vacina
‘Quem mais vai perder é o povo pobre’, diz ex-presidente do IBGE sobre atraso do Censo
Cleomar Almeida, Coordenador de Publicações da FAP
Ex-diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o economista Sergio Besserman critica a suspensão do Censo nacional e relaciona essa medida com o que chama de “negacionismo do atual governo”. Ele publicou sua análise na revista mensal Política Democrática Online de maio (edição 31).
Produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vinculada ao Cidadania, a publicação disponibiliza todos os seus conteúdos, gratuitamente, para os internautas, no portal da entidade.
Veja a versão flip da 31ª edição da Política Democrática Online: maio de 2021
Na última sexta-feira (14/5), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por maioria de votos, que o governo federal está obrigado a tomar as medidas necessárias para realizar o Censo Demográfico no ano que vem. “O Brasil já vive sob apagão estatístico há bastante tempo”, observa Besserman. “Quem mais vai perder é o povo pobre”, alerta, sobre a demora do censo.
Em seu artigo publicado na revista mensal da FAP, o economista lembra que a Comissão de Estatística da Organização das Nações Unidas recomenda o Censo decenal, de preferência, nos anos de final zero. “O objetivo é comparar todos os censos entre si. Países que têm registros administrativos ruins, segundo a ONU, devem realizar, como melhor prática estatística, um minicenso entre os dois censos decenais”, diz.
No Brasil, conforme ele explica, o censo era chamado de “contagem populacional”, mas o levantamento também fazia outras perguntas. “Por razões de economia fiscal, não fazemos esse censo intermediário desde os anos 90. Os registros administrativos brasileiros são ruins”, analisa. Ele também é coordenador estratégico do Climate Reality Project no Brasil.
http://fundacaoastrojildo.com.br/revista-pd31/
No governo federal, de acordo com o autor do artigo, há alguns poucos melhores, como o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, e dados relacionados ao Sistema Único de Saúde (SUS). “Mas a maior parte é inexistente ou ruim. Nos estados e municípios, a mesma coisa”, lamenta, na revista Política Democrática Online.
Segundo Besserman, a decisão de suspender o censo sem sequer anunciar, imediatamente, quando ele será realizado, “foi pautada pelo negacionismo do atual governo, seu desprezo pela informação e pelo conhecimento”. “Vamos perder muito mais dinheiro com esse adiamento do que aquilo o que será economizado”, salienta.
Veja todos os autores da 31ª edição da revista Política Democrática Online
Muitos países, como Canadá e Estados Unidos, aplicam o Censo a distância – seja pela internet seja pelos correios. O economista diz que a combinação do censo presencial com melhorias nas informações de registros administrativos e a conexão desses tipos de metodologias remotas deve ser prioridade, e o IBGE está trilhando esse caminho com excelência, como sempre.
“Afinal, a tecnologia existe e pode muito bem ser integrada com o trabalho dos recenseadores, que serão sempre importantíssimos em um país tão desigual e de proporções continentais como o Brasil”, assevera.
A íntegra da análise de Besserman está disponível, no portal da FAP, para leitura na versão flip da revista Política Democrática Online, que também tem artigos sobre política, economia, tecnologia e cultura.
O diretor-geral da FAP, sociólogo Caetano Araújo, o escritor Francisco Almeida e o ensaísta Luiz Sérgio Henriques compõem o conselho editorial da revista. O diretor da publicação é o embaixador aposentado André Amado.Leia também:
Abolição não significa libertação do homem negro, diz historiador e documentarista
Santos Cruz: ‘Instituições não aceitarão ações aventureiras do governante’
Clique aqui e veja todas as edições anteriores da revista Política Democrática Online
Paulo Fábio Dantas Neto: O PSDB e o centro – Entre a grande e a pequena política
Comentei, na semana passada, duas visões pessimistas de formadores de opinião não alinhados aos campos pré-eleitorais representados, hoje, pelo presidente Bolsonaro e pelo ex-presidente Lula. De um lado, políticos e analistas próximos ao que se pode chamar de centro liberal-democrático e à centro-esquerda acham inevitável recorrer ao segundo para evitar a reeleição do primeiro. Supõem, inclusive, que esse será também o caminho da parte do chamado “centrão” menos aquinhoada pela distribuição de recursos políticos coordenada pelo deputado Artur Lira. No limite, poderia ser o caminho do próprio Lira, caso a imagem do presidente encaminhe-se mesmo ao derretimento eleitoral. De outro lado, raros políticos e diversos analistas situados à esquerda do PT acham também inevitável a polarização eleitoral entre extrema-direita e esquerda convencional e admitem apoio crítico a essa última. Mas negam às eleições um papel decisivo no enfrentamento da extrema-direita, que deve ser visto como luta continuada a ser travada num terreno bem além da política institucional. Essa última visão é mais ideológica do que propriamente política e dela não tratarei hoje. Mas da primeira, sim. Partirei da percepção mencionada acima, passarei, em seguida, a uma mirada no campo político da centro-direita (onde estão governistas, independentes e oposicionistas), para concluir a análise com foco no PSDB.
