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O Estado de S. Paulo: Tasso admite disputar prévias no PSDB
'Se meu nome servir para unir, vamos trabalhar nessa direção', diz senador tucano sobre candidatura à Presidência, em 2022
Vera Rosa e Andreza Matais, O Estado de S. Paulo
BRASÍLIA - Pela primeira vez desde que foi incentivado a entrar na disputa de 2022, o senador Tasso Jereissati (CE) admitiu participar de prévias do PSDB para a escolha do candidato à Presidência e construir uma terceira via, diante da polarização entre a esquerda e a extrema direita. “Se meu nome servir para unir, em algum momento, vamos trabalhar nessa direção”, disse o senador ao Estadão.
Integrante da CPI da Covid, Tasso gostou de ser chamado de “Biden brasileiro” por um grupo do PSDB que se refere a ele como o único político capaz de agregar forças no campo de centro. Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden, de 78 anos, teve esse papel. “Vejo nele um cara que está mudando a história do mundo”, afirmou o tucano, que tem 72 anos.
As prévias do PSDB estão marcadas para outubro, mas Tasso acha melhor adiá-las para 2022. “Ainda tem muita água para rolar debaixo da ponte”, previu. Até hoje, o PSDB tinha três pré-candidatos à sucessão de Jair Bolsonaro: os governadores João Doria (São Paulo) e Eduardo Leite (Rio Grande do Sul), além do ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio. Agora Tasso, ex-governador do Ceará, também entrou no páreo.
O presidente do PSDB, Bruno Araújo, lançou sua candidatura à sucessão de Jair Bolsonaro. O sr. pode ser a terceira via?
Ser candidato à Presidência não está ainda nos meus planos. Eu falo “ainda”. Eu defendo a ideia de uma união do centro. Quando eu digo união é porque vejo espaço, nas próximas eleições, para um candidato entre Lula (ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva) e Bolsonaro, que não seja nem de esquerda, nem de extrema esquerda, nem de extrema direita. Com certeza eu não acho bom para o País mais quatro anos de Bolsonaro. É um governo desastroso em todos os pontos, da condução da pandemia de covid – levando o Brasil ao maior número de mortes do mundo por dia – à política econômica, que não anda. E também não vejo como repetir o governo do PT. Então, está na hora do equilíbrio. Se dividir muito, ninguém vai ter (apoio para chegar ao segundo turno). Se meu nome servir para unir, em algum momento, vamos trabalhar nessa direção.
O sr. aceitaria disputar uma prévia no partido com João Doria, Eduardo Leite e Arthur Virgílio?
Eu sempre fui defensor de prévias. Mas ponderando que essa prévia seja feita dentro do limite da coerência, de um posicionamento ético. E que sirva para unir, não para desunir. Nunca falei isso, mas acho que as prévias deveriam ficar um pouco para mais tarde, para que nós pudéssemos conversar com os outros partidos. Quando defendo essa união, eu acho que não deve ser só dentro do PSDB.
Mas, com tanta divisão no PSDB, é possível um consenso, sem necessidade de prévia?
As prévias são boas. Eu não sei se são oportunas agora (em outubro). Até o início do ano que vem, muita coisa vai acontecer. Mas isso é minha opinião. Vai prevalecer, evidentemente, a visão do partido, dos dirigentes.
Esse vácuo não beneficia a polarização Bolsonaro-Lula?
Não tem vácuo, não. Tem é candidato demais. Daqui a pouco, um começa a dar cotovelada no outro. Ainda tem muita água para rolar debaixo da ponte. Um exemplo de como as coisas mudam: eu não sabia (em 2018) que tinha uma extrema direita tão radical e tão organizada. Foi uma surpresa gigantesca. E esse movimento se uniu ao antipetismo e à facada (sofrida pelo então candidato Bolsonaro). Ninguém sabia o tamanho dessa direita porque ela estava enrustida há muito tempo. Bolsonaro soube catalisar isso através das redes sociais.
Como ninguém enxergou que a direita estava se estruturando pelas redes sociais?
Desde a redemocratização se criou uma espécie de preconceito contra a direita. Era difícil você encontrar alguém que dissesse que era de direita, mesmo sendo. Significava uma afinidade com o golpe, com a ditadura, com o período autoritário. Quando falavam que o Bolsonaro poderia ganhar, eu desprezava a hipótese, solenemente. Tinha certeza de que não seria possível porque um político que fazia aquele discurso nunca poderia ganhar. Se tem uma coisa do Bolsonaro que nós temos de respeitar é que ele não mudou.
Passados dois anos de governo, Bolsonaro ainda é um candidato competitivo, apesar de todas as crises? O centro se preparou para enfrentá-lo nas redes sociais?
Não. O centro não tem rede social organizada e espalhada. Nenhum desses candidatos que estão aí tem. Vamos precisar ter.
O sr. chegou a dizer que o marqueteiro João Santana, quando estava com o PT, espalhou fake news e derrubou Marina Silva. Agora, ele foi contratado por Ciro Gomes, que é próximo ao sr. e tem conversado com esse campo de centro. Isso preocupa?
Eu não sabia que o Ciro tinha feito essa contratação. Pelo caráter do Ciro, acho muito estranho. Agora, o João Santana pagou tanto pelos seus pecados, indo preso, que talvez tenha mudado e queira se redimir.
Dizem que o sr. é o único que pode convencer Ciro a desistir da candidatura presidencial em nome de uma aliança maior.
Eu acho difícil o Ciro sair (do páreo). Mas não acho muito difícil o Ciro vir. O Ciro já foi de esquerda, mas hoje é de centro. E acredito que ninguém vá mudar o desejo dele de tentar a Presidência. Ele tem esse objetivo na vida.
O manifesto assinado por seis presidenciáveis, em defesa da democracia, é um caminho para construir a terceira via, em 2022?
Acho que foi um primeiro passo. Como diz o poeta, “você começa o caminho caminhando”. Mas a abertura de diálogo entre todos esses candidatáveis é fundamental. Eu posso ajudar, acho até que tenho uma facilidade de diálogo. Isso não indica que seja eu o candidato. Tenho enorme admiração pelo governador Eduardo Leite.
O que falta, na sua opinião? É um programa para unificar esse grupo ou deixar as vaidades de lado para montar uma aliança?
A palavra principal é desprendimento. Mas alguns pontos são relevantes para uma agenda comum, como meio ambiente, respeito à ciência e não desprezar a questão fiscal.
O sr. tem sido chamado por algumas alas do PSDB de ‘Biden brasileiro’ por ter um perfil capaz de unir diferentes correntes. O que acha dessa comparação?
Fico extremamente lisonjeado, mas acho que é por causa da idade (risos). Vejo nele um cara que está mudando a história do mundo. Eu meço, hoje, a responsabilidade do Bolsonaro na nossa pandemia através dos Estados Unidos. Prestem atenção na mudança que houve lá no combate à pandemia depois da eleição. E agora Biden está colocando a questão do meio ambiente na agenda do planeta.
O PSDB passou por várias crises e não conseguiu chegar nem ao segundo turno da eleição de 2018. Como o partido pode se reposicionar no jogo?
Todos os partidos sofreram crises. O PSDB, o PT, o MDB... De uma maneira geral, os partidos estão bastante desmoralizados. Nessas eleições agora, vamos ter de nos reconstruir com um programa claro e, ao mesmo tempo, restabelecer a questão da ética.
Além do sr., quais outros nomes podem furar a polarização na campanha presidencial?
Tem o Mandetta (ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta) pelo DEM. O PSDB tem aí tanto o Eduardo Leite quanto o Doria. Tem o Ciro pelo PDT. Luciano Huck é o que tem mais popularidade e está com meio caminho andado. Tem um grupo grande muito consciente dos riscos que o Brasil corre e se dispõe a conversar.
Quais riscos?
Se nós tivermos mais quatro anos de Bolsonaro, vamos ser um pária internacional, isolado do mundo. E com a economia no caos. O primeiro governo do Lula foi bom, mas ele teve como formulador de política econômica o Marcos Lisboa. Se ele vier com a política do Guido Mantega, do descontrole fiscal, nós também iremos por um caminho equivocado. Temos de reconstruir credibilidade.
