vacina
Míriam Leitão: Butantan e Fiocruz na luta real do país
Vamos entender o que aconteceu nesta pandemia. As duas grandes e centenárias instituições de saúde pública, com as quais o Brasil sempre contou, fizeram de novo o seu papel. Foram atrás de vacinas, estabeleceram parcerias, negociaram contratos para trazer os imunizantes e, depois, produzir localmente dois produtos que nos ajudarão a salvar vidas. O país soube em momento extremo, uma vez mais, que pode contar com a Fundação Oswaldo Cruz e com o Instituto Butantan. Com o presidente da República, o Brasil não pode contar.
Nos últimos dias o governo de São Paulo errou na comunicação. Principalmente na semana passada, quando sobrou discurso político e faltou objetividade científica. Especialistas ouvidos pela coluna acham que eles acertaram na comunicação de terça-feira, quando informaram a taxa de eficácia global de 50,38%. Bolsonaro ironizou ontem o percentual, perguntando aos do cercado, na porta do Palácio: “Essa de 50% é uma boa?” Todos os cientistas e médicos ouvidos dizem que é sim uma boa. Se o percentual de eficácia fosse maior, seria melhor.
Uma fonte do governo, mas que não vê o momento atual com olhos de torcida política, me disse o seguinte: “Os infectologistas avaliam que será uma vacina importante para prevenir formas graves da doença e impedir as mortes, o que já justifica. Seu papel na redução da transmissão da doença será menor, mas a vacina cumpriria um dos papéis esperados: reduzir muito as formas graves.”
A epidemiologista e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de SP, Maria Amélia Mascena Veras, disse que a CoronaVac e as outras vacinas desta pandemia não foram desenhadas para evitar a transmissão. Elas pretendem diminuir a carga da doença na população e reduzir os casos graves. E, se isso acontecer, já terão um efeito importante, inclusive de abrir espaço nos hospitais para tratar outras doenças que não tenham a ver com a pandemia.
— A vantagem da CoronaVac é que é tecnologia conhecida, muito segura. Pode ser produzida no Brasil com custo baixo e imunizar muita gente. A segurança é importante, não ter efeitos colaterais graves. Toda a logística de implementação de uma vacina como essa facilita muito a vida. A vacina de Oxford tem os mesmos requisitos de vacinação. As duas atendem muito o contexto brasileiro. Que venha logo também a da AstraZeneca — disse.
O Butantan nos trouxe a CoronaVac. A Fiocruz, a Oxford-AstraZeneca. Os cientistas e servidores dos dois institutos passaram por terreno minado para trazer imunizantes. A Fiocruz nem importadora é, mesmo assim, fez o acordo com o Instituto Serum, indiano, para comprar o primeiro lote de dois milhões de doses. O Butantan já colocou no país seis milhões de doses e está preparando outras quatro milhões. É o que se esperava dos institutos de pesquisa e é o que eles têm feito.
O governo de São Paulo usou um tom político na divulgação. Deveria abandonar isso. O momento é de sobriedade. O governo federal tem errado muito mais, porque o tom é dado pelo próprio presidente, que faz blague no meio da tragédia e alimenta a campanha antivacina. Bolsonaro torce contra a vacina.
Cientistas e médicos brasileiros criaram o Observatório Covid-19 BR. Uma iniciativa independente para ajudar o país a compreender esse emaranhado de informação. Dele faz parte a médica Maria Amélia Veras. Dele faz parte José Cássio de Moraes, que é doutor em saúde pública pela USP e também é professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Perguntei a ele se a CoronaVac é boa:
— O desfecho que se quer para uma vacina, qualquer uma, é evitar casos graves e mortes. Nenhuma está neste momento tentando evitar a transmissão. O objetivo da vacina do sarampo é eliminar o sarampo, o objetivo da vacina da pólio é erradicar a pólio, o objetivo imediato de todos os desenvolvedores de vacina nesta pandemia foi reduzir a gravidade, diminuir o número de casos graves e dar uma folga à rede de saúde. A queda dos casos graves tem um efeito indireto nas transmissões, porque são os que têm mais carga viral. A CoronaVac não é tudo o que a gente desejaria, mas para o objetivo a que se propôs é boa.
Enquanto Bolsonaro brinca com assunto de extrema gravidade, os médicos trabalham, os cientistas pesquisam, nossos dois institutos de saúde pública buscam proteção para a vida dos brasileiros. É isso que está acontecendo no Brasil.
Zeina Latif: O próprio umbigo
Decisões autoritárias atendem ao desejo de uns poucos, em detrimento do cidadão
O governador João Doria ganhou a eleição prometendo diminuir o desperdício de recursos públicos, reduzir o papel do Estado e estimular o empreendedorismo. Com esse espírito, tem conseguido aprovar importantes iniciativas na Assembleia Legislativa. Não se pode acusá-lo de estelionato eleitoral ou inação.
A má notícia é a ação, de legitimidade questionável, de agentes públicos e de grupos do setor privado para bloquear medidas que já passaram por deliberação pública. Uns poucos que defendem seus interesses sem considerar as consequências sobre o restante.
O Complexo Constâncio Vaz Guimarães (Complexo Esportivo do Ibirapuera) ocupa uma área de 92 mil m2 em região valorizada de São Paulo, mas está obsoleto, malconservado e subutilizado. Seriam necessários ao menos R$ 400 milhões para sua recuperação, e seu custo anual aos cofres públicos é da ordem de R$15 milhões.
O governo do Estado decidiu, então, repassá-lo à iniciativa privada, que irá construir novas instalações esportivas e comerciais. Caberá ao poder público buscar o equilíbrio entre o atendimento às finalidades de lazer, esporte e entretenimento, em benefício dos cidadãos, e a viabilidade econômica do empreendimento, para atrair investidores.
Os críticos avaliam o Complexo como um patrimônio cultural e arquitetônico, apesar de, cercado por muros, ser pouco conhecido pela população e não integrado à cidade. O Tribunal de Justiça de São Paulo acolheu a ação popular e suspendeu a publicação do edital de concessão, contrariando a lei aprovada na Assembleia Legislativa e invadindo a análise do órgão competente – o Condephaat, que negou seu tombamento.
