vacinação

Rubens Barbosa: O Brasil e a diplomacia epistolar

Cartas não definirão a política externa dos EUA com o Brasil; mas terão influência quando as negociações bilaterais começarem

Nos últimos dois anos, a ausência de uma política externa atuante que acompanhasse as mudanças que estão acontecendo no mundo deixou um vazio que rapidamente foi ocupado por agentes subnacionais, como governadores, pelo Congresso, presidentes das duas Casas e presidentes da Comissão de Relações Exteriores e pela sociedade civil.

Nunca antes na história deste país verificou-se quase semanalmente troca de correspondência de brasileiros e americanos (Congressistas, ex-ministros e sociedade civil) com Joe Biden e com autoridades de seu governo e do Congresso, em Washington, tendo como foco a política ambiental brasileira, e tratando de temas de interesse da relação bilateral.

 Além da correspondência entre os presidentes Bolsonaro e Biden, a maioria das cartas, críticas às política ambientais e de direitos humanos na Amazônia, pediu para o governo americano não levar adiante a cooperação em todas as áreas, inclusive de Defesa (Base de Alcântara), com o Brasil, enquanto o governo brasileiro não mudar a narrativa e as medidas internas que estão permitindo o aumento dos ilícitos na Amazônia pelo desmatamento, pelas queimadas, pelo garimpo e pelo tratamento dispensado às comunidades indígenas.

Nos últimos dias, com a aproximação da cúpula do clima, multiplicaram-se as manifestações de artistas, personalidades nacionais e estrangeiras, mostrando o grau de interesse fora do Brasil sobre o futuro da Amazônia. 

Na área oficial, Bolsonaro escreveu uma carta a Biden antecipando sua fala no dia 22 com algum avanço na narrativa seguida até aqui, mas com a referência ao apoio financeiro em troca de promessa de redução de desmatamento em 2030. John Kerry reconheceu a mudança de tom do governo brasileiro, mas cobrou resultado de curto prazo, dando oportunidade para o embaixador dos EUA, em conversa em grupo fechado, pedir resultados concretos e verificáveis.

As cartas não definirão a política externa dos EUA em relação ao Brasil, pois há muitos outros interesses econômicos, políticos e comerciais em jogo. Certamente, contudo, elas terão influência quando as negociações bilaterais começarem efetivamente, já que até aqui o que ocorreu foram diálogos em nível técnico, evitando qualquer confrontação direta.

A inusitada troca de missivas entre a sociedade civil brasileira e personalidades internacionais sobre a Amazônia mostra a urgência de o Brasil voltar a ter uma política externa com foco no meio ambiente e na mudança de clima, como ocorreu até fins de 2018. A apresentação de Bolsonaro amanhã talvez seja a última oportunidade para o Brasil voltar a apresentar-se como protagonista na discussão global sobre mudança de clima e para indicar uma mudança séria e profunda de rumo na política ambiental.

*Foi Embaixador do Brasil nos EUA e atualmente é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)


Pedro Fernando Nery: Novo IDH verde expõe hipocrisia dos países ricos

É justo que haja clareza sobre o quanto do desenvolvimento dos países ricos se baseia na destruição do planeta

Esta é a semana do Dia da Terra: vale aproveitar a ocasião para conhecer o novo IDH, que ajusta o tradicional índice de desenvolvimento humano para “pressões planetárias” (IDHP). Assim, além de informações sobre renda, educação e saúde, o novo IDH contempla a emissão de carbono e a pegada ecológica por habitante. Mensura então o quanto o desenvolvimento de um país pressiona a Terra, expondo vários países ricos – que despencam no ranking do IDH.

Peguemos o exemplo da Noruega, diversas vezes considerado o país de maior qualidade de vida, número 1 na classificação do indicador. As ruas de suas cidades têm ciclovias e estações para carregamento de carros elétricos. Sua política externa é preocupada com a mudança climática, sendo marcante o episódio da suspensão das doações ao Fundo Amazônia com o aumento do desmatamento no governo Bolsonaro. O novo IDH a constrange.

É que a Noruega perde nada menos do que 15 posições no indicador com os ajustes feitos pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Não deve voltar ao topo do ranking tão cedo: em parte porque o país é um grande produtor de petróleo. Digamos que os painéis solares de Oslo são viabilizados pela riqueza de suas exportações, que vira por exemplo combustível fóssil queimado em outros países.

Dessa forma, o novo IDH expõe de forma clara uma certa hipocrisia que já era criticada. Sobre a convivência da agenda verde dos noruegueses com a venda de petróleo de suas gigantescas reservas para o resto do mundo, o jornalista Michael Booth comparou a Noruega ao “traficante de drogas que não usa seus produtos”.

O vexame também é de outros países, o que talvez explique a baixa cobertura da imprensa internacional para o novo IDH, ou a tímida divulgação do próprio Pnud (que embora disponibilize os dados, optou por não divulgar o ranking reclassificado). O rico que mais perde é Luxemburgo, caindo mais de 130 posições.

Brasil ganha dez posições no novo IDH, menos do que vários países latino-americanos, muitos dos quais são os que mais ganham posições no IDHP entre países do mundo todo. Vários vizinhos nossos ganham mais que 20 posições. Seriam, para usar a definição oficial, países cujo desenvolvimento humano atual não pressiona o planeta e a desigualdade entre gerações. Segundo a ONU, esse IDH verde “deve ser visto como um incentivo para transformação. Em um cenário ideal, em que não houvesse pressões no planeta, o IDHP seria igual ao IDH”.

Vale frisar que o novo indicador, como o tradicional, tem limitações. Pode-se alegar que medidas sintéticas perdem a utilidade quando incorporam informações demais. E sempre haverá informações a incorporar. Por exemplo, a nova número um é a Irlanda, cuja prosperidade está em algum grau associada ao seu papel cada vez mais relevante de paraíso fiscal – em prejuízo de outros países. 

Assumidamente experimental, o novo IDH verde gera um ranking com curiosidades. Quando a sustentabilidade entra na conta, o Brasil é considerado mais desenvolvido que a Austrália, o México desbanca os Estados Unidos, o Sri Lanka ultrapassa a Coreia do Sul. A Costa Rica, que mais ganhou posições, supera em desenvolvimento humano a IslândiaPortugal ganha da Finlândia. E o Panamá surge na frente do Canadá no novo IDH.