A CPI da Covid pode desembocar em um processo de impeachment contra o presidente?
Não é o objetivo. Com certeza, a CPI vai levantar responsabilidades sobre esse drama que o País vive. Agora, eu acho que nós não devemos chegar a impeachment. Além de ser outra crise, é inócua porque uma CPI demora seis meses. E depois, se começar um processo de impeachment, vão no mínimo mais seis meses. O País ficaria parado e sem rumo, já chegando às eleições do ano que vem. Agora é trincar os dentes.
O ex-secretário de Comunicação Social Fábio Wajngarten disse à Veja que o Brasil não comprou antes vacinas da Pfizer por culpa do então ministro da Saúde Eduardo Pazuello. É crível que o presidente não soubesse de nada?
Eu não acho crível. Temos de averiguar, mas acho estranho que a compra de vacinas passe pelo secretário de Comunicação, e não pelo presidente. Até porque tem a célebre frase do então ministro da Saúde: “Ele manda, eu obedeço”.
O que se pode esperar da economia com o desemprego em alta e orçamento apertado? O “Posto Ipiranga” do governo corre o risco de incendiar?
Não tem mais gasolina (risos). Existe uma sensação de descontrole. A economia parada, o déficit e a inflação subindo. É o pior dos mundos. Mas há uma coisa para prestar atenção, no ano que vem. É que, em função da inflação, haverá uma bomba fiscal maior. Em 2022, o governo Bolsonaro terá mais dinheiro para gastar. Acho muito difícil o Paulo Guedes (ministro da Economia) avançar em seus planos liberais. Esse choque aconteceria de qualquer forma porque Bolsonaro nunca foi liberal. Ele sempre foi corporativista.
Muitos acreditavam que os militares fossem atuar como freio para o presidente, mas ocorreu o contrário. O sr. acha que eles podem não apoiar o projeto da reeleição?
Eu acho que os militares também ficaram surpresos. Não deveriam ficar porque Bolsonaro foi saído, não digo expulso, do Exército pela hierarquia militar. Eu acho que os militares têm de ficar neutros, como sempre estiveram. Não devemos nos preocupar com eles nas eleições. Eles têm de estar ali, respeitando a Constituição e fazendo o seu papel.
Vinicius Torres Freire: CPI da Covid tem de investigar desde já o risco de faltar vacina no ano que vem
A fim de evitar desastre novo, é preciso desde já planejar o ritmo de fabricação e compra de imunizantes
A CPI da Covid começa na terça-feira (27) e deve exigir logo de cara explicações para a escassez de vacina em 2021. Essa inquirição pode fundamentar processos contra gente do governo Jair Bolsonaro, muito justo. Mas é preciso que os senadores investiguem o quanto antes o que está sendo feito a fim de evitar a falta de vacinas em 2022.
A pergunta pode parecer um despropósito. Falta vacina para o mês que vem. Até sexta-feira (23), apenas 18% da população adulta havia tomado a primeira dose (as duas doses, apenas 7,6%). Parte desse retardo vacinal foi gerada em meados de 2020 pelo triângulo horroroso que juntou negligência, perversão e ignorância lunática na alcova do governo Bolsonaro. Vamos parir outro monstro em 2022?
O problema vai além de produzir ou importar vacinas suficientes, em caso de necessidade de revacinação geral, como na gripe. Em tese, nesse aspecto 2022 pode ser menos desesperador. Prevê-se que a nova fábrica do Butantan produza 100 milhões de doses de Coronavac (a ButanVac é ainda mera esperança); talvez a Fiocruz fabrique 300 milhões. Mais um tanto de doses importadas e vacina-se a população inteira até o fim do ano.Mas pode ser que seja preciso revacinar todo o mundo bem antes. Os cientistas ainda não sabem dizê-lo. Além do mais, com sorte a vacinação deste 2021 talvez apenas termine em dezembro, o que é outro risco.Qual o problema?
Ainda não se sabe por quanto tempo uma pessoa infectada pelo coronavírus fica imune (nem o que quer dizer exatamente “imune”). Talvez fique protegida de infecção mortal por até oito meses, estimou um estudo pequeno e cheio de dedos, mas feito por pesquisadores de centros reputados (“Immunological memory to Sars-CoV-2 assessed for up to 8 months after infection”, publicado em janeiro na “Science”).
Também não se sabe por quanto tempo uma pessoa vacinada fica protegida de doença grave. As vacinas da Pfizer e da Moderna protegem por pelo menos seis meses, afirmaram os fabricantes, agora em abril. Deve ser mais, não se sabe, até porque as vacinas são recentíssimas.
De resto, proteção imunológica não é um interruptor, liga e desliga: pode ser eterna ou durar por muito tempo, com força declinante.
E daí?
Sem informação mais segura sobre quanto e como dura a imunidade, é difícil fazer prognósticos sobre a epidemia. Em um cenário de horror, exagerado para efeito didático, pode ser que, quando terminar a vacinação de 2021, os primeiros infectados e vacinados já tenham perdido a proteção. O risco aumenta porque o vírus estará circulando pelo mundo ainda por muito tempo (apenas 0,3% das vacinas foram para países pobres, segundo a OMS). Há ainda o problema das variantes. Pfizer e Moderna estudam a necessidade de uma terceira dose, incrementada para conter os mutantes.
É fácil perceber que, quanto menos durar a imunidade e quanto mais tempo o vírus estiver solto no mundo, mais rápido será necessário vacinar ou revacinar. Na dúvida, é melhor prevenir do que remediar, até porque não há remédio que cure Covid.
A fim de evitar desastre novo, é preciso desde já planejar o ritmo de fabricação e compra de vacinas, analisar os imunizantes que temos, aprofundar a pesquisa da imunidade dos infectados, testar mais gente e vigiar as variantes. Para tanto, precisamos de um plano nacional e muita pesquisa. Não temos, claro (Bolsonaro está matando também a ciência brasileira). A CPI tem de fazer um escândalo a respeito, tanto que a gente possa implementar um plano assim, a despeito dos monstros no poder.
Janio de Freitas: A conspiração contra a lisura da eleição presidencial não foi de uma figura só
Aos procuradores da Lava Jato e aos juízes nada sucedeu por sua atitude, respectivamente, preparatória e consolidadora do ato de Moro
Nem concluída ainda a votação, o Supremo Tribunal Federal já confirma a parcialidade de Sergio Moro contra o ex-presidente Lula da Silva, e nisso traz dois sentidos subjacentes. Se por um lado recompõe alguma parte da questionada respeitabilidade judiciária, por outro acentua a omissão protetora aos parceiros na deformação, pelo então juiz e a Lava Jato, do processo de eleição para a Presidência.
Muitas vezes identificado com Moro, o ministro Edson Fachin foi, no entanto, o proponente da aprovada anulação das sentenças contra Lula, invocando, entre outras, uma razão obscurecida no noticiário: constatou que o inquérito não encontrou prova alguma que ligasse o caso do apartamento em Guarujá a qualquer ato de corrupção na Petrobras, mas os procuradores fizeram tal acusação a Lula e Moro o condenou por isso. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, do Sul, manteve e até aumentou a condenação, seguindo o conturbado relatório do juiz João Gebran.
Aos procuradores da Lava Jato e aos juízes nada sucedeu por sua atitude, respectivamente, preparatória e consolidadora do ato de Moro. Foi, porém, para fortalecer o truque da falsa conexão Lula-corrupção na Petrobras, que Deltan Dallagnol criou o espetáculo paranoico, na TV, em que situou Lula no centro de um círculo de atos/pessoas, às quais seu nome se ligava. Eram os apontados como criminosos da Petrobras e, no centro, aquele a quem designou como "chefe da quadrilha".
