vacina

Fernando Abrucio: Não verás país nenhum com Bolsonaro

Seguindo essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia de pelo menos dois anos

O Brasil está à deriva e deverá passar por uma longa travessia até o fim do governo Bolsonaro, com provável piora de sua situação. Dois fatos levam a esta constatação. De um lado, a crise já era grave em 2018 e aprofundou-se nos últimos dois anos, numa proporção gigantesca. O país precisaria mudar muitas coisas, algo que só é possível com um diagnóstico preciso dos problemas, trabalho árduo de equipes bem preparadas e muito diálogo político e social. E aqui entra o outro lado do cenário atual: o presidente não está preparado para combinar essas qualidades. O pior é que praticamente não há chance de ele modificar seu estilo de governar.

Esmiuçando melhor este diagnóstico geral, cabe inicialmente mostrar o tamanho do buraco em que o país está. Há uma combinação de crise sanitária, estagnação econômica, aumento da desigualdade social, redução da legitimidade dos políticos junto aos cidadãos e uma piora gigantesca de políticas públicas essenciais. Parte desse processo foi uma herança deixada para o atual governo. Todavia, Bolsonaro não só não conseguiu avançar no combate desses problemas, como piorou a situação geral e trouxe novas dificuldades. Por este caminho, o Brasil estará pior daqui a dois anos, no fim de seu mandato.

A afirmação de que a manutenção do modelo bolsonarista empurrará todos ladeira abaixo precisa de melhor qualificação. Vamos aos fatos. Primeiro, Bolsonaro foi uma tragédia no combate à pandemia. Isso pode ser constatado pelo número absurdo de casos e mortes, inclusive em perspectiva comparada, bem como pelas medidas preconizadas e pelas lacunas governamentais. Nenhum governante mundial foi tão contundente na defesa do negacionismo. A vacinação demorará para ter impacto no Brasil e os próximos meses deverão de ser de crescimento da covid-19. Casos trágicos como o de Manaus poderão se repetir.

A situação econômica ainda pode ter uma chance de melhorar, especialmente no ano que vem. Menos pelo que o país tem feito e mais pelas políticas expansionistas que os Estados Unidos e a China deverão adotar. Eis aí uma notícia auspiciosa. Não obstante, o Brasil poderá aproveitar bem menos essa bonança, porque não há grandes perspectivas de melhora, até 2022, da produtividade, da taxa de investimento e do consumo da população.

Não me parece que o governo será capaz de fazer uma mudança fiscal mais ampla do que o atual feijão com arroz que o teto de gastos gera. O ministro Paulo Guedes tem enviado uma série de propostas ao Congresso, mas poucas são aprovadas. Geralmente, a última metade do mandato não é o melhor momento para dar uma arrancada em reformas estruturais, especialmente porque Bolsonaro tem mais apetite por outros tipos de mudança legislativa, como a ampliação do uso de armas pela população e o Estatuto da Família. Esta é a agenda para a qual usará sua influência política, com muitos cargos e verbas ao Centrão.

Para completar esse panorama econômico, o desemprego tende a continuar alto, talvez com algum alento no mercado informal, que gera menos renda. Parte dos ganhos do país virá da exportação de commodities, como tem ocorrido há 20 anos. Mas, diferentemente de outros momentos do passado, como no Plano Real e no governo Lula, definitivamente não somos a bola da vez para os investidores internacionais. Alguma coisa pode vir das concessões em infraestrutura. Só que a imagem internacional do Brasil sob Bolsonaro atrapalha esse movimento. Os erros em políticas ambientais e de direitos humanos, bem como o isolacionismo diplomático, vão custar caro.

A crise social tende a aumentar nos próximos dois anos. O auxílio emergencial foi uma tábua de salvação inventada pelo Congresso que caiu no colo de Bolsonaro. Terminado o Orçamento de Guerra, caberia ao governo federal pensar em uma estratégia mais ampla de combate à desigualdade social. Pelo tipo de pensamento mágico que orienta a cabeça do presidente, não há perspectiva de se ter um plano estruturado para as políticas sociais. O aumento da desigualdade nos principais centros urbanos vai criar um cenário distópico, típico de filmes como “Mad Max”.

Políticas públicas essenciais para o país também estão à deriva. O MEC vive seu pior momento em 30 anos e a abstenção recorde no Enem revela uma política educacional trágica, que vai aumentar a desigualdade entre os alunos. O Ministério do Meio Ambiente é contrário à política ambiental. Com o atual titular, não há chances de melhora, até porque o bolsonarismo prometeu a madeireiros e garimpeiros que eles teriam tudo aquilo que os “ecologistas” tiraram deles nas últimas décadas. Sobre a política indigenista é melhor não comentar. Marechal Rondon deve estar se remexendo no túmulo.

No plano político, duas trajetórias suicidas foram traçadas. No âmbito externo, a política internacional levou o Brasil a um isolacionismo inédito, particularmente depois da vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. Quem são nossos aliados? De um modo ou de outro, China, União Europeia, os vizinhos latino-americanos e agora os EUA, no mínimo, desconfiam do governo brasileiro e, na pior das hipóteses, mantida a lógica bolsonarista, vão certamente nos retaliar.

Desde o fim da ditadura militar, nunca um presidente ameaçou tanto a democracia como Bolsonaro. Num dia, propõe o voto impresso para tumultuar o jogo político e acusar os outros de fraude, já preparando um possível golpe caso perca a eleição. Noutro, diz que as Forças Armadas são o alicerce do regime democrático, quando qualquer manual de ciência política diria que o povo e as instituições é que dão legitimidade à ação dos militares, e não o contrário. O bolsonarismo não acredita nos valores básicos democráticos, como o pluralismo, a crença nas regras do jogo e os freios e contrapesos entre os poderes. Em seu comportamento mais benigno, Bolsonaro aceita o apoio de políticos medíocres que se deixam comprar por cargos e verbas, contanto que eles não interrompam sua estratégia autoritária mais profunda.

A rota do bolsonarismo pode ser interrompida, com o presidente mudando seu estilo de governar, diriam alguns. Os mesmos que acreditaram que Paulo Guedes faria privatizações em massa e reformas profundas no Estado; que Sergio Moro seria o guardião do republicanismo de todos, inclusive da família Bolsonaro; que o general Santos Cruz garantiria uma participação parcimoniosa das Forças Armadas no poder, que nunca aceitariam obedecer ordens absurdas como receitar cloroquina em massa para uma população que nem oxigênio tinha; e, como última esperança dos ingênuos, que o Centrão evitaria que o presidente trilhasse por caminhos autoritários. Sinto informar: a era da esperança pela mudança da natureza do bolsonarismo acabou.

O núcleo duro das crenças de Bolsonaro o leva a preferir a guerra cultural, uma política populista e autoritária, como também ser mais fiel ao seu eleitorado mais radical. Na linha contrária, ele não vai optar claramente por políticas públicas baseadas em evidências e na opinião dos especialistas, nem por um estilo político baseado no diálogo e na moderação. Crises políticas maiores podem resultar em concessões e alguns recuos, como aconteceu em junho do ano passado, após a prisão de Fabrício Queiroz. Mas quanto mais as eleições presidenciais se aproximam, mais o presidente acredita que precisa manter a aliança com seus alicerces básicos, em termos de ideias, grupos políticos e modos de atuação.

Em outras palavras, o roteiro básico daqui para frente tende a ser de poucas reformas profundas - se houver alguma -, conflito constante com os possíveis adversários políticos, inclusive fortalecendo o gabinete do ódio, discursos e propostas moralistas para agradar ao eleitorado conservador e, sobretudo, ameaçar a todos que o criticarem. É possível que haja algum populismo fiscal para distribuir alguma renda aos mais pobres e obras para o clientelismo do Centrão, mas o essencial para Bolsonaro é montar um exército de apoiadores entre trabalhadores informais, policiais militares, evangélicos e milicianos puros, sempre dizendo que as Forças Armadas estarão com ele em qualquer situação.

Seguindo essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia de pelo menos dois anos. O momento é similar ao do governo Figueiredo, quando o projeto dos militares já tinha fracassado, porém as forças em prol da democracia não tinham força suficiente para mudar a lógica do poder. Foi nesse momento, em 1981, que Ignácio de Loyola Brandão escreveu o livro “Não Verás País Nenhum”, uma ficção distópica que caracterizava o Brasil como um país marcado pelo autoritarismo, pela tragédia ambiental e pauperização da população, tudo isso ambientado numa São Paulo caótica. Nada mais atual do que essa história.

O Brasil sofreu muito, inclusive com atentados terroristas de milicianos incrustados no Estado autoritário, mas superou aquele momento autoritário. Para isso, precisou da aliança de muita gente diferente, como mostram as fotos dos comícios das Diretas-Já, com Montoro, Lula, FHC, Brizola e Ulysses abraçados e unindo-se pela mudança. O país provavelmente terá de fazer isso daqui a dois anos, embora possa fazê-lo agora em nome de um impeachment que tem razões de sobra para ocorrer, em especial a garantia da sobrevivência do país.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas


Ricardo Noblat: Bolsonaro tem o ministro da Saúde que merece e escolheu

Pazuello, sequer, domina bem a arte da desfaçatez

Sabe quantos testes de Covid-19 foram aplicados no Brasil desde o início da pandemia, em março fará um ano? E a quantidade de medicamentos para qualquer tipo de doença que tem estocado?