Se assim for, que seja definido quem pagará a conta, não só da reforma e manutenção do Complexo – em respeito à Lei de Responsabilidade Fiscal –, mas da receita que deixará de ser gerada.
A Justiça de São Paulo, em outra frente, desta vez em assunto municipal, suspendeu a demolição do chamado tobogã do estádio doPacaembu, em resposta a uma ação da associação de moradores do bairro e contrariando o Conselho Municipal de Preservação de Patrimônio Histórico (Conpresp), que autorizou sua demolição, preservando as demais áreas. O tobogã, de 1970, substituiu a concha acústica da década de 1930.
A concessão do estádio à iniciativa privada, aprovada pela Câmara Municipal, prevê a construção de um complexo comercial e poderá trazer novos empreendimentos ao bairro, que sofre as consequências de seu próprio tombamento – muitas casas vazias em área nobre central. A decisão da Justiça poderá inviabilizar o empreendimento.
São decisões autoritárias atendendo ao desejo de uns poucos, mas impedindo um melhor uso de vazios urbanos, em benefício do cidadão, e afastando o investimento privado. Não há como investir em um país com um poder público excessivamente intervencionista e com mudanças de regras do jogo ao sabor de poucos.
Outro exemplo de ação contra a coletividade é a reação de grupos do setor privado à redução de benefícios tributários do ICMS, autorizada pela Assembleia. O plano do governo estabelece um corte médio de 20% dos benefícios para produtos com alíquota inferior a 18%. Apesar de haver formas mais eficientes de proteger os mais pobres, foram mantidas as regras para as cestas básicas de alimento e de remédios genéricos. A alíquota de remédios fora da cesta básica subirá de 12% para 13,3% e de produtos isentos, para 4,14%. A intenção é reduzir a renúncia tributária de R$ 43 bilhões, valor excessivo diante da arrecadação de R$ 150 bilhões do ICMS. Uma soma que compromete o investimento público e as ações sociais.
A agropecuária, um dos poucos setores que ganharam na pandemia, pressiona e ameaça com “tratoraço” em protesto pelo aumento da tributação de insumos agrícolas. A propósito, foram vendidos no varejo 6.793 tratores com rodas em São Paulo em 2020 – uma alta de 3% em relação a 2019.
Um País difícil, em boa medida por conta de muitos olharem apenas o próprio umbigo.
*CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP
Ricardo Noblat: O Dia D e a Hora H da Operação Ponte-Aérea da Vacina
Coisas de quem usa farda
Em um governo que emprega mais de 3 mil militares em funções tradicionalmente reservadas a civis e que alçou ao comando do Ministério da Saúde um general que não sabia o que era o SUS (Sistema Único de Saúde), é natural o uso de expressões que remetem a atos de guerra para anunciar suas intenções.
O general Eduardo Pazuello havia dito que a vacinação em massa contra o coronavírus teria início no Dia D, que lembra a data do desembarque dos países aliados nas costas da Normandia durante a Segunda Guerra Mundial para libertar a França ocupada pelo Exército alemão do ditador nazista Adolph Hitler.
Agora, Pazuello diz que haverá uma Operação Ponte-Aérea para distribuição da vacina aos Estados. Como a Alemanha, ao fim da guerra, fora dividida em dois Estados – um administrado pelos aliados ocidentais e outro pelos soviéticos -, Berlim, a capital, ficou dividida em duas partes – a oriental e a ocidental.
No final de junho de 1948, Josef Stalin, chefe do Estado soviético, ordenou o bloqueio de rodovias e ferrovias e do transporte fluvial para Berlim Ocidental. A resposta dos aliados ganhou o nome de Operação Vittles. Foi a maior operação área de ajuda humanitária jamais vista até então. Ela salvou os berlinenses da fome.
Faltava Pazuello dizer quando seria o Dia D do início da vacinação – não falta mais. Na próxima terça-feira, em um evento cercado de muita fanfarra no Palácio do Planalto e transmitido ao vivo pela televisão, o país assistirá à imunização do primeiro brasileiro. No dia seguinte, a Operação Ponte-Aérea será deflagrada.
Campanhas de vacinação no Brasil sempre começam ao mesmo tempo em todos os lugares, mas desta vez não será assim. O governo federal despertou tarde para o fato de que a vacina é a salvação. E o presidente Jair Bolsonaro, favorável à morte de quem tiver de morrer, sabotou a vacinação o quanto pôde.
Há outra razão para que a Operação Ponte-Aérea por enquanto só contemple as capitais: não há vacina suficiente. O Estado de São Paulo tem 8 milhões de doses estocadas, por ora, sem licença para aplicá-las. E o governo federal só irá dispor de 2 milhões de doses buscadas às pressas na Índia e que chegarão neste sábado.
De resto, apenas neste domingo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reunirá sua diretoria para decidir se libera ou não o uso das duas vacinas – a Oxford/Astra Zeneca importada da Índia, e a CoronaVac, a vacina chinesa que aqui já começou a ser produzida pelo Instituto Butantan, em São Paulo.
Quanto a seringas e agulhas sem as quais não haverá vacinação, o Ministério da Saúde informou ao Supremo Tribunal Federal que caberá a Estados e municípios providenciá-las. Não será surpresa para este blog se 2021 terminar sem que termine a vacinação de todos os brasileiros que queiram ser imunizados.
Ascânio Seleme: O Brasil de Bolsonaro afunda
País vive sob o comando de um alucinado
Os sinais estão espalhados por todos os lados. Só não vê quem não quer. O Brasil de Jair Bolsonaro desmorona. Todos os erros cometidos ao longo dos dois primeiros anos de seu mandato começam a ser cobrados. O problema é que a conta será paga por todos, inclusive por aqueles que têm pavor da figura presidencial, como você e eu.