O objeto da condenação —o apê em retribuição a negócio escuso na Petrobras— integrava o colar dos atos criminosos alegados. Mas o Supremo confirma a falsidade da inclusão. Essa constatação que expõe Moro dá oportunidade a outra figura raiada, em que ele e Dallagnol ocupem o centro, com raios projetados até os procuradores. O TRF-4 tem a mesma oportunidade gráfica, com o juiz Gebran ao centro.O juiz, os procuradores, os juízes eram todos um propósito só. Abençoados ora por covardia, ora por semelhança de fins, no concílio do Supremo e pelo procurador-geral da República à época, Rodrigo Janot.Ao menos no plano interno, que do externo o francês Le Monde já cuida sobre conexões de Moro nos Estados Unidos, a conspiração contra a lisura da eleição presidencial não foi de uma figura só.Outros têm contra a Constituição, as leis e a lisura eleitoral, responsabilidades equivalentes ou assemelhadas à de Sergio Moro. Os Conselhos Nacionais da Justiça e do Ministério Público, por sua omissão, ostensiva e elitista, entram nesse rol.
Um dinheiro aí
Bolsonaro se castigando para ler um escrito de autor letrado é cena de humorismo. Empedrado, com medo de cada palavra, olhar de faminto, para mentir no varejo e a granel, desdizer-se, negar-se. É o espetáculo da vergonha sem vergonha. Contudo, rica em motivos.
A recusa estúpida das altas contribuições da Noruega e da Alemanha ao Fundo Amazônia, já nos primórdios do atual governo, pouco depois mostrou servir para afastamento de protestos contra um plano de ação. O pedido de dinheiro, agora, é o complemento do plano.
O assecla Ricardo Salles providenciou o desmonte de todo o sistema defensor da Amazônia. Serviço pronto, ou quase. O dinheiro pedido proporcionaria as empreitadas para explorar a Amazônia desguarnecida. Com a facilidade adicional prevista em projeto já na Câmara para liberação dos territórios indígenas à retirada de madeira, criação de pastos e mineração.
Até aqui, nem o desmonte de ser rentável. Quem achar que a proteção a garimpeiros ilegais e desmatadores contrabandistas —como a preservação de seus equipamento determinada por Bolsonaro e a suspensão de multas por Salles— são medidas sem compensações, ainda não chegou ao governo Bolsonaro.
Os ritos
Comandos militares não cessam de repetir que as Forças Armadas são protetoras da Constituição, das liberdades democráticas, dos interesses nacionais, e por aí afora. Diz agora o novo ministro da Defesa, general Braga Netto: "É preciso respeitar o rito democrático". A frase pode ter muitos significados e nenhum. Nos dois casos, é exemplar das formas nebulosas que são, sim, um modo de fazer política.
O general Villas Bôas, então comandante do Exército, "respeitou o rito democrático"? Os generais coniventes com as investidas de Bolsonaro contra o Supremo e o Congresso estão "respeitando o rito democrático"? Perguntas e exemplos assim podem ser centenas.
O impeachment, as CPIs e processos criminais têm todos os seus ritos democráticos. As Forças Armadas comandadas pelo general Braga Netto devem, pois, respeitá-los, deixando-os a cargo das respectivas instituições —que não incluem quartéis.
Bruno Boghossian: Bolsonaro despreza dados oficiais para inventar seus próprios fatos
Desmonte do Censo e ataque a órgãos públicos reflete descaso com a realidade
No segundo mês de governo, Paulo Guedes pediu uma tesourada no Censo. Para cortar gastos, o ministro propôs a redução do questionário da pesquisa que seria feita em 2020. Como consequência, o país teria menos informações sobre suas desigualdades e menos elementos para elaborar políticas públicas.
"Se perguntar demais, você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber", afirmou Guedes. O ministro tentava fazer graça, mas acabou revelando o desprezo que o governo Jair Bolsonaro teria pela realidade.
Em 2020, o Censo foi adiado por causa da pandemia. Na sexta (23), o Ministério da Economia confirmou que ele também não será feito em 2021. Para piorar, Bolsonaro cortou 25% do orçamento que seria usado para preparar a pesquisa. Com isso, o país também corre o risco de atravessar 2022 sem aquelas informações que o governo "nem queria saber".
O apagão de dados é uma política de Bolsonaro. Desde o início do mandato, o presidente e seus auxiliares trabalham para desacreditar estatísticas oficiais. O governo prefere enterrar informações incômodas.
O mesmo IBGE que foi alvo dos cortes no Censo também havia sofrido ataques de Bolsonaro em 2019. Irritado com os números do desemprego, ele distorceu a metodologia das pesquisas da área para dizer que o órgão “não mede a realidade”. O instituto precisou divulgar uma nota para desmentir o presidente.
No meio ambiente, Bolsonaro já questionou dados do Inpe que apontavam uma alta no desmatamento em seu governo. Na pandemia, encomendou do Ministério da Saúde uma manobra para maquiar as estatísticas de mortes por Covid-19 e esconder seu papel na tragédia.
Sucatear esses órgãos e desqualificar a produção de dados públicos são parte de um projeto. Como não tem um programa de governo para lidar com a realidade, Bolsonaro escolheu inventar seus próprios fatos.
Saio de férias por duas semanas e volto à coluna no dia 12 de maio. Até lá!
Marcos Lisboa: Tudo vai ser diferente?
Nossa tentativa de plano Biden não deu certo
Os EUA de Joe Biden pretendem investir US$ 2,3 trilhões em oito anos, sobretudo em infraestrutura. O programa custará, anualmente, 1,3% do PIB americano. Para equilibrar as contas, o governo propôs elevar impostos por 15 anos, como tributar o lucro das empresas em 28%.
Essa ousadia pode ser comparada com algumas políticas da nossa história recente. Deve-se ressaltar que os EUA são 6,5 vezes mais ricos do que o Brasil. Além disso, empresas aqui já têm alíquota nominal de 34% sobre o lucro.
O custo anual do plano Biden equivale, no Brasil, a cerca de R$ 100 bilhões, menos de três vezes o valor das emendas parlamentares em 2021. O Orçamento federal é de R$ 1,5 trilhão.
Entre 2009 e 2015, o Tesouro brasileiro concedeu, por meio do Programa de Sustentação do Investimento, subsídios de R$ 323 bilhões, ou 5,5% do PIB anual médio no período.
Ajustado pelo PIB americano, o programa equivaleu a 50% do plano Biden. E essa foi só uma das políticas públicas utilizadas naquele período para estimular investimentos. Cabe mencionar que o custo para Tesouro americano está perto de 0,5% ao ano e o nosso, na época, era quase 6% acima da inflação, 12 vezes maior.
De 1998 a 2007, a nossa carga tributária cresceu cerca de 6 pontos percentuais mais do que o PIB, o que significou uma arrecadação adicional de R$ 2,33 trilhões no período.
O aumento do gasto público, contudo, foi-nos de pouca valia. Os EUA cresceram mais do que o Brasil entre 1995 e 2016, e os países emergentes fora da América Latina, cerca de sete vezes mais.
A razão é simples. Parte dos recursos se perde nos interesses que capturam o Estado brasileiro, com menos benefícios para a população do que em outros países, ou poucos investimentos eficientes.
Desenvolvimento e combate à desigualdade são utilizados, em parte, como cortina de fumaça para garantir subsídios para o setor privado e reajustes para corporações.
Nos EUA, servidores deixam de receber seus salários caso o Orçamento não seja aprovado. A maioria não tem estabilidade, muito menos aposentadorias integrais.
Por aqui, a burocracia, com estabilidade e aposentadoria integral, garante seu quinhão. Semana passada, por exemplo, o Congresso decidiu que técnicos da Previdência devem receber como analistas tributários.
Segundo deputados, a medida privilegiou 1.800 servidores, que vão receber salários de até R$ 18 mil por função para a qual não prestaram concurso. A conta chega a R$ 2,7 bilhões.
No mundo desenvolvido, o Estado está a serviço da sociedade. No Brasil, a sociedade trabalha para sustentar o Estado e seus alcaides.
Já passou da hora de tratar a nossa disfuncional economia política.
Armínio Fraga: O futuro da democracia e os desafios do Brasil
O liberalismo econômico e a social-democracia vivem um mau momento
Passeando pela minha estante me chamaram a atenção os títulos de vários livros que li (ou folheei...) recentemente: "como a democracia chega ao fim", "como as democracias morrem", "crises da democracia", "por que o liberalismo fracassou?", "o liberalismo em retirada", "o futuro do capitalismo", "a batalha dos poderes" e "o Brasil dobrou à direita".