A diplomacia dos países desenvolvidos poderia ser desafiada com a nova abordagem. Além da Noruega, os Estados Unidos é outro país que cai muito na reclassificação. Por mais desastrosa que seja a atual política ambiental brasileira, por que deveria se dar tanto status às críticas de países cuja emissão por habitante é, respectivamente, quatro vezes ou oito vezes maiores que a nossa? 

O IDH verde poderia ser um trunfo então para os países mais pobres, que deram menos causa à mudança climática e podem sofrer mais com ela (por conta dos efeitos na agricultura, por exemplo). Se vão ter seu crescimento econômico limitado pelos esforços de mitigação nos próximos anos, é justo que haja clareza sobre o quanto do desenvolvimento dos países ricos se baseia na destruição do planeta.

*DOUTOR EM ECONOMIA 


Monica de Bolle: Pensar o Brasil é largar os corrimões

Visto de longe e de perto, o Brasil dos economistas e da imprensa tradicional permanece preso a dogmas

O título desse artigo serve para o mundo: para dar conta do mundo, é preciso soltar os corrimões. Pensar sem corrimões é das imagens de Hannah Arendt que mais gosto, embora, como outras metáforas e conceitos da autora, tenha se tornado um pouco banal nos nossos tempos. O ato de pensar, isto é, de refletir com distanciamento, mas também com sensibilidade, precisa ser livre. Se não for livre, caso precise de muletas ou de limites pré-estabelecidos, não será pensamento. O pensamento precisa da liberdade porque, ao pensar, nós nos movemos. Há muito me debato com os limites do pensamento no Brasil. O livre pensar não parece ser do gosto nacional. As pessoas exercitam algo que não é bem pensamento, mas reflexões circunscritas, que têm lugar dentro de espaços convenientes e coniventes. Vozes são uníssonas e debate não há.

Deixei o Brasil em 2014. Naquela época, já escrevia e participava do debate público havia alguns anos. Também já havia ficado claro para mim que vozes dissonantes incomodavam mais do que deveriam, se os discordantes as quisessem ouvir. Nessa época, eu não era uma voz dissonante. Não viria a sê-lo até 2016, quando passei a criticar a política econômica de Temer. Até então, havia criticado a política econômica de Dilma, algo que se encaixava perfeitamente nos limites aceitos pela economia tradicional, tal qual praticada no Brasil. Dessas críticas resultou um livro, Como matar a borboleta azul: uma crônica da era Dilma. Por ter sido publicado em 2016, ano do impeachment, muitos o interpretam equivocadamente até hoje. Não tratei de escrever um livro sobre por que Dilma deveria sofrer impeachment, que considero um dos maiores erros que cometemos. O livro trata das políticas econômicas de seu governo e afirma desde o início que, apesar de bem-intencionadas, elas foram mal pensadas e mal elaboradas. Penso do mesmo modo até hoje e vejo no impeachment algo que tem nos custado muito. A reflexão sobre as políticas econômicas não é incompatível com minha visão sobre a remoção forçada de Dilma, o que na época chamei de “impeachment de coalizão”.

Quando Temer assumiu e apresentou de afogadilho reformas que precisavam de maior aprofundamento para não criar enormes problemas para o país, eu o critiquei. O maior erro cometido no governo Temer – e escrevi vários artigos sobre o assunto em 2016 – foi a criação do teto de gastos. O erro não é pela ideia de teto de gastos. O teto é uma regra fiscal como qualquer outra e há vasta documentação sobre seu uso em diversos países na literatura. O problema do teto aprovado naquele ano é que a medida foi mal desenhada de princípio: jogou o ônus do ajuste para além do governo Temer e instituiu uma regra excessivamente rígida, que ia de encontro às garantias constitucionais das despesas com a saúde e a educação. Nessa época o teto virou fetiche dos economistas de linha tradicional à brasileira, e, como voz dissonante, comecei a ser criticada. Mas eu não tinha muita visibilidade, de modo que ainda há quem acredite que eu tenha sido árdua defensora do teto roto. Paciência.

Em 2017, mantive minhas colunas no Brasil, mas passei a escrever mais sobre o meu trabalho no Peterson Institute for International Economics. Não havia muito o que dizer sobre o Brasil e eu estava mais interessada no que se passava aqui nos Estados Unidos, com a vitória de Donald Trump e as tratativas para o Brexit. Voltei ao debate nacional em 2018 por ocasião da eleição que deu a Presidência a Jair Bolsonaro, uma catástrofe previsível que tantos insistem em negar, talvez por vergonha, talvez por falta dela. Contudo, só fui me envolver mesmo com o Brasil no último ano.

Logo após os primeiros sinais da pandemia comecei a pensar como o Brasil seria afetado e quais seriam as medidas para enfrentar a inevitável crise econômica que sobreviria da crise de saúde pública. Ativei um canal que tinha no YouTube, mas que não usava, para falar sobre economia e saúde e ajudar a orientar as pessoas. Os brasileiros se mostravam bastante perdidos em relação ao que estava acontecendo e desorientados quanto ao que fazer. A partir do conteúdo desenvolvido no canal publiquei um livro chamado Ruptura (Rio de Janeiro: Intrínseca), em meados de 2020.

O livro reúne reflexões variadas e recomendações de política pública. Em sua página 71 algumas recomendações foram resumidas assim: “(a) um suplemento emergencial imediato do benefício do Bolsa Família em pelo menos 50%; (b) a instituição de uma renda básica mensal no valor de R$ 500 para todos os registrados no Cadastro Único que não recebem o Bolsa Família; (c) a abertura de R$ 50 bilhões em créditos extraordinários para a saúde, com a possibilidade de se aumentar esse montante; (d) aprovação do seguro-desemprego com maior flexibilidade e celeridade; (e) recursos emergenciais para os setores mais afetados pela crise no valor de pelo menos R$ 30 bilhões; (f) a abertura de linhas de crédito do BNDES para micro, pequenas, e médias empresas pois são elas as que mais empregam; (g) um programa de infraestrutura para sustentar a economia no médio/longo prazo com a utilização de recursos do BNDES”.

