional. E o interesse nacional é um só. Ter e aplicar o maior número de doses de vacina no menor tempo possível.
* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Felipe Salto: Remendo novo em tecido velho
É a PEC Emergencial. Tempo perdido em meio à emergência da crise sanitária
No melhor cenário, a chamada PEC Emergencial mudará muito pouco a gestão das contas públicas. Costumo dizer que o Brasil é pródigo em criar regras fiscais, mas nem tanto em cumpri-las. Desta vez, nem mesmo a criação foi promissora. Eventual ajuste decorrente da proposta de emenda à Constituição só virá em 2025. No caso dos Estados e municípios, as medidas serão facultativas e sua aplicação, incerta.
O teto de gastos foi mantido, mas ficou sem sanção para o caso de burla. Rompê-lo poderia ensejar, a partir de agora, crime de responsabilidade. Os gatilhos – medidas automáticas de ajuste –, que já estavam previstos na regra do teto, serão acionados quando as despesas obrigatórias superarem 95% das despesas primárias (não incluem juros da dívida), ambas sujeitas ao teto. Os gatilhos impedem reajuste salarial a servidores, criação de despesas, correção do salário mínimo acima da inflação e contratação de pessoal (a não ser para repor aposentadorias).
As contas da Instituição Fiscal Independente (IFI), contudo, mostram que os 95% só seriam atingidos em 2025. Em 2020 o indicador ficou em 92,6% e em 2021 a projeção é de 93,4%. Assim, levando em conta que o objetivo era tomar medidas “emergenciais”, o porcentual proposto foi mal calibrado. Algumas áreas poderão acionar gatilhos mais cedo, já que a regra será aplicada por Poder e por órgão, mas sem efeito agregado relevante.
Então, não haverá reforço do ajuste fiscal. A ideia do Ministério da Economia era trocar o auxílio emergencial pela aprovação de um programa de consolidação fiscal. Isso não ocorreu. O auxílio foi viabilizado pela PEC, mas não haverá contenção adicional do gasto ou geração de novas receitas em horizonte de quatro anos.
Mais do que isso, em 2022, ano eleitoral, a porta para reajustes salariais estará aberta. O teto de gastos precisará ser observado, mas um eventual espaço orçamentário poderá ser canalizado para beneficiar certas categorias do serviço público. Essa não é uma tendência nova sob o atual governo. Basta ver que a reforma da previdência dos militares, em 2019, garantiu reajustes com custo de R$ 7,1 bilhões já em 2021. O restante dos servidores não ganhou o mesmo tratamento.
Durante a votação da PEC Emergencial na Câmara dos Deputados, o governo firmou acordo que enfraqueceu os gatilhos. A possibilidade de barrar as chamadas progressões e promoções dos servidores, no cenário de gatilhos acionados, saiu do texto. Em live do dia 11 de março, o presidente da República destacou essa blindagem, citando servidores da área de segurança pública e das Forças Armadas. A mudança abrange todos, mas essa revelação de preferência é digna de nota.
Na parte que trata do auxílio emergencial, constitucionalizou-se a permissão para financiá-lo por crédito extraordinário. Essa prerrogativa já estava prevista na Constituição, justificadas a imprevisibilidade e a urgência do gasto. Dado o ritmo lento da vacinação, as medidas restritivas à circulação e ao comércio terão de ser mantidas para preservar vidas e evitar o colapso total do sistema hospitalar. Isso retardará a recuperação da renda e do emprego. O risco é claro: para editar um provável novo crédito extraordinário, fora do teto, outra PEC será requerida.
A PEC Emergencial trata também dos chamados gastos tributários, hoje em torno de R$ 308 bilhões – ou 4,3% do produto interno bruto (PIB). São as desonerações, os regimes especiais e as isenções tributárias que o Estado carrega há décadas sem nenhuma revisão ou avaliação. O texto aprovado obriga o governo a enviar ao Congresso, em até seis meses, um plano para redução dessas renúncias. No entanto, foram ressalvados programas que correspondem a 50% do volume total. No primeiro ano ele teria de diminuir 10% e em até oito anos, a 2% do PIB. Não há sanção prevista para o caso de o plano não ser aprovado, como alertou a jurista Élida Graziane.
As regras criadas para os Estados e municípios contemplam gatilhos iguais aos da União, mas o critério é distinto. Se a despesa corrente ultrapassar 95% da receita corrente, as medidas poderão ser tomadas. A escolha será do prefeito ou do governador. Quem não se ajustar não terá mais aval do Tesouro Nacional em operações de crédito, a exemplo de empréstimos em bancos ou organismos multilaterais. No cálculo do Tesouro, 14 Estados já estariam em condição de acionar os gatilhos (95%). Contudo, pelos dados dos Estados, conforme mostrou a economista Vilma Pinto, nenhum governo estadual atingiu 95% em 2020.
Em resumo, o auxílio sairá do papel, autorizado pela PEC, mas poderá ser insuficiente. As compensações, em termos de redução de despesas ou aumento de receitas, não vieram. O arcabouço fiscal ficará mais complexo e, no caso da União, dificilmente produzirá efeitos concretos antes de 2025, véspera do ano em que a regra do teto poderá ser alterada, conforme prevê a Constituição. A PEC é um remendo novo em tecido velho. Tempo perdido em meio à emergência da crise sanitária.
*Diretor Executivo da IFI e professor do IDP
Pedro Fernando Nery: O que o PIB não vai contar sobre a realidade do País
Crescimento em 2021 não vai refletir situação material de boa parte da população nos próximos meses
O Brasil deve crescer em 2021. Possivelmente a alta do PIB será a maior em mais de dez anos. Entretanto, de forma incomum, o crescimento do PIB nos próximos meses deve coincidir com elevações do desemprego e da pobreza – a recordes. O PIB não vai contar boa parte da história.
Vale entender melhor como o PIB tem se comportado. A atividade econômica no Brasil, em 2020, sofreu uma queda menor que a de outros países – em boa parte pelos efeitos do auxílio emergencial. O País chegou a subir posições na lista de maiores economias do mundo, para o 8.º lugar – segundo os dados do Fundo Monetário Internacional (FMI).