No modo de ver as coisas dos que se querem realistas quando, no centro democrático e na centro-esquerda, aceitam como definitiva a bipolarização hoje fotografada por pesquisas, subjaz certa preocupação em não se atrasar para o embarque no navio lulista, apresentado como uma espécie de arca de Noé. Afinal, a eleição presidencial não é solteira e estão em jogo mandatos de governador e senador, o que recomenda atenção imediata à formação de coalizões nos estados. Além disso, o espectro de gente do centrão costeando o alambrado da arca também recomenda agilidade aos candidatos a deputado ainda não alinhados. Porém, noves fora essa compreensível ansiedade pragmática, se bem analisados os argumentos públicos usados nesse campo, fica curioso ver admitir-se que Bolsonaro pode derreter e, ao mesmo tempo, justificar-se o apoio antecipado a Lula como se fosse um imperativo democrático pois, sem ele no segundo turno, a reeleição seria praticamente certa. Vejo motivos para avaliar como imprudente o pragmatismo implícito nessa confusa conduta proativa.
Antecipei, na coluna passada (“A política entre universos paralelos”, de 08.05), que “na mão oposta à das previsões fatalistas, penso estar se configurando, no universo da política sistêmica, uma aceleração de movimentos de convergência para oferecer, às forças que se despregam, ou podem se despregar, do combo bolsonarista, uma alternativa eleitoral que não as afaste do eleitorado afim ao seu posicionamento político”. Chamei esse campo de liberal, ou centro-direita. Agora tentarei ser mais explícito.
Na adjetivação ideológica que usei se inclui o antipetismo. Fora dessa adjetivação (mas próximo a ela, especialmente na pauta econômica) vinha estando um conservadorismo social básico que convive de forma tensa com uma visão liberal dos costumes e das relações sociais. Esses movimentos convergentes têm conexões empresariais economicamente relevantes, mas também uma crescente aceitação numa classe média e de trabalhadores mais jovens do setor privado menos tradicional. Seu peso eleitoral tem se mostrado grande, desde 2014, em eleições nacionais, estaduais e municipais.
Forçando um pouco a mão, diria que esse campo tende a uma polarização de novo tipo com a percepção da esquerda mais enraizada no eleitorado, que é a do PT, a qual, graças a Lula, não deverá perder a sua posição hegemônica até 2022. Por contraste, no campo oposto à esquerda, do qual estou falando, não há predomínio partidário claro, mas nota-se, há mais de uma década, movimentos de capacitação do DEM para ocupar esse lugar. A escassa maturidade do processo não permite afirmar que 2022 será o do salto a esse patamar. Mas não deve passar despercebido que o DEM dispõe, para uma eventual composição na eleição presidencial, de quadros para o caso de uma articulação que se dirija ao centro, tangenciando mesmo a centro-esquerda, ou para uma solução dissidente do esquema governista, que eventualmente possa herdar boa parte do espólio bolsonarista, em caso de derretimento da popularidade do chefe
Independentemente das suas preferências políticas, quem se preocupa com a saúde da democracia será levado a saudar o surgimento de uma opção de centro-direita capaz de deslocar Bolsonaro da posição de polo. Isso, inclusive, induziria Lula a disputar o centro também pela via do discurso político, em vez de apenas semear cunhas nos bastidores enquanto fala como salvador da pátria e propagandeia seu paraíso passado. A busca, por atores da centro-direita, de uma opção não governista alternativa à de Lula fará bem ao país, ganhem ou percam a eleição para ele. O PSD de Kassab – autêntico ator de pequena política – tanto pode ficar nela e cumprir o papel de dissidente do centrão embarcado na arca de Noé, quanto o de aliado do DEM na busca dessa opção de centro-direita, que, sem deixar de ser filha da pequena política, poderá ir além e apontar uma saída que considere seu umbigo, mas não se resuma a ele. Como a política não é a seara do mero desejo, é bom ponderar que, enquanto a fortuna eleitoral de Bolsonaro não se definir, possibilidades de uma articulação como essa dar certo não ficarão explícitas.