Não sou tão pessimista, mas é inegável que o liberalismo econômico e a social-democracia vivem um mau momento. Lideranças populistas e autoritárias consolidam-se mundo afora. A China, que parecia caminhar em direção a alguma abertura, deu um cavalo de pau com Xi Jinping. Nesse cenário, a derrota de Trump é uma luz no fim do túnel.
Seria absurdo pensar que a democracia vai ter que se reinventar? As pressões por mudança vêm de várias frentes: a crescente desigualdade, a falta de mobilidade social, a incerteza quanto ao emprego, ameaçado pela tecnologia, as dinâmicas das redes sociais, as questões existenciais da mudança climática e da biodiversidade, as tensões do nacionalismo e os riscos do populismo. Há pressa!
Dei costas para a minha estante, desisti da lista acima e peguei na cabeceira uma obra das que mais gostei nos últimos tempos: a biografia do irlandês conservador Edmund Burke, membro do parlamento britânico, publicada em 2013 pelo também parlamentar Jesse Norman. Muito raramente faço anotações nos livros, mas marquei esse, talvez por tocar em questões muito em voga: a ordem social, os partidos políticos, as facções, os princípios da democracia e as possíveis implicações para os nossos tempos.
Correndo o risco de dar uma de Procusto, o personagem da mitologia que mutilava corpos para que se encaixassem em sua cama de pedra, faço aqui algumas pontes entre temas explorados no livro por Burke e Norman e a realidade brasileira.
Inicialmente, cabe uma breve reflexão sobre a ordem social, entendida como uma herança que passa de geração a geração, algo a preservar e a aperfeiçoar, gradualmente. No caso da Grã-Bretanha, aspectos legais e culturais se confundem, num "contrato informal", sem cláusula de escape, entre as gerações passadas, presente e futuras. Essa noção de permanência faz parte da essência do conservadorismo de Burke, e não se confunde com conservadorismo de costumes ou falta de solidariedade social.
No caso do Brasil, um novo "contrato" foi formalmente codificado em 1988, quando da promulgação da nova e muito detalhada Constituição.
Desde então os gastos públicos têm crescido quase que continuamente. A partir desta constatação, muitos concluem que o Brasil é inadministrável ou inviável. Mas cabe algum cuidado aqui. Desde sua promulgação, a constituição foi emendada 108 vezes (versus 27 no caso da americana, promulgada em 1789, sendo que 17 emendas ocorreram após a ratificação da Declaração de Direitos em 1791). Logo, não parece razoável culpar a Constituição por nossos problemas quando o Congresso pode com relativa facilidade aprovar emendas (o que não ocorre nos Estados Unidos).
Uma característica básica do caso brasileiro parece ser que há mais a aprimorar do que a conservar. Um exame do quadro orçamentário do Brasil exemplifica a gravidade do desafio. Por que o Orçamento? Porque é lá que desejos e carências são transformados em prioridades.
A despeito dos gastos públicos terem aumentado cerca de 10% do PIB desde 1988, os investimentos públicos caíram de um pico de 5% para 1% do PIB e os gastos com saúde limitam-se a apenas 4% do PIB (muito pouco para um sistema que se pretende gratuito e universal). Sem falar no desequilíbrio fiscal que se observa desde o descalabro de 2014-2015. A falta de prioridades sugere que o problema não é apenas econômico —é político também.
Tendo um pano de fundo como esse, o Brasil precisa repensar alguns aspectos de sua vida orçamentária, um elemento crucial de qualquer democracia. A despeito de avanços institucionais importantes nas últimas três décadas, o sistema vem deixando a desejar, sobretudo a partir de 2014. A trágica farsa do Orçamento que hoje vivemos não é novidade.
Cabe, portanto, a pergunta mais geral de Burke: como conseguir que a política vá além dos interesses pequenos de todo tipo? A soma destes interesses raramente entrega como resultado o interesse público, o bem comum. Parte relevante das respostas a essa indagação viria, segundo Burke, do bom funcionamento dos partidos "uma força moderadora e promotora de bom governo".
Em tese. Num de seus primeiros escritos, Burke afirma: "no momento não temos entre nós partidos propriamente ditos, apenas facções, sem princípio algum, um bando fazendo intrigas em benefício próprio". Faz algum eco aqui. Com 24 partidos representados no Congresso, sem clareza programática e mesmo ideológica, e nem um deles sequer com mais do que 10% dos assentos, os horizontes se encurtam, os projetos se apequenam e o bem maior da nação fica em segundo plano.
As reformas políticas já aprovadas apontam na direção certa, mas há um longo caminho pela frente. O equilíbrio entre interesses locais, regionais e federal é complexo. O mesmo se pode dizer de interesses temáticos, hoje particularmente presentes com as bancadas.
Não creio que o nosso sistema partidário seja a origem de todos os males. Mas, diante de desafios que só fazem crescer, as chances de sucesso parecem pequenas sem uma significativa melhoria em nossos mecanismos de governança.
Rolf Kuntz: Bolsonaro versus direitos, perigo para o trabalhador
Presidente continua vinculando desemprego a um ‘excesso’ de direitos trabalhistas
Bolsonaro ataca de novo, confirmando sua aversão aos direitos trabalhistas. Desta vez ele pôs em dúvida uma lei a favor da igualdade salarial para homens e mulheres. Antes de sancionar ou vetar o texto, aprovado no fim de março no Senado, ele pediu a manifestação de seus seguidores. “Pode ser que o pessoal não contrate, ou contrate menos mulheres, vai ter mais dificuldade ainda”, disse o presidente em sua live habitual de quinta-feira. Se entrar em vigor, a lei aumentará as multas, até agora muito brandas, aplicáveis em casos de discriminação de gênero, raça ou idade. Deputadas e senadoras tiveram importante participação na defesa do projeto.
Ao pedir a opinião dos apoiadores, Bolsonaro reafirmou, claramente, a disposição de governar para os bolsonaristas. Ele foi empossado em 2019 como presidente do Brasil, isto é, de todos os brasileiros, mas parece jamais haver entendido ou admitido esse fato. Essa concepção estreita de suas funções e obrigações foi evidenciada já no começo de seu mandato. Facilitar o acesso às armas foi uma de suas primeiras preocupações, embora houvesse 12,7 milhões de desempregados, 12% da força de trabalho, no trimestre móvel encerrado naquele mês de janeiro.
Bolsonaro tinha uma concepção peculiar, no entanto, das condições de funcionamento do mercado de trabalho. Essa concepção, reafirmada no caso da igualdade reivindicada pelas mulheres, era muito simples e já havia sido exposta durante a campanha eleitoral. O trabalhador, disse o candidato Jair Bolsonaro, terá de escolher “entre mais direito e menos emprego ou menos direito e mais emprego”.
Essa declaração foi feita em agosto de 2018, durante entrevista a um jornal da Rede Globo. Quando o apresentador lembrou seu voto contra a PEC das domésticas, o deputado respondeu ter dado esse voto “para proteger” as trabalhadoras. “Muitas mulheres”, acrescentou, “perderam o emprego pelo excesso desses direitos.” E em seguida: “Que tal aprovar todos os direitos trabalhistas para todos os integrantes das Forças Armadas?”.
Em dezembro daquele ano, já eleito, Bolsonaro voltou a criticar as normas trabalhistas. A legislação, afirmou, teria de se “aproximar da informalidade” para favorecer a criação de empregos. Em 4 de janeiro, pouco depois da posse, condenou mais uma vez, numa entrevista, a condição do assalariado. “O Brasil é o país dos direitos em excesso, mas faltam empregos. Olha os Estados Unidos, eles quase não têm direitos.”
Essa é uma visão distorcida e primária de como funciona o mercado de trabalho americano, dos direitos e da segurança do trabalhador nos Estados Unidos e do poder dos sindicatos. Não há surpresa, no entanto, porque a pobreza de informações do presidente brasileiro e a simplicidade de suas ideias são bem conhecidas.
