vacina
Luiz Werneck Vianna: A longa tragédia brasileira
Com dois anos de governo Bolsonaro e mais 10 meses de pandemia passados já se pode avaliar os estragos provocados por esses males, ainda longe de serem erradicados. Por ora, quase 200 mil mortos, milhões de afetados, sabe-se lá quantos padecendo de sequelas, um rastro de miséria política e social, uma sociedade com a morte na alma com os valores que a formaram relegados ao limbo. Entregue às suas próprias forças diante da omissão do governo, dirigido por um Rambo de padaria, ela perde as esperanças, especialmente entre os jovens, abdicando da luta contra a pandemia nas aglomerações dos bares e das baladas malsãs quando flerta animadamente com as práticas de roleta russa. Na ausência de pastor o rebanho desafia o destino e se entrega sem luta à morte.
Não há mais dúvidas de que a tragédia em que somos personagens se deve ao tipo de pastoreio a que fomos confiados, a melhor sorte dos países vizinhos testemunha isso, para não falar dos países desenvolvidos guiados por lideranças conscientes do papel da ciência e das políticas públicas no combate ao flagelo da peste. Em legítima defesa da vida somente dispomos dos recursos da política e das instituições e meios consagrados por nossa Constituição a fim de imprimir um paradeiro a essa nefasta experiência a que fomos submetidos. Não é uma tarefa fácil, inclusive porque nos faltam lideranças à altura dos desafios presentes. Mas sapo não pula por boniteza, e sim por necessidade, lembrava Guimarães Rosa.
O fato é que, nas condições dadas, armou-se uma inextricável fusão entre democracia e defesa da vida, a partir da qual se pode entrever a emergência de promissoras personagens e novas possibilidades de ação. Boa parte delas provém do campo da ciência e dos profissionais da saúde, não menos relevante é a originária da vida associativa popular, evidente em algumas capitais nas recentes eleições municipais, processo benfazejo que também alcança a esfera da política com essa nova safra de prefeitos alinhados em luta contra a pandemia que os irmana às lutas pela democratização das políticas públicas.
Toda essa nova movimentação vem emprestar suporte novo aos que, no interior das instituições republicanas, notadamente no Congresso e no STF, vêm suportando o assédio das forças do autoritarismo político e lhe impondo limites. No horizonte imediato, surgem os primeiros sinais de terra à vista, confirmando que o plano de navegação até então obedecido merece confiança e deve ser preservado. Seu traçado fundamental repousa na formação de uma frente democrática a mais ampla possível, na forma como agora se delineia na eleição à presidência da Câmara dos Deputados, no que pode ser o esboço da política a ser adotada na próxima sucessão presidencial quando o país enfrentará o que tem sido seu trágico destino.
Tragédia de Sísifo, condenados como temos sido, a refazer nosso caminho para a democracia sempre desconstruído em razão da maldição em que incorremos por evitarmos, na hora da nossa fundação, uma luta nacional de libertação, pela frustração do abolicionismo e pela República sem povo que criamos. Assim, como em tantos movimentos do passado, depois das lutas que nos trouxeram a Carta de 1988 temos aí essa marcha à ré ao AI-5 de que é nostálgico o governo Bolsonaro.
Os sinais de alvíssaras também se fazem presentes agora em janeiro com a posse de Biden no governo dos EEUU, malgrado os renitentes pedantes de sempre relutarem em valorizar o episódio, um golpe fundo no nacionalismo populista que vicejou em nossas bandas americanas. Por igual, de nossos vizinhos emanam bons ares, como os da Argentina, Chile e Bolívia. O céu se desanuvia e mais dia menos dia nos chega a vacinação em massa, e com ela as possibilidades de encontro, inclusive com as ruas de que temos sido obrigados a nos afastar.
Tragédias transcorrem em meio a lutas por sua superação, como exaustivamente procura demonstrar o notável crítico Terry Eagleton em seu longo ensaio sobre o tema “Doce Violência – a ideia do trágico” (UNESP,2013). Prometeu roubou o fogo dos deuses para confiá-lo aos homens, assim lhes propiciando os meios para fugir de uma vida vegetativa e a capacidade de modelar com suas próprias forças o seu destino. É Eagleton quem nos lembra do lema de Lacan “não desista do seu desejo”, com o que nos recomenda arriscar o bom combate contra o falso e o injusto e a recusa a uma vida de qualidade inferior.
No deserto hostil em que ora se vive algumas vozes em tom manso, pontuadas pelas artes da ironia, procuram se fazer ouvir como a do jornalista Fernando Gabeira, vocalizando o desejo recalcado de tantos em favor de uma luta que nos liberte dos grilhões que nos mantém atados ao nosso trágico destino. Para tal empreitada não nos faltam os meios nem instituições, assim como as boas lições que aprendemos com a boa sorte de muitos processos de revolução passiva, que longe do quietismo que se entrega aos fatos, importa num ativismo incessante em busca dos elos mais fracos da corrente que nos aprisiona a fim de afrouxá-los, quando não os romper, no limite com o recurso extremo do impeachment.
Os caminhos das revoluções passivas não são adversos ao pragmatismo em matéria política, muito pelo contrário. Maquiavel é sempre bem lembrado quando se trata de sopesar as circunstâncias, se propícias ou não para que tal ou qual ação seja desencadeada. Mas, como ele sustenta, em linguagem hoje talvez tida como machista, a fortuna é mulher e acolhe melhor as ações audazes do que as tímidas. As tragédias contemporâneas têm no lugar dos heróis clássicos a multidão dos homens comuns, como os das praças da primavera árabe e das ruas americanas das passeatas intermináveis do black lives matter. Essa a razão de fundo para que a luta pela democracia tenha seu ponto forte de partida na luta contra a atual pandemia, a fim de liberar, por meio de amplíssimas alianças, o acesso às nossas ruas e praças.
*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio
Luiz Carlos Trabuco Cappi: Um ‘gambito’ para 2021
País começará o ano herdando um tabuleiro marcado por lances já realizados
A estratégia desenhada para enfrentar os desafios de 2021 exigirá empenho, soma de esforços e agilidade. O cronômetro do jogo cobra ações imediatas. Neste começo de ano, um tempo de esperança e afeto, compartilho uma ideia. Pense no tabuleiro de xadrez, um jogo que tem muito a nos ensinar. O desenvolvimento cognitivo que ele favorece, assim como os valores que propõe, podem mudar, para melhor, nossa maneira de ver as coisas.
O xadrez vive um novo momento de glória com a popularidade da série O Gambito da Rainha. Nela, a protagonista Elisabeth Harmon é tida, desde a infância, como um prodígio dos tabuleiros. A jovem passa os episódios enfrentando grandes mestres e vencendo quase todos – superando barreiras e preconceitos que a tornam uma figura emblemática da falta de inclusão e diversidade no esporte que também é uma profissão. Uma das falas mais interessantes da personagem, num episódio marcante, é que “o xadrez nem sempre é competitivo; ele pode ser simplesmente lindo”.
Nesse jogo, toda informação que precisamos está plenamente disposta no tabuleiro. O resultado da partida dependerá única e exclusivamente da habilidade de cada um. Não existe o “contar com a sorte”. O que há como diferencial é a preparação, o estudo, o conhecimento.
O xadrez começa sempre polarizado: brancas e pretas caminhando em direção ao centro. A jogada chamada gambito da rainha (ou estratégia da dama) consiste em oferecer um sacrifício que envolve a peça de maior mobilidade dentro do tabuleiro, para se ganhar uma vantagem posicional efetiva. Esse movimento pode ser aceito ou recusado pelo adversário, decisão que definirá o rumo da partida. Curiosamente, os sacrifícios em favor de continuar seguindo em frente foram uma constante ao longo de 2020, tanto na esfera pública quanto na privada.
Sempre existiram muitas associações entre as instituições modernas e o papel que caberia a elas no tabuleiro de xadrez. Os reis certamente seriam os governos; as poderosas rainhas, talvez as grandes corporações; os bispos, a mídia que, mais do que nunca, inspira veneração; o cavalo e a torre seriam os exércitos e as forças de segurança; e, evidentemente, os peões representariam os cidadãos comuns.