A conservação ou o desgaste do capital eleitoral do presidente é, assim, a variável central a determinar maior ou menor largueza do horizonte do chamado centro. É óbvio que se essa variável decisiva se comportar na direção da reanimação de Bolsonaro (em linha com a agitação crescente no seu universo político paralelo dos comícios, lives, marchas, inaugurações e provocações) a resultante é a confirmação das versões fatalistas que apontam para a polarização entre ele e Lula. Mas em caso da variável tomar a direção oposta, indo do atual desgaste à erosão e dela à evaporação eleitoral do mito, cabe uma reflexão sobre o timing. Quanto mais cedo um desgaste irreversível se der, mais os agentes políticos próximos ao palácio (como o PSD e outras áreas do centrão) e um partido independente, como o DEM, tendem a ser o centro de gravidade de uma opção competitiva que procure se apresentar como centrista, assim como fará Lula na centro-esquerda. Quanto mais o desgaste de Bolsonaro for incremental – como tem sido – mais espaço haverá para uma solução política mais ampla, que aponte a uma candidatura de fato centrista e frentista, com um candidato de perfil liberal democrático e um programa de viés social-democrático. Nessa hipótese, a possível repercussão sobre o script de Lula seria a de levá-lo a prestar mais atenção na sua retaguarda à esquerda, que poderá ser fustigada por um candidato de centro menos marcado com o carimbo “eles”, tão ao gosto do petismo para ter conforto. Nesse enquadramento analítico pode-se discutir agora o possível papel do PSDB, partido de larga história e presente estreito.
Faz tempo – a rigor desde que Fernando Henrique Cardoso deixou o governo e o PT o ocupou e lá se vão quase vinte anos – que o PSDB se desloca cada vez mais ao campo liberal em economia e ao da centro-direita em política. Isso em termos práticos, não programáticos. Desse modo, não é estranho que não disponha, nesse momento, de um nome com perfil sequer aproximado ao da origem do partido. O nome que de fato está à sua disposição tem perfil diverso.
A desconfortável performance do governador João Dória, em pesquisas dentro do seu estado, parece estar levando a que desista de vez da reeleição e a apostar numa fuga para a frente. No seu estilo fortemente obstinado e autocentrado de fazer política, desafia a má vontade do partido e segue buscando a indicação para a candidatura presidencial, como quem trabalha com a linha do menor desgaste para a sua imagem. Essa conduta é possível não só pela obstinação, ou pelo fato de dispor de recursos de persuasão e pressão inerentes a quem governa São Paulo. Resulta também do cada vez mais claro fato de que não há no partido nome para concorrer com o seu. Sem discutir aqui méritos pessoais do governador Eduardo Leite ou do senador Tasso Jereissati, uma observação realista da cena não pode desconsiderar que são políticos com mandatos a renovar em 2022. Desistir de uma reeleição provável em seus estados para embarcar numa empreitada presidencial é uma decisão incomum no mundo real da política, a menos que haja largo conforto nas previsões de chances de vitória, o que não é bem o caso.
Nessas condições não se pode ver como animadora, para o PSDB, a perspectiva das prévias marcadas para outubro. Caso ocorram mesmo, dificilmente cumprirão o papel de derrotar João Dória. A opção, para evitar o nome do governador – objetivo que une em coalizão de veto praticamente todas as lideranças históricas do partido (por menos próximas e apaziguadas que estejam elas entre si) -, só pode ser a de propor uma política nacional de alianças diferente da que tem seguido desde quando foi, em 2002, deslocado para a oposição. Em resumo, não ter candidato e tornar-se centro fiador de uma frente. Para construir uma canoa dessa é preciso paus de boa cepa que têm sido queimados nas fumaças que emanam do ninho tucano. De há muito tem-se a impressão incômoda de que ali o ex-presidente Fernando Henrique prega no deserto. Mas os fragmentos históricos ainda podem influir, se vencerem as idiossincrasias que os dispersam e prodigamente dilapidam o capital político da legenda. Ao menos eleitoralmente, esse capital continua relevante, como ficou claro nas eleições municipais de 2020. O que tem faltado é liderança de grande política, capaz de sintonizar os interesses do partido com os do país.