Seria preciso, disse Bolsonaro naquela ocasião, aprofundar a reforma trabalhista. Ele se referia às mudanças ocorridas no mandato de seu antecessor. Mas a reforma proposta pelo presidente Michel Temer e aprovada no Congresso apenas deu flexibilidade ao sistema, sem anular direitos previstos na Constituição e na legislação trabalhista. Trabalho intermitente e possibilidade de jornada de 12 horas com 36 de descanso foram algumas das novidades.
Algumas mudanças, como o trabalho intermitente, têm facilitado a preservação de empregos na crise atual. A reforma implantada no governo anterior é muito diferente da redução de direitos proposta pelo presidente Bolsonaro e do barateamento da mão de obra defendido pelo ministro da Economia.
Parte do empresariado aplaude as propostas de eliminação de direitos ou, no mínimo, da redução de custos pela extinção de obrigações trabalhistas e previdenciárias ou pela contratação de jovens por salários muito baixos. Também há empresários e políticos, principalmente bolsonaristas, dispostos a aplaudir o corte de tributos sobre seus negócios, mesmo sem uma discussão séria de como essa redução será compensada.
Mas é bobagem associar a criação de empregos, como têm feito o presidente e o ministro da Economia, à mera redução de custos trabalhistas. Não se contratam trabalhadores, mesmo a baixo custo, quando a atividade está emperrada. Não é preciso ser doutor em Economia para conhecer essa verdade simples. Emprego depende, em primeiro lugar, da atividade econômica, ou, pelo menos, da expectativa de expansão dos negócios.
Mas a perspectiva de crescimento maior que nos anos anteriores nunca esteve presente, no Brasil, desde os primeiros meses de 2019. No começo de 2020 os otimistas previam expansão de uns míseros 2,5%. Depois da reforma da Previdência, já amadurecida no governo anterior, nada foi proposto pelo governo além de mudanças pífias na tributação e na gestão de pessoal. Nem as medidas econômicas implantadas na crise da pandemia foram mantidas no Orçamento para 2021. Até o auxílio emergencial foi suspenso por três meses, num quadro de desemprego e fome. Nem o direito à vida – contra a doença ou contra a miséria – foi protegido. Para que tantos direitos? Bolsonaro é pelo menos coerente.
*Jornalista
Roberto Romano: Federação, municípios, morticínio. Tragédia nacional
Temos um povo dizimado pelo poder, que age como conquistador em terra arrasada
Jair Bolsonaro ataca Estados e municípios como inimigos a serem destruídos. Para ele, não existem cidadãos merecedores de respeito nas unidades federativas. Em vez de lutar contra a pandemia, o presidente gera batalhas contra as bases administrativas e políticas do País. Surgem os frutos assustadores: mais de 350 mil brasileiros entregues à tortura da morte sem ar, o que revolta quem sente misericórdia ou segue a ética e a moral.
O ignaro governante reitera – em cena macabra – uma guerra antiga das culturas políticas humanas. Trata-se do choque entre poderes centrais e municípios. Estes últimos eram desconhecidos na Grécia e na Roma primitiva. Ali existiam soberanas cidades-Estado. Na Itália as urbes eram livres para organizar suas práticas internas. Vencidas por Roma e ela ligadas em federação (foedus) dela recebiam em especial a justiça. O prefectus, agente romano, resolvia os casos urgentes, mas o júri reunia habitantes locais, cujas instituições eram mantidas.
Os elos entre municípios e Roma se retraíam e se estendiam conforme as vicissitudes políticas, econômicas, sociais. Ora o poder se concentrava, ora se espraiava pelas bases federadas. Os municípios conservavam independência na sua organização, a assembleia do povo elegia os dirigentes. “Os magistrados municipais têm sobre os cidadãos o imperium. Todos obedecem à lei votada pelo povo e se inclinam diante dos administradores nas taxas ou nos trabalhos públicos. Em casos extremos o município cede aos poderes centrais e a lei de Roma toma a dianteira” (Mommsen). “Em casos extremos”, sublinhemos.
Após a chamada “guerra social”, quando as cidades italianas exigiram tratamento similar ao concedido a Roma, os municípios se generalizaram. Cito novamente o grande historiador Mommsen: “O município, constituído no interior do Estado e a ele se subordinando, é uma das mais notáveis manifestações políticas e das mais fecundas da era comandada por Sylla. As reformas constitucionais de Sylla definem um Estado cuja base é múltipla, a das comunas locais”. Dentre os municípios do Estado romano temos Olissipo, Lisboa. Aquelas unidades começaram a ruir por causa dos abusos das autoridades locais, abusos agravados pelo aumento sem freios do fisco em vantagem do poder central.
Os esqueletos municipais serviram às cidades europeias na resistência ao moderno absolutismo, cuja tarefa era unificar os Estados monárquicos. Nos século 16 e 17 tudo fizeram as Cortes para arrancar finanças e poderes dos municípios. Hobbes pensa as urbes como ameaça ao poder absoluto e vê como doença “a desmesurada grandeza de uma cidade, quando ela é apta a fornecer para além de seu próprio domínio os números e o pagamento de um grande exército” (Leviatã). A história da centralização estatal passa pela beligerância entre a Corte e os municípios. Tocqueville (O Antigo Regime e a Revolução) revela as táticas do rei: ele arranca das cidades as suas prerrogativas, como a de eleger os próprios magistrados, para revendê-las com lucro aos mesmos municípios. O prefeito assim escolhido, acrescenta Tocqueville, tem poder menor do que o fiscal do Reino. Daí ser possível aquilatar o grau de corrupção do Antigo Regime. Nele tudo se vende, tudo se compra. O Antigo Regime é um imenso Centrão.
Não citei Lisboa por acaso. Quando surge o Brasil os reis europeus – incluído o português – controlam os países, os municípios perdem força. Em nossa terra os municípios existem, mas não há foedus com a Corte, apenas subordinação. Líderes locais são desprovidos de real autonomia, como seus colegas da Europa absolutista. Tal realidade vigora no Império e na República. Maria Sylvia Carvalho Franco (Homens Livres na Ordem Escravocrata) analisa o controle e o parasitismo do poder central em relação às cidades. Impostos são retirados dos cofres municipais e para eles quase nunca retornam. Tal regime faz dos poderes subordinados fontes de recursos para o Executivo do País, sem retorno em obras públicas dignas do nome.
Com documentos a autora mostra aí a fonte brasileira da indistinção entre público e privado, o compadrio político e outras mazelas. Para obter verbas surgem as oligarquias regionais. No Congresso elas vendem apoio ao presidente/monarca. Tal é a gênese do perene Centrão.
As ditaduras do século 20 reforçam o Executivo nacional. Temos uma enganosa Federação a jungir Estados e municípios. Se na Presidência há uma pessoa despótica e desprovida de saberes – jurídicos, políticos, científicos, históricos –, o combate pátrio vira carnificina. Temos um povo dizimado pela virulência do poder, que age, em relação aos municípios, como conquistador em terra arrasada. Os mortos, hoje aos milhares, são enterrados sem justiça.
Se a Federação brasileira não deixar de ser apenas farsa, seguiremos sob o guante de dirigentes que violam os direitos de Estados e municípios, espaço onde vivemos ou morremos. Quem não respeita tal fato da vida pública não merece governar.
*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da Razão’ (Perspectiva)
Elio Gaspari: Vinte e quatro governadores numa impertinência
Governadores que entregaram carta a Biden praticaram uma marquetagem imprópria, incompetente e inútil.
Os 24 governadores que entregaram ao embaixador americano Todd Chapman uma carta ao presidente Joe Biden oferecendo o “desenvolvimento de parcerias e de estratégias de financiamento” para a proteção do meio ambiente praticaram uma marquetagem imprópria, incompetente e inútil. (Os governadores de Santa Catarina, Rondônia e Roraima não assinaram a carta.)
Foi uma iniciativa imprópria, porque não compete a governadores propor “estratégias” a governos estrangeiros. Na carta, os doutores falam em nome dos “governos subnacionais brasileiros”. Ganha um fim de semana num garimpo ilegal, quem souber o que é isso.