Não se pode nunca desfazer um movimento no xadrez, mas é possível se recuperar e fazer com que os próximos lances sejam bem melhores. Em 2021, o País começará o ano herdando um tabuleiro marcado por lances já realizados, como o decreto de calamidade pública e a provisão de créditos extraordinários, entre outros. Assim como pelo recuo em alguns quadrantes importantes, como os das reformas tributária e administrativa.
Um bom estrategista no xadrez da economia consideraria imutáveis algumas regras do jogo, como o respeito à meta fiscal, à regra de ouro e ao teto de gastos. Provavelmente movido por um sentimento experimentado pelos melhores enxadristas de que, “se um jogador acredita em milagres, às vezes ele pode operá-los!”.
O jogo de xadrez celebra a importância da ponderação, da engenhosidade e do estudo de jogadas já realizadas, para que não se repitam no presente os mesmos erros cometidos antes. Igualmente, premia a ação executada dentro de um timing específico. A série valoriza, ainda, a importância de despir-se de vaidade. A certa altura, o personagem Harry Beltik, que fora um adversário vencido por Elisabeth quando ela ainda era criança, torna-se seu mentor. E ao vê-la cheia de vícios na vida adulta, trilhando caminhos errados, sentencia: “É tolice correr o risco de ficar louco por vaidade”. E assim, movido por um bem maior, empenha-se em trazê-la de volta à realidade e dar novo rumo à partida. Sempre em nome da beleza do jogo.
São esses valores que merecem uma reflexão cuidadosa para enfrentarmos os próximos lances de 2021. E, como diria a protagonista, ao final do último episódio: “Let’s play!”.
*PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS
Cacá Diegues: A vida ao vivo
Este ano não vai conseguir ser pior do que o que foi embora
Joca, meu amigo que mora nos altos do Rio, numa casa cercada por trecho preservado da Mata Atlântica, me telefonou outro dia. Me preparei para aceitar mais um convite para fim de semana no meio do mato, almoçando o que ele mesmo cozinha (Joca é especialista em peixe). Mas havia na voz de meu amigo um certo pânico, vi logo que não se tratava de nada divertido.
Com estardalhaço e a certeza de que estava sendo injustamente prejudicado, Joca desabafou, antes mesmo de um boa-noite regulamentar: ele havia assistido a um programa culto da televisão em que se dizia que o macaco-prego tinha o hábito de devorar o caule das palmas. E Joca sabia, por informação de um desses ecologistas palpiteiros que o frequentavam, que era justamente pelo caule que as palmas se multiplicavam. Como o que mais havia no mato em torno de sua casa eram macacos daquela família, tão numerosos quanto vorazes, Joca entrara em pânico. Se a notícia se confirmasse, a casa, passado algum tempo, poderia se tornar uma ilha de barro cercada de mato seco sem graça, por terrenos baldios sem verde algum.
Eu ia lhe dizer que, mesmo que por absurdo viesse a perder para sempre as palmas da vizinhança, lhe sobrariam folhas e flores, plantas e árvores, verdes infindáveis no entorno da propriedade. Não lhe faltariam mato e bichos de toda espécie para viver nele. Mas, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, Joca adivinhou a direção de meu discurso em construção e berrou que ia ler em voz alta, no seu celular, cópia do que eu havia escrito há umas semanas na coluna, depois de um almoço ao ar livre em sua casa.
Tratava-se de um elogio generoso a aves e animais que da mata nos observavam a devorar a peixada que nosso anfitrião nos havia preparado. Entre tucanos e estranhas borboletas, maracanãs e maritacas, eu destacava os encantadores macaquinhos, bravos e simpáticos, moradores da floresta. Alguns até traziam às costas membros de sua prole que assim aprendiam o caminho das palmas, uma cena tornada inesquecível por minha filha Flora, apaixonada pelo lugar. E, com malícia, Joca se dirigia a mim como se eu fosse, em qualquer circunstância, um aliado daqueles animais. Como quem já sabia que, por velha amizade e parceria, eu ia defender os bichinhos gulosos e irresponsáveis, mesmo que estivessem acabando com o planeta.
Fora de si, Joca me anunciou que ia ler o final de meu artigo. Ele aumentou o volume da voz e leu sem respirar, sem respeitar pontos e vírgulas: “Os bichos andam sempre em grupos homogêneos sem a participação indesejável dos que são diferentes. Foi o ser humano que inventou a solidariedade e somente nós a praticamos sobre a face da Terra. Se não a praticássemos, a natureza se reduziria a uma constante guerra entre todos, pelo melhor abrigo e alimento”. Joca suspirou e completou a leitura: “Por que temos que nos submeter ao mal natural, se podemos inventar outro mundo, a partir de um pensamento solidário?”.
Pensei na utopia que a frase propunha, mas fiz silêncio e nem me ocorreu argumentar que todo macaco era um ser irracional, sendo aquele um pensamento muito sofisticado para um ser irracional. Joca também fez silêncio do outro lado, mas ainda suspirava, parecendo extenuado por tão pouco. Depois de algum tempo sem que nenhum dos dois dissesse qualquer coisa, ele mudou de tom e me convidou para dar um pulo com Renata em sua casa para tomar um vinho. Fui. Quase que como se a rápida conversa no telefone me impedisse de não ir.
A caminho de sua casa, meu celular tocou e Renata atendeu. Era ele. Depois de ouvi-lo, Renata, divertindo-se muito, ligou o viva-voz para que eu também ouvisse o que ele dissera: “Diga a ele para não se esquecer de trazer o raio X, que é pra gente ver o calo ósseo”. Eu ainda ria de seu inesperado humor negro, quando Joca retomou o tom anterior da conversa. “Que sujeitinho, né não? Esse cara não consegue dizer nada que seja construtivo, nada que nos ajude a viver”. Imediata e peremptoriamente, Renata respondeu por mim e por ela: “É isso aí, Joca. É isso mesmo”.
Não sei por quê, me vieram ao coração as dores de 2020, com a certeza de que este ano não vai conseguir ser pior do que o que foi embora. Há meses que não vejo meus amigos em pessoa. Estou de saco cheio de lives e encontros virtuais, agradeço o esforço que a ciência contemporânea faz para que não percamos o sinal dos outros, mas quero vê-los ao vivo, a elogiar a vida mesmo que eventualmente infelizes. Quero sobretudo abraçá-los muito nessa entrada de 2021.
Ricardo Noblat: Sem seringas e agulhas, governo revoga a lei da oferta e da procura
E segue o baile
Por seis meses, dormiu sem resposta em uma gaveta do Ministério da Saúde o ofício onde o Ministério da Economia perguntava se tinha interesse ou não em comprar da China seringas e agulhas para a aplicação de vacinas contra o coronavírus.
Só no fim do ano passado, por meio de pregão eletrônico, foi que o Ministério da Saúde, às pressas, tentou comprar 331 milhões de conjuntos desses produtos. Conseguiu apenas 7,9 milhões. O presidente Jair Bolsonaro alegou que o preço subira muito.
Que fazer então o quê? Contrariar a lei da oferta e da procura que determina a formação de preços no mercado. Ela diz que quando há muita procura por um produto, o preço sobe. Quando cai a procura, o preço baixa. É assim que funciona.
A pedido do Ministério da Saúde restou ao governo Bolsonaro, por meio de portaria da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia, restringir a venda para outros países de seringas e agulhas fabricadas no Brasil. Dane-se a lei do mercado, ora!
Nas redes sociais, o Ministério da Saúde havia chamado de “fake news” notícias sobre a dificuldade do governo de comprar seringas. Mas seu fracasso no processo de compra foi o argumento apresentado para pedir o veto às exportações.
Segue o baile!
Baleia Rossi será o candidato do PT a presidente da Câmara
Eleição será marcada por traições
2021 começará mal para o presidente Jair Bolsonaro caso o PT, logo mais à tarde, confirme seu apoio a Baleia Rossi (MDB-SP), candidato a suceder Rodrigo Maia (DEM-RJ) na presidência da Câmara dos Deputados a partir de 1º de fevereiro próximo.
Restará a Arthur Lira (PP-AL), candidato de Bolsonaro, apostar em traições a Rossi, o que sempre será possível. Para eleger o presidente em primeiro turno são necessários 257 votos de um total de 513. O voto é secreto.
Com a adesão do PT, o grupo comandado por Maia reúne 11 partidos – PT, PSL, MDB, PSB, PSDB, DEM, PDT, Cidadania, PV, PC do B e Rede. Juntos, eles somam 269 votos. Ao grupo ainda poderão se juntar o NOVO e o PSOL.
Lira conta com o apoio do PP, PL, PSD, Republicanos, Solidariedade, PTB, Pros, PSC, Avante e Patriota que, juntos, somam 204 votos. Ou seja: 65 votos a menos do que tem hoje o grupo de Maia. O Podemos (10 deputados) deverá aderir a Lira.
A bancada de deputados federais do PT se reunirá a partir das 15 horas em sessão virtual. Lula está em Havana para as filmagens de um documentário sobre sua trajetória política, mas se pôs de acordo com a decisão que será anunciada.
Tão logo seja, Rossi entrará em cena para agradecer o apoio e reafirmar o compromisso assumido de ceder ao PT uma vaga na direção da Câmara caso se eleja. O cargo cobiçado pelo PT é o de Secretário-Geral, o segundo mais importante.
Lira dará início nesta semana a uma maratona de viagens pelos Estados atrás de votos dissidentes. O governo tem jogado pesado para elegê-lo, mas ainda dispõem de muito para oferecer a quem se dispuser a votar em Lira.
O cargo de presidente da Câmara é vital para Bolsonaro, candidato à reeleição no ano que vem. O presidente da Câmara tem o poder de pôr em votação no plenário o que quiser e de retardar votações que não interessem ao governo.
Solitariamente, é ele que aceita a abertura de processo de impeachment contra o presidente da República. E é isso o que Bolsonaro mais teme. Cobiçar votos de traidores implica em pagar mais caro por eles, o que costuma desagradar os demais.
Carlos Pereira: Bolsonaro 2021: um político tradicional
Pandemia levará presidente a formar coalizão com o Centrão e a intensificar agenda conservadora de costumes
O acontecimento de maior relevância política do ano de 2020 não foi propriamente um evento político, mas sanitário: a covid-19. A pandemia causada pelo novo coronavírus foi um choque exógeno tão devastador que, ao gerar medos e incertezas sem precedentes, produziu efeitos políticos de grande magnitude.
As três rodadas da pesquisa de opinião que desenvolvi ao longo do ano, em parceria com Amanda Medeiros e Frederico Bertholini e com o apoio da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Estadão, mostrou que a pandemia alterou, de forma inequívoca, os eixos da polarização política no Brasil.
Por um lado, a ideologia política perdeu capacidade de explicar o comportamento das pessoas e suas próprias crenças. Ser de esquerda ou de direita deixou de ter importância diante do “medo da morte”. Por outro lado, os vínculos afetivos de pertencimento a um grupo (ou de aversão ao grupo rival) baseados em identidades valorativas de seus membros ganharam preponderância explicativa e passaram a nortear a principal clivagem política: aprovar ou rejeitar o governo do presidente Jair Bolsonaro.
Esta nova polarização se consolidou a partir de quatro reações de Bolsonaro em relação à pandemia: 1) minimização da gravidade e dos riscos de contágio da doença; 2) oposição às medidas de isolamento social; 3) valorização dos impactos negativos que as medidas de isolamento social trariam para a economia; e 4) oposição à obrigatoriedade da vacina.
Ficou evidente que um contingente não trivial de eleitores, incluindo muitos que votaram em Bolsonaro em 2018, passou a rejeitar o presidente da República. Esta rejeição foi diretamente proporcional à proximidade a pessoas que se contaminaram e desenvolveram a covid-19 com graus variados de gravidade. Quanto maior o “medo da morte”, maior a rejeição ao presidente, independentemente da ideologia ou da renda. Por outro lado, o grupo de eleitores que se conecta com Bolsonaro por meio de identidades conservadoras passou a aprovar ainda mais o presidente.
A Figura abaixo exemplifica claramente essa nova clivagem política. Embora a concordância com o isolamento social tenha perdido força ao longo das três rodadas da pesquisa, fica claro que quanto maior a rejeição a Bolsonaro, maior o apoio ao isolamento social e vice-versa.
Além de perder capital político com a gerência da pandemia, Bolsonaro assumiu uma atitude conflituosa com os outros Poderes, levando seu governo a sofrer várias derrotas no Legislativo e no Judiciário. As organizações de controle também aumentaram o cerco às atividades suspeitas de seus filhos, acusados de envolvimento com “rachadinhas”, com lavagem de dinheiro e com o crime organizado.
Para evitar que o fantasma do impeachment voltasse mais uma vez a rondar o Palácio do Planalto, o presidente, que se elegeu negando a política e os partidos, fez uma das maiores inflexões da história da República. Converteu-se às instituições do sistema político brasileiro ao se aproximar dos partidos do Centrão em busca de sobrevivência política. Moderou seu discurso belicoso e confrontacional e tem se engajado diretamente na eleição dos presidentes das duas casas legislativas.
Se Bolsonaro almeja governabilidade e competitividade eleitoral em 2022, é esperado que se comporte daqui para frente seguindo duas estratégias aparentemente contraditórias. Por um lado, o governo precisa garantir, com recompensas, que o Centrão continue a apoiá-lo. Daí ser esperada uma reforma ministerial ampla que acomode esses interesses. Na medida em que essa estratégia tende a enfraquecer o suporte político do seu “núcleo duro” de eleitores, precisará se engajar na defesa de uma agenda de costumes conservadora. Mesmo com o risco de vir a ser derrotada no Legislativo e no Judiciário, essa agenda de costumes cumpre o papel de alimentar e manter o engajamento das conexões identitárias com os que aprovam o seu governo.
*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV Ebape)
Rosângela Bittar: Não há aviso aos navegantes
Tudo em 2021 dependerá do êxito da vacina. Não há mais espaço para conversa fiada de Bolsonaro
Os meteorologistas da política não encontram garantias para prever absolutamente nada de novo para 2021, mais um ano a ser dominado pela pandemia e pela expectativa da vacina. O que deve acontecer é a expansão de 2020 em todos os sentidos.
Jogaram-se para a frente as crises de saúde, a principal entre todas que castigam o Brasil. Também prorrogaram-se os prazos das crises econômica, social e política. Tudo em 2021 vai girar exclusivamente em torno da vacina. O sinônimo de vida.
Na roda de poder dos possíveis candidatos à sucessão de Jair Bolsonaro recomenda-se esquecer o ano novo como calendário original.
Quem tinha perfil de candidato a presidente na sucessão de 2022 e expectativa política deve continuar na mesma. Os fatores que fazem uma candidatura emplacar não estão liberados. Seja para o novato Luciano Huck ou para o veterano Ciro Gomes. Eles, e os demais postulantes conhecidos, entre os quais Hamilton Mourão, João Doria e Sérgio Moro, se tiverem juízo para se submeterem à realidade, continuarão esperando uma possível largada bem mais à frente.
Qual destes possíveis candidatos vai desabrochar, se vai ou não ser um deles, se aparecerá um outro surgido de inusitada situação, qual novo movimento será feito em direção à sucessão, em torno de que plataformas. Um mundo de definições em aberto.
Ninguém está pior que Jair Bolsonaro que, solitário, faz campanha dia e noite, sem nenhuma consequência para os adversários. Ora se vê que está procurando manter seu eleitorado, ora se evidencia o desejo de distrair a atenção do público de alguma de suas mazelas.
O presidente, que não governou na primeira metade do mandato, não governará na segunda, que se inicia; enquanto persegue a reeleição, não tem sequer acrescentado dividendos de peso à sua performance política.
Não se consegue explicar as razões pelas quais Bolsonaro está na posição em que se encontra, com uma adesão acima de 30% nas pesquisas de opinião. O governo é ruim, não há um projeto para o País, ele não apresenta solução para os problemas que angustiam a população cotidianamente e suas questões essenciais são meras demandas para resolver problemas pessoais, enquanto se vê ampliar a vulnerabilidade do seu flanco familiar.
Eleições, em 2021, só as das presidências da Câmara e do Senado, em fevereiro. Nelas só têm lugar compromissos imediatistas.
A sociedade dará atenção total à vacina e seus efeitos. A imprevisão das crises sanitária, social, econômica e política permanecerá nos meses seguintes à imunização. Bem como a oscilação do presidente da República quanto a questões relacionadas à pandemia que interessam a todos.
O governo, com suas posições corrosivas e estapafúrdias, permanecerá causando perplexidade nacional e internacional. Bolsonaro seguirá disfarçando sua ignorância a pretexto de defender a economia contra a vida, tomando atitudes que comprometem uma e outra.
Não é só para a crise sanitária que o governo não tem solução. Faltam-lhe ideias e medidas para resolver qualquer uma das demais crises. Paulo Guedes, o superministro da Economia, parceiro fundamental de Jair Bolsonaro nas soluções esperadas por todos, não terá condições de dizer, em 2021, a que veio. Se permanecer no cargo, depois de ter sido obrigado a desmentir o presidente da República no fim de 2020, continuará a falar sozinho, sem ressonância no governo ou no Congresso. Com todos os instrumentos nas suas mãos, não tem conseguido substituir nem por esperanças as incertezas atuais da economia.
Para lembrar e repetir: tudo em 2021 dependerá do êxito da vacina. Não há mais espaço para conversa fiada de Jair Bolsonaro e sua atração fatal pela morte, contra a ciência e o bom senso. Melhor esquecê-lo. E confiar nas lideranças da sociedade, que podem surpreender. Há espaços , questões e situações que as estimulam.
Lorena Barberia: 'Bolsonaro e Obrador expõem vidas para dizer que não têm medo'
Coordenadora da rede que monitora dados da covid-19 no Brasil, Lorena Barberia aponta falta de transparência e afirma que Estados baseiam suas ações em informações incompletas
Passados 10 meses do primeiro caso do novo coronavírus no Brasil, o país ainda enfrenta a pandemia no escuro. Sem conseguir fazer testagens em massa que forneçam uma dimensão real do número de doentes em fase de contágio —e não somente as infecções acumuladas, que no país já se aproximam de oito milhões— e com problemas na coleta, organização e divulgação de dados que permitam tomar as medidas necessárias na velocidade do avanço do vírus, Governos de Estados e municípios trabalham com estatísticas incompletas para definir suas ações, não convencem a população da importância de aderir a elas e deixam suas medidas vulneráveis a pressões políticas e econômicas. O diagnóstico é da pesquisadora Lorena Guadalupe Barberia (Cidade do México, 49 anos), coordenadora científica da Rede de Pesquisa Solidária, uma coalizão de especialistas que monitoram e avaliam as políticas públicas de combate à covid-19 em todo o Brasil.
A falta de transparência, a existência de bases de dados divergentes e o pouco detalhamento de informações foram obstáculos encontrados logo de início e orientaram o foco de trabalho do grupo, que passou a ser conhecido como caçadores de dados da pandemia. Pesquisadores distribuídos pelos Estados cobram de suas gestões, das capitais e do Governo federal informações sobre questões como número e tipo de testes realizados, fiscalização de medidas de distanciamento e ações para garantir o ensino a distância. Esbarram, novamente, no descaso com as informações. “É uma tragédia. Estamos tentando produzir algo que poderia ajudar esse Estado a enfrentar melhor a pandemia. Então a falta de vontade de compartilhar uma informação mostra que existe um problema mais sério por trás”, afirma.
Professora de ciência política da USP, a mexicana que é filha de argentinos, graduada em economia pela Universidade de Berkeley, na Califórnia, mestra em políticas públicas por Harvard e doutora em administração pública pela Fundação Getulio Vargas (FGV) compara a gestão do presidente Jair Bolsonaro com exemplos internacionais e analisa que a pandemia escancarou o machismo de governantes como o brasileiro e o mexicano Andrés Manuel López Obrador. “Confundem o enfrentamento da pandemia com uma questão de fragilidade ou fortaleza física e colocam em risco a vida da população para mostrar que não têm medo do vírus”, afirma ela, que além da USP, é pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público (Cepesp), da FGV. A seguir os principais trechos da entrevista.
Pergunta. Como foi a criação da Rede de Pesquisa Solidária e como tem sido o trabalho até agora?
Resposta. A Rede começou primeiramente por uma questão pessoal. Eu tenho um grupo de pesquisa voltado para a avaliação qualitativa de políticas públicas. Quando começou a pandemia, em uma reunião do grupo, uma aluna perguntou: “Professora, estamos em uma pandemia. Não vamos fazer nada?”. E isso me despertou para a questão de que, realmente, na área das ciências sociais e de monitoramento de políticas públicas, a gente poderia dar uma contribuição relevante. Com o professor Glauco Arbix, da sociologia [da USP], e o José Eduardo Krieger [InCor-Faculdade de Medicina da USP], pensamos em como criar uma rede multidisciplinar de especialistas conversando sobre a pandemia.
Ficou visível desde o início que existiam pouquíssimos dados para que a gente soubesse a situação real da pandemia. Então uma das nossas primeiras missões foi pensar em como coletar informações para produzir nossos próprios dados, e, assim, avaliar as políticas públicas, colocar isso mais visível para a sociedade e debater soluções com os gestores. E para isso seria preciso produzir dados na velocidade da pandemia.
P. Seu grupo foi apelidado de caçadores de dados, pelo esforço em driblar a falta de transparência e organização dos Governos. Como fazem essa busca?
R. Para avaliar uma política pública, precisamos buscar decretos, portarias e indicadores transparentes disponibilizados pelos Governos. Parte da Rede é formada por advogados que trabalham muito ativamente protocolando pedidos de informação junto aos Estados via lei de transparência [Lei de Acesso à Informação]. Uma área específica em que isso ocorre é a fiscalização das restrições. Os Governos dizem que fiscalizam as medidas de distanciamento físico, então nós queremos saber quais são os dados por bairro, por tipo de infração, ou seja, ter evidências de que essa fiscalização está sendo realmente feita.
Ficamos com essa fama de caçadores de dados da pandemia porque logo no início vimos que para áreas muito importantes há diferentes bancos de dados e eles não estão integrados. Por exemplo, os casos confirmados de covid-19: hoje a gente tem pelo menos três diferentes bancos de dados oficiais —um para buscar informações sobre casos leves, outro para casos graves e hospitalizações, outro para casos em geral... Se você tenta cruzá-los, não há uma correspondência. Descobrir isso foi muito assustador para nós.
P. E em quais tipos de informação esse problema foi encontrado?
R. Ao longo da pandemia, martelamos na defesa de que os Governos precisam produzir dados transparentes e que esses dados precisam ser públicos. E essa discussão tem sido feita principalmente na área de testagem. A gente deveria saber qual é a taxa de positividade por tipo de teste. É um indicador fundamental, mas se a gente acessar hoje, em dezembro, o site do Ministério da Saúde, não encontraremos dados satisfatórios. Então o que fizemos? Criamos um grupo de trabalho em cada Estado e estamos protocolando via lei de transparência pedidos de informação sobre testagem. A nossa preocupação são os testes de casos ativos, que permitem fazer isolamento e rastreamento de contágios. Para reduzir a transmissão, precisamos saber os resultados dos exames RT-PCR. Os testes sorológicos [que buscam saber se o paciente já possui anticorpos contra o vírus, ou seja, se ele já se infectou no passado] e os PCR [que detectam o material genético do vírus naquele momento, portanto, as infecções ainda ativas] não dizem a mesma informação, precisam estar separados. Mas ainda hoje não existe essa informação sistematizada, abrangente, que permita um monitoramento.
Lugares que foram bem-sucedidos no mundo no controle da pandemia, como a Coreia do Sul, investiram em testagem. E é exatamente nessa área que temos falhado muito. Mesmo hoje, em que falamos de vacina, de uma nova esperança, precisamos nos preocupar em fazer mais testes.
P. Qual é o tamanho dessa equipe envolvida nos pedidos de informação junto aos Estados e como tem sido a resposta dos Governos?
R. À medida que o trabalho foi crescendo, a rede começou a fazer parcerias —a gente trabalha muito com o Observatório Covid-19 BR e com várias redes locais nos Estados. Hoje a Rede de Pesquisa Solidária faz parte de uma outra grande rede, uma rede de redes de pesquisadores engajados em buscar e compartilhar informação sobre a pandemia, com a consciência de que precisamos trabalhar colaborativamente para salvar vidas. Temos um trabalho muito abrangente pelo país graças a essas parcerias. Só na área de testagem são mais de 100 pesquisadores, em todos os Estados, trabalhando com a gente.
Infelizmente, a parte mais difícil do trabalho é que não temos visto interesse dos Governos em dar um retorno com rapidez e transparência. Muitas vezes eles demoram a responder, depois os dados não vêm na forma que a lei exige, aí recorremos, eles mandam de novo e ficamos meses nessa negociação. É uma tragédia, porque nós, pesquisadores, estamos tentando produzir algo que poderia ajudar esse Estado a enfrentar melhor a pandemia. Então essa falta de vontade de compartilhar uma informação mostra que existe um problema mais sério por trás.
O caso do Governo federal é mais grave porque ele poderia ser uma liderança nessa questão de padronizar os dados e disponibilizá-los facilmente, mas o que acontece no Brasil é justamente o oposto. Muitas vezes, o Governo retira dados da plataforma, demora a fornecer informações muito básicas, de forma que estamos muito aquém dos padrões internacionais. E somos um país que já possui um sistema de saúde pública, que tem muita infraestrutura que poderia ter sido alavancada e utilizada na questão da informação.
P. E em quais países essa informação foi disponibilizada de forma melhor?
R. Um lugar em que isso funcionou melhor foi na Argentina. Lá tanto o Governo federal quanto os locais foram muito transparentes desde o início para divulgar os dados da pandemia. Há informações muito específicas, por bairro, por tipo de surto, mapeando grupos vulneráveis. E o que é muito importante é que esses dados estão disponíveis em um arquivo CSV [formato que possibilita a leitura por diversos programas, como o Microsoft Excel], não é uma página na Internet em que você leva uma hora para baixar os dados de que você precisa ou em que se você clica de um gente dá certo, se você clica de outro vai para outro lugar. A Argentina permite que você baixe os dados e já comece a analisá-los. No Brasil, nós temos que passar mais tempo não analisando os dados, mas tentando coletá-los.
Isso tem começado a melhorar em algumas localidades —o Espírito Santo e o Ceará são bons exemplos de transparência dos dados de testagem desde o início do enfrentamento da pandemia. Mas não em São Paulo, que foi o epicentro, o Estado mais rico do país, onde isso poderia ter funcionado melhor logo no início e ainda permanecem grandes lacunas em várias questões.
P. No plano nacional, tivemos ao menos dois grandes apagões de dados sobre a covid-19, um em junho, com uma mudança na plataforma do Ministério da Saúde, e outro em novembro, com a instabilidade do sistema que impediu alguns Estados de atualizarem as suas estatísticas. Quais foram as consequências desses problemas?
R. Hoje tudo o que sabemos da pandemia depende dos dados de notificação de casos e óbitos. Dez meses após o início da pandemia, quando a gente fala que o Brasil registrou 1.000 óbitos em um dia, ainda estamos falando de mortes que foram notificadas agora mas que podem ter ocorrido em qualquer momento ao longo desses meses, enquanto que em outros países conseguimos acompanhar as mortes pela data em que ocorreram. Isso é um problema básico. Com isso, quando temos alguma pane como essa dos Estados e não é possível alimentar algum dado, depois vamos ver um pico [nas estatísticas]. A confusão nos números da pandemia é tão grande que esse dado não tem uma utilidade real para o gestor. Como os Governos podem justificar suas medidas de flexibilização usando esse tipo de dado?
E esse problema leva para outra questão, que são os dados sobre leitos. Um dos principais critérios que os Governos usam em seus planos de reabertura é a taxa de ocupação de leitos de UTI [para pacientes com covid-19]. Porque como não há dados confiáveis sobre testagem e sobre casos e óbitos, dependemos de relatórios hospitalares para saber como está a situação. Mas aí já é tarde. Ter uma UTI lotada significa que houve uma transmissão descontrolada nesse local semanas ou meses antes e que não agimos no momento em que precisávamos ter agido para poupar vidas.
P. No início da pandemia, a senhora chegou a elogiar a iniciativa de Governos locais de, à frente do Governo federal, implantar suas próprias medidas de distanciamento. Qual é a análise que faz dessas medidas agora e dos processos de reabertura?
R. Um dos nossos principais estudos hoje é o mapeamento dos planos de flexibilização de cada Estado. No início falamos: “Os Governos reagiram”. Essa corrida foi de fato importante, mas não quer dizer que não teria sido melhor com um esforço nacional mais coordenado. Por exemplo: se logo no início da pandemia tivéssemos determinado que pessoas que chegassem do exterior em todo o país fizessem quarentena por 14 dias, isso teria sido muito mais inteligente do que fechar todas as escolas no Maranhão. Então os Estados deram uma resposta fragmentada e não necessariamente coerente com a situação na pandemia naquele lugar.
Uma outra questão que chama muito a atenção nos planos de flexibilização é a divisão do Estado em regiões. Da mesma forma que falamos que o vírus não respeita fronteiras, ele também não vê que determinada região de São Paulo é vermelha e outra é laranja. Essa classificação cria uma confusão muito grande. Tem Estado com 12 fases de flexibilização, outros têm três... Passa a impressão de que a pandemia é algo muito gradual, que você pode ir fechando e abrindo [as atividades] aos pouquinhos, e não comunica corretamente qual é o nível de risco. O que a população precisa saber é: a situação é grave ou não? Qual é a conduta adequada? Mas em vez de discutir qual deveria ser a conduta mínima de segurança para os moradores de todo o Estado, ficamos discutindo que em tal lugar pode abrir até as 18h e em outro pode abrir até as 22h... Isso significou muita confusão e prejudicou a adesão às medidas.
Especialistas defendem que uma resposta radical e severa por duas semanas você conseguiria um controle muito mais eficiente do que fazer uma quarentena prolongada, mal fiscalizada e que não prática não está limitando nada.
P. Como avalia o Plano São Paulo, de restrições no Estado?
R. Em São Paulo, além da questão da divisão do Estado, os pesos dos indicadores [usados para nortear a reabertura] foram mudando ao longo da pandemia [em julho, por exemplo, o Governo flexibilizou de 60% para 75% o limite de leitos de UTIs ocupados com pacientes de covid-19 necessário para uma região passar da fase amarela para a verde, mais branda]. As estratégias foram mudando para ceder a pressões políticas. Vimos isso em dezembro: o governador [João Doria, PSDB] tentou proibir a venda de bebidas alcoólicas depois das 20h. A associação de bares e restaurantes contestou e venceu na Justiça. Por que isso aconteceu? Porque os Governos estão em uma saia-justa: têm que decidir entre serem muito rígidos, fechando tudo, ou deixarem tudo aberto e perderem o controle. O meio-termo não existe, porque eles precisam negociar com cada setor. E também não há fiscalização.
P. Ao longo desses 10 meses, passamos pela negação da gravidade da pandemia pelo Governo Bolsonaro, por duas trocas de ministros, pelo apagão de dados do Ministério da Saúde e agora por um impasse na elaboração do plano de vacinação. A senhora ainda se surpreende com a gestão brasileira da pandemia? Qual é o saldo?
R. Já temos amplas evidências para falar que é uma conduta irresponsável e criminosa, porque custa vidas. Mas minha leitura de cientista política é que essa é uma estratégia pensada de não se responsabilizar pela pandemia. Parte do diagnóstico de quem sabe que vai perder se decidir responder e enfrentar a pandemia. Coordenar um enfrentamento traria mais responsabilidade e julgamento sobre as ações do Governo Federal. Então a única chance que Bolsonaro tem de ser competitivo em 2022 é se distanciando do problema e colocando a culpa da crise nos governadores e prefeitos. Por isso ele não conseguiu realmente apoiar prefeitos nessas eleições. Ele não poderia se alinhar.
P. No México, a gestão de López Obrador também tem sido criticada e marcada pelo negacionismo. Como compará-la ao Governo Bolsonaro?
R. São dois casos importantes para discutir o machismo de presidentes na pandemia. Tanto Bolsonaro quanto Obrador fazem questão de mostrar que são machos de verdade, e por isso colocam em risco a vida da população e a deles, se expondo sem máscara, para dizerem que não têm medo do vírus. Confundem a capacidade de enfrentamento da pandemia com uma questão de fragilidade ou fortaleza física, com sua masculinidade. Quando você vê o discurso de mulheres, como a Merkel na Alemanha ou a primeira-ministra da Nova Zelândia [Jacinda Ardern], elas não fazem questão de trazer a pandemia para um nível tão pessoal. Alguns presidentes buscam manter essa imagem de homem forte: Brasil, México, Venezuela [com Nicolás Maduro]. Mas essa postura não foi adotada no Uruguai [governado por Luis Lacalle Pou. Então não é uma questão de como partidos de direita ou Governos populistas reagem, é mais uma questão de característica pessoal.
P. O que esperar da pandemia no Brasil em 2021?
R. Sendo realista, acredito que 2021 vai ter uma cena muito parecida com a que o país enfrentou em 2020, só que com a economia muito mais frágil, uma sociedade muito polarizada e com essas lacunas de infraestrutura no combate da pandemia que a gente não arrumou. Vamos ter uma situação muito complicada, porque a população está imaginando que vai chegar logo uma vacina, mas vacinar o Brasil inteiro vai ser um processo complexo, e a gente ainda vai precisar fazer muito distanciamento físico, ainda vai precisar fazer muita testagem. Estamos entrando em um momento grave, e o que me preocupa é: ou os Governos adotam medidas mais severas, entendendo que precisam atuar agora, ou estaremos no caminho de virar os Estados Unidos ou pior.
Fernando Gabeira: Na marca do pênalti
No prontuário de Bolsonaro, não pesam só vidas humanas, mas todos os componentes da riqueza do Brasil
Bolsonaro fez parte de um seleto grupo de estadistas que negaram a pandemia. Em seguida, foi o único no mundo, ressalta o jornal “Le Figaro”, que se colocou negativamente diante da vacinação.
Ele foi escolhido como o pior corrupto do ano, pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project. Coisa de comunistas? Os escolhidos anteriormente foram Putin, Maduro e Duterte.
Bolsonaro chegou ao fim de 2020 com 24 pedidos de impeachment acumulados na gaveta. Alguns comentaristas acham que ele zombou da tortura em Dilma Rousseff para desviar a atenção de seu fracasso diante da pandemia.
Mas é uma tática estúpida. Não se disfarça a morte com cheiro de morte, muito menos se esconde a desumanidade contra muitos, concentrando-a numa só pessoa.
O conjunto de declarações de Bolsonaro está registrado. Uma pandemia com quase 200 mil mortos não desaparece na história como um relâmpago no céu.
Ele contribuiu para que uma parte do povo brasileiro desafiasse o perigo da pandemia e colocasse em risco a própria vida e a dos outros.
Bolsonaro ignorou os apelos para que o Estado protegesse as populações indígenas. Por duas vezes, o STF devolveu ao governo a lição de casa que não consegue realizar: um plano eficaz para protegê-las.
No governo, Bolsonaro aumentou a destruição da Amazônia, queimou um terço do Pantanal, e o Cerrado perdeu 13 % de sua vegetação. No seu prontuário, não pesam apenas vidas humanas, mas espécies animais, plantas, enfim, todos os componentes da riqueza do Brasil.
Sua política arruína as chances de nos apresentarmos como uma potência ambiental, atraindo energias, capitais, poderosos governos, todos ansiosos por trabalhar conosco numa nova etapa da luta mundial pela sobrevivência das novas gerações.
Numa das suas últimas lives, Bolsonaro afirmou que não seria retirado da Presidência sem um motivo justo. Ninguém faria isso. Mas a situação muda de figura quando se consideram 200 mil mortes diante de um governo negacionista. Se isso não for um motivo justo para milhares de famílias que perderam seus entes queridos, o que será?
O auxílio emergencial aprovado pelo Congresso atenuou o impacto da posição inicial na imagem de Bolsonaro. A má vontade com a vacina atualizou sua culpa.
O general Pazuello tem responsabilidade, mas obedece a Bolsonaro. Só é formalmente um Sancho Pança.
Sancho seguia Dom Quixote, um símbolo permanente da humanidade. Assim mesmo, era capaz de alertar: olha mestre, olha o que senhor está falando.
Juntos, capitão e general arrastaram as Forças Armadas para uma política que nega sua proximidade com a ciência, lança dúvida sobre sua capacidade e chega a nos fazer duvidar dos critérios que levam alguém ao generalato.
A aventura da hidroxicloroquina, justificada pelo Exército como um conforto à população assustada, é um argumento religioso. Remédios são feitos para curar.
A pandemia revelou o abismo da desigualdade social. Entramos em 2021 sem resposta para milhares de pessoas necessitadas. Não só estamos longe de um contrato social, mas sendo cada vez mais empurrados para a barbárie.
Bolsonaro é a barbárie de que o capitalismo escapou no século passado, com a ajuda da social-democracia e de políticas sociais. E de que a globalização procura escapar, no século XXI, com as diretivas de governança sustentável e socialmente responsável.
No seu governo, vigora a tese de que o homem é o lobo do homem, de que os fortes sobrevivem de armas na mão. Não há chances de construir um país com essas ideias. A esperança em 2021 passa por nos livrarmos desse pesadelo, em condições ainda difíceis de movimento e contato físico.
Quando os valores humanos são negados tão radicalmente por um líder e seus fiéis que riem da tortura, é fácil compreender que a luta não é apenas por um país, mas pela sobrevivência da espécie.
No Brasil, a humanidade está em jogo. Muitos já compreendem, mesmo vivendo fora daqui, o potencial destrutivo dessa ameaça.
Elio Gaspari: O Apocalipse Já de Bolsonaro
Depois do festival de bobagens de 2020, governo começar o novo ano poupando a plateia de teorias conspiratórias, novas catástrofes e bodes expiatórios
Em agosto de 2019, quando Alberto Fernández venceu as primárias para a Presidência da Argentina, Jair Bolsonaro resolveu atravessar a fronteira para escorregar numa casca de banana em terras alheias:
“Não esqueçam do que, mais ao Sul, na Argentina, aconteceu nas eleições de ontem. A turma da Cristina Kirchner, que é a mesma de Dilma Rousseff, que é a mesma de Hugo Chávez, de Fidel Castro. (...) Se essa esquerdalha voltar aqui na Argentina, nós poderemos ter no Rio Grande do Sul um novo estado de Roraima”.
Era o tempo em que venezuelanos atravessavam a fronteira e vinham para o Brasil. Hoje os brasileiros gostariam de dar um pulinho na Argentina. Lá, desde a semana passada, a população está sendo vacinada contra a Covid.
Virou o ano, o Brasil não tem vacinas, a Anvisa do almirante e o ministério da Saúde do general estão atordoados pelo negacionismo que Bolsonaro impôs ao seu governo. Ganha uma fritada de morcego do mercado de Wuhan quem souber o que fez o comitê interministerial criado em março para lidar com a pandemia.
Na exortação de agosto de 2019, Bolsonaro mostrou o lado apocalíptico de sua retórica. Quando ele falou na “gripezinha”, quando defendeu as virtudes da cloroquina e até mesmo quando classificou a segunda onda da pandemia de “conversinha”, manipulava a ignorância num processo de simples empulhação. Se tivesse razão (e não a tinha), as coisas poderiam melhorar. Quando falou num possível êxodo de argentinos, manipulava o apocalipse, e aí está o perigo, pois a Constituição lhe assegura mais dois anos de mandato.
O catastrofismo tem algo de impessoal. Quem anuncia catástrofes dissocia-se dos problemas. O capitão despediu-se de 2020 no meio da segunda onda de contágio, encostando nos 200 mil mortos. Aproveitou a oportunidade para anunciar que “nós podemos trazer o caos para cá” com “essa política de fechar”: “Esse inferno, essa assombração, está voltando, por irresponsabilidade de fechar tudo .”
Conversa velha. Em março, quando havia apenas um morto, Bolsonaro dizia que “se ficar todo mundo maluco, as consequências serão as piores possíveis”. Ninguém ficou maluco. Ele acrescentava: “Tem locais em alguns países em que já tem saques acontecendo, isso pode vir para o Brasil, pode ter aproveitamento político em cima disso”. Salvo os desordeiros que organizam aglomerações, nada disso aconteceu.
O profeta da catástrofe sempre tem um medo. Bolsonaro explicitou o seu: “Está havendo uma histeria. Se a economia afundar, afunda o Brasil. (...) Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta pelo poder”.
Quando surgiu um boato delirante de decretação do estado de sítio, Bolsonaro desmentiu-o, com uma ressalva: “Ainda não está no nosso radar isso, não.” Não estava? Na semana seguinte, diante das manifestações que aconteciam em Santiago, profetizou:
“O que aconteceu no Chile vai ser fichinha perto do que pode acontecer no Brasil. Todos nós pagaremos um preço que levará anos para ser pago, se é que o Brasil não possa ainda sair da normalidade democrática que vocês tanto defendem. (...) O caos está aí na nossa cara”.
Um dia, Bolsonaro viu o caos e divulgou-o: Era um vídeo que mostrava a central de abastecimento de Belo Horizonte, deserta. “São fatos e realidades que devem ser mostradas”, escreveu o presidente. Era mentira e desculpou-se.
Na tenebrosa reunião do ministério de abril, Bolsonaro expôs seu medo:
“A desgraça tá aí. Eles vão querer empurrar essa ... essa ... essa trozoba pra cima da gente.”
Não foi Bolsonaro quem criou o vírus, nem foi o vírus quem inspirou o almirante da Anvisa e o general da Saúde para criarem uma situação na qual faltam vacinas, seringas, agulhas e sabe-se lá mais o quê.
Depois do festival de bobagens de 2020, esses doutores poderiam começar o novo ano poupando a plateia de teorias conspiratórias, novas catástrofes e bodes expiatórios. Como são todos militares, podem recordar o exemplo do general Dwight Eisenhower na véspera do desembarque Aliado na Normandia, em 1944. Ele redigiu uma curta nota para a hipótese do fracasso.
Elogiava todo mundo e concluía: “Se alguma culpa deve ser atribuída à tentativa, ela é só minha”.
O tenente alemão
No início da manhã de 6 de junho de 1944, o tenente alemão Cornelius Tauber estava na Normandia e viu o início do desembarque dos Aliados.
Ele esperava que as coisas acontecessem como nas guerras passadas e surpreendeu-se: “Não vieram cavalos. Toda aquela tropa e nenhum cavalo.”
A logística dos Aliados não incluía quadrúpedes, só veículos e tanques. (Em 1941, quando a Alemanha invadiu a Rússia, seu Exército ainda dependia de 600 mil cavalos.)
O general e os oficiais que Bolsonaro botou no ministério da Saúde ficaram sem vacinas e seringas. Achavam que, como grandes compradores, estavam numa posição em que poderiam impor condições aos fornecedores. Como disse o capitão:
“O Brasil tem 210 milhões de habitantes, um mercado consumidor de qualquer coisa enorme. Os laboratórios não tinham que estar interessados em vender para a gente?”
Se Bolsonaro tivesse feito essa pergunta ao economista Paulo Guedes, teria descoberto o tamanho de seu terraplanismo econômico. Segundo a lei da oferta e da procura, quando há muita oferta, manda quem compra, mas quando há muita procura, manda quem vende. Com sua experiência no mundo do papelório, Guedes poderia lhe explicar também os mecanismos de condicionantes para compras antecipadas.
Mando, logo existo
Para quem não sabe, existe um Comitê para Gestão da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios. A girafa mora na capitania do ministro Paulo Guedes e decidiu criar o “licenciamento urbanístico integrado”.
Ele estabelece que obras de até 1.750 metros quadrados podem ser liberadas com a ajuda de um processo eletrônico.
Sabe-se que há muita roubalheira nas burocracias que liberam obras. Sabe-se também que o ministro Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, deixou de ser flor do orquidário de seu colega Paulo Guedes. Não custava ter ouvido alguns interessados, e não só alguns operadores do mercado imobiliário.
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e acha que os ministros do Supremo são todos infalíveis. Ele se assustou com a saia justa revelada pelo ministro Marco Aurélio: a sinopse de notícias enviadas aos doutores sumiu com duas reportagens que tratavam da operação fura-fila das vacinas. Armada em nome da Corte.
O que o cretino não entende é por que os ministros precisam de sinopses das notícias. Como ele é um idiota, talvez precisem do mimo. Nesse caso, porque não o colocam na rede, para usufruto de quem lhes paga os salários?
Míriam Leitão: A saúde da economia
No ano de 2021 o Brasil pode crescer sem crescer, e a principal variável da economia não será econômica. Mesmo se a economia ficar estagnada, haverá um número positivo na comparação da média contra a média do ano passado, em que houve uma queda forte no segundo trimestre. O que definirá a chance de alta real do PIB — e não apenas uma ilusão estatística — será a vacinação em massa dos brasileiros. O erros do governo na preparação para a vacina são falhas também econômicas.
O falso dilema que Bolsonaro alimentou no ano passado é um bumerangue que se volta contra seu próprio governo. Ele defendeu a tese de que era preciso manter a economia funcionando normalmente para garantir emprego e atividade. Não trabalhou para garantir a volta sustentada da economia. Este ano o choque entre a sua ideia e a realidade estará mais evidente, porque o atraso na vacina é o maior obstáculo para a recuperação econômica.
O país está vergonhosamente atrasado na vacinação. O fiasco do leilão de seringas feito pelo Ministerio da Saude foi sinal da sua incapacidade de gestão. As providências elementares para um programa de imunização não foram tomadas. Estados e prefeituras já se adiantam e compram seringas, agulhas e vacinas, enquanto o governo federal roda em falso.
O ano está começando com uma série de complicadores. A inflação está alta, o desemprego vai subir nos primeiros meses de 2021, as contas públicas estão num beco sem saída. O nó mais recente foi dado pelo aumento do salário mínimo. Houve um descasamento infeliz. O teto de gastos sobe pelo índice em 12 meses até junho, os benefícios previdenciários são corrigidos conforme a inflação do ano. Ocorre que a inflação acelerou no segundo trimestre. E isso pode custar, segundo o economista Fábio Giambiagi, R$ 15 bilhões a mais. Não por causa do salário mínimo, mas porque todos os outros benefícios, inclusive os mais altos, serão reajustados pelo INPC.
Esse é só um exemplo de nó nas contas públicas que 2021 herda de 2020. A sanção da LDO veio no último momento possível. A incerteza fiscal e as confusões do próprio governo explicam parte da alta do dólar. O real foi uma das moedas que mais perdeu valor.
O ano começa com o país prisioneiro de impasses criados pelo próprio governo. Mesmo quando todos os sinais eram os de início de uma segunda onda, a área econômica preferiu apostar em alguns indicadores setoriais de melhora de consumo, ou na queda do distanciamento social para montar o cenário de que a economia estava voltando ao normal. Não há normalidade à vista, e agora o país está sem instrumentos para enfrentar a nova etapa da mesma crise.
O que se diz no Ministério da Economia é que existe um plano, ele será implantado em fases, as primeiras sem custo fiscal. A estratégia será a de melhorar o conjunto de medidas já tomadas, corrigindo os excessos. E houve muito gasto excessivo no ano passado, como, por exemplo, no auxílio emergencial sem foco e distribuído sem controle.
O começo do ano será marcado pelo agravamento da crise sanitária, pelo impasse da vacinação, e pela incerteza fiscal. Para as famílias, haverá mais inflação. Sobem alguns itens importantes como energia, planos de saúde, remédios, ônibus. A taxa de desemprego cresce sempre no começo do ano e pode chegar a 17%.
A vacinação é a variável que poderá virar esse jogo no segundo semestre. E isso é tão sério que não deveria estar entregue às vacilações do Ministério da Saúde. Enquanto o Ministério da Economia não entender que a economia não será definida por pequenos pequenos detalhes dos indicadores econômicos, mas sim pelo grande cenário da saúde, o país ficará onde está.
O ano está só começando, e o PIB pode ter realmente uma recuperação, mas, para ir além de uma alta meramente estatística, o governo tem que ter um programa crível para lidar com a crise fiscal e ao mesmo tempo saber que estímulos dar à economia. Mesmo antes da pandemia, a agenda econômica da atual equipe tinha sido sabotada pelo presidente da República. A pandemia elevou todos os riscos. Em 2021, a única possibilidade de sucesso depende de que o governo, como um todo, entenda que não há escolha possível entre economia e saúde. A saúde é hoje a maior questão econômica.
Vinicius Torres Freire: Brasil ainda pode ter sucesso com a vacina e alta do PIB com mais miséria em 2021
Como será possível vacinar contra Covid e gripe ao mesmo tempo?
É fácil fazer previsão. Difícil é acertar. Desde o começo do século, dois terços das previsões de crescimento da economia feitas em dezembro (para o ano seguinte) estavam muito erradas: não ficaram nem dentro do intervalo das estimativas mínima e máxima de “o mercado”.
Talvez seja útil mencionar obviedades importantes para o que vai ser de 2021. O óbvio não tem charme, mas quebramos a cara quando não nos damos conta de que ele é o muro adiante das nossas fuças.
VACINAS. O Brasil pode vacinar 1,5 milhão de pessoas por dia ou mais, em esforço de guerra (se não precisar usar essas supergeladeiras para vacinas modernas). Em tese, daria para vacinar todo o mundo com mais de 18 anos em quatro meses.
Butantan e Fiocruz dizem que podem produzir 1,3 milhão de doses por dia a partir de fevereiro (menos que isso em janeiro, mas mais no segundo semestre), bastantes para vacinar 650 mil pessoas por dia.
Desde que a eficácia e/ou efetividade dessas vacinas não seja uma porcaria e os crimes de Jair Bolsonaro não atrapalhem muito, lá por outubro daria para ter acabado o serviço. Bem antes, haveria grande alívio: daria para quase acabar com o morticínio de idosos, liberar os hospitais, reduzir custos do combate à doença, animar a economia etc. Problema de que pouco se fala: como será possível vacinar contra Covid e gripe ao mesmo tempo?
MISÉRIA. O número de novos miseráveis pode aumentar de 10 milhões a 20 milhões (sem auxílio e sem trabalho). Parece que o país se esqueceu dessa tragédia que começa já neste mês.
INFLAÇÃO: chegará a 6% ao ano em junho. Por mês, deve crescer mais devagar agora, mas o estrago acumulado em 12 meses chegará a isso. É uma dentada na renda real, na capacidade de consumo, da metade mais pobre do país em particular.
TETO. Essa inflação vai permitir um aumento considerável de gasto federal em 2022 (6%). Vai ser difícil manter o teto em 2021 (mas haverá gambiarras). Em 2022, o teto pode se manter graças à contribuição imprevista da inflação. Vantagem para Bolsonaro.
PIB PARA RICOS. Se governo e Congresso não arrumarem confusão maior com o teto, é possível que a economia cresça uns 4% em 2021, dados os juros baixos, os preços de commodities em alta, o dólar menos caro e o crescimento menor do que o previsto da dívida pública, afora acidentes.
Não se quer dizer que o teto seja intocável, mas é grande a chance de, agora, a emenda ser pior do que o soneto. De resto, 4% de crescimento nem repõe o que se perdeu em 2020. Mas pode ser o bastante para remediar a vida de metade da população.
É para pensar: o prestígio de Bolsonaro pode se manter perto de onde está, a depender do sucesso da vacinação, que ele pode faturar sem ter feito nada, e dos miseráveis (vão morrer de fome quietos?).
ELEIÇÃO NA CÂMARA. Desde meados do ano, era óbvio que a disputa pelo comando da Câmara dos Deputados seria crucial e emperraria o Congresso. Se a turba de Bolsonaro vencer, facilita o projeto autoritário. A depender de quem ganhar, vai haver mais ou menos “reformas”, que não serão grande coisa.
REFORMAS. Alguém acha que o Congresso vai arrochar os servidores? Esse é o núcleo da PEC “emergencial”, o arremedo de plano fiscal do governo. Alguém acha que o Congresso vá aprovar reforma tributária “profunda” (que provocaria crise com setores como serviços, entre outros conflitos)? Se eu fosse jogar na “Mega das Reformas”, apostaria no seis por meia dúzia, reforminhas.
Este jornalista prevê também que volte de férias em fevereiro.
Roberto Romano: Carteiradas absolutistas do STF e do STJ
No Brasil, funcionários públicos e suas famílias estão acima de quem paga impostos
A diferença entre regimes absolutistas e Repúblicas modernas reside nos direitos usufruídos pelas hierarquias do Estado. Para garantir apoio ao rei e à centralização do poder o Antigo Regime concede privilégios ao clero e aos nobres. Isenção de impostos, cargos públicos, dignidades, pensões e prebendas, regalos que minam os cofres nacionais. Naquela forma política existem dois setores. O primeiro reúne funcionários estatais. Ministérios, empregos civis e militares se destinam aos nobres. Os padres cumprem idênticas funções, menos as militares. Mas Richelieu se apresenta sob armadura, líder dos ataques aos nobres protestantes. O cerco de La Rochelle mostra um cardeal bélico e político que tenta esmagar minorias.
Nobres e clero recebem trato diferenciado na vida política, econômica, cultural. Quando não herdam cargos e privilégios, seus integrantes os compram. A garantia do poder centralizador, portanto, está na corrupção e na venda de apoio ao governante.
Daí surge a bipartição das pessoas. Quem se move no aparelho do Estado usufrui prerrogativas e privilégios, generosos se o rei precisa de ajuda. No outro lado, as pessoas sem prerrogativas nem privilégios, salvo quando elas possuem dinheiro para comprar cargos. O Estado ostenta dois tipos de súditos: os que recebem todas as graças, o clero e a nobreza, e os que integram um terceiro setor sem rosto próprio.
A Revolução Inglesa do século 17 institui a República, atenua os privilégios, amplia os direitos universais. Um exemplo: no exército os postos são herdados pelos nobres ou adquiridos por graça real. Como os aristocratas usam perucas enormes, símbolo de sua superioridade, os republicanos abolem as ditas perucas, uniformizam o corte de cabelo, estabelecem critérios de mérito para a entrada na hierarquia das forças armadas. É o tempo dos cabelos militares curtos (os Roundheads, simultâneos ao New Model Army, cuja estrutura é oposta à do Antigo Regime), que desafiam os privilégios dos nobres. Em todos os setores do Estado republicano ocorrem mudanças rumo à igualdade.
Os puritanos, expulsos da Inglaterra por sua fé religiosa e política, fundam na América do Norte um Estado no qual, em vez da pretensa superioridade de elites, regem o princípio da accountability (retomado pelos republicanos da ordem democrática grega), a livre imprensa (basta ler a Areopagítica, de John Milton) e direitos iguais. A presença norte-americana na Revolução Francesa é relevante: liberdade, igualdade, fraternidade.
As origens sociais (nobre/plebeu) deixam de valer no Estado moderno. Um funcionário, juiz da mais alta Corte ou governante, não herda nem transmite cargos ou privilégios aos seus familiares. Entra-se na hierarquia estatal por mérito (concurso) ou por eleição popular. Nos Estados Unidos vigoram as duas formas: juízes são concursados ou eleitos. Em ambas as hipóteses as vantagens e desvantagens dos cargos pertencem ao indivíduo, não à sua família. Esta última pode ter importância nas campanhas políticas ou em acertos financeiros ilegais para provimento de funções. Mas a regra é a plena separação dos indivíduos e de sua grei familiar.
Certa feita sou convidado para a posse de um desembargador amigo. Chego ao salão, onde fitas de isolamento separam dois terços do espaço. Uma hostess vestida de vermelho – o Judiciário aprecia muito tal cor – me pergunta: “O senhor é de alguma família ou apenas convidado?”. Apenas convidado... Espantei-me: na casa da Justiça paulista uma cerimônia pública reduzida a festinha “dos entes queridos”! O Estado posto como propriedade familiar: dois terços para os familiares, um terço para a cidadania. É o que vemos no Brasil, renitente em usos e costumes absolutistas, pré-republicanos. Os funcionários – juízes, parlamentares, governantes – e suas famílias estão acima dos que pagam impostos.
No final de 2020 continua a ausência total de accountability nos Poderes nacionais: Executivo, Legislativo, Judiciário. A cidadania recebe nova bofetada absolutista na face: o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), pretensos garantidores da República e da igualdade, exigem tratamento especial na aplicação de vacinas contra a covid para seus integrantes e familiares. O sistema político e jurídico deve ser coerente: na Constituição republicana as leis precisam ser assumidas por todos e cada um dos cidadãos. Ninguém vive com segurança num país onde ocupantes dos Poderes podem, pelo uso de sua carteira profissional ou por importância política, separar o corpo nacional em dois, como no Antigo Regime. Com o ato ignóbil dos tribunais superiores é solapada a base física e anímica da República. Cortes são necessárias para manter a lei. Mas se elas próprias corroem a fé pública com exigências de privilégios – no caso, a vida e a morte dos brasileiros estão em jogo –, perdem serventia e podem ser fechadas sem grandes comoções públicas.
Termino: os excelentíssimos magistrados deveriam estudar a história do STF e do STJ. Dos muitos feitos execráveis desses tribunais, a carteirada na fila das vacinas é dos mais hediondos.
*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)