Na terça-feira, o francês Emmanuel Macron expressou um sentimento com que a maioria dos líderes europeus concorda, o Brasil de Bolsonaro não é um país confiável. Como não se obtém um compromisso em favor do meio ambiente e da Amazônia, muito menos medidas nesse sentido, Macron propôs um boicote à soja brasileira. E sugeriu que se plante soja em solo europeu. Para Macron, continuar dependendo da soja brasileira seria “endossar o desmatamento da Amazônia”.
Talvez o presidente francês não ignore que os grandes produtores de soja brasileiros não cortam uma árvore nativa nem acendem um palito de fósforo nas florestas brasileiras há pelo menos 20 anos. Que os incêndios e as derrubadas de matas são feitas hoje em dia por madeireiros, garimpeiros, grileiros e pequenos produtores rurais, muitos deles de assentamentos de sem-terra. Mas há um símbolo nisso que precisa ser mantido.
Macron ataca esse símbolo, a política governamental brasileira que aceita e incentiva esses desmatadores, mesmo que sua contribuição para a economia nacional seja mixuruca perto da riqueza que geram os grandes produtores rurais. Estes, que já estavam sob enorme pressão graças a nosso bolsonarismo ambiental, agora ouvem do presidente de um dos dois maiores países agrícolas da Europa que é hora de reagir contra a soja nacional.
O relatório anual da Human Rights Watch (HRW), divulgado ontem, também ataca o frouxo combate do governo brasileiro ao desmatamento e às queimadas. Para os terraplanistas que cercam ou seguem cegamente sua excelência, a entidade deve ser ignorada porque é uma “ONG esquerdista”. Sobre Macron, devem fazer referência a sua mulher, como as que o nosso misógino presidente um dia fez, por isso ele também não deve ser levado em conta.
Agora, perguntem aos produtores rurais o que eles acham disso. O Ministério da Agricultura divulgou uma nota vaga dizendo que Macron estava enganado, que a soja brasileira é produzida de modo sustentável. Não foi assinada pela ministra Tereza Cristina e não se referiu ao relatório da HRW.
De outro lado, a Ford anunciou sua saída do Brasil. As razões devem ser as alegadas, por reposicionamento global da empresa, pelo movimento do mercado etc. Mas é evidente que o ambiente de negócios sob Bolsonaro não estimula qualquer argumento contrário. Macron, que está do outro lado do Atlântico, percebeu que este não é um país sério. Imagine, então, o que pensam os dirigentes da montadora que operam aqui dentro.
Se até o Banco do Brasil, joia do Estado nacional, orgulho provinciano de muitas gerações de brasileiros, anunciou um plano de demissão voluntária para acertar suas contas, pense como estão os outros bancos, as outras empresas que operam em solo pátrio, debaixo da incompetência governamental que conhecemos. Quem puder pular fora vai pular. Mesmo com algum prejuízo, a contabilidade mais adiante pode comprovar o acerto da saída.
Além das muitas deficiências nacionais (falta de infraestrutura, sobretudo ferroviária, produtividade baixa, barafunda tributária), o país agora vive sob o comando de um alucinado que só se ocupa de política. Pior, do lado escuro e sombrio da política. O mesmo relatório da Human Rights Watch acusou nominalmente Bolsonaro por tentar sabotar as medidas contra a Covid-19. A ONG afirma ainda que o governo mais espantoso que o país já viu incentiva a violência policial e desrespeita os direitos das mulheres, dos índios e de pessoas com deficiência.
O Brasil de Bolsonaro afunda no modo acelerado. Tudo o que ele puder fazer para jogar o país para baixo, vai fazer. A herança que deixará será maldita, essa sim. Para lá de maldita.
Paulo Delgado: Incógnitas e lutas caducas
O Brasil parece renunciar ao amor por seu povo. Não há melhores a imitar
Aos trancos e barrancos, em violentas erupções eles governam. Se o país está quebrado, é hora de comprá-lo. Barão de Rothschild vaticina: a riqueza troca de dono quando há sangue nas ruas. Os mercados lucram com a miséria humana, explica o New York Times, porque as bolsas estão bombando na pandemia.
Como o presidente libera sentimentos que ninguém quer ver e em geral destrói todos os que cometeram o erro de nele acreditar, há alguma coisa no ar que não fecha. Declarar a insolvência do Brasil sabendo da manipulação da descrença que a isso se segue permite supor que alguém já lhe deve mais do que ele jamais poderia dever.
Brasil e EUA vivem a moléstia do vitorioso mal-agradecido que debilita a glória de presidir o país pela mortificação pessoal de ocupar cargo acima de seu nível. Porque esse negócio de dizer que não pode fazer nada quer dizer que não pode fazer tudo em regime legal. Alusão ao mundo subterrâneo, motor da palhaçada ultrajante no Capitólio querendo produzir torpor na democracia.
A democracia não tem a velocidade maldosa do impune. Não detém sua esterilidade petulante, nem suaviza a dureza da pedra ou incute valores morais em atitudes destrutivas. Basta uma declaração para resumir a aversão ao diálogo, como campeão de lutas caducas.
Dois países, um mole, outro desarranjado, assistem ao êxtase de líder errado, num concurso de paixão sem razão e capacidade de frear. Impeachment é por crime de responsabilidade. De irresponsabilidade é interdição, desqualificação por circunstância. Como a sorte lançou votos em seu caminho, drenar o pântano é aposentar quem não entende as dificuldades da vida normal e fazer regredir a preferência pelo conservadorismo político desinformado e pelo liberalismo tosco.
O poder não se comove. Quando diz decência pode significar indecência. A confusão se amplia. O excesso de estimulação que recebe o governante produz um vazio extremo no governado que confunde poderoso como alguém de ego forte. Negativo. Forte é a circunstância do ambiente facilitador em que vive. A má autoridade não injuria ou zomba de ninguém. A agressão vem do lugar que ocupa.
Há uma inversão na ordem. Dois países gigantes perdem a fé na sua força por não saberem lidar com problemas pessoais de presidentes e o ambiente de fúria e inveja que propagam. Muitas autoridades trazem de casa seus costumes e ampliam a confusão entre o público e o privado.