É incompetente, porque uma colaboração internacional para defender o meio ambiente (leia-se proteger a Amazônia dos agrotrogloditas aninhados no bolsonarismo) não precisa ser buscada na Casa Branca. Até o ano passado, ela era ocupada por um tatarana. Existem organizações credenciadas para negociar essas “parcerias”.
À incompetência e à impertinência junta-se um fator de inutilidade historicamente documentada. Os Estados Unidos, como qualquer outra nação, tem interesses. Os amigos são asteriscos. Governadores “amigos” acabam virando massa de manobra.
Em 1961, o presidente John Kennedy lançou um programa chamado Aliança para o Progresso. Tratava-se de barrar a influência do comunismo cubano promovendo reformas sociais na América Latina. Coisa fina, mobilizando quadros da elite que trabalhara nas transformações dos Estados Unidos durante os mandatos de Franklin Roosevelt e na Europa do pós-guerra. Nesse grupo, estava o professor americano Lincoln Gordon, com seu currículo de Harvard e Oxford, mais a experiência adquirida durante o Plano Marshall .
Kennedy nomeou Gordon para a embaixada no Brasil, e ele fez parcerias com governadores amigos, como Carlos Lacerda, no Rio, Ney Braga, no Paraná, e Aluízio Alves, no Rio Grande do Norte. O que havia sido uma ideia de reformas sociais para o continente transformou-se aos poucos num instrumento de interferência política. Em menos de um ano, Gordon estava no Salão Oval da Casa Branca, discutindo também a possibilidade de um golpe militar no Brasil. Trabalhava-se com os “bons governadores” e estimulavam-se projetos que impedissem avanços de candidatos de esquerda.
No final de 1962, Gordon percebeu que a essência reformista da Aliança para o Progresso tinha morrido. Sua embaixada, e ele, estavam noutra.
Em 1964, deposto João Goulart, os governadores Ney Braga, Carlos Lacerda e Aluízio Alves tornaram-se joias da coroa da Aliança para o Progresso e da nova ordem. Quatro anos depois, Lacerda e Aluízio Alves foram banidos da política pela ditadura.
Em 1971, o diretor do programa de segurança pública da USAID, filha da Aliança para o Progresso, foi perguntado por um senador que pretendia denunciar a ação dos torturadores brasileiros:
— Uma dura declaração de nosso governo ou de sua embaixada talvez os inibisse? (...) O senhor não concorda ?
— Eu não acredito, senador, e estou habilitado a responder assim.
(O doutor disse aos senadores que não sabia o que era a Operação Bandeirantes. Era a mãe do DOI.)
A essa altura, Gordon estava desencantado com os rumos do regime brasileiro, e a embaixada em Brasília informava que seria inútil aconselhar os empresários americanos a se afastarem da caixinha de colaborações para as agências de repressão política.
Vila Kennedy, um sonho americano
No mesmo depoimento aos senadores americanos, o burocrata da USAID disse que à noite se sentiria “mais seguro no Rio” do que em Washington. Em 1971, a capital americana estava mal das pernas, e o Rio tinha o Esquadrão da Morte. Passou o tempo e deu no que deu.
Um dos projetos mais vistosos da Aliança para o Progresso foi a construção da Vila Kennedy, no Rio de Janeiro. O projeto fazia a alegria do andar de cima. Havia uma favela no Morro do Pasmado, entre Botafogo e Copacabana. Tratava-se de tirar os moradores dos barracos, levando-os para um subúrbio da cidade. Construíram-se casas populares, instalou-se uma pequena réplica da estátua da Liberdade numa pracinha. A USAID botou US$ 25 milhões em dinheiro de hoje.
Passou o tempo, e no entorno da Vila surgiram mais de dez comunidades e as narcomilícias. Em 2018, a demofobia entrou na região com a cloroquina da ocasião: a intervenção do Exército, com a utilização de 1.400 soldados. Militares distribuíram flores no Dia da Mulher, e a Vila Kennedy deveria ter sido a vitrine das operações militares. Virou resort do Comando Vermelho, e dois anos depois drogas eram vendidas no pedaço em regime de drive-thru.
Madame Natasha
Madame Natasha faz qualquer coisa pelo meio ambiente, mas não participa de queimadas do idioma. Na quinta-feira, não houve reunião de cúpula de chefes de Estado. Houve, quando muito, um vídeo muito chato.
Desde sempre, as reuniões de cúpula reúnem governantes que às vezes discursam, mas sempre conversam reservadamente. Essa é a parte útil dos encontros. Na cúpula de Biden, houve só a parte inútil.
No mesmo dia, houve muito mais interesse e emoção com a plenária virtual do Supremo Tribunal Federal confirmando a suspeição do então juiz Sergio Moro.
Rascunho perdido
No rascunho que Ricardo Salles preparou para o discurso de Bolsonaro de quinta-feira, alguns países europeus seriam atacados
Os parágrafos foram para o arquivo.
A Europa livrou-se de uma boa.
Receio real
Jair Bolsonaro e seu pelotão palaciano estão convencidos de que há uma articulação para tirá-lo da cadeira.
Quando esse temor entra no palácio, o governo deixa de ter projeto.
Só isso explica que Bolsonaro tenha sido capaz de dizer que “o Brasil está na vanguarda dos esforços de parar o aquecimento global”.
Salles na mira
O ministro Ricardo Salles haverá de se dar conta de que a mais letal das encrencas em que se meteu foi a da joelhada que deu na Polícia Federal, com a demissão do delegado Alexandre Saraiva.
Para a corporação, Salles solidarizou-se com delinquentes. Nenhuma polícia do mundo deixa isso barato.
Braga Netto em 22
O general da reserva Walter Braga Netto, ministro da Defesa, defendeu o governo dizendo que “é preciso respeitar” o “projeto escolhido pela maioria dos brasileiros” para dirigir o país.
Fica combinado que ele continuará na mesma posição em novembro 2022 quando terminar a contagem dos votos da eleição presidencial.
Isolamento no ócio
Nos próximos quatro domingos, o signatário cumprirá um programa de isolamento com ócio.
Jamil Chade: Cúpula do Clima revelou que o Brasil encolheu
Bolsonaro descobriu que, sob seu Governo, não foi apenas a floresta que diminuiu. A sociedade encolheu, a expectativa de vida caiu, a economia contraiu, a comida no prato foi reduzida, o emprego desapareceu e as possibilidades de cruzar as fronteiras foram limitadas
Em dezembro de 2005, o mundo se reunia em Hong Kong para uma conferência sobre o comércio. Ali, regras seriam negociadas para permitir a construção de um sistema internacional mais equilibrado e uma base mais favorável para o desenvolvimento das economias em desenvolvimento.
Os olhos do mundo estavam fixados numa aliança improvável de países emergentes, o G-20, que insistia que as placas tectônicas do planeta precisavam começar a se mover.
Nunca contei essa história. Mas descobri que os principais ministros do grupo se reuniriam antes da conferência dar início para costurar uma estratégia. A meta era frear eventuais gestos da Europa e EUA para tentar manter seus indecentes subsídios agrícolas.
Também descobri que a sala reservada para a reunião tinha paredes extremamente finas e pensei que, se ocupasse uma sala ao lado e permanecesse em absoluto silêncio, poderia ouvir o que aquela reunião traria. Funcionou.
Mas o que também me deparei foi com a constatação de que praticamente só um país falava, só um país dava as cartas: o Brasil. A liderança era incontestável.
Não era uma condição exclusiva daquele governo. De fato, a postura de liderança do Brasil em debates internacionais conta com dezenas de episódios, independente da tendência política do Governo ou da situação econômica do país. Nos anos 80, fragilizado, a diplomacia do país marcou posição nas negociações comerciais em Punta del Leste.
No início dos anos 90 e ainda com uma democracia frágil, coube ao Brasil liderar de forma histórica os trabalhos da Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada em Viena. Coube ao embaixador Gilberto Sabóia coordenar o comitê de redação da Declaração e Programa de Viena, uma primeira chancela internacional ao papel da democracia brasileira no mundo.