Nas três eleições presidenciais seguintes à derrota de 2002 (em 2006, 2010 e 2014) o PSDB foi o polo que reuniu, em segundos turnos, as oposições ao PT. Em 2018 não foi capaz de trocar os pneus em plena viagem. Desertou do papel político que assumira como núcleo articulador do impeachment de Dilma Rousseff. Em vez de se apresentar ao eleitorado como principal força política responsável pelo governo de transição, procurou desvincular sua imagem daquele governo, tática malsucedida diante da óbvia e gritante coincidência entre as suas pautas e as daquele. O drible de corpo cobrou seu preço nas urnas, não obstante a dignidade do seu candidato. As três derrotas acumuladas, a saída do PT do governo e a intensa pressão da lava jato sobre o conjunto da política “tradicional”, fazendo emergir o bolsonarismo, somaram-se a essa miopia política para levar à perda da antiga condição de polo. O PSDB dilui-se, hoje, numa nuvem mais ou menos invertebrada que tenta se identificar como centro. De incontestada segunda via tornou-se uma entre as incertas opções de uma terceira.
Lucidez e alguma humildade não fariam mal e ajudariam aquele partido a ler corretamente a situação. Relativos êxitos em eleições municipais não fabricam candidaturas presidenciais competitivas. O palanque aí é plebiscitário e impõe requisitos de carisma ausentes hoje no plantel tucano. Mas olhando ao redor é possível achar um parceiro que possua um quadro que os atenda. Aqui não cabe fulanizar a análise, que não pode querer ensinar pai nosso a vigário. O ponto que trago tem a ver com virtudes do PSDB, não com suas fragilidades. É inegável que, além de quadros políticos estaduais e municipais, o partido ainda se conserva como referência nacional importante do eleitorado do centro democrático também pelo fato de ter, no seu entorno, gente capaz de formular ideias compatíveis com a qualidade da democracia política, mas também com o momento mundial de ênfase em redirecionamento de matrizes e objetivos econômicos e de reestruturação dos estados nacionais para mobilizar investimento robusto em políticas sociais. A sintonia do ideário formal do partido com essas exigências mundiais gritantemente inadiáveis para superar a crise nacional ficam evidentes na leitura do documento “Brasil pós-pandemia: uma proposta de reconstrução do futuro”, disponível no site do Instituto Teotônio Vilela.
Antes que apressados protestem, digo que não estou cogitando que um partido político qualquer possa se contentar com um papel formulador próprio de centros de debate intelectual. Trata-se é de encontrar vocalizadores politicamente viáveis para fazer suas melhores ideias influírem sobre decisões do eleitorado e de governo. E o modo prático de sintonizar um partido que disponha dessa possibilidade com as demandas da sociedade e do eleitorado é apostar numa política de alianças compatível com o fato de que valores da primeira e necessidades do segundo convergem, no momento, para um ideário social democrático que dorme nas prateleiras internas do partido. Tirá-las dali para que trafeguem na política (na grande e na pequena) só pode ser obra de grande política, capaz de ler que o eleitorado destinatário tem votado de modo relevante na centro-direita.
O que será mais realista? Inventar um quadro que pretenda reverter essa tendencia do eleitorado ou oferecer à centro-direita o programa social-democrático de que ela necessita, nessa conjuntura social e sanitária crítica, para sustentar sua sintonia embaixo? Sem esforço, os leitores entenderão que me refiro a uma virtual repactuação entre PSDB e DEM, com provável capacidade de atrair também o MDB, dissuadindo-o de um vôo solo. Ao contrário de 1993/94, o contexto 2021/22 pede orientação social do Estado, em vez de liberalismo econômico. Ao contrário do eleitorado de 1994, o viés da atitude do eleitor é a centro-direita, em vez de centro-esquerda. No tempo em que uma frente da centro-direita à centro-esquerda fez FHC presidente, o PFL forneceu o programa econômico e o PSDB entrou com o quadro político capaz de realizá-lo nas circunstâncias daquele momento. Quem duvidar disso leia o projeto detalhado que o partido antecessor do DEM preparou para a abortada revisão constitucional de 1993 e confira com o que o governo FHC aprovou no Congresso, ou adotou no Executivo, nos anos subsequentes. A conclusão inescapável será a de que ideias podem, sim, conversar com a política prática. Aquele arranjo vitorioso esteve longe de ser mera obra de pequena política.