Nos meses subsequentes, em artigos, transmissões no canal, webinários e entrevistas, falei exaustivamente sobre essas medidas, sobre o papel de uma renda básica para complementar os programas de proteção social e sobre o uso dos bancos públicos no combate à crise. Expliquei conceitos básicos de economia, e outros nem tão básicos, entrando em temas áridos como o famoso quantitative easing, a política de compra de títulos do governo pelos bancos centrais. Discorri sobre inflação e deflação, alertei para o fato de que o mundo inevitavelmente passaria por quarentenas intemitentes e que o Brasil teria de aprender a lidar com isso. Nada disso foi dito à toa. Tudo foi pensado e refletido à exaustão depois de muita leitura, mas sem que pudesse me escorar em conhecimentos estabelecidos. Simplesmente não havia respostas à mão.

Aliás, ficou claro para mim desde o início que o conhecimento da minha área de formação, a economia, era um empecilho para pensar o Brasil da pandemia. Houve críticas, houve elogios, mas isso é o de menos. Sinto-me satisfeita por ter me apresentado em hora difícil e cumprido meu papel o melhor que pude. Ao longo do tempo, como estava estudando temas de biomédicas, meus interesses foram migrando cada vez mais para a saúde. Falei de imunologia, virologia, genética, vacinas, e esses são os assuntos que hoje me fascinam. Tomei distância da economia.

Ao tomar distância da economia, também fui tomando distância do Brasil. Visto de longe e de perto, o Brasil dos economistas e da imprensa tradicional permanece preso a seus dogmas – o do teto, o da responsabilidade fiscal, o do medo inflacionário, e tantos outros – e me parece tornar cativa a sociedade. Esse país dogmático não me interessa, pois não há mais nada a pensar. A minha prática sempre foi a de deixar para trás o que já não serve. Já não serve falar de economia no Brasil e já não serve ter canal no YouTube, com tantas coisas que quero ler e estudar. Essa coluna passará a tratar desses temas, assuntos de natureza global e da saúde pública. Aos que me leem, aos que me acompanharam no último ano, desejo que aprendam a pensar sem corrimões.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.


Carlos Andreazza: Breve roteiro para a CPI

Participei, ontem, do podcast “O assunto”, comandado por Renata Lo Prete. O tema: a CPI da Covid no Senado. Mais precisamente: as questões a serem investigadas na CPI. São muitas. E merecem desenvolvimento em texto; sobretudo porque clareiam um padrão.

Começo com o caos em Manaus. Está documentado que o Ministério da Saúde fez escolhas ali. Nada a ver com lentidão em dar respostas. Escolhas consistentes com o conjunto de posições que tomou ante a pandemia; conjunto com que o governo Bolsonaro opera — o padrão — para prolongar a permanência do vírus entre nós, o que garantirá as condições de desordem radical em que o bolsonarismo prospera.

Escolhas. Por exemplo: mesmo informado de que faltaria oxigênio, promoveu, às vésperas da desgraça, uma caravana pela cidade para difundir a adoção de tratamento precoce. E, no dia mesmo do colapso, mandou 120 mil comprimidos de hidroxicloroquina ao Amazonas. (Os responsáveis por essa ode a um medicamento ineficaz continuam no ministério; razão mais que suficiente para que Marcelo Queiroga também seja ouvido na CPI.)

Sobre cloroquina/hidroxicloroquina, precisa ser chamado o general Fernando Azevedo e Silva, então ministro da Defesa, para esclarecer a produção de milhões de comprimidos, com recursos para enfrentamento à peste, pelo laboratório do Exército.

Outra escolha do governo em Manaus: só transferir internados a outras cidades se “em situação extremamente crítica” — esta sendo aquela em que, segundo uma servidora do Ministério da Saúde, os hospitais estivessem “todos superlotados”, com “pacientes dentro de ambulâncias, indo a óbito”. Isso compõe apenas modesta porção dos motivos para inquirir Pazuello, embora não me possa esquecer das acusações — sem nome — que fez ao se despedir. Quem seria a liderança política cujos pedidos não republicanos teria se negado a atender?

Tão importante quanto investigar as escolhas do governo ante a barbárie em Manaus será analisar as várias versões oficiais — informadas e remendadas, inclusive ao Supremo — sobre as datas em que o ministério teria sido notificado sobre a crise iminente. Alguém mentiu. Há um vaivém inaceitável, que sugere trabalho para apagar rastros que comprovariam negligência.

Também será relevante apurar por que chegamos à falta de medicamentos para entubação se havia notificações formais projetando essa escassez desde maio de 2020. E se sabemos que o ministério cancelou, em agosto do ano passado, uma importação desses insumos, mesmo alertado pelo CNS sobre a projeção de insuficiência. Nada se fez. Até a situação atual.

Há as perguntas óbvias: por que o governo se negou, entre agosto e setembro de 2020, a assinar um contrato que teria nos valido doses de vacina já em dezembro, três milhões até março de 2021? Três milhões a mais de doses até o primeiro trimestre deste ano; e isso no momento em que (ainda) dependemos de Fiocruz e Butantan; e isso quando sabemos que o ministério — tendo, afinal, assinado com a Pfizer — há pouco comemorou a antecipação da entrega de um lote do imunizante outrora desprezado. Para maio...

Poderíamos ter três milhões de doses até março, mas ora celebramos um fração disso prevista para o mês que vem. Não me esqueço da justificativa para a recusa: o Brasil não aceitava uma cláusula por meio da qual o laboratório não se responsabilizaria por eventuais efeitos colaterais da vacina; dispositivo idêntico, porém, não tendo sido problema quando do acordo com AstraZeneca/Oxford.

No ano passado, o governo se jactava do que seria sua estratégia para a aquisição de imunizantes: fechar convênios bilaterais (apesar de só ter fechado um em 2020). Não havia estratégia, mas postura contaminada pela pregação ideológica contra o tal globalismo. Razão por que o Brasil, podendo contratar cobertura vacinal para 50% de sua população, optaria por aderir ao consórcio multilateral Covax, liderado pela OMS globalista, com a cota mínima, de 10%. (Convoque-se Ernesto Araújo.)