A imprensa deu grande ênfase a outro resultado, o de que o Brasil teria na verdade perdido posições nesse ranking, e inclusive saído do top 10. Isso só ocorre em uma comparação menos apropriada, que refletisse menos a variação do PIB e mais a forte queda do real, que diminuiria o valor do nosso PIB em outras moedas.
A comparação mais comum, porém, levando em conta o poder de compra das moedas, teria o Brasil ganhando posições – como nas estimativas do FMI em que supera França e Reino Unido. Afinal, em um dia em que o dólar sobe muito os brasileiros não ficam necessariamente mais pobres.
Se o Brasil ganhou posições na comparação internacional do PIB em 2020, e em 2021 deve crescer bem mais do que na média da última década, qual é então o problema?
O problema é que o crescimento da economia nos próximos meses não deve alcançar tanto os trabalhadores informais, os desempregados, os fora da força de trabalho. O agravamento da pandemia afetará o emprego informal e também o formal. E o orçamento do auxílio emergencial será um sexto do que foi em 2020.
Mesmo quando a curva de mortes voltar a níveis menores, muitos ainda estarão afetados pela crise. São trabalhadores de ocupações que demorarão para registrar a normalidade de 2019, ou de empresas que já não existem mais. Ainda que se beneficiem pelo auxílio emergencial reduzido, o novo valor só será pago por alguns meses. Depois, voltaremos ao Bolsa Família, que na ausência de reformas é uma rede incapaz de segurar a alta da pobreza extrema que vai ocorrer.
A divergência entre a situação mostrada por indicadores da atividade econômica como o PIB e indicadores do mercado de trabalho e renda já ocorre há alguns meses. Com a redução do auxílio emergencial ao fim de 2020, e a sua suspensão na virada do ano, milhões de famílias tiveram uma queda significativa de renda. A situação da pandemia manteve o mercado de trabalho difícil. Mas tudo que indicava que o PIB vinha crescendo.
O Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br), divulgado ontem e considerado uma prévia do PIB, sugere que em janeiro deste ano a economia já estava em patamar próximo do de janeiro de 2020. Mas pelo menos alguns milhões não recuperaram seus empregos, e a pobreza está em alta (o que melhorará um pouco, é verdade, com o novo auxílio, ainda que reduzido).
Veja o leitor que o mero retorno da economia ao nível pré-pandemia, por ocorrer depois de uma queda, significa uma variação positiva: crescimento. Essa espécie de “efeito sanfona” do PIB também acontecerá em outros países, que apresentarão crescimento forte sem que haja melhora das condições de vida em relação a 2019.
Em especial, PIB crescendo com pobreza crescendo significa aumento da desigualdade. A sociedade deve querer então outras bússolas para este ano que não o PIB. Ele certamente vale a torcida, mas por condições atípicas não vai refletir a evolução da situação material de boa parte da população nos próximos meses.
Para onde devemos olhar então? A taxa de desemprego é agora outro indicador problemático, porque muitos que deixaram de trabalhar não estão necessariamente procurando ativamente uma vaga – porque não querem se contaminar pelo vírus. Eles não são computados na taxa de desemprego. Pelos dados do Google, a procura por vagas até subiu após o fim do auxílio emergencial, mas a piora da covid e as medidas restritivas devem continuar mantendo parte dos sem emprego em casa.
Assim, a taxa de desemprego tradicional, mesmo aumentando, ainda não vai absorver todo o drama. A imprensa deve passar a divulgar mais estimativas da taxa que contemplem essa população que queria trabalhar, mas não está na busca (desemprego oculto, sombra). Idealmente, o IBGE poderia já fazer essa projeção ao divulgar os resultados da Pnad.
Devemos dar ênfase também às estimativas de taxas de pobreza e de pobreza extrema, que não foram preocupantes em 2020 por conta do amplo auxílio emergencial – que, sabemos, acabou naquele formato. O complicador aqui é outro: essas não são projetadas mensalmente pelo governo. Vale ficar de olho, portanto, no trabalho da academia – como o da FGV Social.
Com a bússola errada será mais difícil chegarmos ao lugar certo.
*Doutor em economia
Monica de Bolle: Pandemia é chance para país desenvolver tecnologia de saúde
Para economista, Brasil tem potencial para ser referência em mundo no qual convivência com vírus será permanente
Eduardo Cucolo, Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - O Brasil tem potencial para desenvolver uma indústria de ponta na área de saúde e utilizar a pandemia para se tornar um player global nessa área, de forma a se destacar em um “novo mundo pandêmico”, no qual a convivência com o novo coronavírus seria permanente.
Essa é a visão da economista Monica de Bolle, professora da Johns Hopkins University (EUA). Com especialização em Escola de Medicina de Harvard, de Bolle afirma, em entrevista à Folha, que não voltaremos à normalidade pré-pandemia e que a convivência com o vírus irá alterar a forma de funcionamento da economia global.Mundo pandêmicoA realidade que a gente tem pela frente não é uma realidade em que vai poder declarar um fim da pandemia. A fase aguda da pandemia vai passar, a gente não vai ficar no estágio em que está agora, mas esse estado de alerta permanente vai continuar conosco. Isso tem implicações em como os países, as pessoas e a economia vão se adaptar. Mercado de trabalho, ambiente de trabalho, aglomerações de todos os tipos, como eventos esportivos, viagens, todas essas coisas estão alteradas, e a gente não vai voltar ao que tinha antes.
No segundo semestre de 2021, a gente vai relaxar medidas restritivas, medidas sanitárias, em várias partes do mundo. Mas, supondo que todas essas vacinas deem conta dessas variantes, as que existem e as que vão surgir, a gente só consegue ter um contingente no mundo vacinado em quantidade suficiente para conseguir respirar com algum alívio, com certo otimismo, lá para o final de 2022.