Os dados do mundo real estão a sugerir aos atores de centro e de centro-direita a inversão dos termos de 1994 para produzir concertação análoga. Nenhum partido pode elaborar com mais agilidade e profundidade que o PSDB um programa em sintonia fina com um olhar “baideniano” sobre o Brasil e o mundo. Com amplitude capaz de agregar segmentos da centro-esquerda e lhes garantir lugar numa composição política para a chapa presidencial e/ou para as soluções estaduais. Por outro lado, nenhum partido está, objetivamente, mais bem postado que o DEM, no espectro político-eleitoral, para sediar a face externa dessa possível agregação, porque é aquele que pode, com a sua posição, tirar o continuísmo de tempo, ou seja, do segundo turno nessa eleição. Eventos na contramão da agregação – como a recente captura do vice-governador de São Paulo pela tática pré-eleitoral do governador – podem ocorrer a todo momento e precisarão ser enquadrados, digo melhor, neutralizados, em sua miudeza, por uma perspectiva estratégica. Seria muito bom para o Brasil. Já se será o melhor possível para o Brasil é assunto para os eleitores decidirem em 2022. Afinal, a esquerda também estará no jogo, com força, legitimidade e, espera-se, com proposições críveis e perspectiva estratégica.
Para concluir não custa relembrar a variável decisiva, que é a popularidade de Bolsonaro. Cooperar para derretê-la é questão de sobrevivência comum, nacional e social. Mas a escolha do método é questão em aberto. Quem quiser que se forme, como alternativa a ele e à esquerda, uma aliança mais conservadora, deve se apressar para tirá-lo do caminho logo e capturar dissidentes. Quem, dentro do espectro do chamado centro democrático, quiser apostar em solução mais ampla, capaz de sensibilizar também um eleitorado de centro-esquerda, precisará reunir grande e pequena política em vez de priorizar um tiro ao alvo imediato e cego contra o capitão. Precisará mais de uma ambiciosa paciência do que de espetáculos arrojados e projetos de heróis. Concertação demora, mas sua obra dura.
*Cientista político e professor da UFBa.
Fonte:
Democracia Política e novo Reformismo
Fausto Matto Grosso: Golpismo e autogolpe
Se há uma permanência na história brasileira, é a do golpismo. Nossa história republicana sempre foi marcada por rupturas institucionais. A Proclamação da República Brasileira, também referida como Golpe Republicano, foi liderada em 1889 pelo Marechal Deodoro e um grupo de militares do exército brasileiro, que destituíram o então chefe de Estado, o Imperador D. Pedro II.
Em 1891 Deodoro enfrentou a oposição, fechando o Congresso e governando com o estado de sítio. Foi o primeiro autogolpe da República que nascia. Obrigado a renunciar, assumiu o vice Floriano Peixoto que deveria convocar as eleições, o que não fez. Aferrando-se ao poder, governou como ditador. Outro autogolpe.
Em 1937 Getúlio Vargas realizou um autogolpe dos mais bem-sucedidos na História brasileira, impondo o Estado Novo e governando com poderes ditatoriais por oito anos, até 1945.
Em agosto de 1961, quando Jânio Quadros renunciou, pretendia voltar nos braços do povo, como acontecera com o general Charles de Gaulle na França. O autogolpe desta vez falhou.
Assim chegamos ao golpe civil-militar de 1964, pelo qual foi destituído o presidente João Goulart, assumindo Castelo Branco. Este deveria convocar eleições em 1965, mas ampliou seu mandato até 1967. Daí se iniciou uma sequência de autogolpes dentro do próprio regime militar. Costa e Silva, já em 1968, decreta o AI-5, fechando o Congresso e implantando um dos períodos mais repressivos da ditadura.
Com a morte de Costa e Silva, deveria assumir seu vice-presidente, o civil Pedro Aleixo, mas, num novo golpe, assumiu a Junta Militar que preparou a transição para o general Garrastazu Médici. Em um embate entre a linha dura e a moderada das forças armadas, acabou assumindo o general Geisel, que fechou o Congresso.
Na sequência tivemos o general Figueiredo, que entregou o país, melancolicamente falido, para o primeiro governo civil, o de José Sarney, após a morte de Tancredo Neves eleito pelo Congresso Nacional. Com a primeira eleição democrática já sob a Constituição de 1988, assume o primeiro civil diretamente eleito, Fernando Collor de Mello, logo cassado por corrupção.
Tivemos a partir daí com Itamar Franco, Fernando Henrique e Lula um período de razoável estabilidade, até o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, cassada pelo Congresso Nacional. O país, então, se dividiu gravemente, mobilizado pela narrativa do PT de que impeachment era golpe. Esse tipo de narrativa pode futuramente acabar sendo usado pelos seguidores de Bolsonaro, seus antípodas.