Há também o episódio CoronaVac, vacina que, até este abril, respondia por mais de 70% das aplicações no Brasil. Um imunizante atacado pelo próprio presidente. A desculpa: o brasileiro não seria cobaia nem teria o seu dinheiro posto na frente por uma vacina ainda não certificada pela Anvisa; e isso como se alguém defendesse vacinar cidadãos antes do aval da agência, e como se o contrato obrigasse pagamento anterior à certificação sanitária do imunizante.

Em 2021, porém, o critério mudou; e se passou a fazer o certo: firmar convênios com laboratórios variados, antecipando-se à avaliação da Anvisa, de modo a ter previsibilidade e ganhar tempo. Foi assim com o imunizante Sputnik V, para cuja aquisição o governo de repente se esqueceu daquele antigo rigor; sendo mesmo o caso de apurar se o lobby da farmacêutica que o fabricará aqui não teria colaborado para a postura expedita.

Registre-se que a representação — que a chegada — desse imunizante no país coincide com a campanha parlamentar, promovida pela base do governo, e sem que Bolsonaro voltasse a temer pelo uso de seu povo como cobaia, para que a Anvisa amolecesse seus controles ou fosse mesmo tornada prescindível; o que também coincide com o projeto para que empresas privadas pudessem comprar vacinas.

Ah, são tantas as questões... Espero ter ajudado.


Míriam Leitão: Os vários pontos de atrito em Brasília

O governo usou ontem a tática de tentar adiar a instalação da CPI para continuar seu bombardeio ao possível relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL). O grupo dos sete senadores, de oposição e independentes, já está trabalhando na estrutura dos trabalhos e na lista de possíveis convocados. O ex-ministro Pazuello pode ir até mais de uma vez. Primeiro, como testemunha, depois, como investigado. Em outra frente, parlamentares e embaixadores se reuniram para discutir a cúpula do clima. O cantor Caetano Veloso compareceu, como representante da sociedade civil, e deu um recado direto aos diplomatas dos Estados Unidos e países europeus. “Salles é o antiministro e este governo ataca a Amazônia.”

Os dias estão intensos em Brasília nesta semana, com um feriado no meio e uma agenda lotada. A instalação da CPI se desdobra em várias reuniões e negociações sobre a ordem dos trabalhos e dos convocados. “Não temos tempo a perder”, disse o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Ele acha que tem que começar pelos ex-ministros da Saúde. Mas há na CPI quem defenda que se chame primeiro os cientistas para mostrar, com dados, como chegamos até aqui e quais são os riscos. A convocação de Paulo Guedes é a dúvida do momento. O ex-ministro Pazuello pode ser convocado mais de uma vez, explicou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Ele pode falar primeiro como testemunha. Depois, com o andar da CPI, pode ser novamente convocado, mas como investigado.

Neste início de semana, em que ocorrerá a cúpula do clima, o procurador Lucas Furtado, do MP junto ao TCU, fez uma representação para que o tribunal requeira junto à Casa Civil o afastamento do ministro Ricardo Salles. Essa seria uma medida cautelar até que o tribunal decida sobre várias representações já apresentadas mostrando os erros, desvios de função e políticas danosas ao meio ambiente impostas pelo ministro.

Numa terceira frente o governo negociava o Orçamento. Ou melhor, era pressionado. Se adotasse a estratégia proposta pelos técnicos do Ministério da Economia, ficaria mais fraco no Congresso. A saída arquitetada é vetar partes, preservar a maioria das emendas parlamentares e liberar despesas do controle do teto. Ou seja, está sendo feita uma operação no Frankenstein orçamentário de 2021, para preservar emendas, com medo de uma reação dos parlamentares em ambiente já tenso com a CPI. Ontem, em uma live da XP Investimentos, a ministra Flávia Arruda, da Secretaria de Governo, falou em R$ 100 bilhões a mais fora da meta de primário. Depois, recuou e disse que não havia recebido as contas.

No próprio grupo de oposição mais os independentes há dúvidas. O senador escolhido para ser o presidente da CPI é definido por um senador como “imprevisível”. Esse parlamentar diz que o grupo dos sete na verdade é seis mais um. Sobre o possível relator, Renan Calheiros, ontem foi dia de ataques da milícia digital contra ele. O argumento dos bolsonaristas de que ele seria suspeito por ser pai do governador de Alagoas é fácil de ser rebatido, segundo me disse um dos parlamentares. “A CPI desde o começo foi para investigar as origens, causas e omissões do governo que fizeram o país chegar onde está. O foco é esse”, disse.Ouvi também o senador Randolfe Rodrigues. Ele diz que não há razão para adiar o início dos trabalhos e afirma que o ataque contra Calheiros veio de endereço certo:— O ataque vem das milícias bolsonaristas nas redes sociais e é coordenado diretamente do gabinete do ódio por Carlos Bolsonaro. Eles querem atrasar para tentar desgastar ao máximo o senador Renan Calheiros.

Randolfe esteve em reunião com os embaixadores dos EUA, da União Europeia, Alemanha, Noruega e do Reino Unido para discutir a cúpula do clima e os acordos com o Brasil. Além dele, estavam o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) e o senador Jaques Wagner (PT-BA) e representantes da sociedade civil. No meio, Caetano Veloso.

— A reunião era para deixar claro que somos a favor de recursos para o Brasil, mas queremos acompanhar a aplicação desse dinheiro, e que o dinheiro pode ir também para estados e municípios. Mas quem falou de forma mais clara foi o Caetano. Ele definiu Salles como o antiministro do Meio Ambiente, lembrou que este governo é negacionista e tem o objetivo de devastar o meio ambiente — disse o senador.

Esses mesmos embaixadores se reuniram com autoridades do governo brasileiro. Uma dessas autoridades me disse que nunca viu Estados Unidos e Europa tão unidos numa questão como nesta cúpula do clima.


Merval Pereira: ‘Kigali já’

A Câmara dos Deputados tem uma oportunidade rara de ajudar a recolocar o Brasil no mapa da comunidade internacional em relação à política ambiental com a ratificação, no dia 22, o Dia da Terra, da Emenda de Kigali, um adendo ao Protocolo de Montreal para redução do uso de substâncias com elevado potencial de efeito estufa nas geladeiras, freezers e aparelhos de ar condicionado vendidos no país.