Não sabe e não saberá tão cedo. O deputado Ivan Valente (PSOL-SP) quis saber e valeu-se para isso da Lei de Acesso a tais informações que o governo Bolsonaro costuma desrespeitar.

O Ministério da Saúde respondeu ao pedido dizendo que as informações “se encontram em status reservado” porque poderiam “pôr em risco a vida, a segurança e a saúde da população”.

Outro argumento usado pelo ministério para dizer não a Valente: as informações requeridas por ele oferecem “elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do país”.

Esperar o quê do ministério sob o comando de um general especialista em logística que já marcou e remarcou tantas vezes o que chamou de Dia D da vacinação em massa contra o vírus?

E que quando a vacinação começou havia poucas doses disponíveis que mal dariam para atender 4% da fatia dos brasileiros do grupo considerado prioritário?

O general Eduardo Pazuello sequer domina como Bolsonaro a arte da desfaçatez. Retirou, ontem, do ar o aplicativo que recomendava remédios sem eficácia contra a Covid, como a cloroquina.

Alegou que o sistema havia sido ativado “indevidamente” por um hacker e que a plataforma fora lançada como um projeto-piloto e não funcionava oficialmente, “apenas como um simulador”.

Mas como era assim, se foi ele, durante evento no último dia 13 em Manaus, quem lançou a plataforma em reunião com médicos e outras autoridades da área de saúde?

Naquela ocasião, Pazuello já sabia que o sistema de saúde de Manaus estava em colapso, e que em poucos dias faltaria até oxigênio para o atendimento de doentes na rede hospitalar.

Por mais que Bolsonaro negue, o general tem seus dias contados como ministro. Não será o único ministro a sair em breve. Sairá em meio a uma reforma ministerial para evitar que Bolsonaro caia.


Eliane Brum: Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus”

Ao analisar 3.049 normas federais produzidas em 2020, a Faculdade de Saúde Pública da USP e a Conectas Direitos Humanos mostram por que o Brasil já superou mais de 212.000 mortes por covid-19

A linha de tempo mais macabra da história da saúde pública do Brasil emerge da pesquisa das normas produzidas pelo Governo de Jair Messias Bolsonaro relacionadas à pandemia de covid-19. Num esforço conjunto, desde março de 2020, o Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) e a Conectas Direitos Humanos, uma das mais respeitadas organizações de justiça da América Latina, se dedicam a coletar e esmiuçar as normas federais e estaduais relativas ao novo coronavírus, produzindo um boletim chamado Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil. Ontem, quinta-feira (21/1), lançaram uma edição especial na qual fazem uma afirmação contundente: “Nossa pesquisa revelou a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”.

Obtida com exclusividade pelo EL PAÍS, a análise da produção de portarias, medidas provisórias, resoluções, instruções normativas, leis, decisões e decretos do Governo federal, assim como o levantamento das falas públicas do presidente, desenham o mapa que fez do Brasil um dos países mais afetados pela covid-19 e, ao contrário de outras nações do mundo, ainda sem uma campanha de vacinação com cronograma confiável. Não é possível mensurar quantas das mais de 212.000 mortes de brasileiros poderiam ter sido evitadas se, sob a liderança de Bolsonaro, o Governo não tivesse executado um projeto de propagação do vírus. Mas é razoável afirmar que muitas pessoas teriam hoje suas mães, pais, irmãos e filhos vivos caso não houvesse um projeto institucional do Governo brasileiro para a disseminação da covid-19.

MAIS INFORMAÇÕES

Há intenção, há plano e há ação sistemática nas normas do Governo e nas manifestações de Bolsonaro, segundo aponta o estudo. “Os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência de parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço na publicação para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”, afirma o editorial da publicação. “Esperamos que essa linha do tempo ofereça uma visão de conjunto de um processo que vivemos de forma fragmentada e muitas vezes confusa”.

A pesquisa é coordenada por Deisy Ventura, uma das juristas mais respeitadas do Brasil, pesquisadora da relação entre pandemias e direito internacional e coordenadora do doutorado em saúde global e sustentabilidade da USP; Fernando Aith, professor-titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da FSP e diretor do CEPEDISA/USP, centro pioneiro de pesquisa sobre o direito da saúde no Brasil; Camila Lissa Asano, coordenadora de Programas da Conectas Direitos Humanos; e Rossana Rocha Reis, professora do departamento de Ciência Política e do Instituto de Relações Internacionais da USP.

A linha do tempo é composta por três eixos apresentados em ordem cronológica, de março de 2020 aos primeiros 16 dias de janeiro de 2021: 1) atos normativos da União, incluindo a edição de normas por autoridades e órgãos federais e vetos presidenciais; 2) atos de obstrução às respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia; e 3) propaganda contra a saúde pública, definida como “o discurso político que mobiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais, além de notícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica, com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular a recomendações de saúde baseadas em evidências científicas, e promover o ativismo político contra as medidas de saúde pública necessárias para conter o avanço da covid-19”.

Os autores assinalam que a publicação não apresenta todas as normas e falas coletadas e armazenadas no banco de dados da pesquisa, mas sim uma seleção que busca evitar a repetição e apresentar o mais relevante para a análise. Os dados foram selecionados junto à base de dados do projeto Direitos na Pandemia, à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal de Contas da União, além de documentos e discursos oficiais. No eixo que definem como propaganda, foi também realizada uma busca na plataforma Google para a coleta de vídeos, postagens e notícias.

A análise mostra que “a maioria das mortes seriam evitáveis por meio de uma estratégia de contenção da doença, o que constitui uma violação sem precedentes do direito à vida e do direito à saúde dos brasileiros”. E isso “sem que os gestores envolvidos sejam responsabilizados, ainda que instituições como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Contas da União tenham, inúmeras vezes, apontado a inconformidade à ordem jurídica brasileira de condutas e de omissões conscientes e voluntárias de gestores federais”. Também destacam “a urgência de discutir com profundidade a configuração de crimes contra a saúde pública, crimes de responsabilidade e crimes contra a humanidade durante a pandemia de covid-19 no Brasil”.

Os atos e falas de Bolsonaro são conhecidos, mas acabam se diluindo no cotidiano alimentado pela produção de factoides e de notícias falsas, no qual a guerra de ódios é também uma estratégia para encobrir a consistência e persistência do projeto que avança enquanto a temperatura é mantida alta nas redes sociais. A publicação provoca choque e mal estar ao sistematizar a produção explícita de maldades colocadas em prática por Bolsonaro e seu governo durante quase um ano de pandemia. Um dos principais méritos da investigação é justamente articular as diversas medidas oficiais e falas públicas do presidente na linha do tempo. Dessa análise meticulosa emerge o plano, com todas as suas fases devidamente documentadas.

Também torna-se explícito contra quais populações se concentram os ataques. Além dos povos indígenas, a quem Bolsonaro nega até mesmo água potável, há uma série de medidas tomadas para impedir que os trabalhadores possam se proteger da covid-19 e fazer isolamento. O governo amplia o conceito de atividades essenciais até mesmo para salões de beleza e busca anular o direito ao auxílio emergencial de 600 reais determinado pelo Congresso a várias categorias. Ao mesmo tempo, busca implantar um duplo tratamento aos profissionais de saúde: Bolsonaro veta integralmente o projeto que prevê compensação financeira para aqueles trabalhadores que ficarem incapacitados em consequência de sua atuação para conter a pandemia e tenta isentar os funcionários públicos de qualquer responsabilidade por atos e omissões no enfrentamento à covid-19. Em resumo: o trabalho duro e arriscado de prevenção e combate numa pandemia é desestimulado, a omissão é estimulada.

Através de retenção de recursos destinados à covid-19, o Governo prejudica a assistência aos doentes na rede pública de Estados e municípios. A guerra contra governadores e prefeitos que tentam implementar medidas de prevenção e combate ao vírus é constante. Por meio de vetos, Bolsonaro anula mesmo as medidas mais básicas, como obrigatoriedade de máscaras dentro de estabelecimentos com autorização para funcionar. Muitas de suas medidas e vetos são depois derrubadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ou pelo próprio Legislativo.

Esse é outro ponto importante: a análise dos dados mostra também o quanto a situação do Brasil poderia ser ainda mais trágica caso o STF e outras instâncias não tivessem barrado várias das medidas de propagação do vírus produzidas pelo Governo. Apesar da fragilidade demonstrada pelas instituições e pela sociedade, é visível o esforço de parte dos protagonistas para tentar anular ou neutralizar os atos de Bolsonaro. É possível fazer o exercício de projetar o quanto todos esses esforços, somados e associados a um governo disposto a prevenir a doença e combater o vírus, poderiam ter feito para evitar mortes em um país que conta com o Sistema Único de Saúde (SUS). Em vez disso, Bolsonaro produziu uma guerra em que a maior parte da energia de parte das instituições e da sociedade organizada foi dissipada para reduzir os danos produzidos por suas ações, em vez de se concentrar em combater a maior crise sanitária em um século.