As palavras são perigosas, pois sempre têm contexto e visam a construir narrativas. Buscando significados, golpe de Estado consiste na derrubada ilegal de um Estado ou de uma ordem constitucional legítima. Já autogolpe é uma forma de golpe que ocorre quando o líder de um país, que chegou ao poder através de meios legais, dissolve ou torna impotente o Congresso Nacional, anulando a Constituição e suspendendo tribunais civis. Com essa compreensão entendo que contra Dilma não houve golpe, mas destituição dentro de todos os parâmetros constitucionais.
Em 2018 surge em cena o capitão Bolsonaro, vindo de uma longa tradição parlamentar de defesa do golpe militar e até de elogios a torturadores, como o general Brilhante Ustra. Tosco, o tenente terrorista que pretendeu lançar bombas acabou sendo excluído do Exército como capitão, não tendo feito nem o curso de Estado-Maior.
Bolsonaro, entretanto, teve inegável sucesso na organização de um movimento reacionário de massas, de extrema direita, que mobiliza até agora cegas paixões. Já na campanha, seu filho Eduardo Bolsonaro assinalava confrontos institucionais, dizendo que para fechar o Supremo bastava mandar um soldado e um cabo. Não era preciso nem um jipe.
Já no governo, não tem um mês em que o Capitão Bolsonaro, com seu governo militarizado, não comete uma provocação contra o Congresso e o Supremo e toma medidas que favorecem a hipótese de um autogolpe. Entre elas, a tentativa de controle das polícias militares, o afrouxamento do controle de armas e o incentivo de suas milícias para que cometam atos de desatino contra as instituições democráticas.
Bolsonaro se encontra hoje sob forte pressão da CPI da Covid, que pode levá-lo ao impeachment. Está sem saída. Segundo o general chinês Sun Tsu, um adversário sem saída lutará ainda mais desesperadamente. Portanto, é hora de cuidado extremo com a democracia. Uma eventual tentativa de (auto)golpe não está afastada da nossa tradição política.
*Fausto Mato Grosso é engenheiro e professor aposentado da UFMS
Leia também:
Câmaras municipais republicanas
Revendo o futuro
Os desafios dos prefeitos
Entre vórtices, ciclones e cavados
O jacaré e o Presidente
Fonte:
Gramsci e o Brasil
https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=2459
Cristovam Buarque: A perplexidade do óbvio
Lula x Bolsonaro na próxima eleição
As chamadas forças contrárias ao Bolsonaro e também ao PT estão perplexas diante da resiliência do primeiro, apesar de seu governo desastroso e indecente, e diante do crescimento do apoio ao Lula, apesar de todas notícias do ocorrido em estatais durante seu governo. É uma perplexidade diante do óbvio: o país e seu eleitorado estão divididos de maneira polarizada, o que facilita bases sectárias para os dois lados terem provavelmente lugar no segundo turno. Além disto, cada um destes lados tem se mobilizado no sentido de ampliar sua base de apoio, não só para fortalecer-se no primeiro turno, mas também para ganhar no segundo.
Apesar de todo mal que faz, da incompetência reconhecida de seu governo, de indicadores claros de corrupção na família e na relação com o Congresso, apesar de quase 450.000 mortos pelo covid por relaxamento e negacionismo, apesar de tudo isto, Bolsonaro amplia sua base junto ao Centrão e outros grupos políticos, sem perder sua base central. Sobretudo, devido ao medo da volta do PT ao poder. Por sua vez, o Lula circula desembaraçado, com a auréola de vítima de perseguições jurídicas, fazendo aliança nos estados com partidos do centro e conseguindo apoio em meios conservadores, políticos e empresariais, que nada perderam e até ganharam durante os governos petistas.
Enquanto isto acontece no lado do Lula e do Bolsonaro, o chamado bloco democrático e seus candidatos, Ciro, Huck, Dória, Tasso, Leite, Mandetta, parecem perplexos diante do óbvio. A sensação é de que estes candidatos se concentram tanto em suas respectivas candidaturas, que caem na perplexidade ao óbvio: em tempo de extremos, os partidos mais radicais têm facilidade para chegar ao segundo turno, se os outros não se unificam desde o primeiro turno.
Prova desta perplexidade é uma mensagem colocada pelo PSDB em suas redes com a capa de um livro hipotético, tendo a foto de Bolsonaro e o título “Como trazer o PT de volta ao poder”. Uma mensagem que passa perplexidade e derrotismo.
No lugar de uma estratégia para ocupar ganhar os votos dos muitos que não desejam um ou outro dos extremos, o chamado polo democrático se divide para saber quem será o candidato. Ficam à espera de previas dentro do PSDB entre e da vontade de outros postulantes dos demais partidos.Todos batendo cabeça e perplexos quando percebem que os outros dois estão conseguindo apoio.