O Brasil vive uma desnecessidade de poder. Como se os anéis justapostos do arbítrio, da criminalidade e do delito produzissem uma atividade motora que vai do indivíduo à autoridade, do crime ao tribunal, sem distinção ou limite. Quem julga o juiz em nossa pátria? Quem detém do governante o delito? Quem protege a paz do cidadão? As instituições começam a não desempenhar papel relevante na vida pública, com mãos soltas para executar o que for.
Erra também o Banco Central se deixa sua independência ser entendida como garçonnière de bolsa e suas fantasias. Alienação baseada em comodismo acadêmico supersticioso: considerar o mercado amante volúvel, sem emprego e produtividade. E supor economicamente irracional pensar também em metas de confiança, pleno emprego, crescimento econômico e estabilidade da moeda. Sozinha e paparicada, a moeda especulativa, dogma do iliberal brasileiro, é uma desmaterialização produtiva, que permite que valorização no mercado de ações seja desvinculada da economia real. A economia financeira do risco e som de canhão acha que a paz dá prejuízo.
Assim começa janeiro. A terceira pré-estreia desse filme de quatro anos. E a bagunça geral vai produzindo um País sem testemunha que não sabe que a sucessão no Congresso é a principal decisão econômica de 2021. Ou continuaremos a assistir a bolsa rica e bolso pobre; especulação subir, produção sumir; o empresário investir, o imposto comer; o jovem crescer, o emprego desaparecer. Agravado pelo erro de querer desvincular empresa e escola nas políticas para jovens vulneráveis. Trabalho sem estudo é gasolina na evasão escolar, ponte inútil para o futuro.
O Brasil parece renunciar ao amor pelo seu povo. Não há melhores a imitar. Desde 1926, de Araraquara Mário de Andrade alertava: “Se três brasileiros estão juntos estão falando porcaria... Pode ser que os outros sejam mais nobres. Mais calmos certamente que não. Mas não tenho medo de ser mais trágico... O presente é uma neblina vasta. Hesitar é sinal de fraqueza, eu sei. Mas comigo não se trata de hesitação. Trata-se de uma verdadeira impossibilidade, a pior de todas, a de nem saber o nome das incógnitas”. Enfim, estão aí o ano novo e o mesmo presidente sem horizonte.
Não é a primeira vez que o Brasil vive o amor devorante do narcisista que parece deixar-se amar para levar do outro os esforços em proveito de si mesmo. Diante do deboche e da audácia releiam Macunaíma. Para pular cedo da canoa, dar uma chegada até a foz do Rio Negro, buscar a consciência ali deixada e ajudar a tirar do buraco o ano novo.
*Sociólogo.
Bruno Boghossian: Doria fica mal na foto e dá munição a opositores alucinados da vacina
Doria fica mal na foto e dá munição a opositores alucinados da vacina
Na semana passada, o showman João Doria anunciou que a Coronavac tinha "eficácia de 78% a 100%" contra a Covid-19. "Esse resultado significa que a vacina tem elevado grau de eficiência para proteger a vida dos brasileiros", derramou-se. Já nesta terça-feira (12), o governador João Doria não apareceu para explicar que a taxa global de eficácia do imunizante é de 50,38%.
Sedento pelos dividendos políticos da guerra de imunização travada com Jair Bolsonaro, o tucano decidiu maquiar os dados de uma boa vacina para que ela parecesse ainda melhor. Não funcionou: Doria ficou mal na foto e prestou um desserviço ao país ao dar munição para os alucinados opositores da vacina.
O Instituto Butantan tem um imunizante promissor. A Coronavac é segura, reduz pela metade a chance de desenvolvimento da doença, pode ser produzida em larga escala e tem características que permitem sua distribuição com facilidade. Deveria ser suficiente, mas a política parece ter falado mais alto.
Foi Doria quem criou a ilusão de que a eficácia de 50,38% –acima do sarrafo da Organização Mundial da Saúde– poderia ser considerada decepcionante. Quando apresentou o dado turbinado de 78%, ele mesmo escolheu dizer que "esse resultado" era sinal de que a vacina tinha "elevado grau de eficiência". Um número menor, portanto, corre o risco de ser observado com outros olhos.
O governador paulista deixou a ciência no gabinete no anúncio da semana passada. Contou só metade da história e escondeu uma parcela importante dos dados. Se Doria optou pela manobra ou se foi mal assessorado, a discussão se dará entre o Palácio dos Bandeirantes e o Instituto Butantan. De qualquer modo, a responsabilidade política é só dele.
Doria apostou alto na Coronavac e forçou o governo federal a correr atrás dos planos paulistas. O tucano fez festa em cada etapa do processo de desenvolvimento do imunizante, mas se omitiu no momento crucial de mostrar os detalhes da vacina. O showman engoliu o governador.
Alon Feuerwerker: Que comece o jogo
Como já foi dito aqui, uma vantagem da disputa política entre o governo federal e o paulista em torno da vacinação contra a Covid-19 é a corrida ter entrado no estágio em que ambos querem mostrar serviço. Bom para a população que precisa ser vacinada. Afinal de contas, que os políticos briguem, mas o cidadão e a cidadã comuns querem mesmo é uma vacina segura e eficiente.
O ministro da Saúde informou que os estados receberão as vacinas três a quatro dias após a chegada delas ao país ou a liberação pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) (leia). Que este dia chegue o mais rápido possível. Há muita espuma no debate, mas ainda estamos em tempo, na comparação com outros países da dimensão do nosso.
E temos uma vantagem: uma máquina de vacinação construída e azeitada ao longo de décadas. Basta que a entropia política dê uma folga e as autoridades se concentrem na missão de fazer a coisa acontecer. Pois, ao fim e ao cabo, elas serão julgadas nas urnas de 2022 pelo que fizeram ou deixaram de fazer, e não tanto pelo que se disse delas.
Acabou o pré-jogo, agora a decisão é em campo.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Míriam Leitão: Visão de quem já liderou o PNI
Há um risco de que as pessoas se vacinem e não voltem para a segunda dose, tomem várias vacinas ou tomem vacinas diferentes. Nunca foi feita uma imunização em duas etapas. Quem aponta esses riscos é a ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI), Carla Magda Domingues. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, deu ontem mais uma das suas respostas inaceitáveis. “Vai ser no dia D, na hora H”. Como sempre ele zomba da natural ansiedade do país.
