vacina

Ruy Castro: Lambanças de Bolsonaro e Pazuello

Eles deixam muito mal o conceito que os militares fazem de si mesmos

Se Jair Bolsonaro fosse presidente durante a 2ª Guerra e Eduardo Pazuello seu chefe do Estado Maior, os pracinhas mandados pelo Brasil para lutar na Itália teriam ido parar no Congo Belga. Ou a FEB só desembarcaria no famoso teatro de operações depois de a peça terminada —com o que, sob Bolsonaro e Pazuello, o Brasil teria sido protagonista de uma ópera-bufa, não de uma saga de que os militares tanto se orgulham. É como combatem a pandemia.

Mas não são só as trapalhadas. Bolsonaro e Pazuello não gostam de máscaras, e com razão. Elas são desconfortáveis para seus narizes de Pinóquio, mais compridos do que as pernas —suas mentiras têm pernas tão curtas que, todo dia, eles são obrigados a desdizer-se e a negar não só as frases da véspera como suas próprias negações. O que, para eles, não é difícil, porque, sendo Pinocchio um boneco de pau, o nariz e a cara também são.

Como a inteligência militar é binária —uns mandam, outros obedecem, segundo o categórico Pazuello—, é natural que as Forças Armadas assistam sem tugir ou mugir às grandes lambanças em curso pelo seu chefe supremo e pelo mamulengo que ele nomeou para um cargo-chave. Mas, neste momento, é irresistível perguntar o que estarão achando de Bolsonaro agarrar-se desesperadamente a um produto que ele não queria, repudiou e quase proibiu —a vacina, e logo a do Butantan—, e de depender da condescendência da China, país que ele e seus dementes levaram dois anos agredindo.

Bolsonaro e Pazuello deixam muito mal o conceito que os militares fazem de si mesmos —conceito que, aos olhos deles, os torna tão superiores a nós, paisanos, em competência e lealdade. Com aqueles dois como modelo, como sustentar tal ilusão?

A competência é essa que está aí. Quanto à lealdade, logo veremos Bolsonaro passar sua culpa adiante e jogar o patético Pazuello na fogueira. É rapidinho.


Bruno Boghossian: Recuo de Pazuello comprova ação devastadora de Bolsonaro na pandemia

 Recuo de Pazuello comprova ação devastadora de Bolsonaro na pandemia

O general recuou. Depois que autoridades afirmaram mais uma vez que não há remédio eficaz contra o coronavírus, Eduardo Pazuello disse que nunca recomendou aquilo que o próprio governo chama incansavelmente de “tratamento precoce”. O Ministério da Saúde tentou empurrar cloroquina ao país, mas o militar deve ter percebido que andava em terreno perigoso.

O comprimido é a peça simbólica que comprova a ação devastadora do governo Jair Bolsonaro na pandemia. O presidente e seus auxiliares fizeram a opção por um protocolo de tratamento fantasioso, que sufocou os esforços pela vacinação dos brasileiros e até o fornecimento de material básico para a sobrevivência dos doentes.

Três dias depois de saber que Manaus estava prestes a entrar em colapso, Pazuello deu uma palestra em que defendeu remédios ineficazes e disse que não havia “outra saída”. O ministério quis despejar cloroquina no Amazonas, mas mandou oxigênio insuficiente para abastecer o estado.

Se mudou de ideia, o general deveria delatar o chefe imediatamente. Enquanto Pazuello finge indignação e diz que não indicou medicamentos, Bolsonaro segue à frente do movimento do charlatanismo. “Não desistam do tratamento precoce. Não desistam, tá?”, pediu a apoiadores, na segunda-feira (18).

Ao longo da pandemia, o presidente fez campanha para que a cloroquina fosse usada no lugar dos imunizantes que ele trabalhava para sabotar. “Enquanto não tiver uma vacina realmente confiável, e uma vez contraída a Covid, eu recomendo que faça o tratamento precoce”, disse Bolsonaro na TV, em dezembro. “Tá aí à disposição. Pegou, toma.”

A covardia de Pazuello mostra que ele talvez tenha medo de perder o cargo ou de ser processado. A desfaçatez de Bolsonaro sugere que ele confia na impunidade. O Ministério Público e o Congresso podem investigar a responsabilidade de cada um. Os atos de ambos estão registrados em vídeo e documentos oficiais.


Alon Feuerwerker : Saúde pública

Com o início da vacinação em larga escala mundo afora, começam a aparecer alguns problemas. Nada muito grave por enquanto, mas a situação naturalmente merece atenção. Há casos de efeitos colaterais importantes (leia), possíveis achados de reinfecção pelas novas cepas, mais contagiosas, em quem já tinha anticorpos (leia) e dúvidas sobre a efetividade anunciada pelos fabricantes (leia).

É absolutamente esperado que essas circunstâncias deem a cara quando a vacina de fato começa a rodar em grandes populações. Afinal, estamos terminando de montar o avião em pleno voo. Mas vale a pena. Vacinas não precisam ser infalíveis. Precisam reduzir significativamente o número de infectados, e portanto de hospitalizados, e portanto de falecidos.

É isso que interessa. Pois vacinas são importantes para proteger o indivíduo, e mais fundamentais ainda para proteger populações. E indivíduos tomados isoladamente estão tão mais protegidos quanto mais protegida está a população no seu conjunto. Vacinações são antes de tudo campanhas de saúde pública. Essa é a ideia que nunca deveria ser esquecida.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Andrea Jubé: Quem desdenha sempre quer comprar

Doria perdeu chance de tapa com luva de pelica em Bolsonaro

”É uma vacina emergencial, 50% de eficácia. É algo que ninguém sabe ainda se teremos efeitos colaterais ou não".

Essa foi a declaração do presidente Jair Bolsonaro ontem a um grupo de apoiadores na saída do Palácio da Alvorada sobre a CoronaVac, vacina do Instituto Butantan em parceria com o laboratório chinês Sinovac.

Nas redes sociais, ele se manifestou com o silêncio sobre a única vacina disponível aos brasileiros num universo de 200 mil famílias enlutadas, e com um atraso de 41 dias, em relação à inauguração da temporada de vacinações com a britânica imunizada no Reino Unido. Hoje pelo menos 50 países estão imunizando seus cidadãos.