Está na hora de os que não estão com Lula ou Bolsonaro darem um prazo aos que se propõem a ser alternativa, para encontrarem um nome que os unifique, com uma proposta que seduza, passando confiança aos eleitores. Talvez ainda seja tempo de saírem da perplexidade do óbvio. Se não saírem e se unirem, não vai demorar que seus apoiadores migrarão para um dos outros dois lados.
*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador
Fonte:
Blog do Noblat/Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/a-perplexidade-do-obvio-por-cristovam-buarque
Renata Giannini e Maria Eduarda Pessoa: Para construção de uma democracia sólida, uma limpa em entulhos autoritários
Uma espécie de entulho autoritário resistiu por anos esquecido em um canto, até voltar aos holofotes, em mais uma demonstração de que nossa democracia, em constante processo de construção, anda com as estruturas abaladas. Criada em 1983, a Lei de Segurança Nacional é problemática desde a sua concepção, pautada na lógica do inimigo interno. Apesar de sua raiz autoritária, ela continuou vigente no regime democrático, após a promulgação da Constituição de 1988.
Seus contornos de inconstitucionalidade, porém, só voltaram a chamar atenção com denúncias recentes de uso indiscriminado e as consequentes reações e debates protagonizados pela sociedade civil, Congresso e Supremo Tribunal Federal. As respostas das instituições e reações da sociedade civil já começaram a ser dadas, mas muitos pontos demandam a nossa atenção.
De acordo com levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, o número de procedimentos abertos pela Polícia Federal para apurar supostos delitos tipificados na Lei de Segurança Nacional aumentou 285% nos dois primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro. A segunda edição do monitoramento periódico GPS do Espaço Cívico, lançada esta semana pelo Instituto Igarapé, também indica uma intensificação nas notícias sobre a utilização abusiva da norma.
A legislação anacrônica passou a ser utilizada para fundamentar investigações contra vozes dissidentes e críticos ao governo, o que pode figurar, no mínimo, como intimidação e assédio. Neste cenário, a revisão da LSN tornou-se imperativa para a garantia do espaço cívico e da democracia brasileira.
O uso abusivo da LSN mobilizou o chamado sistema de freios e contrapesos. Antigos projetos de lei sobre o tema, que já tramitavam no Congresso, ganharam fôlego. Além disso, o Supremo Tribunal Federal foi acionado numa tentativa de revogar dispositivos específicos, ou derrubar a norma em sua integralidade. No dia 4 de maio, a Câmara, em regime de urgência, aprovou o Projeto de Lei 6.764 de 2002, que revoga a LSN e tipifica crimes contra o Estado Democrático de Direito.
O processo legislativo foi acelerado e prejudicou a realização de um amplo debate com a sociedade. Apesar disso, organizações da sociedade civil, juristas e acadêmicos conseguiram encontrar espaços para debater de forma intensa e transparente e, assim, contribuir com o texto-base. Foram realizadas duas audiências públicas e, parte relevante das recomendações e preocupações foram acatadas pela relatora, a deputada Margarete Coelho, com avanços relevantes alcançados.
Um exemplo foi a maior precisão em relação aos tipos penais, na tentativa de impedir que movimentos sociais sejam criminalizados e liberdades fundamentais dos cidadãos, cerceadas. Também passou-se a exigir a chamada “lesividade concreta das condutas”. Esse princípio da lesividade estabelece que só são passíveis de punição por parte do Estado as condutas que lesionem ou coloquem em perigo um bem jurídico penalmente tutelado, ou seja, um valor ou interesse protegido por lei em razão de sua relevância para a sociedade.
Outro componente importante incluído foi a previsão de elementos subjetivos, nos quais é analisada a intenção do agente praticar aquele delito determinado. Esses aspectos jurídicos são importantes para delimitar com clareza quem deve ou não ser alvo da lei. O crime de “sabotagem”, por exemplo, determina que as condutas previstas devem ser praticadas “com o fim de abolir o Estado Democrático de Direito”, reduzindo as chances de a norma ser usada para criminalizar manifestações e protestos legítimos.
Por outro lado, ainda há pontos que preocupam. Um deles é o grau de subjetividade do que a lei chama de disseminação de “fatos que sabe inverídicos”, que pode dar margem a eventuais censuras. E, ainda, a referência à incitação à “animosidade” – expressão excessivamente ampla, que, a depender da interpretação, pode incluir restrições a eventuais críticas contra as Forças Armadas. Seria importante indicar expressamente que só é criminalizada a incitação das Forças Armadas contra a sociedade, e não o contrário.