O PNI sempre foi reconhecido pela excelência e capacidade aqui e no mundo, mas o governo Bolsonaro criou o Plano Nacional da Vacinação contra a Covid, um braço dentro do PNI. E o que está sendo divulgado até agora é insuficiente para entender o que o governo pretende, e como evitar os riscos, na opinião da Carla Magda, que teve a responsabilidade de comandar o Programa:
— O que temos hoje do plano é uma definição de vacinação dos primeiros grupos, os prioritários, mas acho que a gente para por aí. Não temos um detalhamento claro de como vai ser feita a vacinação e esta é uma realidade nova, nunca fizemos campanhas em massa de duas doses.
Ontem, Pazuello disse que na vacina da AstraZeneca, que será produzida pela Fiocruz, o governo está pensando num espaçamento maior. Isso é sustentado em estudos clínicos, me disse na semana passada a Fiocruz. De qualquer maneira, será necessária a segunda dose. A ex-coordenadora do PNI alerta que as duas doses tornam o programa mais complexo:
—Como convocar as pessoas duas vezes? O meu medo é de que elas vacinem e não voltem, que tomem vacinas diferentes. Na febre amarela, teve gente que tomou quatro vezes. Os supervacinadores vão querer tomar muitas. E elas não são intercambiáveis. Se toma uma, tem que seguir com o mesmo laboratório.
Ela diz que tem que ser montado um sistema nominal, porque diante da diversidade de vacinas de laboratórios e tecnologias diferentes, o que é uma novidade, a complexidade do programa aumenta muito.
— Vamos ter que pegar nome, CPF, endereço para fazer o registro nominal. Imagina fazer isso para 100 milhões ou mais. A ideia de fazer o sistema nominal está lá, mas é ainda intenção, muito incipiente. Já foi colocado que vai ter sistema de informação, o Conecta SUS, mas isso já deveria estar na rua, com campanhas de publicidade. Quanto tempo ficou rodando a campanha para o título eleitoral eletrônico? Pelo menos quatro meses. E deu problemas — diz.
Domingues acha que nenhuma agência vai autorizar vacina em quem tem menos de 20 anos porque não houve testes clínicos nessa faixa etária. E que não é necessário imunizar toda a população. Os adultos são 150 milhões, mas ela acha que basta ter como alvo 100 milhões. Na vacina de H1N1 foram 90 milhões imunizados.
Uma grande preocupação da especialista são as fakenews. Em qualquer população ocorrem eventos adversos como infarto fulminante, morte súbita, câncer, mortes sem qualquer nexo causal com a vacina:
— Já há notícia falsa circulando de que vai alterar o sistema imunológico das pessoas. Será preciso montar um sistema de vigilância rápido para investigar os casos, a população vai achar que a vacina está matando gente. O plano diz que isso precisa ser feito, mas não mostra como vai ser feito. Se eu tomar a vacina e passar mal, para onde ligo? Quem vai investigar? Isso não se sabe.
O Ministério terá que avisar que todos terão que continuar a usar máscara por pelo menos todo o ano de 2021, afirma ela. Porque uma parte estará vacinada, mas outra não, e nem todos terão a resposta imune. Se nem agora o Ministério faz isso, imagine depois de começar a vacinar.
Carla está preocupada também com as outras doenças que precisam de imunização, e a afirmação do presidente Bolsonaro de que vai esperar preço de seringa cair. Ou seja, não comprou quando deveria e agora posterga. Ela conta que existem 5 milhões de profissionais de saúde, que serão imunizados com o produto importado. Acha que depois deveriam ser os professores.
— As crianças precisam voltar para a escola. O risco é muito grande de ficarem sem aula. Depois da saúde é o professor, sem dúvida. Na minha época, era feita a decisão técnica e ninguém nunca se meteu. Agora já houve três interferências do governo — diz.
Com a responsabilidade de quem já comandou o programa, ela lamenta a politização da vacina.
Eliane Cantanhêde: ‘Dia D e hora H’
Como Dilma, Pazuello não tem meta nem vacina, mas vai dobrar meta e vacina, um dia, talvez
O papa Francisco, o próximo presidente americano, Joe Biden, a rainha da Inglaterra, Elizabeth II, o seu marido, príncipe Phillips, e até o vice-presidente brasileiro, Hamilton Mourão, que já teve a doença, estão se vacinando ou já anunciaram que vão se vacinar contra a covid-19, dando exemplo para os cidadãos de seus países e para o mundo. E o presidente Jair Bolsonaro?
A pandemia não está no “finalzinho”, como ele chegou a dizer quando o vírus voltou a disparar em dezembro, e as vacinas são a única salvação contra seus efeitos assustadores no número de mortos, contaminados, desempregados e empresas quebradas. A última vítima, muito doída, foi a montadora norte-americana Ford, que foi a primeira indústria automobilística a se instalar no Brasil, em 1919, e abandona o País depois de mais de cem anos.
Em comunicado, a empresa alegou que a covid-19 “amplia a persistente capacidade ociosa da indústria e a redução das vendas, resultando em anos de perdas significativas”. Ou seja: a covid-19 não é a única causa da debandada, mas potencializa o custo Brasil, a falta de segurança jurídica, a desordem tributária, as reformas estruturais que nunca vêm, a crise fiscal que se eterniza, as promessas que não são cumpridas e, como frisou o deputado Rodrigo Maia pelas redes, “a falta de credibilidade do governo brasileiro”. E a Ford joga a toalha justamente quando o Brasil se debate na turbulência das vacinas.
Nem mesmo a ex-presidente Dilma Rousseff, campeã de pérolas, como a mandioca, o cachorro, a “mulher sapiens”, a estocagem do vento e dobrar uma meta sem meta, faria melhor que o general Eduardo Pazuello. Dilma anunciou um programa sem meta e prometeu que, assim que tivesse meta, dobraria essa meta. Pazuello faz tudo o que seu mestre mandar, ataca a mídia e, firme, resoluto, define com precisão que as vacinas vão começar “no dia D, na hora H”. Puxa!
Enquanto EUA, Reino Unido, Canadá, Alemanha, México, Chile, Argentina, Costa Rica e uma fila enorme de países vão vacinando suas populações, no Brasil estamos empacados tanto no “dia D”, que já foi em março, depois fevereiro, depois dezembro e agora pode ser janeiro, ou fevereiro, quanto na “hora H”, que pode ser qualquer uma, desde que Bolsonaro e o ministro da Saúde vacinem o primeiro brasileiro antes do governador João Doria. Para Bolsonaro, que manda, e Pazuello, que obedece, o importante não é vacinar, é vacinar primeiro; não é ter doses para todos, basta uma única dose para a foto.
O problema é que até agora, meados de janeiro, só há uma vacina disponível para ser aplicada no Brasil: a Coronavac. Parte chegou em lotes já prontos da China, outra parte em forma de insumos para o nosso Butantã processar. Assim, a guerra entre Bolsonaro e Doria desabou numa corrida desenfreada entre a Coronavac e a Oxford-AstraZeneca, que, para driblar a falta de doses no Brasil, encomendou às pressas dois milhões à Índia. Não faz nem cosquinha numa população de 210 milhões de habitantes, mas é o suficiente para atropelar a “vacina do Doria”, ou “da China”. E a Anvisa dita o ritmo da corrida...
Bolsonaro olha ao redor, pressiona pelo “dia D”, fica de olho na “hora H” e avalia em que momento vai jogar suas culpas macabras em Pazuello, na mídia, na indústria, nos governadores e no Doria. Ele não quer saber de eficácia de vacina, só do efeito dos atrasos e da incompetência na sua imagem, popularidade e reeleição.
Logo, o importante não é vacinar para salvar vidas e conter a pandemia. É ter uma vacina para se imunizar contra a própria culpa e responsabilidade e continuar contaminando aquele terço da população que pode até não tomar vacina, mas engole tudo o que Bolsonaro fala e faz.
Marco Aurélio Nogueira: Brincando com coisa séria
Não é compreensível o vaivém na questão da eficácia das vacinas. A competição é outra
A cena assemelha-se a uma competição de adolescentes para saber quem atira a pedra mais longe ou que repica mais vezes na água do lago. Só que os personagens são adultos e a brincadeira está mexendo com coisa séria, afeta diretamente a vida de milhões de pessoas.
Se você começar a vacinação no dia 25, eu começo a minha antes, no dia 20. E se você passar para dia 20, eu empurro a minha para o dia 19. E assim segue a valsa, em tom de disputa de fundo de quintal. Triste demais.
O fato é que o País está sem um plano de vacinação pronto e acabado, ao qual o sistema SUS possa se acoplar e funcionar, juntamente com coordenadores estaduais, municipais e federais, de modo a recobrir o território nacional e toda a população, em um prazo de tempo razoável.
Mais importante do que saber quando será dada a primeira dose é saber o cronograma, a disponibilidade das vacinas e a logística. Aí a mula manca. É um silêncio que machuca.
Também não é compreensível, para os leigos sobretudo, o vaivém na questão da eficácia da Coronavac, que já está em fase avançadíssima de aprovação. O governo de São Paulo diz ter passado todos os dados (10 mil páginas) para a Anvisa que, por sua vez, diz ter recebido somente parte deles. A Sinovac e o Butantan afirmam uma eficácia de 78% para casos leves e de 100% para casos graves, o que significaria que a vacina evita a morte. Mas não foram divulgados os dados globais e outras informações importantes. Faltam números do desfecho primário do imunizante, nos quais estão incluídos os recortes populacionais e as faixas etárias, sem os quais a avaliação fica imperfeita. Também não se divulgou a eficácia em idosos.
Tudo indica que a vacina do Butantan será fundamental em termos de proteção e de neutralização das formas mais severas da doença. A briga para definir se sua eficácia é de 78% ou de 65% é completamente irrelevante, mas os gestores parecem acreditar que os números são essenciais em termos de concorrência e mercado. Uma competição esdrúxula, suicida. O que a move é outra coisa. Não é ciência e pesquisa.
A secretaria estadual de Saúde informa que divulgará tudo numa entrevista coletiva convocada para amanhã, dia 12. Isso sugere que ela já tem os dados à mão. Por que então não os apresenta logo e termina com a ansiedade geral da nação? Quem está escondendo o jogo, a Sinovac, o Butantan ou o governo paulista? Ou tudo não passa de problemas com a Anvisa, e seu diretor bolsonarista?
Tudo isso pega muito mal, gera insegurança e desconfiança, mostra falta de pulso e sugere que há mais “política” e malandragem do que seria correto. Politizar nesse grau uma questão tão vital quanto vacinas e vacinação mostra bem o nível a que chegamos
Demétrio Magnoli: Vale tudo
Pandemias enlouquecem pessoas sãs
O governo Bolsonaro, sabotador profissional de cada uma das medidas restritivas destinadas a conter a pandemia, decidiu subitamente adotar uma iniciativa sanitária extremada que viola o direito fundamental dos brasileiros de regressar ao país. O veículo do crime é a Portaria 648, de 23 de dezembro. Ela exige, de todos os passageiros de voos destinados ao Brasil, a apresentação de teste PCR negativo no embarque.
Assinada pelo ministro André Mendonça, da Justiça, por Eduardo Pazuello, do Ministério da Saúde, e por Antônio Barra Torres, da Anvisa, a portaria é um atestado de analfabetismo funcional. No artigo 7, aparece a exigência ilegal. Contudo, antes, o caput explicita que o documento somente “dispõe sobre a entrada no País de estrangeiros”, uma limitação de abrangência reafirmada no artigo 3, segundo o qual “as restrições de que trata esta Portaria não se aplicam ao brasileiro, nato ou naturalizado”. O que vale, afinal?