O país era protagonista da construção de um novo mundo que permitisse um espaço digno às economias emergentes. Chegou a ser visto como arrogante por parceiros menores e duramente criticado por apertar a mão de ditadores na busca por acordos.
Mas sempre considerado como líder, o Brasil buscava desenhar seu futuro. Nem sempre funcionou e, em certos momentos, a diplomacia nacional tentou exercer um papel que ia além da real dimensão do país no palco internacional. Mas nunca pecou por não se aventurar por esse caminho.
Nesta semana, porém, a Cúpula do Clima organizada para recolocar os EUA no centro do debate internacional, mostrou uma nova realidade: a de um Brasil encolhido, escanteado.
O presidente Jair Bolsonaro foi estrategicamente colocado para falar longe do momento em que os principais líderes davam seu recado. Deixado para o final da fila e com a palavra dada apenas depois que Argentina, Bangladesh, África do Sul ou Ilhas Marshall fizeram seus discursos, Bolsonaro descobriu que não lidera e não influencia parceiros.
Coincidência ou não, Bolsonaro discursou quando Joe Biden já tinha abandonado o evento.
Na cúpula, o brasileiro foi o símbolo de um presidente acuado, pressionado e sem a capacidade de dar as cartas, justamente no momento em que a comunidade internacional desenha o mundo pós-pandemia. Para se defender, mentiu. E o mundo não acreditou.
Ele terá de provar agora seu discurso. E não bastarão ações por parte de sua milícia digital e nem mesmo uma live. A comunidade internacional quer ver resultados concretos e redução real do desmatamento, mês à mês.
Enquanto tentava vender uma imagem de credibilidade para a comunidade internacional, o Planalto descobria que, pela sua gestão da pandemia, certas regiões do Brasil já contam com mais mortes que nascimentos, algo inédito na história do país.
A sociedade encolheu, a expectativa de vida caiu, a economia contraiu, a comida no prato foi reduzida, o emprego desapareceu e as possibilidades de cruzar as fronteiras foram limitadas.
Bolsonaro, na Cúpula do Clima, descobriu que, sob seu Governo, não foi apenas a floresta que diminuiu. O Brasil também encolheu.
Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
Marcus Pestana: O Brasil e as mudanças climáticas
O fato mais importante da semana foi a realização da Cúpula de Líderes sobre o Clima, reunindo quarenta chefes de governos, ato preparatório para a COP-26, a Conferência do Clima da ONU, que terá lugar em Glasgow, na Escócia, em novembro. Marca importante mudança de postura dos EUA, Joe Biden à frente, sobre as questões ambientais e o desenvolvimento sustentável, após o turbulento Governo Trump e sua postura negacionista frente às mudanças climáticas e suas consequências, que culminou com a saída dos EUA do Acordo de Paris firmado em 2015.
Nos últimos trinta anos, a agenda do desenvolvimento sustentável ganhou papel central no planejamento e nas ações de governos, da sociedade e das empresas. A consciência ecológica ganhou corações e mentes a partir do esgotamento de um modelo de crescimento urbano-industrial baseado em energias vindas dos combustíveis fosseis (carvão mineral, petróleo, gás natural, xisto betuminoso) e na intensa poluição do ar, das águas e da terra.
Para o Brasil se abre uma enorme oportunidade, mas há também riscos e ameaças. Tudo dependerá das escolhas que fizermos. Até a pouco, nosso país era protagonista no jogo político e diplomático na arena de discussão sobre o desenvolvimento sustentável. Não foi à toa que a Cúpula Mundial, a RIO-92, se deu em terras brasileiras. Temos uma das matrizes energéticas mais limpas do globo. Temos um dos melhores arcabouços legais na área ambiental. Temos um verdadeiro tesouro ecológico com uma das maiores biodiversidades do mundo e a maior floresta tropical do Planeta.
O atual governo, que chegou a namorar com o negacionismo ambiental de Trump, parece estar processando uma mudança de rota. Apresentou na Cúpula de Líderes a proposta de acabar com o desmatamento ilegal até 2030 e antecipar em dez anos o compromisso de zerar as nossas emissões de gases poluentes. Na carta enviada à Biden, Bolsonaro falou em fortalecer os mecanismos de comando e controle, trabalhar na regularização fundiária, implementar o pagamento por serviços ambientais, trabalhar no zoneamento ecológico-econômico e promover a bioeconomia, transformando nossa fantástica biodiversidade em atividades geradoras de emprego e renda sustentáveis.
As palavras precisam agora encontrar consequências práticas. Não é “passando a boiada” tendo a pandemia como biombo ou nos alinhando com madeireiros e garimpeiros ilegais que chegaremos lá.
A transição para uma nova matriz energética não é nada fácil. Os países ricos dependem em 79% dos combustíveis fósseis. China, EUA, União Europeia, Índia e Rússia são responsáveis por 59% das emissões poluentes, o Brasil por 2,19%. As estratégias globais não podem passar por negar oportunidades aos países pobres e em desenvolvimento e nem pela taxação de importações que gerem barreiras comerciais. A parceria tem que ser pra valer, um jogo de ganha-ganha. E o Brasil pode ser um grande captador de investimentos ambientais se superar a armadilha ideológica do falso dilema entre soberania nacional e cooperação internacional.
Para quem quiser se aprofundar no diagnóstico e na agenda do desenvolvimento sustentável recomendo o artigo do ex-ministro do meio ambiente José Carlos Carvalho e da socióloga Aspásia Camargo, “Meio Ambiente e Sustentabilidade” (disponível em psdb.org.br/wp-content/uploads/2020/12/BRASIL-PÓS-PANDEMIA-FINAL.pdf).
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
George Gurgel: O Brasil, as comunidades indígenas e os desafios da sustentabilidade
Quando Pedro Alvares Cabral chegou à Bahia, em 1500, a população indígena brasileira era em torno de 3,5 milhões distribuída em quatro grupos linguístico-culturais: Tupi, Jê, Aruaque e Caraíba. Os Tupis eram os grupos dominantes e viviam ao longo do litoral.
A sociedade indígena era nômade, tinha um sistema de troca em forma de escambo e a divisão de trabalho entre os homens e as mulheres era baseada no sexo e na idade. Os homens preparavam a terra para a produção de alimentos, caçavam e pescavam. As mulheres semeavam, plantavam e faziam a colheita. Ainda faziam a fiação de algodão, teciam as redes, cuidavam dos animais domésticos e preparavam as raízes e folhas para a produção de cauim e os rituais. Havia uma atenção especial aos idosos e às crianças por eles representarem a história e a continuidade da comunidade.
As comunidades indígenas das Américas foram se transformando e se adaptando, ao longo de milhares de anos, a uma convivência com a natureza, da qual dependia sua existência física e espiritual. Assim viveram até à chegada dos colonizadores europeus que escravizaram, destruíram e transformaram completamente a vida dessas populações indígenas no continente americano.
A cultura dos colonizadores de produzir e acumular riquezas, de tudo virar mercadoria para Portugal e o comércio mundial já estabelecido entrou em choque com a vida nômade, de não acumulação de bens das comunidades indígenas. As relações iniciais de curiosidade e de trocas e de dependência dos portugueses aos índios para a sobrevivência ao longo do litoral brasileiro, foram se transformando em relações de conflitos entre os colonizadores e colonizados que passaram a ser obstáculo na ocupação da terra e, ao mesmo tempo em que os portugueses precisavam da força de trabalho indígena para o modelo de colonização extrativista que se implantava.
A partir das Capitanias hereditárias, distribuídas por D. João III, rei de Portugal, em 1534, ampliam-se consideravelmente esses conflitos e contradições do modelo de colonização imposto com as armas, a ferro, e a religião, com a exploração dos recursos naturais, cujo maior símbolo de devastação foi o pau-brasil. A construção de engenhos precisava de mão de obra escrava seguindo o modelo usado pelos portugueses nas Ilhas da Madeira e de São Tomé. Inicialmente, a escravização indígena se colocou como solução do modelo econômico a ser implantado no Brasil. A escravização africana é posterior, começando a ser significativa a partir de 1550, quando o tráfico de escravos passou a ser um lucrativo negócio, além da própria mão de obra escrava em si, substituta do trabalho escravo indígena.