O Brasil só começou anteontem e quem saiu na foto foi o governador de São Paulo, João Doria - provável adversário de Bolsonaro em 2022.

Essa declaração de Bolsonaro aos apoiadores, voltando a desacreditar a CoronaVac, é contraditória, senão, estapafúrdia.

Isso porque neste sábado, depois que veio a público o fracasso do governo na importação da Índia de dois milhões de doses da vacina da Universidade de Oxford, em parceria com a AstraZeneca, o Ministério da Saúde tentou confiscar as seis milhões de doses da CoronaVac, para dar largada, com ela, no Plano Nacional de Imunização (PNI) em uma competição burlesca com o governo de São Paulo.

Na mesma conversa com apoiadores, Bolsonaro ainda ressaltou que as vacinas do Butantan, as quais ele pejorativamente chamou de “vacina chinesa”, são “do Brasil, não de um governador”.

Bolsonaro demonstra, dessa forma, que quem desdenha quer comprar.

Se o brasileiro tem memória curta, a das redes sociais é afiada, para revés de Bolsonaro em seu reduto mais cativo. As críticas do presidente à CoronaVac circularam intensamente nas plataformas nos últimos dois dias confrontando sua postura negacionista frente à vitória política de Doria.

Centenas de perfis relembraram a postagem de Bolsonaro há três meses, no dia 21 de outubro, afirmando em tom incisivo: "não compraremos a vacina da China".

Na véspera, o ministro da Saúde, o general da ativa Eduardo Pazuello, havia informado Doria, em uma reunião com mais 23 governadores, que o governo federal iria comprar 46 milhões de doses da CoronaVac que seriam distribuídas a todo o país por meio do plano nacional.

Cobrado pelos seguidores, Bolsonaro desautorizou Pazuello, e ainda o submeteu à humilhação pública. Na transmissão ao vivo pela sua conta do Facebook, um ministro visivelmente abalado pela doença - o general estava no início do ciclo da Covid-19 - e constrangido pela situação, declarou: "Senhores, é simples assim: um manda e o outro obedece”.

Pazuello chamou o gesto de Doria, ao sair na frente com a vacinação no domingo, de jogada de “marketing”, mas não fez diferente. Adiou de domingo para ontem a entrega aos governadores de seus respectivos lotes da CoronaVac para sair na foto ao lado dos mandatários estaduais. Com as vacinas embrulhadas nas bandeiras de cada Estado, o recado de Pazuello era de que a CoronaVac não pertence a São Paulo.

O ministro ainda queria que os governadores esperassem até amanhã para começar a vacinar a população, mas eles reagiram.

“Isso caiu por terra logo, explicamos que a ansiedade é muito grande, não dava para esperar”, disse à coluna o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM). “Se a vacina está disponível, todo prefeito vai ser pressionado pra vacinar o quanto antes no seu município”.

Na sessão de fotos com Pazuello, os governadores acordaram que todos que estivessem em poder de seus respectivos lotes começariam a vacinar suas populações às 17 horas dessa segunda-feira.

O custo político do negacionismo de Bolsonaro materializou-se pela primeira vez na pesquisa XP/Ipespe divulgada ontem. Segundo o levantamento, a avaliação do classificada como péssima ou ruim subiu de 35% para 40%, segundo parcela da população ouvida pela rodada de janeiro. É a primeira vez, desde julho do ano passado, que a avaliação negativa superou a positiva.

Em paralelo, o percentual dos que veem a gestão Bolsonaro como ótima ou boa caiu de 38% para 32%. Também foi a primeira vez, desde maio, que a sondagem identificou um aumento no percentual dos críticos ao governo, e na redução do número de apoiadores.

O movimento coincide com uma piora na percepção da atuação de Bolsonaro no enfrentamento da pandemia.

Entretanto, se o comportamento negacionista de Bolsonaro está em xeque, o gesto de João Doria para faturar politicamente com a entrega do primeiro imunizante disponível aos brasileiros, ao sair na frente dos outros Estados na campanha de vacinação, foi duramente criticado pelos colegas.

“Ele poderia ter dado um tapa com luva de pelica no Bolsonaro, e convidado os governadores para começar junto com ele”, disse à coluna um governador que pediu para não ser identificado.

Este governador reconheceu, entretanto, que pelo papel relevante de Doria para viabilizar a primeira vacina brasileira, o conjunto dos governadores acabou relevando a postura do tucano.

Coube ao governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), verbalizar a indignação dos colegas. “Ele fez da vacina um instrumento político, existe uma distância entre a campanha eleitoral e a política de saúde pública”.

O goiano ponderou que Doria poderia ter tido a “humildade” de fazer um gesto político e convidar os demais colegas a começar a campanha de vacinação junto com São Paulo. “Isso constrangeu os colegas, ninguém quer ser tratado como segunda categoria”.

Bolsonaro é candidato declarado à reeleição. Doria é pré-candidato. Ambos estão se precipitando em um jogo em que movimentos atabalhoados tiram pontos dos concorrentes antes do começo da partida.


Cristina Serra: A ciência derruba mitos

Início da vacinação é a derrota mais espetacular de Bolsonaro nestes dois anos

dia 17 de janeiro de 2021 deveria assinalar o começo do fim do desgoverno Bolsonaro. Foi sua derrota mais espetacular nestes dois anos em que tentou com máximo empenho destruir o Brasil. As luzes da ciência brilharam com todo o seu esplendor, mesmo numa agência reguladora dirigida por um seguidor do negacionista.

A Anvisa aprovou o uso emergencial de duas vacinas importadas e produzidas em parceria de instituições científicas brasileiras com farmacêuticas e uma universidade estrangeiras. Aos cientistas e servidores públicos do Instituto Butantan e da Fundação Oswaldo Cruz devemos a vitória deste domingo inesquecível.

O sabotador-mor da República chegou a dizer que a "vacina chinesa" teria como efeitos colaterais "morte, invalidez, anomalia". "Mais uma que Jair Bolsonaro ganha", comemorou, quando o suicídio de um voluntário levou à interrupção dos testes. A frase agora é outra: "Mais uma que Jair Bolsonaro perde". E vai perder mais, porque a história mostra que a marcha do Iluminismo é irreprimível e que a ciência derruba mitos.

Já temos a vacina e amanhã é a posse de Joe Biden nos Estados Unidos. Bolsonaro perde seu maior suporte internacional. Seus atos e omissões na pandemia são um roteiro de crimes de responsabilidade. O holocausto de Manaus não será o ponto final desta tragédia. O criminoso tem que ser contido.

O ex-presidente do STF, Ayres Britto, deu a senha, nesta Folha. Segundo ele, o impeachment se aplica ao presidente que adota "mandato de costas para a Constituição"; a nação tem que dizer "a Constituição ou o presidente" e "a opção só pode ser pela Constituição."

Alguém dirá: falta combinar com os financistas, privatistas, carniceiros do Estado, agronegócio, centrão, impostores pentecostais, Forças Armadas, milicianos e mais um rol de cúmplices. Aos que que não se envergonham de faturar com a desgraça do país, faço coro com o colega Juca Kfouri: "Genocidas! Genocidas! Genocidas!".


Hélio Schwartsman: Doria derrota Bolsonaro

Depois de dizer 'NÃO SERÁ COMPRADA', Bolsonaro comprou 46 milhões doses da Coronavac

João Doria é valente. Em seu lugar, eu não teria entregado as vacinas contra Covid-19 ao governo federal antes de o cheque pela compra do biofármaco ter sido compensado. Para não dizer que Jair Bolsonaro e seus prepostos são um bando de salafrários, afirmo apenas que a confiabilidade do Planalto tende a zero.

Nem precisamos nos afastar da vacina para constatá-lo. Menos de três meses atrás, ao ser questionado por um apoiador sobre o anúncio de que o Ministério da Saúde iria adquirir a Coronavac sino-doriana, o presidente desautorizou seu ministro e escreveu no Facebook: "NÃO SERÁ COMPRADA". Comprou, 46 milhões de doses, com opção de mais 54 milhões.

Obviamente, não me queixo de o presidente ter descumprido a palavra. Mas, se tivesse dignidade, ofereceria uma explicação para a mudança de atitude, além de um pedido de desculpas aos chineses e ao governador paulista.

Daí não decorre que o comportamento de Doria tenha sido exemplar. Na comparação com Bolsonaro, ele é um farol de iluminismo, mas isso não o impediu de envolver o Instituto Butantan num constrangedor espetáculo televisionado de "cherry picking", desastroso para quem pretende fazer ciência a sério.

Devemos lamentar a politização da vacina, mas só até certo ponto. Se Bolsonaro e Doria não tivessem entrado numa irrefreada disputa pela foto da primeira agulhada, que o Bandeirantes venceu, o Planalto dificilmente teria se mexido, e estaríamos ainda mais atrasados na imunização.

Há, porém, um lado mais sombrio na politização da vacina. Existem discussões como a do aborto e a da legalização das drogas que, por envolver crenças filosóficas e valores, são quase que naturalmente politizadas. Mas há outras, como a mudança climática ou a vacinação, em que o espaço para o subjetivismo é menor. Quando elas se politizam, em geral é porque um dos lados se tornou imune às evidências, o que é sempre perigoso.


Ricardo Noblat: É a Constituição, estúpido, não os militares que garante a democracia

Bolsonaro finge que faltou a essa aula

Nada há de ignorância quando o presidente Jair Bolsonaro diz, como disse ontem, como disse no passado antes e depois de se eleger, que “quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas”.

Pelo menos isso, ele sabe que não é assim. Quem garante a democracia é a Constituição. A nossa, em vigor desde 1988, foi escrita e aprovada por representantes do povo eleitos justamente para dar conta de tal tarefa.

Sempre que se vê em apuros, Bolsonaro bate à porta dos quartéis atrás de apoio, corteja seus antigos pares e ameaça seus adversários políticos com esse tipo de declaração. É quando seu instinto e intuito golpistas traem de fato o que ele é.

As Forças Armadas não estão acima da Constituição que o presidente jurou respeitar, mas que desrespeita sempre que pode. Obedecer à Constituição não é só um dever, é uma obrigação coletiva. Tentar enfraquecê-la é um crime de lesa majestade.

Do que mais têm medo Bolsonaro e Pazuello

Crime de responsabilidade

Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello têm em comum a formação militar e o fato de serem no momento as duas figuras públicas de maior relevo em meio a uma pandemia que colheu até ontem no Brasil mais de 210 mil vidas. E que poderá colher muito mais, uma vez que mal começou, a vacinação poderá ser suspensa em breve devido à falta de doses suficientes para imunizar tanta gente.

Faltam insumos para que o Instituto Butantan possa fabricar a CoronaVac no volume necessário. A Fundação Oswaldo Cruz também não tem para fabricar a AstraZeneca. Os insumos para as duas vacinas dependem da China que os produz, e, por lá, menos de 1% da população foi imunizada. Fracassou a operação de compra da AstraZeneca à Índia. Era fake. Um golpe.

Apesar do uso da farda, seria uma injustiça com Pazuello comparar sua trajetória nos quartéis com a de Bolsonaro. Pazuello é um general ainda na ativa, para constrangimento dos seus pares que preferiam vê-lo na reserva dada às circunstâncias que ele enfrenta. Bolsonaro ganhou o título de capitão quando foi afastado do Exército por ter planejado atentados à bomba a quartéis.

Mas o general aceitou servir ao ex-capitão depois que dois médicos deixaram o Ministério da Saúde ao se recusarem a fazer o que Bolsonaro mandava – entre outras coisas, recomendar o tratamento precoce de casos da Covid-19 com drogas ineficazes. Sabe-se lá porque Bolsonaro ordenou ao Exército a fabricação em massa de cloroquina. Sabia-se que era uma fraude.

Bolsonaro acostumou-se à fama de mentiroso e não liga mais. Nada mais fácil do que provar que ele mente. Mente sempre. Mente descaradamente. Mente displicentemente. Mente naturalmente. Mente irresponsavelmente. E de tanto enxovalhar a verdade, tornou-se incapaz de reconhecer quando encontra uma pela frente por mais robusta que ela seja.

Isso obriga ao restabelecimento de certas verdades. Em abril último, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal decidiu que governadores e prefeitos TAMBÉM poderiam adotar medidas contra a pandemia, NÃO APENAS o governo federal. Como Bolsonaro insiste em dizer que o tribunal esvaziou seu poder de combater o vírus, o Supremo voltou a desmenti-lo em nota oficial.

Chamar Pazuello de mentiroso o incomoda muito. Pega muito mal para um militar, mais ainda quando ele é detentor da mais alta patente de sua Arma. É uma ofensa que nenhum deles engole calado. Infelizmente para ele, está provado que o general mentiu ao afirmar que nunca receitou o tratamento precoce com cloroquina para pacientes com sintomas da doença.

Que Pazuello queira culpar o clima da Amazônia pela falta de oxigênio que matou dezenas de pessoas em Manaus e começa a matar também em cidades do Pará, não é propriamente uma mentira. Seria um exagero, digamos com boa vontade, ou ignorância. Que ele culpe o fuso horário pela demora em importar vacina da Índia pode ser entendido como uma desculpa.

Porém, o general mente ao negar que patrocinou o que agora batiza de “atendimento precoce” com remédios rejeitados pelo mundo inteiro. No final de maio passado, o Ministério da Saúde incluiu nos seus protocolos a sugestão de uso da cloroquina em pacientes hospitalizados com gravidade média e alta. E remeteu aos Estados  pelo menos 3,4 milhões de doses da droga.

Não lembra? Leia aqui a notícia publicada pela Agência Brasil, um órgão de informação do governo. Isso aconteceu depois que o médico Nelson Teich cedeu a Pazuello a vaga de ministro da Saúde. Quer mais? Na madrugada de hoje, no site do ministério, ainda poderia ser encontrado um manual de orientação sobre o uso da cloroquina para tratamento precoce.

A troca de “tratamento precoce” por “atendimento precoce” tem a ver com o medo de Pazuello de ser denunciado por crime de responsabilidade. O mesmo medo passou a ser compartilhado por Bolsonaro. Crime de responsabilidade pode abreviar seu mandato porque a Constituição considera inviolável o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança.


Eliane Cantanhêde: Depois da festa, a ressaca

Mais uma que Jair Bolsonaro perde e ele some, cala e usa o general de escudo

Passada a festa histórica da primeira vacinação em São Paulo, vem a ressaca e, com ela, a realidade de um Brasil onde o presidente da República nega a pandemia e combate a vacina, o ministro da Saúde oscila entre ignorância, prepotência e mentira e, nessas mãos, o futuro da imunização é incerto, não sabido e preocupante.

Goste-se ou não dele, é graças ao governador João Doria que o Brasil pôde começar a vacinar e os Estados estão recebendo avidamente suas primeiras doses. Se dependesse do presidente Jair Bolsonaro e do ministro Eduardo Pazuello, não haveria vacina nenhuma e estaríamos todos chorando as mágoas e os mortos com cloroquina (ou “tratamento precoce”, que a própria Anvisa desautoriza).

Obrigado agora a engolir em seco e requisitar todas as doses de São Paulo, Bolsonaro atacou a Coronavac por meses, depois de desautorizar Pazuello e cancelar a compra de 46 milhões de doses já anunciadas aos governadores: “Vacina chinesa do Doria? Não vou comprar”; “Já mandei cancelar. O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade”. Mais adiante, quando um voluntário se suicidou, o presidente acusou a Coronavac de “morte, invalidez e anomalia” e comemorou: “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. Danem-se os brasileiros.

No fim, quem ganha? Derrotado e humilhado, o presidente, que mandava o brasileiro reagir à doença “como homem, não como maricas”, escondeu-se mudo no Alvorada, usando Pazuello como seu escudo, assim como Ricardo Salles no Meio Ambiente. Um manda, outros obedecem. Um erra, outros aguentam o tranco. E Pazuello diz que o governo federal pagou toda a pesquisa, importação e produção da Coronavac (??!!), culpa a umidade pelo colapso de Manaus, alega o fuso horário para justificar a falta de vacinas da Índia e jura que nunca indicou cloroquina. Espantoso.

O “dia D” do general para a vacinação foi em março, dezembro de 2020, janeiro, fevereiro, voltou para janeiro e foi ontem graças a Doria e à Anvisa. E a “hora H” da entrega das doses a Estados seria às 9h, ficou para a tarde em alguns e acabou varando a madrugada para outros, com autoridades plantadas em aeroportos. Bem. Se deixou milhões de testes jogados até perderem a validade, se não negociou nem diversificou acordos com laboratórios, se não providenciou nem seringas e agulhas, por que acertaria na distribuição de vacina?

Depois da festa de domingo em São Paulo, mesmo assim, ontem foi dia de vacinação até no Cristo Redentor, no Rio, mas uma pergunta ronda o País: e quando essas doses acabarem? Seis milhões de doses não cobrem nem os profissionais de saúde e não há previsão para atingir uma população-alvo tão gigantesca. Assim como tem de contar com oxigênio da Venezuela, o Brasil não consegue vacinas da Índia nem insumos da... China. Talvez Bolsonaro tenha de ligar para o presidente Xi Jinping, desculpar-se pelos desaforos e pedir socorro.

De um lado, o início da vacinação abriu uma onda de esperança e a sensação de que está tudo resolvido, aglomeração e abraços já! De outro, as doses disponíveis são poucas, a nova cepa do coronavírus é muito mais contagiosa e a falta de planejamento e de responsabilidade do governo federal não garante a continuidade da vacina. Logo, o temor é de que, neste primeiro momento, os casos, e em consequência as mortes, aumentem.

E escrevam o que o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta diz: cuidado com o uso que Bolsonaro pode fazer de eventuais acidentes de percurso. Se uma pessoa já contaminada for vacinada em período de incubação, corre o risco, sim, de pegar uma forma grave e até de morrer. Não custa muito para Bolsonaro forçar um nexo da morte com a vacina. O fato é que, depois de perder a foto, o timing e a glória pela vacina, ele vai contra-atacar. É só questão de tempo. E como.


Merval Pereira: O lado certo

Em meio à confusão promovida pelo seu governo no início atrasado da vacinação nacional contra a Covid-19, o presidente Bolsonaro achou tempo para fazer o que mais gosta: ameaçar o país com uma intervenção militar.

Na sua visão distorcida sobre a democracia, o presidente anunciou, e não pela primeira vez, que viver sob uma democracia ou uma ditadura é decisão das Forças Armadas. Seria uma ofensa às próprias FFAA, pois elas existem justamente para defender a democracia, e não para acabar com ela.

Sempre ciosos de suas funções, os militares deveriam dar uma nota oficial tirando dos ombros da instituição tal decisão, pois, a ser verdade o raciocínio de Bolsonaro, implantar uma ditadura militar no Brasil é apenas questão de gosto.

O uso dos militares para se defender quando sua atuação está sendo posta em dúvida é recorrente em Bolsonaro, e deveria ser rechaçado oficialmente. Bolsonaro não é mais um capitão do Exército, e sim um manipulador que se utiliza das FFAA com fins políticos.

Quando um General da Ativa como Pazuello concorda em defender tratamento precoce com cloroquina, ou mente ao dizer que nunca fez isso quando documentos do seu ministério mostram o contrário, é o Exército que ele está maculando, induzido por Bolsonaro.

Criticar Bolsonaro, pedir seu impeachment, são atitudes políticas que não deveriam atingir os militares como instituição, mas àqueles que se dispõem a acompanhar as ordens absurdas do chefe momentâneo. Se alguns deles são da ativa, a coisa muda de figura.

O debate sobre a politização da campanha de vacinação nacional contra a Covid-19 incorre em um erro fundamental, a comparação da atitude do presidente Bolsonaro com a do governador de São Paulo João Dória em face à pandemia e as maneiras de combatê-la.

Dória sempre esteve no lado certo, a favor do distanciamento social, do uso de máscara, e trabalhou corretamente para ter condições de fazer a imunização, mesmo que em alguns momentos tenha abusado do marketing político em favor de sua candidatura à presidência da República em 2022.

Mesmo que fosse tudo política, nesse caso o lado certo da política é forçar o começo da vacinação o mais rápido possível. E ele conseguiu fazer o governo Bolsonaro se mexer. Graças à sua iniciativa de fazer acordo com a farmacêutica Sinovac da China, deu condições ao Instituto Butantan de produzir a vacina CoronaVac, contra todas as ações políticas que o presidente da República engendrou para desqualifica-la e incutir no brasileiro desconfiança sobre a “a vacina chinesa do Dória”.

Bolsonaro comemorou quando a eficácia global da CoronaVac de 50,4% foi anunciada, dando ares de verdade à percepção popular de que uma vacina que tem 70% de eficácia global é melhor do que a de pouco mais de 50%, o que, para uma campanha maciça de vacinação para conter uma pandemia, é irrelevante.

Os técnicos do Butantan ajudaram essa percepção negativa ao anunciarem com fanfarras os índices vistosos de 70% para casos leves e 100% para os graves, antes do dado global. O governador Dória, evitando anunciar a notícia, ajudou, dando a sensação de que só vai “na boa”, deixando para seus subordinados as notícias ruins, o que não era absolutamente o caso.

Mas a irresponsabilidade de Bolsonaro, ao desdenhar da única vacina que os brasileiros tinham à mão para iniciar a vacinação, depois de mais de 50 países do mundo, sempre com fins políticos de combater um potencial adversário em 2022, é incomparável.

Bolsonaro foi o único presidente da República ou Primeiro-Ministro do mundo a fazer campanha contra a vacinação. Ontem mesmo Freud pegou-o num ato falho que revela sua decepção pelo sucesso do início da vacinação em São Paulo. Começou uma frase, depois de ter ficado em um silêncio inusitado durante quase um dia, assim: “Apesar da vacina…”

Um verdadeiro líder político deveria ter comemorado o início da vacinação, em vez de tentar confiscar as doses do Estado que se preparou com a antecedência devida para produzir vacinas contra a Covid-19, para impedir que seu adversário político se sobressaísse.

O destino reservou a Bolsonaro derrotas políticas variadas e em sequência: o ditador Maduro, na Venezuela, se prontificou a ajudar o Amazonas com cilindros de oxigênio, e a vacina CoronaVac, da chinesa Sinovac, foi a única que restou para nossa vacinação. Só faltou mesmo um enfermeiro cubano para completar a série de infortúnios de um presidente que coloca a ideologia acima das necessidades do povo que preside.


Juan Arias: O desafio arrogante de Bolsonaro, que acredita ser blindado por Deus

Bolsonaro, em vez de concentrar todas as suas energias em tirar da crise um país que “está quebrado”, como ele diz com sadismo, tenta apenas se blindar no poder para se reeleger

A dor dos asfixiados em Manaus por falta de oxigênio, uma verdadeira tragédia nacional, despertou o “Fora, Bolsonaro!” e fez os panelaços de protesto soarem mais fortes do que nunca. Voltou a surgir assim a possibilidade de um impeachment para arrancar Bolsonaro do poder. Minhas colegas Giovanna Oliveira, Carla Jiménez e Flavia Marreiro nos contaram muito bem em seus textos neste jornal.

Sem dúvida é um primeiro passo para a saída do presidente, que demonstrou, como sempre, sua frieza e indiferença perante a morte. Um presidente que nem se dignou a ir ao lugar da tragédia para confortar as famílias que estão vendo seus entes queridos morrer por asfixia ―a pior das mortes, segundo os médicos.

E no entanto Bolsonaro, que se revelou incapaz de governar um país com a envergadura e a complexidade do Brasil, em vez de concentrar todas as suas energias em tirar da crise um país que “está quebrado”, como ele diz com sadismo, tenta apenas se blindar no poder para se reeleger.

Uma blindagem em várias esferas. A mais arrogante é quando ele afirma: “Só Deus me tira daqui.” E, se por acaso Deus se esquecer dele, buscará outras blindagens mais humanas. Primeiro a dos militares, cuja presença ele garantiu no Governo e em todas as instituições do Estado. É verdade que muitos deles já começam a manifestar um mal-estar em relação ao chefe. E é verdade que não permitiriam que ele tentasse um golpe. Mas esses militares são um escudo para Bolsonaro, pois é a primeira vez na democracia que um presidente lhes dá tanto protagonismo dentro do Governo.

Até mesmo seu vice, o general Mourão, o mais crítico dos militares do Planalto, acaba de excluir a possibilidade de um impeachment ao presidente. Mais do que isso: Mourão avisou que nas próximas eleições Bolsonaro não terá um oponente capaz de vencê-lo nas urnas.

Os militares poderiam ter saído antes do Governo, quando começaram a ver a forma como o presidente tratava até mesmo os generais, além de sua incapacidade de governar. Alguns deixaram o cargo, mas agora é tarde demais. Abandonar o Governo significaria uma confissão de derrota, algo que nunca farão.

Outra blindagem do presidente, talvez ainda mais forte que a do Exército, é a da corporação das polícias militares ―as quais ele está cobrindo de privilégios. Com a polícia, Bolsonaro garante também o apoio das milícias― com quem nutre uma relação umbilical e familiar. Quem assassinou Marielle?

Não só isso. Bolsonaro se sente blindado pelas elites empresariais, que continuam mantendo a miragem do falso apoio do mandatário a uma economia liberal. Isso apesar de que, em seus dois anos de exercício, ele deu provas contundentes do contrário. Essas elites empresariais, juntamente com as classes altas, continuam defendendo o presidente com medo de que a esquerda volte ao poder.

Existe ainda a blindagem, talvez a mais forte, da tomada de poder da Câmara e do Senado, onde, salvo surpresa, Bolsonaro conseguirá impor seus candidatos à presidência. O homem que havia chegado para acabar com a velha política tornou-se o paradoxo de ser seu maior defensor.

Para o Congresso, é uma festa o fato de que Bolsonaro, que havia prometido uma luta implacável contra a corrupção, tenha se transformado no maior inimigo dos que querem continuar apostando na luta contra o saque do dinheiro do Estado por políticos que buscam manter suas campanhas milionárias e enriquecer suas famílias. Bolsonaro tem interesses espúrios em defesa da sua, envolvida também em supostos crimes de corrupção. Com um procurador-geral da República ajoelhado aos seus pés e um STF que parece amedrontado, Bolsonaro se sente blindado.

Some-se a isso o fato de que o presidente, apesar de ter perdido pelo caminho muitos dos que nele votaram e hoje se sentem traídos, ainda conta com 30% de fidelíssimos seguidores, justamente os mais fanáticos e violentos, capazes de se organizar e até de lutar com armas para defender o mito, como ocorreu com Trump nos Estados Unidos. Ao contrário da oposição, que hoje parece incapaz de organizar um protesto nacional.

Por fim, Bolsonaro conta hoje com uma blindagem especial: a da grande massa de evangélicos e seus pastores. É um escudo seguro e forte porque é feito em nome de Deus. Bolsonaro se viu blindado ante um país com mais de 80% de fiéis quando criou seu lema “Deus acima de todos”.

Com todas essas proteções, poder-se-ia dizer que o presidente negacionista e insensível diante da morte pode continuar tranquilo, governando ou desgovernando, e que terá uma reeleição garantida. Mas na política, assim como na vida, nada é imutável e as surpresas são sempre possíveis. Acabamos de ver isso com Trump, o ídolo e amigo de toda a família Bolsonaro, que com sua derrota e sua possível inabilitação política deixou órfão e nu não apenas o mandatário brasileiro, mas também sua política exterior, comandada por um ministro que afirmou, logo após chegar ao Itamaraty, que “Trump e Bolsonaro foram escolhidos por Deus para salvar o Ocidente”.

Diz o ditado que “Deus escreve certo por linhas tortas”. Quem sabe esse Deus, apoderado no Brasil por todos os poderes fáticos, que o roubaram dos pobres e desfavorecidos, ainda dê uma surpresa.

Se Bolsonaro se escudar em Deus para tentar se manter no poder, é possível que acabe sendo abandonado por esse Deus, ao qual tenta monopolizar e instrumentalizar para seus objetivos espúrios. Se esse Deus reverenciado por Bolsonaro existisse, seria preciso buscá-lo hoje, mais que no centro do poder, no leito dos que estão morrendo asfixiados nos hospitais de Manaus por falta de oxigênio que o Governo lhes negou.

Dito em linguagem laica: talvez para o capitão belicista, que conhece e ama as armas como poucos, o tiro saia pela culatra. Ou, como afirmou a escritora e acadêmica Ana Maria Machado em sua coluna de O Globo: “Chega uma hora em que os pés de barro não sustentam mais ídolos, mitos e mentiras.”

*Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como MadalenaJesus esse Grande DesconhecidoJosé Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.


El País: Brasil só tem vacinas para 4% da população prioritária e enfrenta desafio para ampliar estoque

Primeiro lote distribuído aos Estados deve vacinar 2,8 milhões de pessoas. Além de gargalo na importação, especialistas recomendam negociação com outros fabricantes de imunizantes

Beatriz Jucá, El País

Mesmo com atrasos, o Brasil começou a vacinar grupos prioritários contra a covid-19 em vários Estados, mas ainda enfrenta um grande desafio para conseguir ampliar o quantitativo de doses necessário para viabilizar, de fato, uma imunização em massa. O primeiro lote que começou a ser distribuído nesta segunda-feira deve ser suficiente para vacinar, com o protocolo recomendado de duas doses, apenas 2,8 milhões de pessoas, segundo estimativas do próprio Ministério da Saúde, que considera no cálculo a fatia que pode ser perdida por problemas durante a operação de logística.

Isso corresponde a 4% dos 68,8 milhões de usuários dos grupos prioritários estabelecidos no Plano Nacional de Imunização (PNI), que foram enxugados neste primeiro momento diante da escassez de doses. O país entra em desvantagem para disputar no cenário global tanto a aquisição dos insumos para produzir os imunizantes aqui quanto para comprar doses prontas, inclusive de outros fabricantes. No momento, o principal gargalo é a importação, da China, da matéria prima para a produção local das duas vacinas já aprovadas pela Anvisa, a do Butantan/Sinovac e da Fiocruz/Oxford/AstraZeneca.

O ministério orienta começar a aplicar as doses disponíveis nos idosos que vivem em asilos, pessoas com deficiência internadas, profissionais de saúde da linha de frente e indígenas aldeados. Mas isso pode ser adaptado na ponta pelos Estados, que podem priorizar mais um ou outro grupo desses conforme a realidade local. Até a noite desta segunda-feira, a vacina havia chegado a dez Estados, além do Distrito Federal: Tocantins, Piauí, Ceará, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Goiás. Veículos que transportavam caminhões foram aplaudidos em alguns locais, um símbolo do sopro de esperança em meio a uma pandemia que já matou mais de 210.000 brasileiros e levou sistemas de saúde ao colapso. A vacina chega depois do ano mais mortal da história do Brasil, segundo os registro da associação de cartórios.

Apesar do alento deste momento com a chegada dos imunizantes ―o primeiro passo rumo ao controle da pandemia―, pesquisadores e até a Organização Mundial da Saúde têm destacado que o início da vacinação no Brasil não deve estimular os brasileiros a relaxarem os cuidados preventivos, como uso de máscaras e distanciamento social. Isso porque o país vive um agravamento da pandemia e ainda é longo o caminho tanto para que o país consiga doses suficientes para vacinar seus mais de 200 milhões de habitantes quanto para que se alcance a imunidade de rebanho (proteção coletiva ao vírus). O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou nesta segunda-feira que o país pode ter 70% da população vacinada até o fim do ano.

O Ministério da Saúde estima chegar a 354 milhões em 2021, mas conta com doses que ainda serão fabricadas. Já existem contratos com a AstraZeneca/Fiocruz, o Butantan e o consórcio global Covax Facility, no qual o Brasil aderiu com a menor cota de doses possíveis de solicitar. Mas o cumprimento dos cronogramas de entrega, inclusive das doses que serão produzidas pelo Butantan e pela Fiocruz, dependem neste momento do cenário global de disputa tanto pelos insumos para produzir o imunizante quanto pelas doses prontas.

Por enquanto, estão sendo distribuídas 6 milhões de doses da Coronavac, aprovada neste domingo pela Anvisa para uso emergencial. O Governo Bolsonaro espera receber mais 2 milhões de doses da vacina de Oxford ―cujo uso emergencial também foi autorizado e que nos próximos meses deve ser produzida pela Fiocruz―, mas enfrenta dificuldades para conseguir consolidar a importação delas, que virão da produção da Índia. “Não há resposta positiva de saída até agora. Nós estamos contando com essas 2 milhões de doses para que a gente possa atender mais ainda a população”, admitiu o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que espera um desfecho nesta semana.

Dificuldade para importar insumos para a vacina

O Butantan já solicitou à Anvisa uma autorização para usar emergencialmente mais 4,8 milhões de doses prontas ou que estão sendo envasadas em São Paulo. Se por um lado a produção local nos laboratórios locais é uma importante arma brasileira, preocupa a dificuldade que Butantan e Fiocruz enfrentam para conseguir importar os insumos da China necessários para manter a produção dos próximos meses e conseguirem cumprir os cronogramas de entrega. Os acordos feitos pelo Governo Federal e pelo Governo de São Paulo com os laboratórios preveem transferência de tecnologia para que este insumo passe a ser produzido no país, mas é uma fase posterior, que só deverá ocorrer no segundo semestre.

Neste momento, há dependência dos insumos e atrasos preocupantes. A Fiocruz aguarda a chegada do IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) da China para iniciar a produção, segundo a Folha de S. Paulo. Isso deve acontecer até 25 de janeiro e, caso não se consolide, o contrato prevê a entrega de doses prontas. O cronograma da Fiocruz prevê a entrega de 1 milhão de doses até 15 de fevereiro e deve chegar a 100,4 milhões de doses até julho. Já o Butantan aguarda há dias a autorização do Governo chinês para que o insumo possa ser enviado ao Brasil. Segundo o presidente do instituto, Dimas Covas, o IFA disponível só é suficiente para a produção desta semana. “A capacidade de produção do Butantan é de 1 milhão de doses por dia, a depender chegada da matéria-prima. [A capacidade] foi atingida neste momento com a matéria-prima disponível”, explicou em coletiva de imprensa. A embaixada do Brasil na China foi acionada para ajudar nas negociações. O Butantan precisa do insumo para conseguir entregar um total de 46 milhões de doses da Coronavac ao ministério até abril.

Necessidade de seguir negociando compras

“O que temos hoje são gotas dentro do oceano diante da magnitude territorial e populacional do Brasil”, define Melissa Palmieri, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Imunizações - Regional São Paulo. Ela diz que, apesar da capacidade de produção nacional, o país não pode se furtar de continuar negociando para adquirir outros tipos de vacinas diante da gravidade da crise sanitária e de problemas que podem atrasar a produção nacional, como a falta de insumos. Praticamente toda a população precisará ser vacinada para que o país chegue à imunidade coletiva, ou de rebanho. Questionado sobre as negociações para comprar 70 milhões de doses da Pfizer, o ministro Eduardo Pazuello disse apenas que “na hora que o laboratório trouxer propostas plausíveis, sou o primeiro a comprar”. Não falou sobre planos de comprar outras vacinas. O imunizante da Janssen, por exemplo, é apontado por especialistas como uma boa opção, caso os estudos confirmem eficácia com apenas uma dose, o que simplificaria a logística.

“Por enquanto, precisamos trabalhar full time para manter a negociação com outros laboratórios. Só podemos começar a desestressar quando a maioria da população estiver vacinada”, diz Palmieri. O secretário da Saúde de São Paulo, Jean Gorinchteyn, que tem defendido publicamente a necessidade do país adquirir mais vacinas, endossa o coro. “Precisamos de vacinas para vacinar em massa. Se não vacinarmos, ainda teremos o caos no nosso sistema de saúde. Isso só resolve com o impacto da vacinação, especialmente nos grupos prioritários”, argumenta.

A vacina chega a outros Estados do Brasil

O Governo Federal distribuiu as primeiras 6 milhões de doses de forma proporcional à população de grupos prioritários dos Estados. A meta da campanha é vacinar, com duas doses, os 2,8 milhões que têm prioridade nesta fase ― que inclui idosos que vivem em asilos, pessoas com deficiência internadas, indígenas aldeados e cerca de 35% dos profissionais de saúde do país. Após um mal-estar gerado pela decisão do governador de São Paulo, João Doria, em arrancar com a imunização no próprio domingo para angariar o capital político da primeira foto, governadores viajaram até Guarulhos para receber simbolicamente as doses pessoalmente do ministro Pazuello. A única vacina disponível no momento é fruto de uma iniciativa do Governo paulista, mas as doses foram adquiridas pelo Governo Federal ―cuja atuação foi marcada por uma certa inércia― após uma longa batalha ideológica.

A previsão era de iniciar uma campanha nacional na quarta-feira (20), mas governadores pressionaram para começar a vacinar antes, já que São Paulo havia se antecipado. A segunda-feira foi, então, de esforço logístico para fazer os imunizantes chegarem aos Estados. Durante o dia, aviões e caminhões transportavam toneladas de doses pelo país. Lotes foram fracionados para tentar acelerar a chegada das primeiras doses nas capitais e cidades metropolitanas e foram registrados alguns atrasos. O Rio de Janeiro começou a aplicar as doses no simbólico Cristo Redentor. Governadores se articulam agora em uma força-tarefa para fazer as doses chegarem aos municípios nos próximos dias. Na semana passada, vários deles já haviam começado a distribuir seringas, agulhas e refrigeradores às cidades do interior. O Governo do Amazonas ―Estado que vive uma crise sem precedentes no seu sistema de saúde e concentra também grandes dificuldades logísticas― reuniu nesta segunda (18) autoridades de saúde do interior e as preparava para uma “longa noite” de recebimento de vacinas.

Tudo foi feito às pressas. Só depois que aviões levantaram voo para a distribuição das doses no extenso território nacional, o Governo publicou uma portaria determinando a obrigatoriedade da notificação da vacinação nos seus sistemas. A aplicação de doses começou antes de todos os detalhes da campanha nacional estarem ajustados, embora a estratégia central já viesse sendo discutida com Estados e municípios. O Governo Federal ainda testa, por exemplo, um painel para colocar no ar o balanço da distribuição das vacinas e das doses aprovadas. Mas o mínimo estava pronto para começar a vacinar no país, que tem o seu programa de vacinação como referência global. Estima-se que 50.000 postos estejam aptos para vacinar, quando as doses começarem a chegar. Os municípios agora são os maiores protagonistas da campanha. São eles que executam a vacinação nas mais longínquas regiões do país.


Andrei Meireles: Vacinas escancaram o desleixo de Bolsonaro e seu general de fancaria

Além do puxão de orelha da Anvisa por receitas vigaristas, o maior vexame da gestão irresponsável de Bolsonaro é ter o melhor sistema de vacinar do mundo e não ter vacinas pela leviandade do governo

Esse foi um domingo de comemoração. A Anvisa finalmente falou. E falou bem, reiterou o compromisso com a ciência. Deu autorização emergencial para as vacinas aqui produzidas pelo Instituto Butantan e pela Fundação Oswaldo Cruz. Com a mesma unanimidade, censurou a vigarice do tal tratamento precoce com a cloroquina, o fermífugo ivermectina e outras baboseiras.

O presidente Jair  Bolsonaro, que se finge de maluco por esperteza, saiu de cena e escalou o pau mandado general Eduardo Pazuello, que cumpre suas ordens no Ministério da Saúde, para pagar recibo e mico pelo fato do governador João Doria iniciar a vacinação em São Paulo. As imagens de vacinados, única preocupação de Bolsonaro na tal guerra das vacinas, foram exibidas em um show de marketing pelo governo paulista, com a escolha a dedo das protagonistas — Camila Calazans, uma enfermeira negra da linha de frente no combate a Convid-19 que mora na periferia e se formou com muita dificuldade, e a indígena Vanuzia Costa Santos, assistente social da aldeia multiética Filhos dessa Terra, em Cabuçu, no município de Guarulhos. Boas escolhas.

No desespero palaciano, onde só se pensa na reeleição do chefe, sobrou para Pazuello, um general de fancaria que fala com a sociedade como um sargento de história em quadrinhos se dirige a seus subordinados. Um arremedo do sargento Tainha, genial criação do cartunista Mort Walker, com bem menos empatia. Como um robô, ele seguiu mais uma vez as ordens do chefe e alimentou a cega militância bolsonarista nas redes sociais.  Disse, por exemplo, que do começo ao fim foi o governo Bolsonaro que bancou todos os investimentos na vacina do Butantan. ” O governo de São Paulo não pôs nenhum centavo”, afirmou de maneira categórica como se fosse uma grande revelação mantida até ontem em sigilo pela  discrição com que o governo federal trata a pandemia. Nem o Fio Maravilha teria tanta humildade frente ao gol, na belíssima música de Jorge Ben. Pura cascata.

Uma surpresa também porque Bolsonaro  sempre disse que não compraria a “vachina” chinesa do Doria. Com essa nova lorota, Pazuello levantou a bola e Doria marcou outro gol. Afirmou que o general mentiu e que tudo feito até agora no Butantan foi bancado exclusivamente pelo governo de São Paulo. E não houve tréplica. Soam, além de inacreditáveis, como tiros nos próprios pés  as fantasias mutantes produzidas pelo Palácio do Planalto.

A última delas foi a convocação de governadores para uma solenidade na manhã dessa segunda-feira da operação em Guarulhos de distribuição país afora das vacinas recebidas do Butantan no final da tarde do domingo. O general Pazuello com certeza vai estar na foto. Resultado medíocre para o planejamento da abertura da campanha no Palácio do Planalto com vacinas da Fiocruz, barradas pelo governo da Índia, em mais um retrato da má vontade e imprevidência do governo federal em providenciar as vacinas que lhe foram ofertadas.

O que aumenta a decepção nessa absurda guerra política é que o Brasil, em uma bela construção durante décadas pelo show de bola que é o SUS, talvez seja o país mais preparado no planeta para vacinar. Só faltam as vacinas. Até quando?

A conferir.