Nessas plagas por onde cavalgou Abraham Weintraub, esqueça a lógica interna do texto. “Um manda, e o outro obedece”, ensina o rebaixado general Pazuello, um filósofo da nacionalidade. Assim, na prática, explica o Itamaraty, devem-se ignorar tanto o caput quanto o artigo 3. Vale o artigo 7, que efetivamente desloca o controle imigratório brasileiro da PF para as companhias aéreas, numa modalidade inédita de parceria público-privada. Sem o PCR negativo realizado até 72 horas antes do embarque, brasileiros não retornam — a não ser, claro, a bordo de jatinhos privados, pois a portaria renega o princípio da igualdade perante a lei.
E se, em algum lugar do mundo, não há teste disponível no prazo definido? Ou se o teste dá resultado positivo? Nessas hipóteses, o cidadão terá embarque recusado — e deve reclamar ao bispo do aeroporto.
A portaria infringe o mais básico direito fundamental de nacionalidade, que é voltar à pátria, e desafia a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo artigo 13 assegura a todas as pessoas “o direito de regressar ao seu país”. Bolsonaro trocou “a pátria acima de tudo” por “o vírus acima de todos”. Numa decisão liminar, o sábio ministro Humberto Martins, do STJ, confirmou a validade do vale-tudo, invocando a “saúde pública”. Ele assinaria a portaria, expondo falhas educacionais que se estendem do curso de Direito às aulas de interpretação de texto do ensino médio.
Há muito mais coisas erradas entre nós do que imaginam os indignados com Bolsonaro. Analistas conceituados sustentam que a portaria está correta — menos o caput e o artigo 3. Basicamente, argumentam que a saúde pública, um direito coletivo, sobrepõe-se aos direitos individuais, inclusive os fundamentais. Que tal fuzilar portadores do coronavírus para reduzir os contágios?
Pandemias enlouquecem pessoas sãs. Disseram por aí que, especialmente no caso de um PCR positivo, a proibição de embarque é medida indispensável. A opinião, inspirada por um distraído senso comum, sublima o fato conhecido de que não se solicitam testes nos voos domésticos (que são bastante seguros, pois todos usam máscaras, e o ar das aeronaves é trocado em breves intervalos). Mas, sobretudo, ela justifica a mais cruel violação de direitos: o brasileiro doente terá que buscar tratamento no estrangeiro, esteja onde estiver. O correto, obviamente, seria embarcá-lo, adotando cuidados sanitários especiais, como o remanejamento de outros passageiros.
A imprensa demorou a abordar o assunto — e parece encará-lo como uma distração secundária. O ministro Marco Aurélio Mello reconhece os direitos fundamentais que seu colega do STJ despreza e, portanto, registrou a inconstitucionalidade da portaria infame — mas isso foi numa entrevista, não no plenário do STF.
Nenhuma outra nação ousou negar, por meio de ato legal, o direito de regresso de seus nacionais. Diversos países exigem deles testes no desembarque, às vezes junto com quarentenas. O Brasil, porém, quer ser singular, inimitável. Não contentes com um presidente que provoca aglomerações, fenômeno raro, decidimos vetar o retorno de brasileiros, algo único. O governo é o vírus.
El País: Polarização se revela como fator de risco na pandemia
Ideologia e partidarismo atrapalham a resposta à expansão do coronavírus, segundo muitos estudos. Um novo trabalho encontra correlação entre posicionamentos políticos e as mortes por covid-19 em certas regiões
“O vírus se tornou um indicador de identidade tribal”, advertia recentemente o psicólogo social Jonathan Haidt nas páginas do The New York Times. Referia-se à sociedade norte-americana, onde muitos estudos observaram que o cumprimento ou não das restrições para frear contágios de coronavírus está intimamente ligado ao voto dos cidadãos: o partidarismo influi mais no comportamento que a gravidade dos contágios no entorno. Um novo estudo aproxima agora esta realidade tribal ao contexto europeu e, pela primeira vez, mostra uma correlação direta entre as mortes por covid-19 e a crispação política em 153 regiões de 19 nações do continente. “Uma maior polarização social e política pode ter acabado por custar vidas durante a primeira onda da covid-19 na Europa”, conclui esse trabalho.
“Observamos que maiores níveis de polarização predizem [um excesso de] mortes significativamente maior. Por exemplo, a diferença no excesso de mortes entre duas regiões, uma sem polarização das massas (2,7%) e outra com níveis máximos (14,4%), é mais de cinco vezes maior”, aponta o estudo, em processo de publicação por uma revista científica. “Queríamos testar essa possibilidade da que tanto se falou e observamos que há uma associação bastante clara, correlações que vão nessa linha. Há indicadores claros de que [a polarização] prejudica seriamente o desempenho”, afirma Víctor Lapuente, da Universidade de Gotemburgo (Suécia), que assina o trabalho com seus colegas Nicholas Charron e Andrés Rodríguez-Pose, da London School of Economics.
Ou seja, os estragos decorrentes da pandemia aumentavam em regiões europeias onde havia mais divisão entre apoiadores e detratores dos seus respectivos Governos. A polarização é entendida como tribalismo identitário e animosidade contra o outro. Porque, como mostra este estudo, as maiores diferenças em excessos de mortalidade por covid-19 não se dão entre países, e sim entre os territórios dentro dos próprios países. Os autores propõem três mecanismos que explicariam esse fenômeno. Primeiro, que é mais difícil para os Governos construírem um consenso político sobre as medidas; segundo, que as prioridades são definidas em função das exigências dos grupos de pressão (empresários, por exemplo), em detrimento da saúde pública; e, terceiro, porque com a polarização as políticas se tornam mais populistas e menos baseadas em critérios de especialistas.