Em 1549, Portugal criou o governo geral do Brasil e Tomé de Souza foi nomeado seu governador. Chegou a Salvador, em 1549, e construiu a primeira capital do país. Começou, desde então, o massacre das populações indígenas que se estende até a atualidade. Tomé de Souza orientava o seu governo a destruir as aldeias, matar e punir rebeldes, de maneira exemplar. Os governos gerais continuaram com esse genocídio e o de Mem de Sá ficou conhecido como o mais violento de todos do período, vangloriando-se da destruição das aldeias, através de incêndios e utilizando até balas de canhão contra as populações indígenas. Junte-se a essa situação a imposição cultural e religiosa trazida pelos portugueses, obrigando as comunidades indígenas às mudanças de hábitos culturais e espirituais consolidados há milênios.
Desde então, em toda a América e no Brasil, foi consolidado um modelo colonial com o predomínio e a lógica do terror das armas, da imposição religiosa e enfermidades não conhecidas até então no continente americano, sempre é bom lembrar nestes tempos de Pandemia, a exemplo da gripe, trazidas pela colonização europeia que dizimou milhões de índios em todo o nosso continente e em nosso País.
Aqui, a expansão do domínio colonial para o interior, a criação de gado e a exploração de ouro e de diamantes deram a tônica de conquista do território e a continuidade do extermínio das aldeias indígenas, iniciada na ocupação do litoral atlântico e que se expandiu com o ciclo da cana de açúcar.
São estes os fundamentos originais da sociedade brasileira, desde o período colonial, que continua no Império e na República, juntos com a escravização africana, os quais ajudam a entender como foi construída a sociedade brasileira, os conflitos e as contradições atuais.
A Constituição de 1988 consagrou o princípio de que os indígenas são os primeiros e naturais senhores da terra. Portanto, o direito deles à propriedade da terra independe do reconhecimento formal. A definição está no parágrafo primeiro do artigo 231 da Carta Magna: são aquelas terras “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”, observando, no artigo 20, que as terras indígenas são bens da União, sendo reconhecidos aos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
Ela estabeleceu também um prazo para a demarcação de todas as Terras Indígenas: 5 de outubro de 1993, o que não ocorreu até hoje. Assim, estas comunidades no Brasil continuam a lutar por seus direitos histórica e atualmente desrespeitados pelos governantes e uma boa parte da sociedade brasileira.
Segundo os resultados preliminares do IBGE (2010), nossa população indígena hoje é de 817.963 pessoas, das quais 502.783 vivem na zona rural e 315.180 habitam as zonas urbanas brasileiras. Vive a maioria de maneira precária, com muitos povos indígenas com suas terras ainda a serem demarcadas, em todo o território brasileiro.
Qual é a responsabilidade e os compromissos da sociedade brasileira frente à realidade atual das nossas comunidades indígenas? O que cada um de nós pode fazer para mudar esta realidade?
São questões a serem enfrentadas por todos os brasileiros e brasileiras se quisermos efetivamente superar esta atual realidade, em plena Pandemia.
Como dialogar e construir alternativas a esta realidade com a própria população indígena, respeitando a sua cultura e a sua maneira de ser e existir hoje no Brasil?
Os mecanismos constitucionais existentes e o modelo da FUNAI atendem às expectativas dessas comunidades indígenas? Como anda a escuta e o diálogo dos governos federal, estadual, municipal e da própria sociedade civil em relação a estas comunidades?
A realidade atual do Brasil é caótica frente à crise econômica e de saúde pública que estamos vivendo. Cenas de horror, de mortes por falta de leitos hospitalares, de oxigênio, de assistência médica em geral, inclusive na área privada, colocam, nesse segundo ano de Pandemia, a incapacidade dos Governos Federal, dos Estados e dos Municípios e da sociedade civil, de construir um programa consensual para o enfrentamento dos problemas urgentes desnudados pela Covid-19. As estatísticas de milhões de contaminados, chegando a 400 mil mortes, são espetacularização diariamente pelos meios de comunicação e continuam invadindo nossas casas.
O que podemos fazer?
O Governo Federal, principal responsável pela Política Nacional de Combate à Pandemia, não aponta caminhos para enfrentar efetivamente a crise sanitária que estamos vivendo, o que só faz agravar a situação. As falsas narrativas e os embates entre os entes federativos não resolveram e nem vão resolver a difícil realidade que estamos vivendo.
No Brasil, como sempre, os que mais precisam do Estado ficam abandonados à própria sorte. As comunidades indígenas, como a sociedade em geral, procuram reagir colocando a urgência dos problemas cotidianos já enfrentados anteriormente e os a serem enfrentados em razão da Pandemia. A Sociedade pode e deve ser cobrada no processo de construção de uma alternativa democrática a esta triste realidade brasileira, desnudada pela Covid-19.
As comunidades indígenas devem ser parceiras nesta construção. Qual deve ser o nosso diálogo com elas?
Elas têm muito a nos dizer em relação à natureza, à preservação da nossa biodiversidade, dos nossos rios, na alimentação, na música, na dança e na cultura brasileira em geral. É são fundamento no uso e na preservação dos nossos ativos naturais de um Brasil que pode e deve potencializar essas vantagens comparativas a favor de uma sociedade sustentável, com uma economia de baixo carbono, de inclusão social e de preservação da nossa exuberante natureza tropical, incorporando conhecimentos ancestrais em diálogo com outras culturas nacionais, apoiados no conhecimento cientifico e tecnológico a favor da própria comunidade indígena e de toda a sociedade brasileira.
Ainda é possível?
Os desafios são políticos, econômicos e sociais. A curto prazo, urge a realização de um Programa Nacional de Vacinação que, com a urgência devida, proteja a todos os brasileiros e brasileiras, ainda este ano, evitando assim o aumento vertiginoso do número de contaminados e mortos, como vem acontecendo desde o início da Pandemia, inclusive de maneira preocupante nas próprias comunidades indígenas. São questões imediatas a ser enfrentadas pelos que detêm mandatos, pela Federação e por toda a sociedade brasileira.
Portanto, é possível a construção de uma alternativa para enfrentar e superar os nossos desafios históricos e atuais, abrindo o diálogo necessário entre as forças democráticas, no caminho de uma pauta reformista que leve a um efetivo enfrentamento dos problemas econômicos, sociais e ambientais vividos pelas comunidades indígenas no Brasil.
Finalmente, há que se considerar a necessidade de uma visão sistêmica no processo de construção das políticas públicas no Brasil e no enfrentamento da própria questão indígena, considerando as suas especificidades culturais e regionais. Colocando como imperativo a escolha de prioridades, através de dialogo permanente entre as comunidades indígenas, os governantes e a sociedade em geral precisam garantir a implementação de políticas públicas voltadas para essas comunidades, articuladas às políticas públicas em geral, sob responsabilidade municipal, estadual e federal com foco na melhoria do bem-estar das comunidades indígenas e de toda a sociedade brasileira.
Os desafios econômicos, sociais e ambientais da sociedade brasileira devem ser enfrentados ampliando a nossa capacidade de diálogo e de construção de pactos políticos que avancem e consolidem a democracia brasileira no caminho de transformar a nossa injusta realidade política, econômica e social para uma governança que se quer democrática e realizadora das mudanças necessárias durante e pós-pandemia.
Assim, o enfrentamento da situação indígena e as suas especificidades devem ter visibilidade nacional e regional com a criação de mecanismos institucionais de acompanhar e avaliar permanentemente a realidade das comunidades indígenas no Brasil, fortalecendo essas comunidades nas relações entre si e os entes da Federação no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, desafiando os aborígenes e o poder público em geral à construção de novas relações entre os atores políticos, econômicos e sociais da Federação, na busca da sustentabilidade econômica, social e ambiental das comunidades indígenas como parte integrante da sociedade brasileira, considerando a nossa rica diversidade cultural e espiritual.
Seremos capazes?
*George Gurgel de Oliveira, professor da UFBa, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia.