vacinação
Luiz Carlos Trabuco Cappi: Mais dificuldades, mais diálogo
Uma surpresa a cada esquina barra investimentos e trava negócios
A economia brasileira é caracterizada por contrastes. Nas últimas semanas, esse paradoxo histórico ficou mais uma vez evidenciado. Por meio de 16 ofertas iniciais de ações, os IPOs, e títulos emitidos, empresas brasileiras captaram R$ 102 bilhões no primeiro trimestre, melhor resultado em mais de dez anos.
Atenta aos efeitos positivos do pacote trilionário de estímulos dos EUA e da retomada chinesa, a Bolsa recuperou perdas e alcançou o patamar de 120 mil pontos.
Em reforço a essa tendência, um novo ‘boom’ global das commodities beneficia o Brasil. O Banco Central projeta, em razão da alta na demanda e nos preços, superávit de US$ 2 bilhões nas contas externas em 2021, o que vai deixar o balanço de pagamentos do Brasil no azul.
Os agentes econômicos têm dados concretos para se sentirem otimistas.
Do lado do governo, o primeiro leilão do ano para concessões de aeroportos, estradas e ferrovias, a Infra Week, teve todos os seus 28 lotes arrematados. Na política monetária, inicia-se um ciclo de normalização, o que aponta para menos volatilidade dos ativos e redução da curva longa dos juros.
Esse é o caminho virtuoso. São tendências com valor estratégico, que apontam para o horizonte muito além da pandemia e das eleições de 2022.
No outro prato da balança, os dados negativos mostram o peso do desequilíbrio. O País é um dos líderes mundiais de óbitos pela covid-19. Deixamos a nona posição dos maiores PIBs do planeta para ocuparmos agora o 12.º lugar. No período de um ano, o real foi uma das quatro moedas que se desvalorizaram frente ao dólar, entre 31 pesquisadas pela FGV Ibre. O desemprego sobe, e a renda per capita caiu 4,8% em 2020.
Esse contraste é um fenômeno antigo da economia brasileira, muitas dificuldades imediatas e vantagens estratégicas que ancoram o otimismo de longo prazo e mitigam o pessimismo do presente.
Convivem um lado exuberante e desenvolvido com outro cercado pelas dificuldades. Sabemos crescer rápido. O que falta é equilibrar as desigualdades.
A forma de fazer convergir essas duas faces é o diálogo entre as instituições, insistir no convencimento. Antes de a pandemia da covid-19 atingir em cheio os indicadores econômicos e sociais, conseguimos avanços consistentes por meio do entendimento. Praticamente por consenso, o Congresso aprovou a reforma previdenciária.
O resultado, ao contrário do que professavam os céticos, não destruiu nosso sistema de proteção social, mas o modernizou e dinamizou. Quando mais reformas estruturantes eram ensaiadas, o vírus se espalhou pelo mundo e não parou mais. Agora, diante da dramaticidade do quadro atual, as urgências são outras, mas as soluções prosseguem assentadas nos pilares do diálogo, do respeito e da colaboração. Ouvir mais. Refletir mais.
É por meio da negociação política que, desde 1988, a partir da atual Constituição, o Brasil tem conseguido melhorar a qualidade de vida da sua população, o ambiente de negócios e a confiança nas instituições.
Dialogar passou a ser a forma de arte política mais elevada. Toda conduta no conceito do “quanto pior, melhor” nos fará fracassar como Nação. Quanto maiores as dificuldades, mais necessário intensificar a busca de convergências. Não podemos nos furtar a conversar com quem pensa diferente de nós.
Para que o debate avance, nada é mais importante, hoje, do que atender às necessidades básicas da população. Ou seja, alimentação, insumos hospitalares, vacina e emprego. Fora dessa agenda, até mesmo as reformas podem ter seu timing redefinido.
Sem baixar a temperatura institucional e política, dançamos à beira do abismo. A agenda básica começa pela busca da serenidade entre os protagonistas dos Três Poderes. Uma surpresa a cada esquina barra investimentos e afeta os negócios, assusta. É preciso tranquilidade e previsibilidade para atrair capital. Um pouco de paciência evita impasses desnecessários.
É hora de insistir na tempestividade e na resiliência.
*PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS
O Globo: Covid-19 - Prioridade da vacinação de quilombolas, de ribeirinhos e de outros grupos é ignorada em nove estados
Estudo mostra ainda que menos de 60% dos indígenas aldeados já receberam a primeira dose e que menos de 4% dos quilombolas foram imunizados
Cíntia Cruz e Julia Noia, O Globo
RIO — Levantamento do GLOBO com base na pesquisa "Planos de vacinação nos estados e capitais do Brasil", do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19, nove estados não colocaram pelo menos um grupo entre quilombolas, população ribeirinha, em situação de rua e privada de liberdade como prioritários na imunização contra o Sars-CoV-2. Juntos, eles correspondem a mais de 1,7 milhão da população do país e integram pelo menos 6.023 comunidades.
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Os quatro grupos constam como prioritários na última versão do Programa Nacional de Imunizações (PNI), de 15 de março. Entretanto, há falta de transparência quanto ao período em que essas populações devem ir aos postos se vacinar. Com a recente alteração no plano, que adianta a vacinação de forças de segurança e profissionais da educação, a população privada de liberdade e a que está em situação de rua, involuntariamente expostas ao vírus, ficam ainda mais atrás na fila de vacinação.
Os quilombolas não são grupo prioritário em Roraima, Acre e Alagoas. Já ribeirinhos estão fora dos planos do Pará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Sergipe e Alagoas. A população privada de liberdade não consta como preferencial em Alagoas. Já Pará e Alagoas não colocaram as pessoas em situação de rua como prioridade. Na maioria dos estados do país, esses grupos são prioridade no papel, mas não os planos não informam quando elas serão imunizadas.
O estudo do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19 mostra ainda que menos de 60% dos indígenas aldeados receberam a primeira dose do imunizante, embora estejam na primeira fase das campanhas em todos os estados. No caso dos povos de comunidades quilombolas, que figuram entre os primeiros a serem vacinados na maior parte dos estados, a estatística é ainda mais alarmante: menos de 4% foram imunizados.
Desigualdade e violência
Responsável pela pesquisa do Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19, Felipe Freitas explica que a carência de vacinação desses grupos reflete a desigualdade e a violência que as populações sofrem, inerentes à história brasileira.
— O Brasil é um país violento, e ainda mais em relação a esses públicos: negros, quilombolas, indígenas, pessoas em situação de rua, ribeirinhos. A gestão da pandemia tem revelado a radicalização desse processo de autorização da morte desses grupos — diz.
Paulo de Paiva, de 61 anos, vive num quintal com nove casas que abrigam 19 adultos e 19 crianças. O terreno fica no quilombo Maria Conga, em Magé, Baixada Fluminense. A imunização dos quilombolas, que seria do dia 12 ao 16 de abril, foi interrompida no dia 15 por falta de doses.
— Estava marcado para o dia 16, mas as doses acabaram. Tenho muito medo de pegar essa doença por causa da minha idade. A comunidade aqui é grande, muitas crianças. As pessoas saem para trabalhar e podem acabar trazendo o vírus — conta Paulo, morador do quilombo há 30 anos.
Aos 74 anos, o bombeiro hidráulico Lourival Ribeiro já poderia ter sido vacinado em seu município, mas preferiu esperar pelas doses destinadas aos quilombolas. Hipertenso, Lourival lamenta a falta do imunizante na comunidade e criticou a organização do poder público:
— Faltou informação de fora para saber o número da população do quilombo. Foi tudo muito rápido. Em três dias, não dá para vacinar um lugar com tantas pessoas.
A presidente da Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), Ivone Bernardo, diz que os três quilombos no município de Magé têm, ao todo, 1.987 pessoas acima de 18 anos — idade mínima para a população quilombola receber a dose do imunizante. Mas o Ministério da Saúde mandou uma quantidade muito menor:
— As vacinas que estão chegando não estão na quantidade correta e a prefeitura de cada município precisa avisar ao ministério. Mandaram 155 doses de vacinas para Magé, que tem três quilombos certificados. Metade da população do Maria Conga ainda não foi vacinada.
Em nota, a Prefeitura de Magé afirmou o cadastro foi apresentado diretamente pelos quilombos ao estado e que recebeu apenas 155 doses, 7,8% do necessário para imunizar os quilombolas do município.
Biko Rodrigues, coordenador executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), afirma que o governo federal utilizou dados defasados para calcular a quantidade de doses:
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— O número com o qual o estado brasileiro está trabalhando está muito abaixo do número de famílias quilombolas que existem no país hoje. Ele trabalha com 2 milhões de doses para quilombolas e, pela estimativa da Conaq, esse número é quatro vezes maior, com dados que temos das secretarias estaduais — diz.
Rodrigues explica que o governo se baseou em dados de famílias inscritas no CadÚnico e beneficiárias do Bolsa Família., mas argumenta que há quilombolas que sequer têm registro civil.
— Existem comunidades ainda sem registro, pessoas em território quilombola que ainda não têm certidão de nascimento, que não têm a primeira identidade. Isso são muitos. Trabalhamos com número de sete a dez milhões de pessoas. Por causa da omissão do estado brasileiro, muitas pessoas quilombolas vão ficar sem vacina — avalia.
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Já o presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Hugo Leonardo, afirma que a vulnerabilidade dos grupos privados de liberdade é um dos principais fatores que justifica a prioridade na fila da vacina. Ele lembra que eles não têm condição de realizar o isolamento social e, na maioria das unidades, não tem acesso a equipamentos de proteção, como máscaras e sabonetes.
— Estamos falando de cuidados mínimos para evitar o contágio — afirma.
Na Região Norte, a diretora-executiva da Oficina Escola Lutheria da Amazônia (OELA), Jéssica Gomes, aponta que houve falta de logística na compreensão do movimento das marés na região e a quantidade de doses ofertadas para a população ribeirinha, que vivem ao longo do curso dos rios.
— Desde março, temos novos óbitos de pessoas ribeirinhas que já deveriam ter sido imunizadas — afirma Gomes.
Com a vacinação, a rotina de Alexandre Pankararu, de 46 anos, indígena morador da cidade de Jatobá, no sertão de Pernambuco, é marcada por frustração, isolamento e medo de pegar a doença. É que, por não morar em aldeia, não foi contemplado dentro do grupo prioritário do Programa Nacional de Imunizações. Apesar de morar na zona urbana há dez anos, ele e sua esposa, da aldeia Caiuá, estão construindo uma casa para retornar à vida aldeada em um mês, mas, por não estarem imunizados, sentem-se afastados dos rituais, do cotidiano e da família, já vacinados contra a Covid-19:
— É um puro descaso. Eu acho que faz parte de um plano de genocídio do estado. Se a gente fosse tão afastado, morasse a dois mil quilômetros, mas eu moro a um quilômetro. A gente vive aqui dentro da aldeia, só não dormimos aqui. Por que não podemos solicitar a vacina? Nós (desaldeados) nos sentimos marginalizados. Também não há a sensação de pertencimento porque não podemos participar dos nossos rituais — lamenta Xandão, como é conhecido na aldeia.
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Diante disso, a Associação de Indígenas Não Aldeados Karaxuwanassu, de Pernambuco, enviou, desde o começo da vacinação no estado, ofícios a prefeituras locais, deputados estaduais, organizações voltadas para a causa indígena, para o Ministério da Saúde (MS) e entraram com ação no Ministério Público Federal (MPF) para questionar o motivo de não terem sido incluídos no calendário prioritário de vacinação. Segundo uma liderança da associação, o MS foi questionado no dia 3 de março, mas não responderam à demanda. Eles anda protocolaram duas ações no MPF, nos dias 3 de março e 14 de abril, que foram encaminhadas para investigação na Procuradoria da República de Pernambuco.
No dia 20 de abril, a associação, por meio da Defensoria Pública de Pernambuco, retornou com a demanda feita junto ao Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) para que o grupo fosse incluído como prioritário. Em resposta, o DSEI encaminhou o pedido ao Ministério da Saúde que, no dia 7 de abril, enviou ofício ao Governo de Pernambuco para especificar a quantidade de indígenas em zonas urbanas por município da federação e, dentro dessa população, quais não teriam acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Respostas
A Prefeitura de Magé disse que recebeu uma nota técnica normativa do estado do Rio de Janeiro para realizar a vacinação da comunidade quilombola, que apresentava um público de 140 pessoas no Quilombo do Feital, 597 no Quilombo Kilombá e 1.250 no Quilombo Maria Conga, totalizando 1.987 quilombolas. O cadastro, segundo o município, foi apresentado diretamente dos quilombos ao estado, e a prefeitura recebeu, via nota técnica do governo federal, as informações sobre o público a ser vacinado nos quilombos. Magé recebeu 155 doses, 7,8% das doses necessárias para imunizar os quilombolas do município, informou a prefeitura.
O governo municipal disse ainda que criou um calendário, fez ampla divulgação e criou uma agenda para vacinação em cada espaço dos quilombos, mas que interrompeu a imunização porque as doses destinadas aos idosos, que foram usadas nos quilombolas, não têm previsão de serem repostas, pois houve um conflito de informações em que o Ministério da Saúde aponta uma meta de vacinação do público quilombola de 155 pessoas, com envio de doses somente para essa quantidade. A prefeitura disse que aguarda retorno da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro afirmando que serão enviadas as doses para os quilombolas.
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O Ministério da Saúde informou que a estimativa inicial para definição do grupo prioritário “Povos e Comunidades tradicionais Quilombolas”, que foi inserido no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19 (PNO), foi realizada de acordo os dados disponíveis pelo IBGE 2010, população de 1.133.106. A pasta ressaltou que o plano é dinâmico e está em constante atualização, e que está revisando o levantamento dos dados relativos a esta população, junto aos estados e municípios.
A Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro informa que não há população ribeirinha no estado e que a população em situação de rua faz parte da 4ª fase de imunizações e serão vacinados assim que as doses destinadas aos grupos desta fase forem distribuídas pelo Ministério da Saúde. Com relação aos povos quilombolas, disse que o PNI prevê 15 mil pessoas desta população a serem vacinadas no estado do Rio. A secretaria ressaltou que parte dos quilombolas foi imunizada nos grupos por faixa etária, de acordo com a base populacional usada pelo PNI. Disse ainda que, se houver subdimensionamento desta população, as doses serão garantidas pelo Ministério da Saúde, a partir de uma comunicação ao PNI.
A Secretaria de Estado da Saúde de Alagoas informa que segue o Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19 e que, em Alagoas, estão contemplados os quilombolas, indígenas, população privada de liberdade (já vacinados e/ou em processo de vacinação), além das populações em situação de rua e ribeirinha, que deverão ter o processo de imunização concluído ou iniciado em outras fases, a partir do envio de novas remessas de imunizantes por parte do Ministério da Saúde.
Sergipe informou que a comunidade ribeirinha está sendo vacinada de acordo com o cronograma de vacinação da população em geral e que, segundo nota técnica do Ministério da Saúde, Sergipe não é contemplado com vacinas direcionadas às comunidades ribeirinhas.
Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Pernambuco afirmam que não têm população ribeirinha. A Secretaria de Saúde do Estado de Roraima e o Governo do Acre disseram que não têm comunidades quilombolas.
Os estados de Pará e Rio Grande do Sul não responderam.
*Estagiária sob supervisão de Emiliano Urbim
Cristovam Buarque: Os fora-fila
Todos os dias, milhões de brasileiros perdem horas preciosas em filas de ônibus, e reclamam corretamente dos oportunistas fura-fila. Poucos percebem os fora-fila: os que usam carros privados e os que não têm dinheiro nem vale-transporte. Há séculos, muitos brasileiros fazem fila para obter o que precisam, enquanto outros não têm direito nem mesmo de esperar em fila, por falta absoluta de dinheiro; enquanto outros não precisam se submeter a filas porque têm muito dinheiro.
Por causa das ineficiências econômicas, a palavra “fila” caracteriza o dia a dia dos brasileiros, mas por causa da injustiça social não se percebe os que estão fora das filas, de um lado e outro da escala de rendas. Alguns porque não precisam se submeter a elas, graças a privilégios e dinheiro, outros porque não têm o direito de entrar nelas. No meio, imprensados, os da fila, ignorando os extremos. Nós nos acostumamos a ver com naturalidade os que não precisam e ainda mais os que não conseguem entrar nas filas, por tratá-los como invisíveis.
No setor da saúde, nos indignamos com os que tentam furar a fila para tomar vacina, mas não percebemos a injustiça quando furam a fila ao usar dinheiro para o atendimento médico de um pediatra para o filho, de um dentista e de profissionais de todas as outras especialidades que não estão disponíveis no SUS, com a urgência necessária. Apesar do nome, o sistema nacional de saúde não é único: de um lado, tem o SUS com suas filas; e, do outro, o SEP - Sistema Exclusivo de Saúde - sem fila para os que podem pagar. Todos condenamos os fura-fila do SUS para tomar vacina, mas todos aceitamos que se fure a fila nas demais especialidades médicas, inclusive cirurgias, por meio do uso do dinheiro. Em alguns casos, há reclamação quando a fila se organiza por um pequeno papel numerado, mas não se protesta quando, perto dali, o atendimento é imediato, porque no lugar do papel com o número da fila usa-se papel moeda. Aceita-se furar fila graças ao dinheiro. Nem se considera como fura fila. São os fora-fila, aceitos por convenção de que o dinheiro pode comprar saúde.
Na moradia, alguns entram na fila do programa Minha Casa Minha Vida; outros não precisam, compram diretamente a casa que desejam e podem; outros também não entram na fila, porque não têm as mínimas condições de financiamento.
O mesmo vale para a educação. Em função do coronavírus, o Brasil descobriu que algumas boas escolas, em geral pagas e caras, com ensino remoto, computadores e internet em casa, permitem que alguns cheguem ao ENEM com mais possibilidade de aprovação do que outros. Apesar de que a aprovação é conquistada pelo mérito do concorrente, os aprovados se beneficiaram da exclusão de muitos concorrentes ao longo da educação de base.
A desigualdade na qualidade da escola desiguala o preparo entre os candidatos, como uma forma de empurrar alguns para fora e outros para a frente da fila. De certa forma, alguns furaram a fila para ingresso na universidade, por pagarem uma boa escola ainda na educação de base. E não há reclamação porque os fora da fila são invisíveis, porque não concluíram o ensino médio, ou concluíram um ensino médio sem qualidade que não lhes deu condição sequer de sonhar fazer o ENEM.
Tanto quanto os que não podem pagar o transporte público não entram na fila do ônibus, os analfabetos (12 milhões de brasileiros) não entram na fila do ENEM para ingresso na universidade. Foram excluídos da formação, por falta de oportunidade para desenvolver o talento no momento oportuno da educação de base, e, por isso, ficam impedidos de disputar, por mérito, uma vaga na universidade.
Ninguém fura fila para chegar à seleção brasileira de futebol, porque todos tiveram a mesma chance. A seleção é pelo mérito, graças ao fato de que a bola é redonda para todos, independentemente da renda.
Temos a preocupação de assegurar os mesmos direitos para obter vacina, não o mesmo direito para a qualidade e a urgência no atendimento de saúde e de educação, independentemente da renda e do endereço da pessoa. Nem ao menos consideramos que há injustiça em furar fila usando dinheiro para ter acesso à educação e à saúde de qualidade. É como se fosse normal furar fila por se ter muito dinheiro e normal ficar fora da fila por falta total de dinheiro. No meio, ficam os que, por pouco dinheiro, ficam na fila e se indignam com os que tentam desrespeitar a ordem, sem atentar para os fora da fila nos carros, ou os fora da fila caminhando. Os primeiros aceitamos pelas leis do mercado, os outros tornamos invisíveis.
*Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília
Fernando Gabeira: As voltas que a vida dá
Bolsonaro investiu contra a vida liderando a maior política de destruição ambiental do Brasil moderno. E investiu de novo contra a vida negando a pandemia do coronavírus.
A vida começa agora a cobrar de forma combinada os crimes de Bolsonaro. Numa só semana, convergiram a Cúpula de Líderes sobre o Clima e a CPI da Covid, eventos que lembram a Bolsonaro que sua própria vida ficará para sempre marcada por seu desprezo à vida das florestas e dos bichos e pelo sacrifício humano envolto na tese da imunização de rebanho.
Por mais que psicólogos mergulhem no labirinto da mente de Bolsonaro, nenhuma explicação atenua o dado objetivo de tantas árvores derrubadas, tantos animais carbonizados, tantas pessoas mortas pelo coronavírus.
A economia explica apenas parcialmente. Bolsonaro acha que é preciso tirar todos os recursos da natureza, independentemente do rastro de destruição. Da mesma forma, ele acha que a economia precisa funcionar, independentemente das pessoas que o vírus consome.
A verdade é que Bolsonaro não se importa tanto com a economia, não estuda o tema e, ao se eleger, designou um ministro para responder a todas as perguntas, a quem chamou de Posto Ipiranga. O que move o presidente não chega a ser, portanto, nem uma teoria econômica, por mais grosseira e obsoleta que possa parecer.
Tanto na destruição das florestas como na tragédia humana diante do vírus, o que move Bolsonaro é sua vontade de permanecer no poder.
A floresta interessa na medida em que garanta os votos dos seus predadores; as pessoas podem morrer para que uma suposta normalidade econômica garanta a reeleição.
É muito conhecida a literatura sobre essa obsessão com o poder, a necessidade de respeito e até admiração que os poderosos obtêm quando se revestem dessa condição que lhes parece mágica.
Mas o caso de Bolsonaro é singular. Existe uma coerência em todas as suas escolhas. A morte é a grande aliada desde a opção destrutiva no ambiente e na pandemia, passando pela difusão das armas, chegando até a detalhes como suprimir multas de quem se descuida da cadeirinha do bebê no carro.
Essa aliança com a morte pode ser também o resultado de uma grande frustração com a própria vida. Mas, de novo, deixo isso aos psicólogos ou àqueles que preferem combater Bolsonaro no plano da sanidade mental.
Por meio de grandes episódios como a Cúpula do Clima e a CPI da Covid, entretanto, é possível compreender o antagonismo de Bolsonaro com todos todos os tipos de vida no planeta.
E refletir sobre isso. Não importa a Bolsonaro se o país se tornar um deserto, muito menos se os que ele considera mais fracos forem tombando pelo caminho.
Nunca na história moderna do país a indiferença diante da realidade política poderá ter consequências tão devastadoras para nosso futuro.
A Cúpula do Clima serve para mostrar a importância da luta da Humanidade para a sobrevivência das novas gerações e a contradição de Bolsonaro com essa gigantesca reação vital.
Ali, ele apenas mentiu, supondo que possa enganar o mundo. Seu objetivo sempre foi desmontar a fiscalização, acabar com a “indústria da multa”, liberar o garimpo e enfraquecer os povos indígenas.
A CPI da Covid servirá para revelar aquilo que muitos de nós já sabemos. Mas pode fazê-lo de uma forma séria e pedagógica para que todos compreendam a responsabilidade de Bolsonaro.
Essas duas vertentes, a ambiental e a sanitária, sempre estiveram aí enquanto, de uma certa maneira, Bolsonaro gritava “Viva la muerte”, como o oficial do Exército de Franco.
É estranho que esse grito tenha dominado um país mundialmente conhecido pela vitalidade. Imperdoável, no entanto, que ele possa ecoar em 22, o prazo final para o encerramento dessa fúnebre passagem da História do Brasil.
Com Bolsonaro, país aumenta risco de ficar fora de negociações da política externa
Avaliação é do professor no Insper Leandro Consentino, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de abril
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
O Brasil corre o risco de ficar de fora das principais mesas de negociações por conta da política externa do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), isolando-se da futura governança global. O alerta é do doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) Leandro Consentino, professor no Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).
Estados devem reconstruir os organismos internacionais quando a pandemia da Covid-19 tiver fim, segundo Consentino. Ele publicou artigo de sua autoria na revista Política Democrática Online de abril, produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania. O acesso é gratuito no portal da entidade.
Veja versão flip da 30ª edição da Política Democrática Online: abril de 2021
Bacharel em Relações Internacionais e também professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, o analista de política externa diz que o país interrompeu um "círculo virtuoso” com o mundo após a vitória de Bolsonaro, em outubro de 2018.
Além disso, segundo artigo de Consentino na revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), a situação piorou ainda mais com a subsequente nomeação de Ernesto Araújo para o cargo de ministro de Relações Exteriores.
“Com uma visão que preconizava completo alinhamento com os Estados Unidos, à época governados por Donald Trump, e outros países governados por populistas conservadores, a política externa brasileira esposou a antítese do paradigma de Azeredo da Silveira, pautando-se por um ideologismo irresponsável”, analisa o autor do artigo na revista mensal da FAP.
Veja todos os autores da 30ª edição da revista Política Democrática Online
“Governo de turno”
De maneira cada vez mais alheia aos anseios brasileiros, segundo Consentino, “o governo de turno prefere privilegiar suas convicções políticas e ideológicas em detrimento do interesse nacional”.
Assim, conforme acrescenta, o governo coloca em risco os esforços de política externa, conquistados nas últimas décadas e prejudicando a economia e a sociedade brasileira em um momento tão grave como o atual.
“Foi dessa forma que ficamos para trás na corrida pelas vacinas e que tivemos os insumos atrasados por algumas semanas, perdendo centenas de vidas pelo caminho”, lamenta o professor no Insper.
Isolamento
Dessa forma, destaca o autor do artigo na revista da FAP, quando a pandemia tiver fim e os Estados decidirem a reconstrução de organismos internacionais pautados na questão sanitária e na recuperação da economia, o Brasil pode não ser convidado às principais mesas de negociações, isolando-se da futura governança global. “Eis o risco que ora enfrentamos e que precisamos evitar a todo custo”, afirma.
A íntegra da análise de Consentino pode ser vista na versão flip da revista Política Democrática Online de abril. A publicação também tem entrevista exclusiva com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, artigos de política nacional, política externa, cultura, entre outros, e reportagem especial sobre avanço de crimes cibernéticos.
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Fonte:
O Globo: Pazuello será preparado pelo Planalto para enfrentar CPI da Covid e blindar Bolsonaro
Governo treina ex-ministro da Saúde, aciona José Sarney, escala equipe e levanta documentos para defender atuação do presidente na pandemia
Jussara Soares, O Globo
BRASÍLIA - O Palácio do Planalto estruturou uma operação de guerra para enfrentar a CPI da Covid no Senado. O plano envolve preparar o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello para responder aos questionamentos dos parlamentares, acionar o ex-presidente José Sarney, montar um comitê com representantes de diferentes ministérios e levantar um arsenal de documentos sobre a ação do governo na pandemia. A principal estratégia por trás dessa investida é blindar o presidente Jair Bolsonaro — e a sua pretensão de ser reeleito em 2022 —, desviando o foco das atenções para a atuação de estados e municípios.
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Considerado o principal alvo da comissão, Pazuello será preparado pelo governo para encarar senadores opositores. A ideia é que o ex-ministro da Saúde, que deve assumir um cargo no Planalto, dedique o seu tempo em Brasília a se debruçar sobre uma série de documentos, dados e informações oficiais que reforcem a narrativa de que o governo não foi omisso na pandemia nem na crise do oxigênio em Manaus — o colapso na capital do Amazonas já levou Pazuello a responder a uma ação por improbidade administrativa apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF).
O general da ativa terá à sua disposição um grupo de trabalho formado por integrantes de diferentes ministérios — que fornecerá subsídios para defender as ações do governo. Esse é mais um sinal de apoio de Bolsonaro, que, nos últimos dias, levou o militar a duas viagens, uma ao interior de Goiás e outra a Manaus.
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Para dar suporte a Pazuello e a outros integrantes do governo que serão convocados pela CPI, o Planalto estruturou um comitê de crise formado por representantes de diversas pastas, sob o comando da Casa Civil, chefiada pelo ministro Luiz Eduardo Ramos. O grupo de trabalho criado para enfrentar a comissão da pandemia foi inspirado numa força-tarefa formada por Ramos durante a Olimpíada no Rio, em 2016, com a participação de diferentes setores, da Polícia Militar à Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb), que compartilhavam entre si informações estratégicas sobre o evento esportivo. A ideia é implementar a mesma tática militar para encarar os questionamentos do colegiado no Senado.
O comitê já traçou um plano de trabalho, registrado num organograma com os principais focos de atuação, e tem como meta se reunir semanalmente no Planalto, compilando informações de diferentes ministérios e elaborando um roteiro que será utilizado para integrantes do governo se defenderem na CPI. Dentre os participantes, estão servidores da Saúde, Defesa, Economia, do Itamaraty, Comunicações, da Advocacia-Geral da União (AGU), Controladoria-Geral da União (CGU) e Secretaria de Governo, entre outros. Em uma recente reunião no Planalto, o presidente Bolsonaro já havia alertado que os auxiliares se preparassem porque muitos seriam chamados a prestar depoimento.
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Na última sexta-feira, o coronel Élcio Franco, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde, foi nomeado como assessor especial da Casa Civil. Antes mesmo de ser oficializado no cargo, o militar já vinha frequentando o Planalto diariamente. Segundo apurou O GLOBO, ele ficará dedicado a reunir as informações necessárias para responder aos questionamentos da CPI. A expectativa, segundo um integrante do alto escalão, é que, se o governo conseguir fazer “o trabalho que tem que ser feito”, poderá usar a CPI como “palco” para divulgar as ações do Executivo.
Em outra frente, o Planalto vem tentando minar o poder do senador Renan Calheiros (MDB-AL), favorito para assumir a relatoria da CPI. Nos últimos dias, um ministro do Palácio do Planalto entrou em contato com José Sarney para marcar um encontro. O objetivo dessa investida é convencer o ex-presidente da República a conter o seu colega de partido. Sarney e Renan já comandaram o Congresso em diferentes períodos e mantêm uma relação de proximidade. Mas interlocutores de ambos veem a iniciativa com pouca chance de êxito. O ex-presidente tem demonstrado pouca disposição para as articulações políticas envolvendo o Planalto, enquanto o senador sinaliza a interlocutores que não abrirá mão fácil da relatoria, apesar da ofensiva do governo. Na visão de um conselheiro de Bolsonaro, Renan Calheiros é uma opção mais palatável como relator do que os senadores Randolfe Rodrigues (Rede-AP) ou Humberto Costa (PT-PE).
Renan Calheiros: Senador volta aos holofotes e pressiona o governo
Em entrevista ao GLOBO, Renan disse que Bolsonaro “errou e se omitiu na pandemia”. Preocupado, o presidente ligou para o filho do parlamentar, o governador de Alagoas, Renan Filho (MDB). Os dois se conheceram na Câmara, quando ainda eram deputados federais e jogavam juntos num time de futebol de parlamentares. Na conversa telefônica, Bolsonaro foi direto ao ponto. Disse ao governador que achava que não era o momento de uma CPI, argumentando que o foco do Executivo deveria estar concentrado no combate à pandemia. Renan Filho respondeu que o pai é experiente e sereno e que, portanto, o presidente deveria ficar tranquilo. O governador disse que o senador seria incapaz de cometer uma injustiça, pois já foi alvo de investigações que considera indevidas.
Reforço na articulação
Para a missão de desarmar a CPI, o presidente convocou ainda o ministro Onyx Lorenzoni, da Secretaria-Geral da Presidência. Deputado federal eleito cinco vezes pelo DEM do Rio Grande do Sul, Lorenzoni integrou as CPIs da Petrobras, dos Maus-Tratos de Animais e dos Correios, da qual foi sub-relator, entre outras. A ideia é que o ministro use a experiência de quem já atuou como inquiridor para antever a estratégia dos membros da comissão e preparar Pazuello para enfrentar os questionamentos de senadores. O Planalto quer evitar que o ex-ministro se desestabilize diante da pressão. Lorenzoni também deve assumir uma parte da articulação política na CPI e já iniciou contato com parlamentares.
Repetição: Sem máscara, Bolsonaro volta a causar aglomeração no Distrito Federal
Opiniões sobre as falhas na articulação já foram tornadas públicas por governistas: em entrevista ao GLOBO, o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, disse que o “governo perdeu o timing na indicação para a CPI”. Membro titular da CPI da Covid, o vice-líder do governo no Senado, Marcos Rogério (DEM-RO), também criticou a atuação do Palácio do Planalto: para ele, faltou “um pouco mais de articulação”.
Fernando Canzian: Fenômeno dos anos Lula, classe C afunda aos milhões e cai na miséria
Mais de 30 milhões deixam classificação; perspectiva para 2021 é de mais perda de renda nas classes D e E
Maior novidade da paisagem econômica brasileira no início deste século, a chamada classe C está sendo empurrada rapidamente de volta às classes D e E.
Ou, o que é pior, indo direto para a miséria pelas consequências da Covid-19 e da desorganização das políticas de mitigação da pandemia do governo Jair Bolsonaro (sem partido).
Pesquisas de diferentes órgãos revelam não só que dezenas de milhões de brasileiros retrocedem a situações mais precárias desde o ano passado mas que suas vidas podem continuar piorando em 2021.
Enquanto classes mais favorecidas começam a estabilizar a renda ou a obter ganhos, as classes D e E —cada vez mais numerosas— devem amargar nova queda de quase 15% em seus rendimentos neste ano.
Isso não só aumentará a desigualdade social brasileira mas retardará a recuperação econômica.
Mais pobre, a gigantesca população de baixa renda consumirá menos, exigindo menos investimentos e contratações de novos empregados pelo setor produtivo.PUBLICIDADE
Com a paralisação de muitas atividades em 2020 e a interrupção do auxílio emergencial em dezembro —só retomado em abril, com valores bem menores—, milhões de brasileiros estão despencando diretamente da classe C para a miséria.
Em 2019, antes da pandemia, o Brasil tinha cerca de 24 milhões de pessoas na pobreza extrema, ou 11% da população, vivendo com menos de R$ 246 ao mês. Agora, são 35 milhões, ou 16% do total, segundo a FGV Social com base nas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios Contínua e Covid-19.
Entre esses novos participantes da pobreza extrema, muitos não se encaixam no clássico perfil do miserável brasileiro —oriundo de famílias muito pobres, desestruturadas e de baixíssima escolaridade.
A família de Noemi de Almeida, que estudou até o primeiro colegial, é uma das que fizeram um percurso rápido, e sem escalas, da classe C direto para a miséria.
Com renda domiciliar de quase R$ 4.000 antes da pandemia, ela, o marido e duas filhas agora vivem de doações para comer e moram em um terreno invadido no Jardim Julieta, na zona norte de São Paulo.
Ali, com redes de água e luz irregulares, ao lado de centenas de casas improvisadas, temem, dia e noite, acabar despejados e sem ter para onde ir.
Antes da pandemia, Noemi vendia quentinhas a alunos de uma faculdade na Vila Maria enquanto o marido trabalhava como garçom.
Sem aulas e com o fechamento do comércio, ambos ficaram sem renda, não tiveram mais como pagar o aluguel e agora ocupam, com outras 2.000 pessoas, a área invadida em meados de 2020.
Com os filhos longe da antiga escola, o casal tenta obter alguma renda vendendo água e refrigerantes. “Tem dias que ganho R$ 30. Outros, que não entra nada”, diz Noemi.
A poucos metros dela, Ingrid Frazão, que concluiu o ensino médio e que conseguia com o marido, até a pandemia, cerca de R$ 3.000 mensais, agora vive na mesma ocupação e depende, para se alimentar, de doações e de um sopão distribuído nas redondezas.
Antes o casal se sustentava com empregos formais (ela, faxineira; ele, instalador de alarmes) e conseguia bancar aluguel de R$ 700 mensais na região do Parque Edu Chaves, também na zona norte paulistana. Hoje, não têm a menor perspectiva de sair de onde estão.
No começo, a ocupação iniciada pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) no Jardim Julieta tinha sido organizada para manter terrenos de 4,5 metros de frente por 9 metros de profundidade.
Mas a demanda da população foi tanta que eles foram encolhidos para 4,5 metros por 4,5 metros para acomodar mais gente. Segundo Valdirene Ferreira, uma das organizadoras do local, pessoas não param de chegar e há filas para tentar acomodá-las.
De acordo com a FGV Social, quase 32 milhões de pessoas deixaram a classe C desde agosto do ano passado, ápice do pagamento do auxílio emergencial pelo governo Bolsonaro, em direção a uma vida pior.
A classe E, com renda domiciliar até R$ 1.205, segundo os critérios da FGV Social, foi a que mais inchou: cresceu em 24,4 milhões de pessoas. Já a classe D (renda entre R$ 1.205 e R$ 1.926) aumentou em 8,9 milhões.
Embora o Brasil não possua uma classificação oficial para delimitar classes sociais, algumas dessas tentativas, como da FGV Social e da consultoria Tendências (ver quadro), enquadram as famílias de Noemi de Almeida e Ingrid Frazão —assim como outras encontradas pela Folha no Jardim Julieta e em ocupações no centro de São Paulo— como ex-participantes da classe C.
Mesmo usando parâmetros diferentes, ambas as classificações revelam o mesmo movimento: encolhimento da classe C, cuja expansão ganhou fama no governo Lula (2003-2011), e, agora, o inchaço acelerado das classes D e E —a última na estratificação e que engloba os mais pobres.
Marcelo Neri, diretor da FGV Social, compara a um “terremoto” a mudança brusca de patamar sofrida pela classe C desde o início da pandemia.
Em sua opinião, o auxílio emergencial foi muito mal calibrado: generoso demais em 2020 e insuficiente agora, quando a pandemia faz mais mortos e obriga estados e municípios a interromper atividades.
No auge do pagamento do auxílio, em agosto do ano passado, 82% das pessoas que eram consideradas muito pobres (renda per capita abaixo de R$ 246) um ano antes deixaram de sê-lo momentaneamente —para logo depois voltar à miséria. Em muitos casos, encontram-se hoje em situação pior do que antes.
“O governo acabou produzindo muita instabilidade, o que é péssimo, em particular, para os mais pobres”, diz Neri. “A generosidade de 2020 mostrou que o governo não foi sábio, pois agora não tem dinheiro para socorrer os que mais precisam em um momento muito difícil.”
No ano passado, o auxílio emergencial foi pago entre abril e dezembro empregando R$ 293 bilhões (R$ 600 ao mês inicialmente, e depois R$ 300, a 66 milhões de pessoas).
Mas a nova rodada deste ano tem previsão de duração de só quatro meses e de somar R$ 44 bilhões —15% do total de 2020 (pagando R$ 250, em média, a 45,6 milhões de pessoas).
O auxílio emergencial menor mais a lentidão na vacinação contra a Covid-19 no Brasil por falta de planejamento federal devem redundar em recuperação econômica lenta, que afetará sobretudo os mais pobres, ampliando a desigualdade.
Segundo Lucas Assis, economista da Tendências, a massa de rendimentos (salários, Previdência, programas sociais, etc.) das classes D e E deve encolher 14,4% neste 2021.
Já a da classe A (empresários, funcionários públicos, etc.) pode crescer 2,8%, sobretudo por causa da recomposição das margens de lucro que os empregadores vêm perseguindo.
Com menos renda disponível e cada vez mais numerosas, as classes D e E, que normalmente gastam imediatamente quase tudo o que ganham, não devem funcionar como grandes propulsoras da atividade econômica neste ano.
“Pior remuneradas, ainda mais informais do que antes e diante da inflação de alimentos e combustíveis, essas parcelas da população terão pouca renda disponível”, afirma Assis.
Outra pesquisa, da consultoria IDados e publicada pela Folha, mostrou que oito em cada dez famílias com rendimento mensal superior a R$ 5.225 também perderam renda no último trimestre de 2020, na comparação com o mesmo período de 2019.
Diante da realidade dos baixos rendimentos do Brasil, no entanto, essas famílias podem ser consideradas como pertencentes às classes média, média-alta e alta —uma minoria, portanto, no país.
Por isso é que preocupam os efeitos da rápida degradação das condições da numerosa classe C, pois considera-se crucial que ela faça o caminho de volta para que o país engate um ritmo de crescimento mais acelerado.
Ricardo Melo: O golpe está desenhado
Delinquente do Planalto anuncia que 'nosso Exército' está pronto para tomar as ruas
Jair Bolsonaro já se comprovou um caso de Código Penal, psiquiatria, mitomania, alucinação e o que mais seja. Detalhe: chegou ao Planalto com o apoio do capital gordo, da mídia oficial e oficiosa, do Judiciário complacente e de um Congresso sedento de verbas do povo.
Nunca é bom desdenhar de criaturas como essas. Parecem excêntricas, instáveis, mas são mais perigosas do que se pensa. Bolsonaro já tentou explodir quartéis do Exército e uma adutora no Rio. Foi brecado porque descoberto. Sua entrevista em Manaus nesta sexta-feira (23) é mais um sinal inequívoco do grau de autoritarismo. Vale a pena reproduzir trechos de seus planos, mesmo que longos:
"O pessoal fala do artigo 142 [da Constituição], que é pela manutenção da lei e da ordem. Não é para a gente intervir. O que eu me preparo? Não vou entrar em detalhes, [mas é para] um caos no Brasil. O que eu tenho falado: essa política, lockdown, quarentena, fica em casa, toque de recolher, é um absurdo isso aí", disse.
"Se tivermos problemas, nós temos um plano de como entrar em campo. Eu tenho falado, eu falo 'o meu [Exército]', o pessoal fala 'não'... Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. O nosso Exército, as nossas Forças Armadas, se precisar iremos para a rua não para manter o povo dentro de casa, mas para reestabelecer todo o artigo 5º da Constituição. E se eu decretar isso vai ser cumprido", acrescentou.
"As nossas Forças Armadas podem ir para a rua um dia sim, dentro das quatro linhas da Constituição, para fazer cumprir o artigo 5º. O direito de ir e vir, acabar com essa covardia de toque de recolher, direito ao trabalho, liberdade religiosa e de culto; para cumprir tudo aquilo que está sendo descumprido por parte de alguns governadores e alguns poucos prefeitos, mas que atrapalha toda a sociedade. Um poder excessivo que lamentavelmente o Supremo Tribunal Federal delegou, então qualquer decreto, de qualquer governador, qualquer prefeito, leva transtorno à sociedade.
Cabe observar que nem como golpista o sujeito (chamá-lo de presidente chega a ser acintoso com o povo) conhece limites. Golpistas eficientes não avisam o momento da quartelada. Operam nos bastidores e um belo dia um general Olimpio Mourão da vida aciona seus tanques rumo ao Rio de Janeiro como em 1964.
Bolsonaro, não. Avisa com antecedência.
O que ainda salva o país (por quanto tempo?) de mais um mergulho nas trevas de 1964 é que o golpista assumido e anunciado é repudiado nacional e internacionalmente. Diante das Forças Armadas, não passa de um capitão ejetado que humilha generais como se fossem recrutas. Frente ao povo, afirma-se como um genocida a cada pesquisa que é divulgada.