Eu passei os últimos dois anos fazendo uma série de especializações em medicina em Harvard e calhou da pandemia acontecer. Para mim, pela natureza desse vírus, ele vai permanecer entre nós. A gente vai ter de se adaptar a conviver com isso, passar por surtos, por várias vacinas que vão ter de ser atualizadas recorrentemente e continuar com algum grau de cautela nas nossas vidas. Você vai ter sempre um repositório de Sars-Covid-2 em algum lugar do mundo sofrendo mutações.Mudança na economiaO setor de serviços vai ter de se reinventar. Já havia uma pressão para se pensar novos modelos de trabalho e na pandemia isso teve de acontecer. Você pode pensar pelo lado negativo, algumas pessoas vão perder permanentemente os empregos que tinham porque eles vão desaparecer. Por outro lado, há mudanças que geram uma flexibilidade maior, muitas pessoas não voltarão aos escritórios, e isso gera um ganho de eficiência enorme.
Para um país poder se sair melhor que outro vai ter de investir muito na área de saúde. Em tudo: testagem, equipamento de proteção pessoal, capacidade de vigilância genômica, que requer vários laboratório com equipamentos de ponta e uma rede que converse entre si e esteja rastreando no país inteiro.Nova agenda para o BrasilA agenda para mim no Brasil hoje, se tivesse um governo com visão estratégica, seria a saúde pública. É onde a gente tem uma vantagem natural, pelo sistema de saúde que a gente tem.
Você vê a Índia exportando vacina para muitos países e também exportando medicamente, produtos químicos. A China, a mesma coisa. A Rússia está tendo o mesmo tipo de posicionamento. Se você olhar para esses países [do Brics], tirando o B [de Brasil], o resto dos Brics estão todos fazendo esse reposicionamento. O Brasil teria uma posição muito privilegiada para fazer isso. Já fomos grandes produtores de medicamentos e vacinas, mas abrimos mão dessa vantagem.
A agenda de longo prazo deveria ser essa. Dessas coisas começam a vir inovações, tecnologias, inserção global, capacidade de estar mais envolvido nas cadeias de produção globais, tudo pela via da saúde pública.
Quais são as reformas que a gente precisa fazer para alcançar esses objetivos? Aí você faz as reformas com esses objetivos em mente. Vamos fazer uma reforma administrativa que atenda a esse objetivo, uma reforma tributária de modo a alcançar esse objetivo.EUAColocar a saúde pública no centro das discussões faz com que essas oportunidades fiquem mais visíveis e você começa a mudar um pouco o debate no Brasil. Aqui nos EUA, vai acontecer a mesma coisa. O setor de saúde aqui tem uma precariedade que o Brasil não tem. Tem muitas escolas de medicina de ponta, mas o sistema de saúde vai ter de ser reinventado.
O envelhecimento populacional é outro aspecto importante do porquê investir em saúde pública. E tem as sequelas da própria Covid. O número de pessoas que vão precisar dessa área para continuar sendo produtivas... Algumas vão ter sequelas para sempre, que as torna dependentes de centros de reabilitação.
Aqui nos EUA, todos os hospitais têm centro de reabilitação para quem teve Covid. A gente já tinha essa realidade de envelhecimento populacional somada a uma carga de doenças crônicas cada vez maior. Agora, além disso, tem o efeito que vem com as sequelas da Covid.
Míriam Leitão: Em reunião difícil, BC deve subir juros
O Banco Central começa hoje a reunião mais difícil feita no atual governo. A inflação de fevereiro foi mais alta do que o previsto e pode chegar perto de 8% em junho, em 12 meses. A expectativa é que caia depois, mas ontem a sondagem do BC mostrou que, de uma semana para outra, as projeções para o ano saíram de 3,98% para 4,6%. Os juros estão em 2%. A maioria dos economistas de bancos e consultorias acha que o Copom subirá a Selic em meio ponto percentual. O problema é que a economia ainda está em ambiente recessivo e o desemprego aumentou. Desapareceram em um ano 8,4 milhões de postos de trabalho. Se os juros não subirem, confirma-se a expectativa de alta da inflação. Se eles subirem, pode-se esfriar ainda mais a economia.
A inflação atual é bem complicada. Sobem alimentos, produtos industriais e há falta de algumas peças e insumos na indústria. Tudo ao mesmo tempo e no meio de uma recessão. Os alimentos e bebidas subiram 15% nos últimos 12 meses. Alguns itens deram saltos enormes, como as carnes, com alta de 29%, e frutas, 27%. Os combustíveis subiram 9,37% nos dois primeiros meses deste ano. A produção industrial está sendo atingida por gargalos e choques de preços. Aço subiu 30%. O gás natural, 40%. O setor de plásticos só tem conseguido entregar 50% dos pedidos. Algumas indústrias estão parando por falta de peças. Há dificuldades na compra de resinas e na produção de papelão. Isso afeta as embalagens, o que faz com que vários setores tenham dificuldades de produção.
O dólar subiu 8,14% só este ano. O real está entre as moedas que mais se desvalorizaram no mundo, ao lado do peso argentino. As commodities que o Brasil exporta também subiram. O índice CRB, que faz uma média das cotações internacionais das matérias-primas, mostra valorização de 14% este ano. Como a soja e o minério de ferro tiveram alta nas cotações, o Brasil está recebendo mais dólares. Isso, em qualquer tempo, geraria queda da moeda americana em relação ao real. Mas a incerteza sobre o país fez com que houvesse esse fenômeno raro, em que as matérias-primas que exportamos e o dólar sobem ao mesmo tempo.
É o custo dos erros do governo no combate à pandemia e do intervencionismo econômico do presidente. Além disso, foi necessário ampliar muito os gastos públicos para mitigar os efeitos da crise sanitária e econômica. A dívida pública é de 89% do PIB, num país que está há seis anos com déficits primários e assim permanecerá pelos próximos anos. O risco-país, medido pelo Credit Default Swap (CDS), saltou de 142 pontos no início do ano para 199 pontos, ontem. Essa é uma medida de percepção de risco sobre uma economia.
Na equipe econômica admite-se que essa alta da inflação é o grande problema agora, porque se as expectativas forem de descontrole das contas públicas as tendências inflacionárias vão permanecer. Por isso, a aprovação da PEC Emergencial era considerada fundamental nesse esforço para “ancorar as expectativas”. Mas o problema é que o projeto foi tão desidratado que poucos economistas de fora do governo acreditam que ela fará diferença. Oficialmente o Ministério da Economia divulgou nota chamando a PEC de “a maior reforma fiscal dos últimos 22 anos”. Isso foi motivo de piada entre os especialistas em contas públicas.
Diante desse quadro, o Copom vai se reunir hoje e amanhã. Inflação alta, ambiente recessivo, choque de preços, desvalorização cambial e falhas no abastecimento afetando a cadeia produtiva. Além do cenário de piora das contas públicas. No mercado, a maior parte dos economistas aposta que o Banco Central anunciará uma elevação de meio ponto percentual. Um grupo menor acha que o aumento será de 0,25%.
Começa a fechar a janela de oportunidade que se abriu com os juros mais baixos da nossa história. Nesse meio tempo o país poderia ter aprovado mudanças que apontassem para uma redução do déficit público no futuro. Mas nada anda porque o governo tem uma agenda caótica e uma calamitosa forma de administrar o país. As trapalhadas, nas últimas horas, para a escolha do quarto ministro da Saúde na pandemia mostraram isso. Que sentido faz o filho do presidente sabatinar uma médica e perguntar o que ela acha da liberação das armas. Em que governo do mundo isso é pré-requisito para alguém assumir o comando do Ministério da Saúde, em um país onde já morreram quase 280 mil pessoas?
Joel Pinheiro da Fonseca: Mudar de ministro não adianta; o problema é o presidente
Mudar o rumo do governo seria admitir que Bolsonaro foi diretamente responsável por dezenas de milhares de mortes
Os protestos pró-Bolsonaro que tomaram o Brasil neste domingo foram marcados por muito fanatismo, muitos pedidos de golpe militar e muita teoria da conspiração.
O sentimento de revolta que movia os participantes, contudo, é em parte compreensível. Voltar a fechar grande parte da economia —o que significa falir negócios, destruir empregos, desamparar famílias, aumentar o estresse doméstico— é desesperador. Só uma situação muito crítica justifica esse tipo de medida drástica.
Se ainda não está claro para alguém, a situação está crítica. O estado de São Paulo, por exemplo, triplicou os leitos de UTI disponíveis, e mesmo assim os internados logo excederão a capacidade do sistema.
Outros estados vivem situação similar. Dos pacientes de Covid-19 que são internados em UTI, mais da metade sucumbe. O único jeito de impedir essa tragédia de aumentar ainda mais é reduzir as aglomerações e, paralelamente, acelerar o tanto quanto possível nossa única porta de saída: a vacinação em massa.
Para os manifestantes, as medidas de isolamento de governadores são um plano para se capitalizar politicamente e contrariar o presidente. Se fosse, seria o plano mais estúpido da história. Não há nada mais impopular do que impor medidas duras sobre a população. Quem tenta se capitalizar politicamente é quem vê a tragédia chegando e nada faz, exceto, pela terceira vez na pandemia, mudar seu ministro da Saúde.
Neste momento, não sabemos o que esperar do sucessor de Pazuello, o presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Marcelo Queiroga. Antes, especulou-se sobre a médica Ludhmila Hajjar, profissional competente e ética. Durante a pandemia, ela defendeu as medidas de isolamento, foi contra a promoção de cloroquina, foi favorável ao uso de máscara e combateu a politização da doença. Ela trabalha com base na ciência. Ou seja, é diametralmente oposta a tudo que o governo federal fez e faz.Pazuello foi um péssimo ministro da Saúde. Com efeito, ele jamais deveria ter sido ministro. Assumiu o cargo interinamente depois da saída de Nelson Teich, quando ficou claro que nenhum médico sério estaria disposto a assumir a vaga, que trazia apenas uma condição: submissão total aos desejos do presidente.Pazuello mostrou-se submisso e por isso ficou. Suas trapalhadas mortais exasperaram o Brasil. Sua troca, porém, será, na melhor das hipóteses, não mais do que um paliativo. O real problema da Saúde não é o ministro, e sim o presidente da República.
Mudar o rumo do governo seria admitir que o presidente foi diretamente responsável —não por ignorância, e sim por má-fé— por dezenas de milhares de mortes. Bolsonaro não mudará; não vai em momento nenhum assumir a responsabilidade do cargo ou algo que o valha. Continuará igualmente inepto e mal-intencionado. Precisará, portanto, de um novo Pazuello. O que está em jogo não é uma medida ou outra; é a própria essência do bolsonarismo, um movimento de fanatização das massas para permitir que Bolsonaro continue no poder e siga agindo contra a população impunemente. No momento em que ele abandonar o discurso vitimista e for julgado por seus resultados, o projeto implode.
A única possibilidade de mudança virá caso Bolsonaro aceite entregar o ministério ao centrão. Zelar pela saúde pública é impossível; jogar o ministério mais rico de todos nas mãos dos interesses fisiológicos do Congresso, aí sim, pode acontecer. E quem negará que já seria um avanço? O Brasil atual só nos permite sonhar baixo.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Hélio Schwartsman: Efeito Lula derruba Pazuello
É improvável que Bolsonaro deixe Queiroga fazer o que tem de ser feito
Quanto medo Bolsonaro tem de Lula? Bastante, já que o capitão resolveu demitir o general e se esforçou para convidar gente com qualificação técnica para exercer o cargo. A primeira cotada, Ludhmila Hajjar, recusou; o segundo, Marcelo Queiroga, aceitou.
As coisas, porém, são mais complicadas do que parecem. Ninguém com diploma de medicina e familiaridade mínima com o método científico pode aceitar o posto se não arrancar de Bolsonaro a promessa de que poderá mudar a política sanitária até aqui adotada, o que inclui licença para impor medidas de distanciamento social, para aposentar os delírios cloroquínicos e para investir pesadamente na vacinação. E, para o presidente fazer uma concessão dessas, ele precisa estar aterrorizado com Lula e sob muita pressão do centrão.