Hoje, 100% do mercado japonês e a maior parte dos países europeus já adotam fluidos refrigerantes de baixo potencial de aquecimento global. Essas tecnologias começam a dominar outros mercados robustos, como o chinês e o indiano. EUA e China anunciaram apoio em conjunto à Emenda de Kigali. Sua aprovação será um aceno diplomático ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que encaminhou ao Senado americano uma orientação por sua aprovação, e também aos demais países da OCDE que estão entre os 119 que já aderiram à emenda.

Biden convidou o presidente Bolsonaro e outros 39 líderes mundiais para o encontro virtual denominado “Cúpula dos Líderes sobre o Clima”, nos dias 22 e 23 de abril, preparação para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP26, prevista para acontecer de 1º a 12 de novembro em Glasgow, na Escócia. A ratificação da Emenda de Kigali seria um trunfo para o governo em relação à redução do impacto ambiental e abriria para a indústria brasileira créditos a fundo perdido do Fundo Multilateral para implementação do Protocolo de Montreal, estimados em US$ 100 milhões, para modernizar fábricas e gerar empregos.

O projeto já passou por todas as comissões da Câmara, mas está parado há um ano, sem que seja colocado para votação em plenário. Um manifesto de entidades da indústria e de defesa da eficiência energética, de sustentabilidade e dos direitos do consumidor foi enviado ao presidente da Câmara, deputado Arthur Lira. Coordenador de energia e sustentabilidade do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), uma das organizações signatárias do manifesto “Pela aprovação de Kigali já!”, Clauber Leite diz que a expectativa é que a Câmara sinalize o compromisso do país com a agenda mundial de sustentabilidade apoiando a ratificação.

Além do Idec, apoiam o manifesto entidades como a Abrava (Associação Brasileira de Refrigeração, Ar Condicionado, Ventilação e Aquecimento), Eletros (Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos), Fecomércio-SP, Centro Brasil no Clima, Climate Policy Initiative, Instituto Ethos, entre outros. A emenda estabelece metas de redução dos gases hidrofluorocarbonetos (HFCs) em geladeiras e aparelhos de ar-condicionado.

Os mais utilizados no Brasil são até duas mil vezes mais prejudiciais ao efeito estufa que o dióxido de carbono. “Essa modernização permitiria que a indústria brasileira ficasse alinhada às inovações já presentes em mercados como norte-americano, europeu, chinês e indiano”, diz a carta.

A indústria diz que aprovação da emenda evitará que o Brasil se torne um dos últimos destinos de aparelhos obsoletos, que aquecem o planeta e têm baixa eficiência energética, elevando os gastos das famílias, do governo, da indústria e das empresas em geral com a conta de luz.

O uso de aparelhos eficientes resultaria num impacto de R$ 57 bilhões no Brasil até 2035, de acordo com um estudo do Instituto Clima e Sociedade (iCS) em cooperação técnica com o Lawrence Berkeley National Laboratory (LBNL). Do total, R$ 30 bilhões deixariam de ser gastos na geração de energia elétrica, e outros R$ 27 bilhões seriam economizados pelos consumidores na conta de luz.

“A proteção do planeta precisa ser compatível com o desenvolvimento econômico, e a busca pela eficiência energética e por produtos mais inteligentes é o melhor caminho para aliar essas duas agendas fundamentais”, diz a coordenadora da Iniciativa de Eficiência Energética do iCS, Kamyla Borges, advogada e uma das líderes do movimento pela Emenda de Kigali.


Joel Pinheiro da Fonseca: Quarentenas e isolamento são medidas conservadoras?

Nossos antepassados reagiram às epidemias de maneiras similares às nossas

Vivemos em tempos de decadência moral e espiritual. Os homens perderam a coragem. “Onde foram parar os machos?”, clama ávido um famoso assecla do bolsonarismo. E não pra menos! Pessoas em casa, fechadinhas, sem trabalhar, ganhando auxílio, com medo de um minúsculo vírus; isso não seria motivo de vergonha a nossos corajosos ancestrais?

Em uma variação do mesmo tema, o lamento ganha contornos espirituais. O homem moderno esqueceu-se de Deus e da vida eterna, e por isso é tão neuroticamente obcecado com a saúde. Afinal, a morte vem para todos. Por fim, corre o argumento, medidas de isolamento violam nossos santos direitos individuais, que não admitem restrição nenhuma. Não foi assim que o Ocidente se ergueu?

É bela a disposição de nossos conservadores em querer proteger nossa civilização. Mas é uma pena que ela não venha acompanhada de qualquer conhecimento histórico sobre essa civilização.

Ao contrário da imaginação conservadora, nossos antepassados de carne e osso reagiram às epidemias de seu tempo de maneiras similares às nossas. A própria ideia de uma quarentena aplicada a navios e caravanas que chegam de fora durante uma peste foi uma inovação da peste negra. E as medidas não paravam por aí.

Para impedir que a infecção saísse de uma cidade e fosse para outra, as autoridades impunham um cordão sanitário ao redor da cidade infectada: ninguém mais podia sair até que a epidemia passasse.

Proibição de aglomerações e festas, de jogos e teatros (aliás, Shakespeare escreveu seus poemas mais famosos durante uma longa quarentena sem teatro de 1592 a 93). Mesmo procissões religiosas foram restritas em diversas ocasiões, e muitas igrejas fechavam as portas. Nos piores momentos, os próprios fiéis deixavam de ir.

Algumas epidemias foram surpreendentemente bem documentadas. É o caso da peste de 1665 em Londres. Seguindo a prática comum, qualquer pessoa visivelmente infectada era imediatamente apreendida e levada a uma casa de pestilência, onde provavelmente morreria, para não infectar os saudáveis.

No caso de casas suspeitas, a ordem das autoridades era pintar um X vermelho na porta e colocar um guarda na rua para impedir que qualquer morador saísse delas.

Mas nem só de maldade era feita a política: para ajudar os desesperados e as cidades isoladas, havia coletas adicionais de impostos e doações de alimento. Exatamente como os auxílios que tantos países, inclusive o Brasil, utilizaram durante esta pandemia.

No início do século 20, nosso conhecimento já tinha avançado bastante. Quando a gripe espanhola tomou o mundo de assalto em 1918, as autoridades de vários países impuseram medidas muito similares às que vemos hoje: fechamento de escolas, restaurantes, comércios não essenciais, igrejas, teatros e aglomerações públicas em geral. Uso de máscara de pano para conter o contágio.

Medidas extremas para lidar com emergências de saúde pública estão conosco desde a Antiguidade. Não são invenção de tiranos e comunistas. A partir do momento que o perigo passa, as restrições vão embora. É o que já vemos em Israel, na Inglaterra, na Austrália.

Os delicados “conservadores” de hoje, para quem uma máscara de pano parece um sacrifício duro demais, associam essas medidas à tirania comuno-globalista. Mal sabem que são todas parte de sua amada civilização ocidental. ​

*Economista, mestre em filosofia pela USP.


Cristina Serra: Bolsonaro, vira-latismo e ecocídio

Ele promove o retorno explícito ao complexo definido por Nelson Rodrigues

Nada mais ilustrativo dos modos de moleque com que o Brasil de Bolsonaro se apresenta ao mundo do que um detalhe de recente reunião entre o ministro do zero ambiente, Ricardo Salles, e a equipe de John Kerry, representante de Joe Biden para as questões climáticas.

Segundo reportagem de Marina Dias nesta Folha, os brasileiros exibiram aos norte-americanos o slide de uma TV de cachorro, típica das nossas padarias. A imagem mostrava um vira-latas apreciando os frangos no espeto com o título: "Expectativa de pagamento". Cada ave tinha o desenho de um cifrão. Bolsonaro é isso: o retorno explícito ao complexo de vira-latas definido por Nelson Rodrigues nos anos 1950.

Acordos diplomáticos são bons para os envolvidos quando baseados em vantagens e respeito mútuos. O Brasil não tem um plano minimamente verossímil de combate ao desmatamento, e os antecedentes de Bolsonaro e Salles não inspiram confiança. Para nosso azar, é o que temos para lidar com as tensões da complexa geopolítica atual e negociar com os Estados Unidos.

A estratégia da dupla foi abrir as discussões pedindo dinheiro num tom que tangencia a tentativa de extorsão e para fazer aquilo que é nossa obrigação, conforme compromissos assumidos por governos anteriores, quando o Brasil ainda era respeitado em fóruns internacionais: reduzir o desmatamento na maior floresta tropical do mundo e as emissões de gases do efeito estufa.

Em rede social, Kerry indicou que os Estados Unidos esperam do Brasil resultados "tangíveis", não apenas promessas. É nesse ponto que os dois países chegam à cúpula sobre mudança climática, daqui a dois dias. A proteção ambiental demanda muito recurso. Mas dinheiro na mão de um tipo como Salles e sem contrapartidas claramente verificáveis é jogar mais gasolina no incêndio da floresta.

É reforçar as frentes de ataque de grileiros, madeireiros, garimpeiros, desmatadores. É acumpliciar-se com o crime de ecocídio.


Hélio Schwartsman: O distritão como ameaça

Se fosse desenhar nossas instituições, proporia algo bem diferente do que temos

Como tem ocorrido nos últimos ciclos eleitorais, a Câmara ameaça aprovar uma reforma que inclua o distritão, um sistema de cômputo de votos em que todos os candidatos a deputado por um estado, inclusive os de uma mesma legenda, concorrem diretamente uns com os outros, debilitando ainda mais os partidos políticos, que já são fracos no Brasil.

É pouco provável que a iniciativa prospere. Mas, numa estratégia semelhante à do ministro que gosta de fazer passar a boiada, parlamentares acabam trocando a desistência do distritão pela aprovação de alguma outra medida de menor alcance que os beneficie. Todo mundo fica feliz. A massa crítica de eleitores e os políticos responsáveis porque evitaram o pior, e deputados que prosperam na balbúrdia partidária porque conseguiram arrancar uma vantagem.

Se eu fosse desenhar do nada as instituições políticas brasileiras, proporia algo bem diferente do que temos. Eu adotaria o parlamentarismo num sistema unicameral em que os representantes são escolhidos por voto distrital ou distrital misto.

A questão é que não estamos criando algo do nada. Ao contrário, estamos num país concreto com eleitores concretos, que, consultados, já disseram não ao parlamentarismo duas vezes nos últimos 60 anos. Mudanças enfiadas goela abaixo do cidadão, por mais bem desenhadas que sejam, tendem a não funcionar.

Nenhum sistema é perfeito, e todos podem ser aprimorados com mudanças incrementais. No Brasil, introduzimos timidamente duas delas na última reforma: o fim das coligações em eleições proporcionais e um arremedo de cláusula de barreira. Se dermos tempo para que produzam seus efeitos, o que já começou a ocorrer, em mais alguns ciclos observaremos a redução do número de partidos políticos, o que deve favorecer a formação de coalizões estáveis de governo. Meu receio é que seja justamente uma dessas medidas que deputados planejem reverter.


Ricardo Noblat: Lira ganha batalha do Orçamento, Pacheco perde a da CPI

Governo Bolsonaro compra brigas em muitas frentes

De tanto esticar a corda e bater o pé, Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, ganhou a batalha do Orçamento da União para este ano, entregando aos colegas o que havia prometido – bilhões de reais para o pagamento de emendas parlamentares e a construção de obras em seus redutos eleitorais.

Na outra parte do prédio do Congresso onde repousa a cúpula emborcada do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente da Casa, celebra uma vitória de pirro – o adiamento por mais uma semana da instalação da CPI da Covid-19, que ele fez tudo para boicotar, e o governo Bolsonaro também.

Pacheco e o governo tinham motivos diferentes para não querer a CPI. Para o governo, a exposição dos seus muitos erros no combate à pandemia só lhe fará mal em um ano em que ele só colherá más notícias. Para Pacheco, a CPI o retira por 90 dias ou mais do centro do palco da política nacional, e isso doeria em qualquer um.

O eclipse mesmo que temporário será um tremendo incômodo para Pacheco, logo no momento em que seu nome começa a circular em rodas de partidos como uma boa aposta para disputar a eleição presidencial do próximo ano. Pacheco nega que será candidato. Mas nem Lula admite ainda que será.

Só obrigado pelo Supremo Tribunal Federal foi que Pacheco concordou com a criação da CPI. Pensava mais em si, no seu protagonismo ameaçado do que em simplesmente em ajudar ao governo. A esse faltou coordenação política para evitá-la. É o que sempre lhe falta. Amargará tristes meses pela frente.

Quanto mais Pacheco e o governo retardem a instalação da CPI, quanto mais o governo mobilizar seus devotos para atacá-la nas redes sociais, mais despertará a atenção em torno do que será descoberto por lá ou confirmado. O governo não teve força sequer para emplacar aliados na presidência ou na relatoria da CPI.

O presidente será o senador Omar Aziz (PSD-AM), tido como um político independente. Mesmo que não seja tão independente assim, ele representa o Estado que mais sofreu até aqui com a pandemia e aspira a governá-lo outra vez a partir de 2022. Pessoas morreram asfixiadas por falta de oxigênio no Amazonas.

Renan Calheiros (MDB-AL) será o relator, cargo tão ou mais importante do que o do presidente. Os bolsonaristas têm poupado Aziz e batido duro em Renan. A trajetória política de Renan mostra que quanto mais ele apanha, mais resiste à pancadaria e cresce. É cascudo, como se diz, e ai de quem duvidar.

O governo compra brigas em muitas frentes ao mesmo tempo. Quer mudar, por exemplo, a composição do Tribunal de Contas da União que lhe é desfavorável. Acenou para o ministro Raimundo Carreiro com uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal. O ex-presidente José Sarney convenceu-o a não aceitar.

Sarney é do MDB de Renan. Ou melhor: Renan é do MDB de Sarney. Os dois fazem oposição a Bolsonaro e cultivam boas relações com Lula. O MDB irá de Lula se ele for candidato à vaga de Bolsonaro, ou irá com um candidato que o centro direita ainda não tem. Mas com Bolsonaro não haverá negócio.

Os Evangelhos, segundo Jair Messsias Bolsonaro

O pregador dos jardins do Palácio da Alvorada

A Bíblia não é o forte de Jair Bolsonaro. De resto, quase nada é o forte de quem nunca leu um livro. Talvez por isso, Bolsonaro enrolou-se ao citar a Bíblia em uma das pregações diárias que faz aos seus devotos nos jardins do Palácio da Alvorada.

Dessa vez, entre os devotos, havia um pastor evangélico e um padre da Igreja Católica que na ocasião rezou por ele e o abençoou. Os dois foram depois embora sem entender o que o presidente quis dizer quando a certa altura de sua pregação afirmou:

– Tem uma passagem bíblica quando Jesus dividiu o pão. Depois ele deu uma desaparecidinha, né?. Daí o povo foi atrás. Foi atrás para quê? Para mais benefícios pessoais. Fizeram a ligação com o PT dando bolsa isso, bolsa aquilo? É o ser humano que tá aí.

Se consultasse pelo menos a Wikipédia antes de falar, Bolsonaro ficaria sabendo que “A divisão dos pães e peixes” é o termo utilizado nos Evangelhos para referir-se a dois milagres de Jesus. No primeiro, ele teria alimentado 5 mil pessoas, no segundo 4 mil.

Não há relato de uma “desaparecidinha” depois dos milagres. Quanto a irem atrás de Jesus, as pessoas buscavam conforto espiritual e ensinamentos de um profeta que se dizia filho de Deus, não “benefícios pessoais” como pão e peixe de graça.

Daí porque ficou difícil para os que escutaram Bolsonaro fazer qualquer ligação com programas do tipo Bolsa Família, do PT. Quanto ao que ele disse sobre “é o ser humano que tá aí”, desmereceu os mais pobres que carecem de ajuda para sobreviver.

Dos pobres, Bolsonaro quer votos, apertos de mão, fotos e distância segura.


Vinícius Müller mostra passos fundamentais à criação da “pedagogia do centro”

Em seu artigo na Política Democrática Online de abril, doutor em história e professor do Insper e CLP sugere como não cair na polarização entre Bolsonaro e Lula

Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP

Possíveis candidatos de centro à presidência da República (Ciro, Doria, Amoedo, Huck, Mandetta e Leite) devem superar, primordialmente, duas barreiras e criarem “uma pedagogia” da ala, se quiserem vencer nas eleições de 2022. A avaliação é do doutor em história Vinícius Müller e professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).

Em artigo de sua autoria produzido para a revista mensal Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), ele explica, basicamente, o que os possíveis presidenciáveis devem fazer: “encontrar um passado que os una ou que, no mínimo, justifique este ensaio de aproximação” e não ter laços frágeis.

Veja a versão flip da 30ª edição da Política Democrática Online: abril de 2021

Todos os conteúdos da publicação podem ser acessados, gratuitamente, no site da entidade. Também professor do Centro de Liderança Pública (CLP), Müller diz que a primeira lacuna a ser vencida “é a fragilidade da proposição que vê o problema apenas na inexistência de um projeto comum entre eles”. “Não é o futuro que conta, e sim o passado”, alerta o historiador.

Aceno de aproximação

Por isso, de acordo com o artigo de Müller, os possíveis candidatos de centro precisam encontrar, antes de um projeto comum, um passado que os una ou que, no mínimo, justifique este ensaio de aproximação.

A segunda lacuna, segundo o articulista da Política Democrática Online de abril, é encontrar uma solução para não se apresentarem com “laços frágeis”. Nessa hipótese, avalia, “consequentemente, o fortalecimento do centro não significará nada de muito diferente do que é para os candidatos polares, Lula (PT) e Bolsonaro (sem partido).

Se não houver um passado que dê substância à formação de um centro político, este espaço será ocupado por aqueles que o usam apenas de modo instrumental, na avaliação do historiador do Insper.

Em seu artigo na revista da FAP, o autor diz ser necessária a criação de uma pedagogia do centro, “que não só repudie a narrativa histórica da ‘luta’ – característica daqueles que atiçam a polarização e usam o centro apenas como ferramenta -, mas também identifique os valores que são vistos no passado e transferíveis ao futuro”.

Negativo vs positivo

É por isso que, na Política Democrática Online de abril, ele apresenta quatro passos fundamentais à criação de um ambiente favorável para que o centro deixe de se posicionar como o “negativo’ à polarização e seja o “positivo” de nossa trajetória e de nosso futuro. (todos os detalhes podem ser conferidos diretamente na publicação).

“Ou seja, aquele que carrega – porque identifica, valoriza e comunica – “os avanços que tivemos em nossa história quando conseguimos anular a retórica da ‘luta’; e não o refúgio daqueles que só querem reproduzir nossos males”, analisa Müller, em seu artigo.

A edição de abril da Revista Política Democrática Online também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, análises de política nacional, política externa, cultura, entre outras, além da reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos.

Veja todos os autores da 30ª edição da revista Política Democrática Online

O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.

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Andrea Jubé: 'Deus poupou-me do sentimento do medo'

Centro já descartou Huck e Moro como presidenciáveis

Vamos tratar aqui de três presidentes: pela ordem, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, e Jair Bolsonaro. Este passou recibo, com firma reconhecida, de que sentiu a mão fria do “impeachment” roçar-lhe as costas na semana passada, quando o colegiado pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) desferiu-lhe duas bordoadas: confirmou a ordem de instalação da CPI da pandemia, e o restabelecimento dos direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A CPI da pandemia, se não tem o impedimento do presidente como alvo, provocará enxaquecas palacianas. Lula, por sua vez, desponta hoje como a principal ameaça à reeleição de Bolsonaro. Mas, remarque-se que a política muda como as nuvens - ou como o humor presidencial.

Bolsonaro está mal humorado, e deixou o azedume transparecer na “live” de quinta-feira, quando o STF sacramentou a investigação contra seu governo, e a elegibilidade de Lula. “Só Deus me tira da cadeira presidencial, e me tira, obviamente, tirando a minha vida", vociferou.

Em recado velado, porém, audível, ao Congresso, ao STF e à oposição, acrescentou, com ênfase, que salvo a prerrogativa divina, “o que nós estamos vendo acontecer no Brasil não vai se concretizar, mas não vai mesmo. Não vai mesmo, tá ok?” Nesse trecho cifrado, Bolsonaro aludiu à ameaça de “impeachment”.

O temor do impedimento ronda o Planalto há meses, e vai e volta em ondas, como o mar. Ou como a pandemia, para ser exata. A primeira onda deu-se em junho do ano passado, quando Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), foi preso, o que acendeu a luz amarela no Palácio. O episódio teve o condão de suspender a sucessão de atos antidemocráticos pelo fechamento do Congresso e do STF, que Bolsonaro, e sua militância, estimulavam.

A segunda onda se consumou há algumas semanas, quando o Centrão redobrou a pressão pela saída do chanceler Ernesto Araújo, em paralelo ao recrudescimento da pandemia. Para não passar recibo, Bolsonaro improvisou uma ampla reforma, aproveitando-se para se livrar do incômodo ministro da Defesa Fernando Azevedo e dos três comandantes das Forças Armadas, que, pela sua percepção, não o respeitavam como comandante-em-chefe, conforme prescreve a Constituição Federal.

Nessa ampla reforma o medo do “impeachment” ganhou nome e sobrenome: Flávia Arruda, a elegante e discreta ministra da Secretaria de Governo, cuja nomeação selou a aliança de Bolsonaro com o Centrão raiz: o PP de Ciro Nogueira e Arthur Lira, e o PL de Valdemar Costa Neto.

Quando os generais Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto decidiram finalmente ceder e entregar a articulação política para o Centrão, uma semana antes do domingo de Páscoa, o primeiro nome lembrado foi o do senador Eduardo Gomes (MDB-TO), que tinha o padrinho mais forte do mercado: o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).

Mas toda a força de Flávio empalidece diante da caneta de Arthur Lira (PP-AL), que despacha os requerimentos de “impeachment”. Por isso, os dois generais concluíram que o novo ministro tinha de ser egresso da Câmara, e abençoado por Lira. Ontem Flávia admitiu em uma “live” promovida pela XP Investimentos, que recebeu o convite de Bolsonaro para assumir o cargo, mas tratou do assunto com Lira, e com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

Com Flávia Arruda, Bolsonaro reforçou a blindagem contra o “impeachment” com uma segunda camada. A primeira camada é o vice-presidente, Hamilton Mourão. Num cenário de instabilidade quase permanente, nenhum deputado ou senador calejado de crises quer apear um ex-deputado do poder para passar a caneta para um general. “Ele não inspira confiança”, reconheceu um cacique do Centrão em conversa com a coluna.

Um cacique do Centrão é categórico ao rechaçar qualquer risco de “impeachment”, a começar porque falta o elementar: povo na rua. “Impeachment” depende de dois motivos: o político e o jurídico. A pandemia complica o elemento “povo na rua”, mas isso não basta para revisar a fórmula basilar dos impedimentos presidenciais: motivo político, primeiro; depois, o jurídico. “O motivo jurídico se arruma, no [Fernando] Collor foi o Fiat Elba, com a Dilma [Rousseff], foram as pedaladas, mas tem que ter o ingrediente da sociedade cobrando”, explica o líder do centro.

Nessa quadra, cresce a corrida pela terceira via capaz de quebrar a iminente polarização entre Lula e Bolsonaro. A novidade é que embora ainda figure nas pesquisas, o nome do apresentador Luciano Huck foi alijado das conversas de bastidores no Centrão. Com Lula no jogo, a convicção unânime é de Huck refugou. Por ora, o ex-juiz Sergio Moro também não é levado a sério como presidenciável, apesar da boa performance nas pesquisas.

Sem Huck e Moro, o nome que mais empolga no momento é o do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, do DEM. Na pesquisa Ipespe realizada no Estado de São Paulo, encomendada pelo Valor, Mandetta alcançou 6% no cenário com o governador Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul, disputando, sem João Doria.

Entretanto, o DEM também já colocou no radar de presidenciáveis o nome do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que larga com alguma vantagem em relação ao correligionário: ocupa cargo de visibilidade nacional, e é mineiro, representante do segundo maior colégio eleitoral, berço de presidentes da República, desde a política café-com-leite, até Tancredo neves e Itamar Franco.

Para citar os mineiros, faz falta a Bolsonaro um conselheiro político do quilate de Tancredo Neves, que serviu a Juscelino Kubitschek. Tancredo ajudou o poeta Frederico Schmidt a redigir para JK um pronunciamento que se tornou famoso ao repelir uma rebelião militar. A frase mais forte proclamava: “Deus poupou-me do sentimento do medo”.