Para Bolsonaro isto pouco importa. Tem "a caneta na mão". Com isso vem tentando seduzir a soldadesca de suas convicções liberticidas. Nunca falou com tanta clareza como agora em Manaus.
O Brasil democrático já está alertado. A reação imediata a isso (e não em 2022) pode definir o futuro do país
*Ricardo Melo é jornalista e apresentador do programa 'Contraponto' na rádio Trianon de São Paulo (AM 740), foi presidente da EBC (Empresa Brasil de Comunicação)
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Gustavo H.B. Franco: Negacionismo fiscal
Em Brasília, o negacionismo fiscal é uma doença antiga, fácil de se contrair
A palavra está na moda, infelizmente. Ouve-se negacionismo a todo momento, até demais.
Aconteceu recentemente com outras palavras emproadas como protagonismo, narrativa, ressignificar, empoderar, resiliência, disruptivo, assertivo. Há muitas assim, pegajosas e que subitamente parecem brotar de todas as bocas e não se consegue duas frases sem nelas tropeçar.
São palavras que funcionam como um adereço extravagante, como um cinto ou bolsa que tem uma grife de meio metro, pintada de dourado, e que transforma os usuários em uma propaganda ambulante, e os define pelo seu pertencimento a uma tribo.
Use uma dessas palavras, e as pessoas vão se lembrar de você as pronunciando, sem se dar conta sobre o que você estava falando.
Dentre essas palavras de grife, as que comandam mais respeitabilidade são as que terminam com “ismo”, um sufixo geralmente utilizado para designar filosofias, teorias, movimentos artísticos. Quem usa “protagonismo” vira entendido em relações internacionais, e quem fala de “narrativa” se mostra um “insider” em estudos culturais contemporâneos.
Tudo isso não obstante, a ideia de negacionismo descreve com precisão a postura típica de líderes populistas diante de técnicos e experts, incluindo os da medicina convencional, eis que esse tipo de político não admite qualquer mediação em seu relacionamento com o “povo. Para eles, não existe ciência, só narrativa.
O negacionismo é primo-irmão da pseudociência, e por isso mesmo, tal como se passa com os líderes populistas, é muito mais popular do que se pensa. Quem não gosta de uma solução mágica e de uma cura milagrosa?
Em geral, as pessoas não acreditam em superstições, mas se divertem em praticá-las, sobretudo se são inofensivas. Como horóscopo de jornal. Vai que funciona.
Nessa parte do mundo em especial, tendo em vista nosso desapego ao real, à hegemonia da intuição e à desconfiança para com o racional, conforme a descrição de Mario Vargas Llosa, a popularidade da medicina alternativa é gigante. E, se é assim com a medicina, imagine com a economia.
O negacionismo tomou a economia há muitos anos, e apenas agora, com a pandemia e com os absurdos gerados pelo negacionismo médico, é que se percebe a exata estrutura conceitual do charlatanismo. É claro que há negacionismo em todas as outras áreas do conhecimento, talvez mais na economia que em qualquer outra.
Quanto perdemos com a busca de soluções mágicas para problemas econômicos? Um caso em evidência, nessa semana que passou, é a encrenca do Orçamento.
Os detalhes técnicos são menos importantes que atentar para o modo como os representantes do povo fazem as escolhas sociais. São os parlamentares eleitos que devem escolher entre o Bolsa Família e o Bolsa Empresário, ou entre a habitação popular e o submarino nuclear (ou as fragatas da Marinha), ou entre os auxílios emergenciais e as emendas parlamentares paroquiais.
Entretanto, no Brasil, por estranho que pareça, o Parlamento não gosta de escolhas, pois sempre há perdedores.
A melhor escapatória, e de longe a mais comum, consiste em questionar a necessidade de escolher, negando-se a reconhecer a existência de qualquer limitação aos recursos existentes. Só assim é possível ficar com o almoço e com o dinheiro. Muitos parlamentares preferem duvidar da escassez, para não competir entre si ou confrontar seus coleguinhas. Parece sempre mais cômodo antagonizar o pessoal da área econômica. Ou mesmo a própria ideia de responsabilidade fiscal. Ou negar a existência de “restrições orçamentárias”. Ou dizer que o ministro esconde o dinheiro.
Não será sempre necessário, conveniente e fotogênico duvidar da escassez e, heroicamente, explorar a possibilidade de realizar todos os sonhos, a despeito das (im)possibilidades?
Vai que funciona.
Esse é o negacionismo fiscal, uma doença antiga, fácil de se contrair em Brasília, pois começa com a compulsão em não desagradar ninguém, prossegue com nosso espírito aventureiro (o gosto pela solução mágica) e parece ganhar nova vitalidade com a pandemia.
EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS
Douglas Belchior: Metade da população brasileira hoje enfrenta a fome e a falta de direitos
Uma multidão de miseráveis cresce a cada dia, sob a anuência de um governo fraco, arrogante, incapaz
O Brasil vive um momento de anormalidade democrática. Enfrentamos um progressivo desmonte das políticas de direitos sociais e civis da população. Durante a pandemia, o que temos observado é uma gestão negligente que está sendo imposta ao país.
Essa negligência pode ser comprovada pela demora na aquisição de vacinas e pela ausência de um plano nacional de vacinação efetivo que defina os grupos prioritários e cuide das pessoas que são as mais expostas, vulneráveis. No entanto, o que vemos é uma tentativa perigosa de privatização da vacina, que vai instituir um sistema de fura-fila.
Enquanto isso, o presidente ignora perigosamente os apelos de quem tem fome e os índices que revelam a quantidade absurda de quase 117 milhões de brasileiros que, em algum momento, já viveram algum tipo de insegurança alimentar. Esses dados fazem parte do estudo realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), divulgado há poucos dias.
A fome já é a realidade vivenciada por 19 milhões de pessoas e mais de 43 milhões não dispunham de alimentos suficientes. Ou seja, o empobrecimento da população está se agravando e a pandemia está evidenciando os nichos e os abismos sociais existentes neste país.
Como resposta ao agravamento da pandemia, ao invés de propor um auxílio digno, o Governo responde com um benefício que é quatro vezes menor. Quem consegue fazer uma análise mais ampla, vê o quanto o país piorou ―e muito― em todos os setores nos últimos dois anos, especialmente na área social.
Pior ainda é saber que, do orçamento geral da União, sobrou o equivalente a 28 bilhões de reais de verba destinada ao auxílio emergencial no ano passado. Mas, para este ano, estabelece-se o limite de 44 bilhões de reais acima do teto. Qual a razão disso: maldade ou indiferença?
A fome e a miséria aumentaram, assim como a concentração de renda. Basta lembrar dos 11 novos bilionários que este ano entraram para o seleto grupo dos mais ricos do mundo da revista Forbes.
Essa política higienista, racista e genocida tem escancarado e explicitado todas as desigualdades e intensificado o sofrimento das pessoas. Falta habitação, acesso à água limpa e potável, trabalho, renda e educação. Todos esses segmentos sofreram mudanças radicais e profundas.
Não vemos qualquer iniciativa por parte do Governo para atuar preventivamente, evitando mortes que, a cada dia, batem recordes absurdos. Não é possível achar normal 4 mil mortes diárias. Como também não é natural obrigar os médicos a praticarem a tortura à medida que faltam medicamentos do kit intubação.