O problema é que, mesmo que Bolsonaro aceda agora a esse programa elementar, é improvável que deixe Queiroga fazer o que tem de ser feito. A impulsividade com tons paranoides é um traço inapagável da personalidade do presidente. Em algum momento, ele acabará recaindo em seus tresvarios sanitários e desautorizará o ministro.
Quem tem um bom olhar clínico percebe isso e nem aceita o cargo, como parece ter sido o caso de Hajjar. Já Queiroga provavelmente superestima suas capacidades como negociador. Deve acreditar que conseguirá tourear Bolsonaro e encontrar espaço para atuar. Veremos.
De todo modo, é positivo que Lula tenha entrado na equação. Ao tentar viabilizar-se como candidato que busca ganhar espaço entre eleitores do centro político, Lula não dá a Bolsonaro alternativa que não a de imitá-lo. Recoloca assim em jogo o teorema do eleitor mediano, segundo o qual os principais postulantes em um pleito majoritário buscam a chancela da maioria dos eleitores mesmo que sacrificando o apoio dos mais radicais. Até esse estranho começo de século 21, essa era a regra nas democracias.
Ricardo Noblat: Queiroga, o novo testa de ferro de Bolsonaro na Saúde
Os filhos zero ajudaram o pai a ganhar mais uma vez
Despenca o grau de segurança dos ministros e demais auxiliares de Jair Bolsonaro quanto à permanência de cada um deles no governo. E por uma simples razão: se você faz algo no cargo que desagrada a Bolsonaro, pode ser demitido a qualquer momento. Se você obedece a todas as ordens dele, arrisca-se a ser demitido.
Tem mais: se você cair na mira de fogo de alguns dos filhos zero do presidente, seu emprego não vale nada. Foi assim que Gustavo Bebianno, então ministro da Secretaria-Geral da presidência, acabou dispensado. Carlos Bolsonaro, o Zero Três, sentia ciúmes de sua aproximação excessiva com o pai. Daí…
Outro ministro, esse tido como poderoso porque amigo há mais de 40 anos de Bolsonaro, também desagradou a Carlos e dançou. O filho convenceu o pai de que o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro da Secretaria do Governo, conspirava para derrubá-lo. Valeu-se para isso de uma notícia falsa.
A insegurança dos que servem a Bolsonaro aumentou depois que ele demitiu o ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, cujo erro foi ter cumprido todas as vontades do presidente sem nem pestanejar. A ponto de humilhar-se certa vez ao dizer com um sorriso amarelo: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Não bastou para Pazuello ter juízo. Ele foi obrigado a ceder o lugar a um cardiologista que nunca ocupou um cargo público e que deve sua indicação a Flávio Bolsonaro (Republicanos), conhecido como Zero Um e às voltas com a justiça desde que foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Pazuello caiu, pois, por excesso de obediência, além do fato de que o Centrão pediu a Bolsonaro a cabeça dele, e para manter a sua, o presidente entregou. Marcelo Queiroga será o quarto ministro da Saúde em pouco mais de um ano. Henrique Mandetta foi demitido porque não quis obedecer. Nelson Teich, pelo mesmo motivo.
Os filhos zero deram mais uma inegável demonstração de força junto ao pai quando pareciam enfraquecidos. Eduardo Bolsonaro, o Zero Três, participou do interrogatório da médica Ludhmila Hajjar, cardiologista famosa, cujo nome era apoiado pelo Centrão, o presidente da Câmara e ministros do Supremo Tribunal.
Convocada a Brasília, ela compareceu pensando que se tratava de coisa séria. Estava disposta a aceitar o convite. Pediu autonomia para montar sua equipe e mais vacinas. Mas era uma farsa. Foi recebida por Bolsonaro, Eduardo e Pazuello, que admitiu estar de saída porque carecia de apoio político. Imaginem a cena…
Eduardo quis saber a opinião dela sobre aborto e armas para a população – Ludhmila espantou-se e desconversou. Bolsonaro foi logo dizendo que ela não poderia decretar lockdown no Nordeste para não “foder” a reeleição dele. Antes que o encontro terminasse, a médica já estava sendo achincalhada nas redes sociais.
De volta ao hotel, ficou sabendo que o número do seu celular havia sido divulgado em grupos de WhatsApp e que estava sendo ameaçada de morte. Ainda passou pelo susto de três tentativas frustradas de invasão do seu apartamento. No dia seguinte, procurou Bolsonaro, agradeceu o chamado e despediu-se.
Antes de embarcar para São Paulo, onde trabalha no Instituto do Coração, leu em sites que o ministro das Comunicações, Fábio Faria, negou que ela fora convidada para suceder Pazuello. Só então se deu conta da armadilha em que se deixou aprisionar. Decência é um atributo que falta à família presidencial brasileira.
Era previsível o desfecho do episódio. Bolsonaro nunca quis rever sua posição em relação ao combate à pandemia que, segundo Ludhmila, poderá matar de 500 mil a 600 mil pessoas. Está perto das 300 mil. É para que morram os que tiverem de morrer da “gripezinha” que, em dezembro, estava no seu “finalzinho”.
Então que venha Queiroga, um ilustre desconhecido, curtidor dos comentários do presidente e amigo da família. Boa sorte! Porque da próxima vez, como observa irritado um dos líderes do Centrão, não estará em foco a troca de mais um ministro da Saúde caso Queiroga fracasse, mas sim a troca do presidente da República.
A semente da violência política se espalha pelo país
O mau exemplo vem do alto
Um repórter do jornal O Estado de Minas foi agredido, ontem, em Belo Horizonte por manifestantes bolsonaristas que protestavam contra as medidas de isolamento, pediam o fechamento do Supremo Tribunal Federal e defendiam a ditadura militar de 64.
O cardápio, pois, era o de sempre, apresentado há um ano em Brasília diante do Quartel-General do Exército com a presença do presidente Jair Bolsonaro. O Supremo abriu inquérito para apurar quem financia manifestações hostis à democracia.
Mas, como se vê, elas voltaram a se repetir, e, agora, com o emprego de violência contra jornalistas obrigados a cobri-las. O resultado da parceria de Bolsonaro com a Covid está deixando os bolsonaristas cada vez mais nervosos, e aí mora o perigo.
O governador João Doria registrou queixa na polícia contra os que o ameaçam de morte. Em vídeo gravado no último dia 13, em São Paulo, um homem dá tiros em alvos improvisados e chama Lula de “filho da puta”. Depois, vira-se para a câmera e vocifera:
“Presta atenção no recado que eu vou dar para você, seu vagabundo: se você não devolver os R$ 84 bilhões que você roubou do fundo de pensão dos trabalhadores, você vai ter problema, hein, cara? Você vai ter problema”.
A segurança de Lula será reforçada em breve. E os que no momento fazem parte dela receberão novos treinamentos. A direção nacional do PT pedirá a abertura de processo contra o homem do vídeo. Avisado, Doria tomará suas providências.
O governo federal não dá sinais de preocupação com nada disso. Pelo contrário: sempre que pode, como ocorreu na semana passada, Bolsonaro fala em Estado de Sítio, afirma que é muito fácil implantar uma ditadura no país e diz que o ditador seria ele.
Não levar a sério o que o presidente da República propaga nas redes sociais lembra o comportamento de milhões de brasileiros que apenas o viam como um candidato dado a falas exageradas. Não havia exagero. Era Bolsonaro em estado bruto tal como é.
Carlos Andreazza: O movimento pendular
Bolsonaro não muda. Não foi mudado pelo fator Lula; não em seu comportamento frente à peste. (Será matéria para outro artigo; mas, à sombra do ex-presidente, responderá sobretudo na economia, com uma derrama populista de dinheiros, com Guedes, com tudo, para financiar a reeleição e pagar o preço do Centrão, que subiu.)
Frente à pandemia, rara escada para a agitação reacionária, Bolsonaro será ainda mais radicalmente Bolsonaro; um mentiroso, investidor no sectarismo, que prospera no choque, mas que sabe se moldar — poucos alcançam distorcer a própria palavra como ele — ante a imposição do mundo real.
Irá assim até o final, aquele que disse nunca ter se referido à peste como “gripezinha”. Não nos iludamos com um baile de máscaras à tarde. A noite vem. E, ao ato que pareceu indicar moderação, logo corresponderá a forja de novos inimigos. E, do gesto que pareceu considerar uma médica séria para o Ministério da Saúde, logo emergirá a intenção de pazuellizá-la.
Bolsonaro é Bolsonaro. Não importa, pois, o futuro de Pazuello no governo, se fica ou cai; ministro da Saúde que nunca foi, cavalo — no sentido espiritual — para que Bolsonaro o fosse. Bolsonaro é. Outros pazuellos virão. Hajjar não topou. Haverá quem tope. E Bolsonaro continuará sendo.
O padrão está dado. Aqui e ali, quando já sem alternativa, cederá ao mundo real. Ou não terá sido ele a se sentar com a Pfizer depois de desqualificar por meses o laboratório? Ou não terá sido ele a comprar uma vacina, a CoronaVac, que tratara como inimiga e jurara jamais adquirir?
O mundo real se impõe, e ele se ajusta; a isso respondendo, sempre, com horror — normalmente com ataques à democracia liberal.
Bolsonaro opera em movimento pendular. De um lado, tocado pela imposição do mundo real, o vírus que o empareda, que depreda a economia, que fere a popularidade, de súbito se torna defensor da vacinação em massa — aquela contra a qual difundiu bárbara desconfiança. De outro, pressionado pela necessidade de dar satisfação — alimento — aos sectários que lhe compõem a base de apoio fundamental, incomodados ante seus contatos com a civilização, fabrica guerras. É como se equilibra. Bolsonaro se equilibra na instabilidade, na imprevisibilidade. O chão em que será competitivo.
Enquanto ousa se apregoar como alguém que sempre defendeu que a economia só teria condições de se reabilitar organicamente por meio de vacinação em massa (encaixou essa versão na semana passada, com Guedes, aquele que resolveria a pandemia com R$ 5 bilhões); enquanto frita Pazuello, cavalo que verteu em boi de piranha, o culpado por o Brasil não ter iniciado seu programa de imunização em 2020, noutra mão Bolsonaro balança o berço de seus fanáticos cultivando ameaças artificiais.
Já foi, repito, a vacinação em massa; com os bolsonaristas mobilizados contra uma imunização obrigatória que consistiria em invadirem nossas casas para nos cravarem agulhas ao braço. Hoje, o mais influente inimigo fantasioso é o lockdown; algo que nunca houve no Brasil, não até agora, mas contra o que o bolsonarismo luta a batalha definidora do futuro. Um lockdown imaginário; que, no entanto, transforma governantes em tiranos e justifica a constituição de milícias da resistência. Governadores e prefeitos legitimamente eleitos, que tomam medidas restritivas legais, vendidos, por Bolsonaro, como ditadores.
O presidente que vestiu máscara e que foi lido como alguém que se amansava ante à restituição dos direitos políticos de Lula sendo o que, no mesmo dia, pouco depois de falar das Forças Armadas e em como era fácil baixar uma ditadura no Brasil, afirmou ser aquele que teria como garantir nossa liberdade. Mais: o que se apresentou — em construção típica de um autocrata, o nosso Viktor Orbán — como “o garantidor da democracia”.
Começa assim. Com “o meu Exército”; e não tarda chega-se à “minha democracia”. Já chegamos a esta generosidade: “Eu sou a pessoa mais importante desse momento. Faço o que o povo quiser”. Que povo? É relevante considerar o sentido de povo para alguém como Bolsonaro; povo sendo aqueles que o apoiam — uma compreensão essencialmente totalitária. O povo sendo aquele que vai à porta da mãe de um governador para intimidá-la.
Veja-se a maneira altiva como suprime filtros republicanos: “Como é que eu posso resolver a situação? Eu tenho que ter apoio. Porque, se eu levantar a minha caneta e falar shazam, eu vou ser ditador”. Depreende-se que, amparado (pelo povo, segundo Bolsonaro), poderia agir como ditador sem ser ditador. É isso?
Claro que ele sabe o que é estado de sítio; mas precisa deturpar o toque de recolher — medida restritiva definida em lei — em ato discricionário, de modo a substanciar seu lockdown tirânico. É desinformação golpista.
Que também necessita — projetando um futuro caótico — gerar pânico nuns, soprar o apito para outros. “Invasão de supermercados. Fogo em ônibus. Greves. Piquetes.” Manifesta-se aquele que foi o maior entusiasta — um agente estimulador — da revolta dos caminhoneiros que parou o país em 2018. Alguém cuja pregação armamentista deixou de se deter à velha defesa da propriedade privada para se fundamentar numa ideia de resistência civil à opressão de governantes. Gravíssimo.
Eliane Cantanhêde: Médico sério defende o que Bolsonaro condena e condena o que ele defende. E Queiroga?
O novo ministro vai ter a altivez de Luiz Mandetta, Nelson Teich e Ludhmila Hajjar, ou vai replicar Pazuello e jogar a ciência para o alto?
A médica cardiologista Ludhmila Hajjar é o oposto do general da ativa Eduardo Pazuello e deixou a demissão dele do Ministério da Saúde ainda mais humilhante. Ela conhece profundamente a situação da pandemia e tem noção clara não só do que fazer, mas sobretudo do que não fazer. E ele? O homem errado, na hora errada, passando vexame. Mas a grande diferença entre os dois nem é essa. É que ela tem brios.
Ao ser chamada a Brasília pelo presidente Jair Bolsonaro, Hajjar já tinha estratégia, equipe e estava pronta para a guerra – diferentemente do general. “Mas foi só um sonho”, desabafou a doutora, depois do encontro com Bolsonaro. O mais surpreendente é que ela sabia exatamente o que o presidente pensa da pandemia, mas ele nem sabia com quem estava falando. Só aí soube que os dois são como azeite e água.
Bastava fazer uma busca na internet e ouvir umas poucas pessoas para Bolsonaro saber que Hajjar é contra cloroquina, despreza o tal “tratamento precoce”, segue a ciência, defende o isolamento social e as máscaras e é obcecada pelas vacinas – e pela vida. Ou seja: ela defende tudo o que ele condena e condena tudo o que ele defende. Por isso, é mais uma a virar alvo de ataques covardes da tropa bolsonarista.
Isso, aliás, combina à perfeição com a provocação que uma alta fonte do governo me fez na semana passada, quando ficou claro que Pazuello não duraria muito na Saúde: “Quem pôr no lugar? Desafio você a sugerir um médico respeitável, com credibilidade, que aceite assumir a Saúde numa hora dessas!”
Pura verdade. Qualquer médico sério pensa como Hajjar. Logo, Bolsonaro ficou entre um nome do Centrão ou um doutor pronto a seguir a máxima de Pazuello: “um manda, outro obedece”. Assim, o novo ministro, Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, está no foco. Vai ter a altivez de Luiz Mandetta, Nelson Teich e Ludhmila Hajjar, ou vai replicar Pazuello e jogar a ciência para o alto?
O País está em polvorosa, caminhando para 300 mil mortos, com governadores e prefeitos tontos, médicos e enfermeiros no limite, mas o que fez Bolsonaro mudar o ministro e o discurso não foi nada disso. Foi a entrada do ex-presidente Lula em cena. Era preciso um bode expiatório rápido. E um general da ativa é um bode expiatório e tanto.
Depois de fritado pelo presidente e três generais de Exército, inclusive o ministro da Defesa, Pazuello ainda divulgou que, ao contrário das versões palacianas, ele não estava doente, não tinha pedido demissão e não tinha sido demitido. E, ontem, disse que 15% dos grupos prioritários estarão vacinados em março e 88% em abril. Convém guardar esses números, porque uma das marcas do general é fazer previsões que não se confirmam, nem de datas, nem de doses, nem de contratos, nem de testes...
E ele se “esqueceu” de dizer que, se 10 milhões de brasileiros foram vacinados até agora, é graças ao governador João Doria (SP), ao Butantan, ao laboratório Sinovac e à Coronavac, atacada como “aquela vacina chinesa do Doria”, quando Bolsonaro bateu no peito, disse que ele é que mandava e cancelou a compra de 46 milhões de doses que Pazuello anunciara.
Se dependesse de Bolsonaro, os brasileiros nem estariam se vacinando até agora, quando estão morrendo sem direito a UTI, dignidade, humanidade. É por isso, aliás, que a gestão da pandemia no Brasil foi parar na Conselho de Direitos Humanos da ONU, sofre investigações do STF, do TCU e do Ministério Público e pode virar alvo do Congresso.
Caso a CPI seja instalada, não há gabinete do ódio, carreatas e fake news que possam apagar todas as monstruosidades de Bolsonaro a favor do vírus, contra a vida. A dúvida é como Queiroga vai lidar com isso. E com a realidade.
Merval Pereira: Catch-22
A escolha do substituto do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde é uma situação típica de Catch-22, expressão muito usada nos países de língua inglesa, especialmente nos Estados Unidos, oriunda de uma lei militar. Dá nome a um livro de Joseph Heller, “Ardil-22” na versão brasileira, que se passa no final da Segunda Guerra Mundial. Segundo o dicionário, caracteriza um problema cuja solução é negada por uma circunstância inerente ao próprio problema. No livro, o piloto que pede uma avaliação psicológica para escapar de missões perigosas de bombardeios estará mostrando sua sensatez e será considerado apto às mesmas missões perigosas.
É preciso mudar a política sanitária devido à repulsa provocada na população, fazendo cair a popularidade do presidente Bolsonaro. Mas como mudar a política sanitária, se o responsável por ela, o próprio presidente, não mudou a maneira de pensar em relação ao distanciamento social, ao uso da máscara ou à vacinação?
Se Bolsonaro escolhesse uma médica como Ludhmila Hajjar, estaria admitindo uma mudança de comportamento. Como não é esse o caso, a indicada pelo Centrão desistiu, incentivada por uma brutal guerrilha digital bolsonarista. O presidente Bolsonaro sempre alega que seus seguidores nas redes sociais são autônomos, não obedecem às suas ordens, o que é meia verdade. Veja-se a atuação do gabinete do ódio de dentro do Palácio do Planalto.
A solução seria escolher uma pessoa ligada a ele, que pensasse como ele, como o novo ministro escolhido, Marcelo Queiroga. Mas, para isso, por que demitir o general Pazuello, que já se humilhou publicamente afirmando, sem que lhe perguntassem, que “um manda, e o outro obedece”? O Centrão, por sua vez, também se encontra numa situação de Catch-22.
Indicou a médica rejeitada pelos bolsonaristas, tendo a demonstração clara de que seu peso político não decide tudo no governo Bolsonaro. Mas como continuar apoiando um presidente que os leva para o precipício da impopularidade, ainda mais agora que outro candidato forte se apresenta, o ex-presidente Lula, a quem já serviram com grandes vantagens? Mas, também, abrir mão das benesses do governo assim, de graça?
Típica situação de Catch-22 é a do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin, que, vendo que seria derrotado na Segunda Turma no julgamento da suspeição do então juiz Sergio Moro, resolveu chutar o pau da barraca e anulou quatro processos contra o ex-presidente Lula, mandando-os para a Justiça Federal de Brasília.
Como a solução de um problema Catch-22 será sempre negada pelo próprio problema, num conflito mútuo, Fachin pode perder tudo, não salvar a Lava-Jato, que parece ter sido sua motivação para ir para tudo ou nada. Salvar a Lava-Jato anulando as condenações do ex-presidente Lula é uma contradição em termos, pois ele era um símbolo do sucesso da operação de combate à corrupção.
Claro que anular os processos não significa dá-lo por inocente, mas, para efeitos políticos, Lula livre dá no mesmo. Fachin só poderá se livrar desse efeito Catch-22 se o Supremo, mais uma vez, decidir não decidir. O ministro Nunes Marques, que pediu vista do processo, pode ficar eternamente com ele, como o próprio presidente da Segunda Turma, ministro Gilmar Mendes, ficou dois anos até anunciá-lo na reunião da semana passada.
Se fizer isso, é sinal de que tem as costas quentes. Quem lhe esquenta as costas, o presidente Bolsonaro, também nesse caso se encontra numa situação de Catch-22. Para se vingar de Moro, seu inimigo mortal e talvez competidor em 2022, tem que aceitar a liberação de Lula, outro forte candidato contra Bolsonaro. Para se livrar de Lula, precisa que o plenário vote contra Fachin e que Nunes Marques segure o processo de suspeição até que o prazo para registrar candidaturas se esgote. Agindo assim, estará fortalecendo Moro. Difícil combinação, como é difícil, se não impossível, escapar do Catch-22.
Como todo brasileiro, terá que escolher a opção menos ruim para ele. Não foi assim que chegou à Presidência da República, nos colocando, a nós, brasileiros, numa situação de Catch-22? Para melhorar o país, só trocando o presidente. Mas trocar o presidente pode nos levar a uma convulsão social. Melhor deixá-lo sangrar até 2022. Lembram-se de Lula no mensalão?
“Governo Bolsonaro enfrenta dura realidade de manter regras fiscais importantes”
Afirmação é do economista Sérgio Vale, em artigo na revista Política Democrática Online de março
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O economista-chefe da AMB Associados, Sérgio Vale, afirma que o governo Bolsonaro falha ao enfrentar a realidade de manter regras fiscais importantes e, ao mesmo tempo, gerar a estabilidade necessária que acelere o crescimento econômico do país. O analista publicou artigo na revista Política Democrática Online de março.
A revista mensal é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. A versão flip, com todos os conteúdos, pode ser acessada gratuitamente na seção de revista digital do portal da entidade.
“O governo Bolsonaro enfrenta, hoje, a dura realidade de manter regras fiscais importantes e, ao mesmo tempo, gerar a estabilidade necessária que acelere o crescimento”, diz o autor, no artigo da revista online da FAP.
Desconfiança
Na avaliação de Vale, há muita desconfiança quanto à capacidade de o governo de entregar o ajuste fiscal reclamado pela população, assegurando espaço fiscal para o gasto de qualidade em educação e saúde, por exemplo.
“Desde as manifestações de junho de 2013, o Brasil tem passado por série ininterrupta de instabilidades de difícil solução, tanto mais porque as demandas da classe média continuam não sendo atendidas”, observa o economista.
Ele lembra que, em artigo na década de 70, Albert Hirschman criou o conceito de efeito túnel, segundo o qual a classe média ganhou terreno na aquisição de bens com o aumento da renda, mas a contrapartida de serviços públicos de qualidade não seguiu a mesma trajetória.
“É como se, depois das conquistas materiais individuais, tivesse caído a ficha da população quanto à necessidade de demandar serviços públicos de qualidade do governo”, afirma. “Esse foi o grande tema das manifestações de 2013, depois de anos de forte crescimento de renda e do consumo da classe média e da ascensão de parte da classe mais baixa de renda para a classe média”, avalia.
Descontentamento
De acordo com o artigo publicado na revista Política Democrática Online, como a classe média não foi atendida de maneira satisfatória, o descontentamento dela fez crescer a pressão sobre o setor público no sentido da qualidade da prestação dos serviços.
“Só que a conjunção de incerteza, que afugentou investimento e diminuiu o ritmo de crescimento, com a necessidade de responder à população via mais gastos públicos colaborou para agravar a crise fiscal que já se avizinhava. Seria difícil naquele momento de descontentamento da população para um governo de esquerda fazer um ajuste fiscal”, diz.
De acordo com Vale, o país vive no dilema desde então, “com diversos graus de incerteza que foram se acumulando na economia, diminuindo de forma duradoura o ritmo de crescimento, com a população cada vez exigindo respostas eficazes do governo”.
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