Quase um ano depois do primeiro caso de covid-19, resta saber se as instituições e a sociedade que não estão acumpliciadas com Bolsonaro serão fortes o suficiente para, diante do mapa de ações institucionais de propagação do vírus, finalmente barrar os agentes de disseminação da doença. O uso da máquina do Estado para promover destruição tem sido determinante para produzir a realidade atual de mais de 1.000 covas abertas por dia para abrigar pessoas que poderiam estar vivas. Na gaveta de Rodrigo Maia (DEM), presidente da Câmara, há mais de 60 pedidos de impeachment. No Tribunal Penal Internacional, pelo menos três comunicações relacionam genocídio e outros crimes contra a humanidade à atuação de Bolsonaro e membros do governo relacionadas à pandemia. As próximas semanas serão decisivas para que os brasileiros digam quem são e o que responderão às gerações futuras quando lhes perguntarem onde estavam quando tantos morreram de covid-19.

A seguir, os principais pontos da linha do tempo das ações de Jair Bolsonaro e seu Governo:

MARÇO(SEMANA EPIDEMIOLÓGICA 10: 1º-7/03/2020)

CASOS ACUMULADOS: 19 - ÓBITOS ACUMULADOS: 0

“Pequena crise”

Uma portaria da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) tenta abrir uma brecha para o acesso de não indígenas, “em caráter excepcional”, com o objetivo de realizar “atividades essenciais” em territórios de povos isolados. A medida busca usar a covid-19 para criar uma porta de acesso a comunidades que nunca tiveram contato com não indígenas (nem com seus vírus e bactérias) ou que decidiram viver sem contato.

O que Bolsonaro diz:

“OBVIAMENTE TEMOS NO MOMENTO UMA CRISE, UMA PEQUENA CRISE. NO MEU ENTENDER, MUITO MAIS FANTASIA. A QUESTÃO DO CORONAVÍRUS, QUE NÃO É ISSO TUDO QUE A GRANDE MÍDIA PROPALA OU PROPAGA PELO MUNDO TODOEM 7/3, EM MIAMI, NA FLÓRIDA, REGIÃO CONSIDERADA DE ALTO RISCO. PELO MENOS 23 PESSOAS DE SUA COMITIVA FORAM INFECTADAS

ABRIL(SEMANA EPIDEMIOLÓGICA 15: 5-10/4)

CASOS ACUMULADOS: 20.818 - ÓBITOS ACUMULADOS: 699

Troca de ministro

UESLEI MARCELINO / REUTERS

Bolsonaro demite o ministro da Saúde durante a pandemia. Luiz Henrique Mandetta, além de político, é médico. A principal razão da demissão é a discordância sobre o uso da cloroquina e sobre a atuação pautada pelas recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ao final de março, segundo Mandetta, o presidente passou a buscar assessoria para se contrapor aos dados e à estratégia do Ministério da Saúde: “O Palácio do Planalto passou a ser frequentado por médicos bolsonaristas. (...) Ele [Bolsonaro] queria no seu entorno pessoas que dissessem aquilo que ele queria escutar. (...) Nunca na cabeça dele houve a preocupação de propor a cloroquina como um caminho de saúde. A preocupação dele era sempre: ‘Vamos dar esse remédio porque, com essa caixinha de cloroquina na mão, os trabalhadores voltarão à ativa, voltarão a produzir’. (...) O projeto dele para o combate à pandemia é dizer que o governo tem o remédio e quem tomar o remédio vai ficar bem. Só vai morrer quem ia morrer de qualquer maneira”.

O Congresso aprova o auxílio emergencial de 600 reais, medida parlamentar que seria equivocadamente associada a Bolsonaro por grande parte dos beneficiados, resultando em aumento de popularidade para o presidente.

O que Bolsonaro diz:

“E DAÍ? LAMENTO, QUER QUE FAÇA O QUÊ? EU SOU ‘MESSIAS’, MAS EU NÃO FAÇO MILAGRE28/4, AO COMENTAR O NÚMERO DE MORTOS DURANTE UMA ENTREVISTA, FAZENDO REFERÊNCIA AO SEU NOME DO MEIO

MAIO(SEMANA EPIDEMIOLÓGICA 19: 3-9/5)

CASOS ACUMULADOS: 155.939 - ÓBITOS ACUMULADOS: 3.877

Guerra com Estados

JOÉDSON ALVES / EFE

Bolsonaro usa decretos para boicotar as determinações de prevenção e combate à covid-19 de estados e municípios. Para isso, amplia o entendimento do que é atividade essencial durante uma pandemia e que, portanto, pode seguir funcionando apesar do agravamento da emergência sanitária. Assim, a área de construção civil, salões de beleza e barbearias, academias de esporte de todas as modalidades e serviços industriais em geral passam a ser “atividades essenciais”.

O presidente tenta ainda isentar os agentes públicos de serem responsabilizados, civil e administrativamente, por atos e omissões no enfrentamento da pandemia. Bolsonaro também veta o auxílio emergencial de 600 reais mensais instituído pelo Congresso a pescadores artesanais, taxistas, motoristas de aplicativo, motoristas de transporte escolar, entregadores de aplicativo, profissionais autônomos de educação física, ambulantes, feirantes, garçons, babás, manicures, cabeleireiros e professores contratados que estejam sem receber salário. Pela lei aprovada pelo parlamento, essas categorias seriam contempladas pelo auxílio emergencial, para que pudessem fazer isolamento para se proteger do vírus.

O novo ministro da Saúde, médico Nelson Teich, se demite: “Não vou manchar a minha história por causa da cloroquina”. Assume o posto, interinamente, o general da ativa Eduardo Pazuello. Em solenidade oficial, o militar afirmou que, antes de assumir o cargo, “nem sabia o que era o SUS”. A militarização do ministério se amplia ainda mais. Um protocolo do Ministério da Saúde determina o uso de cloroquina para todos os casos de covid-19, medicamento comprovadamente sem eficácia para combater o novo coronavírus.

Bolsonaro abre guerra contra governadores. O Conselho Nacional da Saúde denuncia que mais de 8 bilhões de reais destinados ao combate à pandemia deixaram de ser repassados aos estados e municípios, que sofrem com a falta de insumos básicos, respiradores e leitos. O CNS lança a campanha “Repassa já!”.

O que Bolsonaro diz:

“SE FOR ISSO MESMO, É GUERRA. SE QUISEREM EU VOU A SÃO PAULO, VOCÊS TÊM QUE LUTAR CONTRA O GOVERNADOR14/5, EM VIDEOCONFERÊNCIA PROMOVIDA PELA FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO (FIESP), INCITANDO OS EMPRESÁRIOS A LUTAR CONTRA O 'LOCKDOWN'

JUNHO(SEMANA EPIDEMIOLÓGICA 24: 7-13/6)

CASOS ACUMULADOS: 850.514 - ÓBITOS ACUMULADOS: 42.720

Apagão de dados

Bolsonaro incita seus seguidores a invadir hospitais e filmar, com a justificativa de que os números de doentes e de ocupação de leitos estão inflacionados. Em 3 de junho, o Governo divulga dados sobre a covid-19 com atraso, após as 22h. Em 5 de junho, o site do Ministério da Saúde sai do ar e retorna no dia seguinte apenas com informações das últimas 24 horas. A tentativa de encobrir os números de doentes e de mortos por covid-19 é denunciada pela imprensa. A sociedade perde a confiança nos dados oficiais e seis dos principais jornais e sites de jornalismo —G1, O Globo, Extra, O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e UOL— formam um consórcio para registrar os números da pandemia.

O que Bolsonaro diz:

“ARRANJA UMA MANEIRA DE ENTRAR E FILMAR. MUITA GENTE TÁ FAZENDO ISSO, MAS MAIS GENTE TEM QUE FAZER PARA MOSTRAR SE OS LEITOS ESTÃO OCUPADOS OU NÃO, SE OS GASTOS SÃO COMPATÍVEIS OU NÃO10/6, EM TRANSMISSÃO AO VIVO NO FACEBOOK

JULHO(SEMANA EPIDEMIOLÓGICA 28: 5-11/7)

CASOS ACUMULADOS: 1.839.850 - ÓBITOS ACUMULADOS: 71.469

Vetos de maldade

ERALDO PERES / AP

Bolsonaro veta a obrigatoriedade do uso de máscaras em estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos, escolas e demais locais fechados em que haja reunião de pessoas. Também veta a multa aos estabelecimentos que não disponibilizem álcool em gel a 70% em locais próximos às suas entradas, elevadores e escadas rolantes.

Bolsonaro veta a obrigação dos estabelecimentos em funcionamento durante a pandemia de fornecer gratuitamente a seus funcionários e colaboradores máscaras de proteção individual. Veta ainda a obrigação de afixar cartazes informativos sobre a forma de uso correto de máscaras e de proteção individual nos estabelecimentos prisionais e nos estabelecimentos de cumprimento de medidas socioeducativas.

Bolsonaro veta medidas de proteção para comunidades indígenas durante a pandemia de Covid-19. Entre elas: o acesso a água potável, materiais de higiene e limpeza, leitos hospitalares e de UTIs, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, materiais informativos sobre a covid-19 e internet nas aldeias. Veta também a obrigação da União de distribuir alimentos aos povos indígenas, durante a pandemia, na forma de cestas básicas, sementes e ferramentas.

O Exército paga 167% a mais pelo principal insumo da cloroquina, com a seguinte justificativa: “produzir esperança para corações aflitos”.

Ao criticar a militarização do Ministério da Saúde, o ministro do STF Gilmar Mendes define a resposta do governo federal à pandemia como “genocídio”: “Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. (...) É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso por fim a isso”.

O que Bolsonaro diz:
“LAMENTO AS MORTES. MORRE GENTE TODO DIA, DE UMA SÉRIE DE CAUSAS. É A VIDA30/7, EM MEIO A UMA AGLOMERAÇÃO EM BAGÉ, NO RIO GRANDE DO SUL

AGOSTO(SEMANA EPIDEMIOLÓGICA 32: 2-8/8)

CASOS ACUMULADOS: 3.012.412 - ÓBITOS ACUMULADOS: 100.477

Ataque à vacina

Bolsonaro veta integralmente o projeto de lei que determina compensação financeira paga pela União a profissionais e trabalhadores de saúde que ficarem incapacitados por atuarem no combate à covid-19.

O Governo Bolsonaro ignora a proposta da Pfizer, que garante a entrega do primeiro lote de vacinas em 20 de dezembro de 2020.

O Ministério da Saúde rejeita a doação de pelo menos 20 mil kits de testes PCR para covid-19 da empresa LG International, dois meses após a oferta.

O que Bolsonaro diz:
“NINGUÉM PODE OBRIGAR NINGUÉM A TOMAR VACINA31/8, EM CONVERSA COM APOIADORES NO JARDIM DO PALÁCIO DO ALVORADA

SETEMBRO(SEMANA EPIDEMIOLÓGICA 37: 6-12/9)

CASOS ACUMULADOS: 4.315.687 - ÓBITOS ACUMULADOS: 131.210

Militar na Saúde

Uma resolução de Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) flexibiliza ainda mais a prescrição de ivermectina e nitazoxanida, dispensando a retenção de receita médica para a venda em farmácias. Os medicamentos são propagandeados pelo governo como eficazes para a covid-19, mas estudos científicos mostram que não diminuem a gravidade da doença nem impedem a morte de pacientes. O general da ativa Eduardo Pazuello é efetivado como ministro da Saúde.

O que Bolsonaro diz:
“ESTAMOS PRATICAMENTE VENCENDO A PANDEMIA. O GOVERNO FEZ TUDO PARA QUE OS EFEITOS NEGATIVOS DA MESMA FOSSEM MINIMIZADOS, AJUDANDO PREFEITOS E GOVERNADORES COM NECESSIDADES NA SAÚDE11/9, EM AGLOMERAÇÃO NA BAHIA

OUTUBRO(SEMANA EPIDEMIOLÓGICA 41: 4-10/10)

CASOS ACUMULADOS: 5.082.637 - ÓBITOS ACUMULADOS:150.198

“Vacina chinesa”

AMANDA PEROBELLI / REUTERS

Bolsonaro afirma que a pandemia foi superdimensionada, mente que a cloroquina garante 100% de cura se usada no início dos sintomas e cancela a compra de 46 milhões de doses da vacina chinesa Coronavac pelo Ministério da Saúde: “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém”.

O que Bolsonaro diz:

“ESTÁ ACABANDO A PANDEMIA [NO BRASIL]. ACHO QUE [O JOÃO DORIA, GOVERNADOR DE SÃO PAULO] QUER VACINAR O PESSOAL NA MARRA RAPIDINHO PORQUE [A PANDEMIA] VAI ACABAR E DAÍ ELE FALA: ‘ACABOU POR CAUSA DA MINHA VACINA’. QUEM ESTÁ ACABANDO É O GOVERNO DELE, COM TODA CERTEZA” (...) O QUE EU VEJO NA QUESTÃO DA PANDEMIA? ESTÁ INDO EMBORA, ISSO JÁ ACONTECEU, A GENTE VÊ LIVROS DE HISTÓRIA.”EM 30/10, EM DECLARAÇÕES TRANSMITIDAS POR UM SITE BOLSONARISTA

NOVEMBRO(SEMANA EPIDEMIOLÓGICA 45: 1º-7/11)

CASOS ACUMULADOS: 5.653.561 - ÓBITOS ACUMULADOS:162.269

Produção de mentiras

Apesar de todos os fatos e números em contrário, Bolsonaro afirma que o Brasil foi um dos países que menos sofreu com a pandemia. Segue atacando a vacina.

O que Bolsonaro diz:

“MORTE, INVALIDEZ, ANOMALIA. ESTA É A VACINA QUE O [JOÃO] DORIA QUERIA OBRIGAR TODOS OS PAULISTANOS A TOMAR. O PRESIDENTE DISSE QUE A VACINA JAMAIS PODERIA SER OBRIGATÓRIA. MAIS UMA QUE JAIR BOLSONARO GANHAEM 10/11, NO FACEBOOK, AO COMEMORAR A SUSPENSÃO DOS TESTES DA VACINA CORONAVAC

DEZEMBRO(SEMANA EPIDEMIOLÓGICA 50: 6-12/12)

CASOS ACUMULADOS: 6.880.127 - ÓBITOS ACUMULADOS: 181.123

Qual é o plano?

ERALDO PERES / AP

Bolsonaro anuncia que não vai se vacinar e atua para criar pânico na população, referindo-se a terríveis efeitos colaterais. Em resposta ao questionamento do Supremo Tribunal Federal, o Ministério da Saúde apresenta o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação. O Governo, porém, ainda não tem vacina a oferecer nem cronograma confiável de vacinação. Onze ex-ministros da Saúde de diferentes partidos publicam artigo denunciando “desastrada e ineficiente condução do MS em relação à estratégia brasileira de vacinação da população contra a covid-19”. Ainda não há plano emergencial para os indígenas. Diz o ministro Luís Roberto Barroso, do STF: “Impressiona que, após quase 10 meses de pandemia, não tenha a União logrado o mínimo: oferecer um plano com seus elementos essenciais, situação que segue expondo a risco a vida e a saúde dos povos indígenas”.

O que Bolsonaro diz:

“A PANDEMIA, REALMENTE, ESTÁ CHEGANDO AO FIM. TEMOS UMA PEQUENA ASCENSÃO, AGORA, QUE CHAMA DE PEQUENO REPIQUE QUE PODE ACONTECER, MAS A PRESSA DA VACINA NÃO SE JUSTIFICA. (...) VÃO INOCULAR ALGO EM VOCÊ. O SEU SISTEMA IMUNOLÓGICO PODE REAGIR, AINDA DE FORMA IMPREVISTA19/12, EM ENTREVISTA AO PROGRAMA DE UM DE SEUS FILHOS NO YOUTUBE

JANEIRO DE 2021, ATÉ O DIA 16(SEMANA EPIDEMIOLÓGICA 2:10-16/1)

CASOS ACUMULADOS: 8.455.059 - ÓBITOS ACUMULADOS: 209.296

Mortos por asfixia

BRUNO KELLY / REUTERS

O Ministério das Relações Exteriores afirma ter comprado 2 milhões de doses da vacina da AstraZeneca/Oxford da Índia. Nos dias seguintes, o governo federal organiza uma grande operação de propaganda, incluindo a divulgação massiva na mídia e adesivagem de um Airbus da Azul Linhas Aéreas, que faria uma “viagem histórica” com o slogan: “Vacinação - Brasil imunizado - Somos uma só nação”. Bolsonaro chega a enviar uma carta ao Primeiro Ministro da Índia solicitando urgência no envio das doses, mas a operação é suspensa pela Índia. Diante do colapso da saúde em Manaus, com pacientes morrendo asfixiados por falta de oxigênio na rede hospitalar, o ministro da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, declara: “O que você vai fazer? Nada. Você e todo mundo vão esperar chegar o oxigênio para ser distribuído”.

Bolsonaro veta parte da Lei Complementar nº 177, de 12/1/20, aprovada por ampla maioria no Senado (71 x1 votos) e na Câmara dos Deputados (385 x 18 votos). Segundo a Agência FAPESP, vetos presidenciais subtraem 9,1 bilhões de reais dos investimentos em ciência, tecnologia e inovação neste ano, impedindo que o Brasil desenvolva uma vacina contra a covid-19, apesar de ter infraestrutura e recursos humanos suficientes. Comunidades acadêmica e empresarial mobilizam-se para derrubada dos vetos,

O que Bolsonaro diz:

“O BRASIL ESTÁ QUEBRADO, CHEFE. EU NÃO CONSIGO FAZER NADA. EU QUERIA MEXER NA TABELA DO IMPOSTO DE RENDA, TÁ, TEVE ESSE VÍRUS, POTENCIALIZADO PELA MÍDIA QUE NÓS TEMOS, ESSA MÍDIA SEM CARÁTER5/1, NA SAÍDA DO PALÁCIO DO PLANALTO

Acesse o documento completo aqui.


Fernando Gabeira: A realidade depois da festa

Chegada simbólica da vacina é uma esperança num país onde se morre afogado no seco

Às vezes é preciso tomar uma certa distância para entender o que se passa no Brasil. Não por esnobismo, mas pelo esforço se aproximar da realidade.

Não creio que se tenha festejado tanto a chegada da vacina em outros países do mundo. Certamente, nenhuma outra agência reguladora transmitiu sua análise das vacinas ao vivo. E em nenhum país o presidente da República se sentiu derrotado e, num ato falho, no dia seguinte disse: “Apesar da vacina”…

Tudo indica que foi vencida uma etapa do negacionismo. Mas em que contexto? Os casos de coronavírus continuam crescendo no País. Mais cidades podem ter dificuldade de suprir hospitais com oxigênio. Algumas nem têm hospitais, só pacientes com falta de ar.

A celebração da chegada das vacinas precisa ser confrontada com a necessidade mais ampla do País. Foram apenas 6 milhões de doses. Talvez possam ser ampliadas para pouco mais de 10 milhões, acrescidas das que serão envasadas pelo Butantan. Mas um programa de vacinação com o nível de eficácia das vacinas que temos terá de alcançar, no mínimo, 150 milhões de pessoas, o que significaria 300 milhões de doses. Como as conseguiremos, em que prazos?

Parece-me que no início o Estado de São Paulo negociou vacinas para a sua população. A ideia de alcançar o País inteiro surgiu depois, com a própria luta política e a falta de alternativas do governo negacionista.

Dependemos hoje da China e da Índia para os insumos necessários chegarem ao País e serem manejados por Butantan e Fiocruz. Um processo de vacinação de grande amplitude depende de planejamento, disciplina e continuidade, não se esgota nas fotos.

China e Índia têm, juntas, quase 3 bilhões de habitantes. Ambas iniciaram o processo de vacinação interno. A Índia quer começar com 300 milhões de vacinados, logo, vai precisar de 600 milhões de doses. Como esperar um fluxo permanente e seguro desses dois países?

O Brasil acha que comprou da Índia 2 milhões de doses da Oxford-AstraZeneca. Mas o nível de informação sobre o País é baixo, assim como precária é a atual habilidade diplomática brasileira. Adesivar um avião para buscar as vacinas é algo tão fora do ar que possivelmente ele seria apreendido no aeroporto de Mumbai.

Há pressão para que a demanda interna indiana seja atendida prioritariamente. Além disso, as exportações obedecem também a critérios geopolíticos. O discurso de China e Índia é o de contribuir para a humanidade. Mas disputam espaço na Ásia e certamente farão da vacina um instrumento desse jogo diplomático.

No caso da China, onde se produzem insumos para a Coronavac e AstraZeneca, além de suas prioridades geopolíticas, há ainda a hostilidade do governo Bolsonaro, manifestada às vezes de forma preconceituosa. Assim como o ministro Ernesto Araújo é a última pessoa que deveríamos escolher para negociar com Biden, também o é para negociar com a China.

De modo geral, não estaríamos tão despreparados para uma conversa com a China se a questão ideológica não tivesse prevalecido também no campo da telefonia 5G. Ao optar pela chamada rede limpa, influenciado por Trump, o governo brasileiro não só ameaça excluir os chineses, como adotar uma saída tecnológica mais cara para o consumidor brasileiro.

Nada disso era para ser tão grave se desde o meio do ano passado o governo tivesse compreendido o papel estratégico das vacinas. Preconceitos anticientíficos pesaram nas relações com a Pfizer, que, ao lado da Moderna, trabalha com uma técnica geneticamente avançada. Foi pensando nesse tipo de vacina que Bolsonaro lançou a célebre dúvida sobre seus efeitos, virar ou não jacaré.

Segundo as notas da própria Pfizer, poderíamos ter comprado, no mínimo, 30 milhões de doses, que já resolveriam 10% de nossas necessidades. E havia, evidentemente, a possibilidade de comprar mais. A questão tão problemática de conservar a vacina a menos 70 graus Celsius foi parcialmente resolvida pela própria Pfizer com a embalagem de gelo seco.

Não negociamos com a Moderna talvez pelo preço de suas doses. Mas nestas circunstâncias o preço tem de ser visto com realismo, considerando nível de eficácia, necessidade de mover a economia, alívio no sistema de saúde.

Essas duas vacinas têm uma desvantagem em relação às que foram contratadas pelo Brasil: não transferem tecnologia para serem produzidas aqui. Isso não derruba o fato de que eram necessários mais contratos, um leque maior de alternativas para enfrentar a situação, algo impossível para o universo mental de Bolsonaro. Seus preconceitos são muito mais variados que as alternativas: a vacina com RNA mensageiro transfigura a pessoa em jacaré, a vacina mais tradicional é chinesa e foi comprada por Doria.

A segunda onda da pandemia bate forte no Brasil. Com ela, variantes do coronavírus com mais capacidade de propagação. Infelizmente, o vírus se adapta mais rápido à realidade que o cérebro dos dirigentes.

A chegada simbólica da vacina é sempre uma esperança. Com ressalvas, ela chega a um país sufocado pela pandemia e pelo negacionismo. Falta oxigênio, morre-se afogado no seco.


Cora Rónai: O silêncio cúmplice dos generais

Cada vez que um general na administração pública se revela incompetente ajuda a destruir a reputação das Forças Armadas

A Academia Militar das Agulhas Negras é uma escola de ensino superior do Exército Brasileiro. Copiei essa frase da Wikipédia para não errar na definição. Ensino. Superior.

Lá se formam os oficiais de carreira das Armas de Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Comunicações, do Quadro de Material Bélico e do Serviço de Intendência do Exército. Não é qualquer um que tem acesso à AMAN. Jovens militares entre 17 e 22 têm que prestar concurso público para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército, onde passam um ano antes de ser admitidos.

O ensino é puxado. Só no primeiro ano, por exemplo, os alunos têm que aprender idiomas estrangeiros, Economia, Estatística, Filosofia, Introdução à Pesquisa Científica, Informática, Língua Portuguesa, Técnicas Militares e Química, entre aulas de tiro e de treinamento físico. Eles têm ainda aulas de Direito e Psicologia no segundo ano e Metodologia do Ensino Superior no terceiro, e concluem os estudos com Direito Administrativo e Relações Internacionais, entre muitas e muitas matérias de cunho especializado.

Eu não conhecia os detalhes desse currículo até consultar a Wikipédia, mas, como todo mundo, conhecia a fama da AMAN, tida por formadora de pessoas disciplinadas e com bons conhecimentos técnicos.

Como os militares tiveram o bom senso de se manter em low profile depois da ditadura, muitos brasileiros passaram a acreditar no preparo dos seus generais. Eles podem não ser democráticos — ninguém que obedece hierarquia às cegas é inteiramente democrático —, mas imaginava-se que seriam bem preparados.

Bolsonaro é egresso da Academia Militar das Agulhas Negras, mas não teve sucesso como militar. Não mancha a imagem das Forças Armadas diretamente, porque elas tiveram a sorte (ou o bom senso: há divergências) de livrar-se dele a tempo.

Indiretamente, porém, os danos feitos pela sua eleição são incalculáveis. Cada vez que um general alçado à administração pública se revela incompetente, ou dá declarações fora de propósito, ajuda a destruir mais um pouco a reputação que as Forças Armadas levaram tantas décadas para recuperar.

Nenhum estrago, porém, se compara ao general Eduardo Pazuello, o “especialista em logística” que garantiu a pior resposta possível à pandemia — e que garante ao governo o vexame diário de ver os números da contaminação e da mortalidade divulgados por um consórcio de empresas jornalísticas, já que nos dados oficiais é impossível confiar.

Ele é a desmoralização concreta das FFAA, um homem que não se envergonha de faltar com a verdade, um estrategista incapaz de fazer uma simples licitação pública para comprar seringas, um ministro da Saúde que, até agora, não entendeu o que está acontecendo.

Um general que derruba, sozinho, o mito da boa preparação dos oficiais superiores do Exército Brasileiro.

Não é que não dê para se imaginar como chegou ao ministério: o fraco do presidente por pessoas inadequadas é bem conhecido. Num governo que tem Ricardo Salles no Meio Ambiente e Ernesto Araújo nas Relações Exteriores, Eduardo Pazuello faz todo o sentido na Saúde.

O que não dá para imaginar é como chegou ao generalato.

É duro constatar que, enquanto brasileiros morrem asfixiados pela sua incompetência, seus colegas de farda observam calados.

Tomem tenência, senhores: quem cala é cúmplice.


Bruno Boghossian: Carta de Bolsonaro a Biden só tem valor com outro chanceler ou outro governo

Lista de princípios elencados pelo brasileiro não casa com as diretrizes da diplomacia bolsonarista

Jair Bolsonaro se esforçou para construir a pior relação possível com o novo presidente dos EUA. Apoiou o candidato errado, alimentou falsas suspeitas de fraude eleitoral e ameaçou entrar em guerra. Foi preciso que Joe Biden pegasse as chaves da Casa Branca para que o governo brasileiro caísse de joelhos.

Depois da teimosia diante da vitória do democrata, Bolsonaro enviou uma carta em que deseja ao americano a “mais alta estima”. O presidente foi obrigado a engolir as próprias palavras –ou talvez tenha assinado o documento sem ler.

No texto, Bolsonaro declara que o país demonstrou “seu compromisso com o Acordo de Paris”. Em 2019, era diferente. O brasileiro copiava as promessas de seu ídolo Donald Trump e afirmava que deixaria a iniciativa global contra as mudanças climáticas. “Se fosse bom, o americano não teria saído”, declarou.

O presidente brasileiro também propõe ao democrata “continuar nossa parceria” na proteção ambiental. Bolsonaro não se preocupava com isso enquanto confiava na vitória de Trump. Quando Biden sugeriu impor sanções pela destruição da Amazônia e ofereceu fundos para conter a devastação, o brasileiro respondeu que não aceitava subornos.

Depois da vitória de Biden, em novembro, Bolsonaro ainda o chamava de “um grande candidato à chefia de Estado” e ameaçava reagir no campo bélico aos planos ambientais do americano. “Quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”, disse.

O governo que afinou o tom depois da posse de Biden é o mesmo que relativizou a invasão do Capitólio para impedir a certificação do resultado eleitoral. O chanceler Ernesto Araújo afirmava que o ato era fruto da insatisfação dos americanos.

A carta enviada agora a Biden contém um catálogo humilhante das migalhas concedidas por Trump ao país e uma lista de princípios que não casam com as diretrizes da diplomacia bolsonarista. Para que o documento tenha algum valor, será preciso trocar o chanceler ou o governo –o que ocorrer primeiro.


Mariliz Pereira Jorge: Tão cedo não teremos vacina para todos

Enquanto isso, o ministro da Saúde, o general Pesadelo, mente

Não teremos vacina para todos. Pelo menos não tão cedo. A incompetência e o descaso de Jair Bolsonaro e dos patetas dos seus assessores colocaram uma nação inteira na vergonhosa, sem dizer calamitosa, posição de levar um tombo na corrida da imunização.

Depois de um dia de esperança com o início da vacinação, a realidade. E a realidade é que estamos nas mãos dos chineses, que riem por último do festival de grosserias dos nossos representantes.

O estoque da Coronavac deve durar até o final de janeiro. A AstraZeneca só deve começar a chegar em março. Bolsonaro desdenhou, cancelou compras, pôs em dúvida a eficácia dos imunizantes, seu governo se opôs —e depois voltou atrás— à quebra de patentes proposta pela Índia. E agora não conseguimos matéria-prima para abastecer a Fiocruz e o Instituto Butantan.

Num evento em comemoração ao dia de São Sebastião, na Arquidiocese do Rio, a cientista Margareth Dalcomo, um dos principais nomes no combate à Covid-19, verbalizou a angústia de milhões de pessoas ao falar sobre a derrota do governo na compra dos imunizantes. "O que é que pode justificar que o Brasil não tenha as vacinas disponíveis para a sua população (...) A não ser a absoluta incompetência diplomática do Brasil..."

Enquanto isso, o ministro da Saúde, o general Pesadelo, mente que sua pasta nunca ofereceu tratamento precoce para a doença. Felizmente a notícia e o print são eternos. Para completar a lambança, um aplicativo do ministério indica cloroquina e antibiótico até para casos não comprovados de infecção pelo coronavírus. Tem náusea e diarreia? A solução, segundo o governo, é o "kit-Covid".

Cerca de 73% dos brasileiros disseram que pretendem se vacinar, segundo o Datafolha.

Se depender do governo, no dia de sabe-deus-quando. Quem diria, mas a vacina, mais precisamente a falta dela, ainda vai derrubar Bolsonaro.


Alon Feuerwerker: Soft power

A aguda demanda global por vacinas anti-Covid-19 é uma bela oportunidade para o exercício do soft power. Mas mesmo isso tem um limite: a óbvia premência de os países produtores atenderem em primeiro lugar suas próprias populações. Ter amigos mundo afora é sempre bom, essencial até, mas quem coloca ou derruba os governos são em última instância seus próprios povos.

Porém a oportunidade de soft power é real, e vem sendo mais bem aproveitada por três jogadores: Índia, Rússia e China. E o motor fundamental nessa disputa em escala mundial é a capacidade de fornecer vacinas na quantidade e velocidade desejadas, diante das circunstâncias. A partir daí, talvez seja precipitado achar que esses países vão sonegar o imunizante para fazer política (leia).

Mais provável é os três concorrerem entre si para ver quem faz mais amigos mundo afora com a vacina.

E a janela de oportunidade está aberta também pela situação do presidente americano hoje empossado, Joe Biden. O principal desafio dele no curto prazo é vacinar em massa nos Estados Unidos, país mais afetado em números absolutos pelo SARS-Cov-2. Não é demais suspeitar que ele vai gastar pelo menos uns 20 a 25% deste mandato quebrando a cabeça em torno do assunto.

E segurando o que puder de vacinas para aplicar lá mesmo.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Maria Cristina Fernandes: O fósforo de Aras no paiol de Bolsonaro

Pressão sobre PGR o levará a denunciar autoridades sob risco de perder mandato

O estado de calamidade é a antessala do Estado de Defesa, assim como este antecede o Estado de Sítio, que é o prenúncio de um golpe de Estado. Quem faz esta escalada é um ministro do Supremo Tribunal Federal estarrecido com a nota em que o procurador-geral da República, Augusto Aras sugere a decretação de um Estado de Defesa.

O PGR não se limitou a perder os aliados ocasionais com os quais contava no Supremo. A autoridade cuja missão constitucional é a defesa do regime democrático acenou com uma medida que levaria o país, 35 anos depois do fim da ditadura, a um regime de exceção na véspera de os Estados Unidos se despedirem da maior ameaça autoritária de sua história. A conspiração do PGR também se deu 24 horas depois de o presidente da República declarar que são as Forças Armadas que decidem se um povo vive sob democracia ou ditadura.

Aras ofereceu tapete vermelho para um presidente cercado por livre e espontânea iniciativa. Jair Bolsonaro amplificou, com a gestão do Itamaraty e da Saúde, a tragédia da pandemia. Conseguiu brigar com as duas maiores potências do planeta de uma única vez e colocou, no ministério da Saúde, um titular cuja principal função é se manter como general da ativa e amarrar as Forças Armadas ao descalabro da administração federal. Não é com uma carta como aquela que enviou ao novo presidente americano que Bolsonaro apagará o prontuário de sua política externa.

A nota de Aras caiu em Brasília como um gesto desesperado do PGR pela última vaga que se abrirá no Supremo Tribunal Federal neste mandato de Bolsonaro, a do ministro Marco Aurélio Mello, em julho. Um outro ministro do Supremo lamenta que Aras tenha jogado fora todo o esforço de construção de medidas excepcionais para o enfrentamento da pandemia, como o Orçamento de Guerra, construído por dentro das instituições, para sugerir, de bandeja, um reforço unilateral dos poderes do presidente da República. O ministro Dias Toffoli foi o único a lhe prestar solidariedade (“Tem atuado do ponto de vista a não trazer problemas”).

Na nota, Aras se limita a prestar contas da investigação criminal sobre o governador do Amazonas e o prefeito de Manaus mas delega ao Legislativo a persecução de “eventuais ilícitos” que levem à responsabilização dos Poderes da República. No afã de se defender, o PGR se omite. Há registro de pelo menos 51 casos de asfixia por falta de oxigênio em Manaus, apesar de documentadas advertências ao Ministério da Saúde sobre a falta iminente do insumo.

Por mais que o ministro Eduardo Pazuello agora se exima da prescrição de medicamentos sem efeito para a Covid-19, há portarias que a registram e um aplicativo para celular, que o Ministério da Saúde colocou e depois tirou das plataformas, em que o cadastrado também recebe a mesma orientação para uso dos medicamentos. A conclusão de que o PGR prevarica é de um supremo togado: “Omite-se ante homicídio doloso”.

A avaliação no Ministério Público é a de que Aras, de fato, errou a mão depois que os procuradores, acuados por perseguições internas, foram acordados pela tragédia manaura. Hoje viram a noite para coletar evidências e instruir denúncias que, engavetadas pelo PGR, acabam chegando à imprensa. Da primeira vez em que foi acossado para representar contra o presidente, no primeiro semestre do ano passado, durante os atos antidemocráticos e ante as evidências de interferência na Polícia Federal, o PGR respondeu puxando o ex-ministro Sérgio Moro para a roda. Angariou simpatia tanto no Congresso quanto no Supremo Tribunal Federal. Naquele momento, Aras conseguiu transformar a pressão por uma denúncia contra o presidente numa revanche contra a Lava-jato.

Agora, sem poder lançar mão do mesmo recurso, o PGR foi para o tudo ou nada. A nota de Aras azedou a campanha do candidato governista à Presidência da Câmara. Arthur Lira já tinha até aderido ao auxílio emergencial na tentativa de pôr fim ao fla x flu na Casa. Sinalizou aos seus pares que, ao abrigar o auxílio emergencial, impediria a corrosão na popularidade do governo, mantendo viva a galinha dos ovos de ouro da rapaziada. A adesão enfureceu o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Quando parecia que Lira estava a caminho do pódio, Aras despejou a nota e reacendeu o nós contra eles, uma polarização amplificada e repaginada pela vacina. Tem até empresário bolsonarista raiz que hoje dá entrevista para cobrar a vacina sob a condição de não responder perguntas sobre seu apoio eleitoral ao presidente. Se há resistência parlamentar ao impeachment, maior ainda é o rechaço a um instrumento que restringe as liberdades individuais num momento em que as pessoas se vêem cerceadas em seu direito à saúde (vacina) e sobrevivência (auxílio).

Se a nota de Aras azedou a vantagem de Lira, no Senado ocorre o inverso. É o futuro do próprio PGR que está em jogo. Dê Rodrigo Pacheco (DEM-MG) ou Simone Tebet (MDB-MS), Aras não parece salvaguardado de um processo de impeachment. Em nenhuma instituição, porém, a pressão é tão grande quanto naquela encabeçada pelo PGR. Seis dos oito integrantes do Conselho Superior do Ministério Público manifestaram ontem um rechaço público à nota de Aras cobrando a responsabilização de agentes públicos como atuação mais condizente com o Estado de direito do que sua menção ao Estado de Defesa.

O próximo passo é a convocação do Colégio de procuradores. A última vez em que o colegiado se pronunciou foi na disputa de prerrogativas entre Ministério Público e Polícia Federal configurada na PEC 37. A defesa dos poderes do MP acabou por ser uma das principais bandeiras de mobilização das manifestações de junho de 2013.

Sob um cerco desta magnitude Aras ruma para se deparar com duas opções. A primeira é continuar a desafiar a missão que lhe foi conferida pela Constituição e perder seu mandato. A segunda é se conformar em ter chegado ao topo da carreira do Ministério Público e exercer seu papel de denunciar o ministro da Saúde e seu comandante-em-chefe.


El País: Os crimes de Bolsonaro durante a pandemia, segundo juristas que pressionam Aras

Representação apresentada contra presidente constrange PGR, alinhado ao Planalto, que rejeitou levá-la ao STF. Subordinados de Aras lançaram nota com mais pressão sobre ele

Joana Oliveira, El País

O presidente Jair Bolsonaro fomenta “sabotagens para retardar ou mesmo frustrar o processo de vacinação” contra a covid-19 no Brasil. Essa é a tese de um grupo de 352 notáveis, formado por juristas, economistas, intelectuais e artistas, que solicitaram à Procuradoria Geral da República (PGR) a abertura de uma ação criminal contra Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF). No documento, signatários como José Carlos Dias (ex-ministro da Justiça), ou Gonzalo Vecina, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), acusam o presidente de atentar contra a saúde e a vida dos brasileiros devido à gestão da pandemia. Também assinam a ação economistas como André Lara Resende, um dos responsáveis pelo Plano Real, e Luis Carlos Bresser Pereira, ex-ministro da Fazenda, além de artistas, como Marieta Severo e Paula Lavigne.

Os juristas consideram que o presidente violou o Código Penal em atitudes reiteradas ao induzir o descrédito da população quanto à eficácia das vacinas, por exemplo, e empregar irregularmente verbas públicas para fabricação de medicamentos sem eficácia cientificamente comprovada para combater a covid-19 (no caso, a hidroxocloroquina). “Quando falamos de periclitação da vida e da saúde, nos referimos às discussões promovidas por Bolsonaro sobre os supostos riscos da vacina contra a covid-19, plantando essa dúvida na cabeça dos brasileiros; e, no caso do colapso sanitário em Manaus, a submissão do sistema local de saúde a uma contingência completamente evitável”, explica o advogado João Gabriel Lopes, um dos relatores da representação. No caso da tragédia na capital do Amazonas, o Governo Federal sabia do “iminente colapso do sistema de saúde” dez dias antes de pacientes morrerem asfixiados pela falta de oxigênio nos hospitais, conforme o ofício encaminhado nesta segunda-feira pela Advocacia Geral da União (AGU) ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em entrevista coletiva nesta segunda-feira, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, admitiu saber do problema desde 8 de dezembro.

Se Augusto Aras, procurador-geral da República aceitar a representação e apresentá-la ao STF —uma possibilidade remota dado o seu alinhamento político com Bolsonaro—, a Corte decidiria sobre a abertura de um processo criminal contra o presidente. Um processo desta natureza, de maneira similar a um impeachment, teria de ser enviado à Câmara, que, por sua vez, teria de autorizar o seu prosseguimento por dois terços dos votos.

A reação de Aras foi imediata ao documento. Na terça-feira, Aras afirmou, em nota, que eventuais processos por crime de responsabilidade de agentes públicos, inclusive do presidente da República, cabem ao Legislativo, não à PGR, e acenou com a possibilidade, ou risco, de decretação de Estado de Defesa diante da pandemia e de suas consequências sociais e políticas. É um instrumento, um estado de exceção, previsto na Constituição, mas considerado uma medida radical e com riscos democráticos. “O estado de calamidade pública é a antessala do Estado de Defesa”, disse. Foi desmentido e rebatido diretamente por subordinados e pela principal associação da categoria, revelando o mal-estar no Ministério Público. Nesta quarta-feira, seis subprocuradores da República, integrantes do Conselho Superior do MPF, reagiram: “O Ministério Público Federal e, no particular, o Procurador-Geral da República, precisa cumprir o seu papel de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e de titular da persecução penal, devendo dotar as necessárias medidas investigativas”, escreveram em uma manifestação que pressiona Aras e expõe a insatisfação dos procuradores com a falta de independência do órgão perante o Governo.

Marco Aurélio Carvalho, fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e do Grupo Prerrogativas, diz que a intenção da iniciativa contra Bolsonaro ―a representação contra o presidente e uma petição colaborativa (assinada por quase 15.000 pessoas)― é dar condições jurídicas sólidas e aumentar a pressão popular para que Bolsonaro seja responsabilizado e punido pelas mortes na pandemia. “Solicitamos uma reunião com o Aras, é o mínimo que ele pode fazer”, diz Carvalho. “Sabemos que Bolsonaro está blindado pela PGR, mas nosso papel também é o de constranger este Governo.”

O advogado João Gabriel Lopes lembra que, se não houver uma reação institucional, pode-se cogitar uma responsabilização do Estado Brasileiro no Tribunal Penal Internacional (TPI). Lopes argumenta que a conduta pessoal do presidente permite, por si só, identificar crimes de responsabilidade —passíveis de impeachment— quando ele contraria evidências científicas ao incentivar e participar de aglomerações. “Ele chegou a infringir até leis locais, como o decreto de distanciamento social do Distrito Federal”, exemplifica.

Na representação entregue à PGR, os juristas centram-se, no entanto, em crimes como o de periclitação da vida e da saúde, previsto no Artigo 132 da Constituição Federal. “São crimes que exigem uma conduta dolosa (intencional) e é necessária uma investigação, mas o Código Penal indica que basta provar que a atitude do presidente, ainda que de forma indireta, provocou a morte de pessoas”, explica Lopes. Nesse caso, não seria preciso comprovar, por exemplo, que o presidente teria sido diretamente responsável pela morte de um paciente sem oxigênio em Manaus, porque o crime de periclitação da vida e da saúde tem a ver justamente com colocar em risco a vida de outrem ―no caso de Bolsonaro, através dos seus discursos e ações à frente da Presidência.

Um dos momentos em que Bolsonaro teria cometido um ato ilícito, de acordo com a representação, foi no dia 31 de agosto de 2020, ao ouvir de uma apoiadora que lhe solicitou para não permitir “esse negócio de vacina”, respondeu-lhe que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina” e reiterou a declaração em 19 de outubro, quando confrontou o Governo de São Paulo sobre o plano de imunização: “Não quero acusar ninguém de nada aqui, mas essa pessoa está se arvorando e levando terror perante a opinião pública. Hoje em dia, pelo menos metade da população diz que não quer tomar essa vacina. Isso é direito das pessoas. Ninguém pode, em hipótese alguma, obrigá-las a tomar essa vacina”.

A acusação também destaca possíveis crimes do presidente em declarações nas redes sociais, quando afirmou que não compraria vacina com tecnologia chinesa simplesmente por motivações político-partidárias. “NÃO SERÁ COMPRADA!”. Assim, em maiúsculas respondeu Bolsonaro, no dia 21 de outubro de 2020, a um usuário no Facebook que dizia: “Presidente, a China é uma ditadura, não compre essa vacina, por favor. Eu só tenho 17 anos e quero ter um futuro, mas sem interferência da ditadura chinesa”.

Os juristas também destacam o emprego irregular de verbas e rendas públicas, conforme previsto no Artigo 315 do Código Penal, por Bolsonaro ter investido recursos públicos na compra e fabricação de medicamentos sem eficácia comprovada contra o novo coronavírus. “Ele usou o Exército Brasileiro para construir um estoque de cloroquina para 18 anos. Esse é um patente desvio de finalidade dos recursos do SUS, o que contraria, inclusive, o Artigo 52 da própria lei de criação do Sistema Único de Saúde”, afirma Lopes.

Outro “crime explícito”, nas palavras do advogado, é o de prevaricação (Artigo 319), que teria sido cometido por Bolsonaro ao usar atos de ofício e competência para satisfazer interesses pessoais. “Como fez com a campanha de vacinação, que ele sabota ao espalhar desinformação sobre os imunizantes. Suas palavras têm força de ato político, mesmo quando ele diz uma coisa e faz outra”, ressalta Lopes. Se essa hipótese for acatada, Bolsonaro poderia responder, por exemplo, por quando disse que “não gastaria um real para comprar a vacina chinesa” —a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com o laboratório Sinovac—, ainda que o Ministério da Saúde, posteriormente, tenha comprado nove milhões de doses desse imunizante.

Impeachment

Para Marcelo Válio, advogado especialista em Direito Constitucional, a representação entregue à PGR é “importante do ponto de vista da pressão política”, mas, juridicamente, não deve ter o efeito desejado. “A melhor medida de responsabilização hoje é a acusação de crime de responsabilidade, que poderia desencadear um impeachment por infração ao direito social. Bolsonaro deveria tomar medidas para proteger o bem mais caro previsto na Constituição Brasileira, que é o direito à vida, mas o que ele faz é desestimular medidas de proteção da sociedade”, argumenta.

Válio diz que Bolsonaro também fere o Artigo 85 da Constituição ao negar à população o direito social de acesso à saúde quando planta dúvidas sobre a eficácia das vacinas, por exemplo. Para o jurista, trata-se de uma violação do princípio de moralidade, porque, independentemente de o ato ser formal ou informal —quer dizer, tanto faz se o presidente faz uma declaração na rua aos apoiadores ou dentro do Palácio do Planalto, ele pode ser responsabilizado. “Isso porque ele usa a armadura de presidente da República durante 24 horas. Os atos de palanque que ele faz ao dar essas declarações também pode gerar responsabilização, porque ele fala em nome da sociedade.”

O jurista considera que Bolsonaro está “muito mal assessorado juridicamente” quando tenta argumentar —como tem feito nos últimos dias— que o STF o deixou de mãos atadas para gerir a crise sanitária. “Ele quer responsabilizar o Supremo pela sua omissão, mas o STF não tira competência do presidente da República”, diz Válio. O que o plenário da Corte decidiu, conforme explicado em nota do próprio STF, é “que União, Estados, Distrito Federal e municípios têm competência concorrente na área de saúde pública”, ou sejam que Estados e municípios têm autonomia para adotar, por exemplo, medidas de distanciamento social ou quarentenas. “Se Bolsonaro continuar repetindo esse argumento, se enfraquecerá juridicamente. A primeira orientação de qualquer equipe jurídica seria mostrar que o presidente deve cumprir minimamente os preceitos da Constituição, o que ele não faz”, conclui Válio.


Elio Gaspari: 2021 começou bem

Há luz no fim do túnel: quando serei vacinado, onde?

Ao meio-dia de hoje, Joe Biden deverá assumir a Presidência dos Estados Unidos, e Donald Trump foi-se embora. No Brasil, começou a ser aplicada a vacina contra a Covid-19. Mudou o jogo. Dois centros irradiadores de ansiedade e morte perderam a iniciativa. O capitão Bolsonaro e o general Pazuello podem dizer o que bem entenderem, mas há luz no fim do túnel: quando serei vacinado, onde? Trump continuará dizendo que ganhou a eleição, mas Biden estará no Salão Oval.

Bolsonaro e Pazuello continuarão em guerra contra João Doria, mas foi ele quem acelerou a chegada da vacina. No caso do relacionamento com o governo de Joe Biden, o problema será outro. Noves fora todas as pirraças de uma diplomacia que se sente bem colocando o país na condição de pária, haverá uma nova realidade na Casa Branca. (Na Índia, a vacinação maciça imunizará seus párias, antes que as vacinas do general Pazuello cheguem aos marajás de Pindorama.)

No lugar de um delirante vulgar, estará na Casa Branca um mandarim que passou oito anos na vice-presidência e 36 no Senado. Para o atual governo brasileiro, a chegada de Biden irá além das diferenças entre republicanos e democratas, ambientalistas e agrotrogloditas. Trump levou consigo a capacidade de operar numa realidade paralela, dimensão frequentada por Bolsonaro, pelo venezuelano Nicolás Maduro e pelo filipino Rodrigo Duterte.

O veterano diplomata americano Thomas Shannon, ex-embaixador no Brasil e ex-subsecretário de Estado no início da administração de Trump, já disse que as relações entre os dois países estavam fora do eixo. Numa linguagem que não faz seu estilo, Shannon comentou o negacionismo eleitoral endossado por Bolsonaro: “É algo que não será facilmente perdoado e não será esquecido”.

Tendo perdido o farol trumpista, se o governo brasileiro continuar na sua órbita de realidade paralela, ficará falando sozinho, prisioneiro de suas fantasias. Os americanos poderão controlar a agenda com um parceiro malcriado.

Lidando com a pandemia, Bolsonaro investiu-se de poderes que não tem. Como o mercado brasileiro é grande, ele supôs que os vendedores de vacinas e de seringas fariam fila à sua porta. Acabou pendurado no imunizante “do João Doria” que demonizou, garantindo que “NÃO SERÁ COMPRADA” (maiúsculas dele).

A ideia de que o Brasil está no centro do mundo é pobre. O pelotão palaciano poderia ir à página 113 do livro “Kissinger e o Brasil”, do professor Matias Spektor. Ele conta um encontro do secretário de Estado Henry Kissinger com o chanceler soviético Andrei Gromyko, ocorrido na manhã de 11 de julho de 1975. O Brasil acabara de assinar um Acordo Nuclear com a Alemanha, e Gromyko estava preocupado com a possibilidade de o Brasil vir a fabricar uma bomba atômica.(O embaixador americano em Brasília também desconfiava disso.) O chanceler soviético queria a ajuda americana para bloquear o projeto: “Vocês estão mais perto do Brasil geográfica e politicamente”.

Poderia ter começado uma discussão sobre as características do acordo, mas Kissinger deu uma resposta curta, de três frases, combinou manter Gromyko informado e arrematou:

—Tudo bem. Vamos almoçar?

O Acordo Nuclear foi sumindo, sumindo, e sumiu.


Conrado Hübner Mendes: Impeachment Pró-Vida

Não se combate vandalismo constitucional sem tirar vândalos do poder

O negacionismo pandêmico pode matar qualquer um de nós. Já o negacionismo político, aquela displicência soberba diante do custo democrático e humanitário que Jair Bolsonaro nos impõe, parece mais inofensivo e pode poupar nossa vida. Basta manter o bom comportamento e não abusar da liberdade (científica, acadêmica, artística, de imprensa).

O casamento de ambos tem permitido a Bolsonaro inviabilizar uma política sanitária responsável e ao mesmo tempo se livrar de sanções pelo vandalismo constitucional que imprimiu em seu governo. O tamanho do dano é intangível e transcende a morte de centenas de milhares de pessoas.

Vandalismo constitucional, expressão que voltou à tona no debate anglo-saxão sobre o que Boris Johnson e Donald Trump infligiram às normas do jogo democrático, denota um estilo governamental de confrontação permanente. A confrontação não se dá exatamente com a lei, que vândalos ignoram por vocação, mas com a capacidade de resistência das instituições de controle. Preocupam-se com inimigos, não com a legalidade.

Vândalos não cometem um crime de responsabilidade. Cometem crimes de responsabilidade seriais e continuados. Foi, talvez, como Carlos Ayres Britto tentou definir Bolsonaro dias atrás: governa "de costas para a Constituição", tem "o pé atrás com essa Constituição", caminha "na contramão da Constituição", adota como estilo "um ódio governamental de ser".

Eleições são o método ordinário para premiar ou punir agentes políticos por seu desempenho. Quando vândalos eleitos ameaçam a ordem constitucional ou põem em xeque a própria integridade das eleições futuras, o impeachment e o julgamento por crime comum são as válvulas de escape de que dispomos. São formas de proteger a vontade dessa instituição chamada povo.

Não há qualquer nuance na avaliação moral do governo federal. Menor ainda é a complexidade da avaliação jurídica. Tudo é demasiadamente bruto, sem zona cinzenta. Nenhum presidente brasileiro eleito chegou tão perto de gabaritar a Lei do Impeachment.

Começou antes da pandemia, mas a crise sanitária precificou essa postura numa moeda indisfarçável: número de mortes diárias, de UTIs sem oxigênio, de testes vencidos, de placebos estocados, de protocolos ironizados em praça pública, de seringas não compradas, de vacinas não negociadas. Fatos duros que vencem até mesmo a indústria da desinformação.

E não foi só por incompetência de um general estúpido convertido em dublê de ministro que comete crimes sem se tocar. O projeto está documentado, tuitado e televisionado. Não adianta desmentir no grito porque a esfera pública não é quartel e cidadãos não somos recrutas que seguem ordens de cima para baixo.

Se não há dilemas morais ou jurídicos, o cálculo político ainda atrapalha o disparo de processo de impeachment. A ciência política detectou algumas leis gerais da competição democrática. A primeira constata que um presidente se elege quando tem base partidária capilarizada que lhe dê palanque, recursos e tempo de TV. A segunda observa que um presidente cai quando há crise econômica, algum consenso popular e gente nas ruas.

A eleição de Bolsonaro fugiu da primeira lei. Sua eventual destituição pode ter que adaptar a segunda lei. No contexto de pandemia, e com mais de 60 pedidos de impeachment na gaveta da presidência da Câmara dos Deputados, prognósticos sobre como e quando aquelas condições se apresentarão ainda geram muita dúvida.Contudo, após dois anos de vandalismo constitucional turbinado por uma pandemia, vamos percebendo que os mesmos argumentos de prudência que desencorajavam o impeachment começam a virar de lado.Não basta mais argumentar que um processo de impeachment tira o foco da pandemia, gera instabilidade e produz novo trauma institucional, pois isso o presidente também faz, e bem.

É necessário mostrar o quanto a sobrevivência política de Bolsonaro é menos custosa que tudo isso. Estamos falando de operação de salvamento, não de consolidação da democracia. Com receio de banalizar o impeachment, vamos banalizando o crime de responsabilidade.

*Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.