Na ausência dessas drogas mais modernas e eficientes, hospitais do Rio de Janeiro já amarram seus pacientes semiconscientes, alguns até conscientes, para não retirarem os tubos usados na intubação.
O país piorou muito nos últimos dois anos porque tem na sua direção um presidente insano e indiferente, que não esconde suas características de supremacista branco. Infelizmente, não chegamos ainda ao pior dessa situação.
Com a pandemia sem controle e sem perspectiva de vacinar o maior número possível de pessoas, estamos condenando os mais pobres a uma vida miserável. E os mais pobres entre os pobres estão sendo empurrados para a fome na sua versão mais cruel. Aqui, falamos, na grande maioria, de mulheres negras, periféricas, mães-solo.
Além de todas as mazelas que assistimos cotidianamente, este ainda é um país que sangra com o racismo e todas as desigualdades decorrentes do racismo presente nos países de herança colonial e escravocrata.
Tem gente com fome, aos milhares, dependendo quase exclusivamente da ação da sociedade civil organizada e de suas campanhas de apoio humanitário. E o Estado e seus gestores prevaricam, à revelia da Constituição. Até quando viveremos essa situação?
É por isso vamos continuar repetindo, como um mantra, #auxilio emergencial até o fim da pandemia!
Douglas Belchior, professor da Uneafro Brasil e membro da Coalizão Negra por Direitos e Paola Carvalho, diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica
Alon Feuerwerker: A caça à raposa. E o contra-ataque das “instituições que estão funcionando”
O governo Jair Bolsonaro e o próprio presidente entraram num período de defensiva, pois os tropeços na condução da epidemia da Covid-19 acabaram dando aos adversários a oportunidade de retomar a iniciativa. E o ambiente tornou-se mais favorável ao desarranjo político quando a segunda onda de casos e mortes pelo SARS-CoV-2, turbinada pela cepa de Manaus, antecipou-se violentamente ao cronograma da vacinação e criou um caldo de cultura propício para o contra-ataque dos aparelhos alvo do bonapartismo presidencial.
Já foi descrito nas análises dos últimos quase três anos: o colapso operacional e de imagem da Nova República, catalisado na última etapa pela Operação Lava-Jato, acabou transformando o bonapartismo (um governo concentrado no líder, que exerce o poder em conexão direta com as massas) em objeto de desejo. O problema? Não há um único candidato a Bonaparte, o sobrinho e não o tio: concorrem o presidente da República, os próceres do Judiciário e do Congresso, além de outros menos apetrechados, mas nem por isso menos ambiciosos.
A eleição de Jair Bolsonaro foi, na essência, a outorga de um mandato bonapartista, algo exigido por décadas no processo de formação da opinião pública entre nós. E o presidente até que tentou. Desprezou os partidos na montagem da Esplanada e saiu a aplicar, por decretos e medidas provisórias, o programa vitorioso nas urnas. E vinha naturalmente produzindo conflitos, especialmente com os núcleos empoderados pelo lavajatismo, que provocou um dos maiores efeitos centrífugos no poder político em toda a história nacional.
Aí vieram a pandemia, a dispersão operacional do combate a ela, a captura do debate científico e sanitário pela guerra de facções, os números trágicos de casos e, principalmente, mortes. E a polarização política nesse ambiente acabou por estimular na sociedade a convergência do antibolsonarismo, hoje algo majoritário. Se vai sedimentar, se vai sobreviver até a eleição, se vai ser fragmentado, aí é outra história. Mas a situação do momento é esta. E é tal ambiente que facilita o contra-ataque dos demais candidatos a Bonaparte.
Contra-ataque que na versão poliânica do analismo político costuma ser descrito como “as instituições estão funcionando”. Até demais, diria-se. O Legislativo tenta tomar para ele praticamente toda a execução orçamentária disponível. E o Judiciário ensaia concentrar em si os poderes do Executivo e do Legislativo. E os aos quais isso convém, no momento, por fazerem oposição, aplaudem. Amanhã, quando chegarem ao Planalto, serão eles as vítimas. Mas cada hora com seu problema, cada dia com sua agonia específica.
Antes da criação da CPI da Covid, o desafio do governo era atravessar uns dois ou três meses de borrasca sanitária e econômica, à espera de a segunda onda mergulhar e a economia tirar a cabeça da água para respirar. O quadro agora é outro, o ecossistema propício à instabilidade vai estender-se no tempo, alimentado pelo habitual espetáculo da CPI. Veremos como se dá a caça à raposa, se ela consegue ou não escapar. E isso vai depender não só dos fatos concretos trazidos à CPI, mas também terão grande peso os números da epidemia e da economia.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Marco Antonio Villa: Genocídio revelado
As consequências da política sanitária de Bolsonaro nós estamos assistindo: deveremos alcançar o dramático número de 400 mil óbitos da Covid-19
A instalação da CPI da Covid é o fato mais importante deste ano político. O locus da crise deve ser deslocado para os seus trabalhos, os depoimentos, os documentos, à apuração da matança de mais de 380 mil brasileiros. Tudo indica que Jair Bolsonaro vai tentar de todas as formas ameaçar os senadores, bem como deslocar o foco para manobras diversionistas. É a sua especialidade. O desafio para a oposição é de não cair nesta armadilha e concentrar suas forças na apuração dos fatos e das responsabilidades pelo genocídio que estamos assistindo desde março de 2020.
Teremos semanas tensas e surpreendentes. Se o que já sabemos sobre a ação criminosa de Bolsonaro e seus sequazes têm nos deixados horrorizados, certamente a revelação de novos documentos – a CPI, pelo artigo 58, parágrafo 3º, “tem poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” – vai apresentar ao Brasil o plano genocida. Sim, o que estamos assistindo não é uma ação da natureza, como uma erupção vulcânica, mas a construção de um projeto genocida planejado pelo Palácio do Planalto.
A recusa da compra de vacinas em agosto do ano passado – e poderíamos já estar vacinando desde novembro – não foi um gesto de desdém frente à pandemia. Foi mais, muito mais. Bolsonaro estimulou a circulação do vírus imaginando – e aí foi aconselhado pelos seus “especialistas” na área de saúde pública – que a imunização de rebanho levaria a que não fosse necessário a compra de vacinas. É o aprendizado típico dele e de seus asseclas: como estão distantes da ciência, é através de vídeos instantâneos de alguns minutos que “aprendem” sobre os mais diversos assuntos da administração pública. E, nesse caso, foram aulas de profissionais médicos que se assemelham ao Dr. Josef Mengele. As consequências nós estamos assistindo: deveremos alcançar ainda neste mês de abril o dramático número de 400 mil óbitos da Covid-19.
Assim, a CPI vai apresentar ao Brasil a ação genocida de Bolsonaro. Só que não em um pronunciamento de algum especialista, ou em uma reportagem. Desta vez teremos no prédio do Senado, em plena CPI, com a cobertura de toda imprensa nacional e internacional, e transmitido pela televisão, ao vivo, os relatos devidamente fundamentados sobre a maior tragédia sanitária da história do Brasil republicano. Se agregarmos o que a CPI vai revelar – antes até da conclusão dos seus trabalhos – com o brilhante documento da OAB, temos o cenário pronto para o impeachment. Bastará, então, fazer política republicana.