“Subjaz o medo da reação da mídia, de que a oposição caia matando. Nestas condições, não é possível tomar as melhores decisões, porque o contexto atende aos governantes”, comenta Lapuente, professor da escola de negócios ESADE. Os líderes ficam paralisados pelo medo de exagerarem ou ficarem aquém das circunstâncias, quando, contra a pandemia, a rapidez e a consistência são essenciais. “Seja rápido, sem remorsos. Se você precisar ter razão antes de se mexer, nunca ganhará”, avisou Michael Ryan, diretor de Emergências Sanitárias da OMS, já em 13 de março de 2020. “A Espanha é um caso particularmente sério”, observa Lapuente, “onde o debate foi muito dicotômico e a estratégia da comunicação domina a política”. Em um editorial, a revista médica The Lancet Public Health disse que “a polarização política e a governança descentralizada da Espanha também poderiam ter prejudicado a rapidez e a eficiência da resposta de saúde pública”.
Durante a gestão da pandemia, em alguns países medidas sanitárias que em princípio não têm nada de ideológico acabaram se politizando até níveis extremos. A atitude de Donald Trump sobre as máscaras determinava seu uso nos EUA, assim como o distanciamento social era maior entre eleitores democratas nos EUA, e menor entre partidários de Jair Bolsonaro no Brasil. Um estudo publicado na Nature Human Behaviour detecta “uma forte associação entre os níveis de animosidade partidária dos cidadãos e suas atitudes sobre a pandemia, assim como as ações que adotam em resposta a ela”. Outro, no Science Advances, é mais taxativo: “Nossos resultados apontam para uma conclusão inequívoca: o partidarismo é um determinante muito mais importante da resposta de um indivíduo à pandemia que o impacto da covid-19 na comunidade desse indivíduo”.
Joaquín Navajas, neuropsicólogo do Conicet (agência argentina de pesquisa científica), acaba de realizar um estudo analisando a polarização na resposta popular em quatro países com trajetórias pandêmicas muito interessantes de comparar: Argentina, Uruguai, EUA e Brasil. Primeiro perguntaram às pessoas sobre a quantidade de mortos que haveria em seu país, e não houve surpresas: quanto maior o apoio ao Governo, menor o número de mortos previsto. “O que nos surpreendeu muitíssimo é que não havia absolutamente nenhuma relação entre o prognóstico do número de mortes que citavam e seu grau de concordância com as políticas públicas pensadas para combater a covid”, observa Navajas, diretor do Laboratório de Neurociência da Universidade Torcuato Di Tella. De maneira aparentemente irracional, na Argentina e Uruguai os partidários da oposição prognosticavam mais mortes, mas mostravam menor apoio às restrições impostas por seus líderes para evitá-las.
Neste trabalho, também observaram que a ideologia não é determinante, já que não havia diferenças entre a Argentina e Uruguai, cujos governos têm sinais políticos distintos: os partidários do Governo opinavam da mesma forma em ambos os países, assim como os da oposição – só que um país é governado pela esquerda, e o outro pela direita. “O que importa é o tribalismo partidário”, sustenta Navajas. E acrescenta: “A incerteza sobre a falta de informação nos leva a procurar soluções na liderança. Não é estranho que esses tribalismos tenham se acentuado, durante milênios funcionou nos refugiarmos em nossa tribo para sobreviver”.“Em circunstâncias de alta desinformação e falta de informação, as pessoas observam os exemplos. Só podemos ser racionais se nossos líderes forem racionais”
“Em circunstâncias de alta desinformação e falta de informação, as pessoas observam os exemplos. Só podemos ser racionais se nossos líderes forem racionais”, argumentava recentemente a cientista política Sara Wallace Goodman, da Universidade da Califórnia. Ela publicou um estudo segundo o qual “os norte-americanos interpretam a pandemia de uma maneira fundamentalmente partidarista, e as condições objetivas da pandemia desempenham quando muito um papel menor na configuração das preferências das massas”.
Líderes e falsos dilemas
“Nas crises curtas isso não acontece porque todo mundo segue o líder e se considera traição [não fazê-lo]”, diz Eloísa del Pino, pesquisadora de políticas públicas do CSIC (agência espanhola de pesquisa científica), que estudou a gestão dos asilos para idosos durante a pandemia. “Mas quando essas crises se prolongam e aumenta o potencial de culpabilização, esses fenômenos se dão, e quando as medidas sanitárias se politizam, perdem eficiência”, resume.
A cada fator em disputa surge um falso dilema nas elites políticas e midiáticas, gerando tensão entre os cidadãos, que se sentem empurrados a decidir com teimosia identitária sobre assuntos científicos que desconhecem. Há alguns meses, saiu um estudo que explicava como o apoio político polarizava repentinamente assuntos até então neutros, podendo gerar uma animosidade inclusive maior: “O efeito positivo gerado entre os simpatizantes do partido e do seu líder é compensado pelo aumento da rejeição dos detratores”. Neste momento, o maior apoio à vacina contra a covid-19 na Espanha se dá entre os votantes dos partidos que governam, enquanto os seguidores do partido ultradireitista Vox são os que manifestam maior receio.“É grave que muitíssimas pessoas que morreram teriam se salvado com outra atitude. Isso mostra também que é mais difícil mudar o comportamento humano que conseguir a vacina em menos de um ano”
“Este trabalho [de Lapuente] demonstra que o resultado da pandemia também tem muito a ver com o comportamento das instituições e dos representantes políticos”, aponta Arantxa Elizondo, professora da Universidade do País Basco. Segundo ela, há duas questões que estão constantemente atrapalhando a resposta: o medo da paralisação econômica “e a busca por rentabilidade eleitoral sobre o bem-estar coletivo”. “E isso não é só uma falta de humanidade, é um erro colossal”, denuncia Elizondo, presidenta da Associação Espanhola de Ciências Políticas e da Administração. “Se for assim, a polarização custou vidas, é grave que muitíssimas pessoas que morreram teriam se salvado com outra atitude. Isso mostra também que é mais difícil mudar o comportamento humano que conseguir a vacina em menos de um ano”, resume Elizondo.
À medida que a pandemia transcorria, descobriu-se que idosos e pessoas com doenças pré-existentes corriam mais risco. Mais adiante, acrescentaram-se aqueles com menos recursos e com piores condições de vida. Agora, se as conclusões destes estudos se confirmarem, podemos acrescentar outro fator de risco: viver em um país polarizado.