O texto-base aprovado, portanto, não é um projeto ideal. Porém, há de se reconhecer que está consideravelmente à frente da atual legislação, que coloca em risco o debate crítico e a liberdade de expressão. O movimento na Câmara sinaliza um progresso, especialmente no momento histórico de ameaças à democracia que enfrentamos. O texto agora segue para o Senado, que deve zelar pelos avanços até agora conquistados, e aprimorar trechos que ainda despertam preocupação. Como demonstra esse processo, a sociedade civil brasileira continuará trabalhando arduamente, tijolo por tijolo, na construção de uma democracia sólida, segura e plural.
RENATA GIANNINI é pesquisadora sênior do Instituto Igarapé.
MARIA EDUARDA PESSOA de Assis é assessora jurídica do Instituto Igarapé.
Fonte:
El País
O Globo: Ministério da Saúde encomendou manual para ‘tratamento precoce’
Leandro Prazeres, O Globo
BRASÍLIA — O Ministério da Saúde encomendou, em novembro do ano passado, à Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) a produção de um manual para o suposto “tratamento precoce” contra a Covid-19. Por indicação da pasta, o escolhido para fazer o manual foi o médico Ricardo Zimerman, conhecido nas redes sociais por ser a favor do uso de medicamentos sem eficácia contra a Covid-19. Ele participou da equipe de profissionais que foi mandada para Manaus em janeiro deste ano pelo governo federal, durante o caos na área da Saúde no Amazonas.
Leia: Após recusa de 14 estados, governo Bolsonaro concentrou envio de cloroquina a aliados
O manual, que nunca foi divulgado, vai na contramão de pesquisas e até da própria Organização Mundial de Saúde (OMS), à qual a Opas é ligada. O texto recomenda abertamente o uso de cloroquina, ivermectina e azitromicina em pacientes com Covid-19. As informações constam de documentos sobre a contratação aos quais o GLOBO teve acesso.
A aposta do governo no chamado “tratamento precoce” é um dos pontos que são alvo da CPI da Covid no Senado. O pedido para a contratação do manual foi feito pelo secretário de Ciência e Tecnologia, Inovações e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde, Helio Angotti Neto. No dia 9 de novembro do ano passado, ele enviou um ofício à representante da Opas no Brasil, Socorro Gross, pedindo que a organização fizesse a contratação de uma consultoria técnica para a elaboração de três produtos, entre eles um manual de orientações sobre a aplicação do suposto tratamento precoce para a Covid-19.
A Opas acatou o pedido e deu início à contratação de Ricardo Zimerman. O valor do contrato com o médico é de R$ 30 mil. Zimerman é conhecido por suas postagens favoráveis ao presidente Jair Bolsonaro, sua ligação com parlamentares governistas, e por defender veementemente o uso de drogas como cloroquina contra a Covid-19.
Apesar de ter sido aceita pela cúpula da Opas, a contratação do médico causou desconforto entre funcionários da entidade. O manual foi entregue tanto à Opas quanto ao Ministério da Saúde em janeiro deste ano. Com 87 páginas, o manual produzido pelo médico recomenda abertamente o uso de cloroquina e hidroxicloroquina e também defende o uso da ivermectina e azitromicina no “tratamento precoce” da Covid-19. Os quatro medicamentos fazem parte do chamado “kit covid” enviado pelo Ministério da Saúde a estados e municípios. Em seu manual, Zimerman propõe uma série de combinações de drogas para o “tratamento precoce” da Covid-19. Há casos em que ele recomenda o uso de uma mistura contendo sulfato de hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, dutasterida e bromexina.
Zimerman também recomenda o uso de um método de diagnóstico clínico baseado em uma pontuação para determinar se um paciente tem ou não Covid-19. Normalmente, o diagnóstico para a doença só é confirmado por meio de exames como o sorológico ou o RT-PCR.
O método defendido por Zimerman é o mesmo utilizado no aplicativo TrateCov, que chegou a ser liberado pelo Ministério da Saúde em janeiro deste ano, mas foi retirado do ar após críticas de entidades médicas. O aplicativo fazia recomendações sobre medicamentos a serem tomados em caso de sintomas de Covid-19. Atualmente, o Ministério da Saúde é investigado pelo Ministério Público Federal (MPF) em razão do TrateCov.
Entrevista: Gilmar Mendes disse a Pazuello que não via obstáculos para compra da vacina da Pfizer
A contratação do médico pró-cloroquina pela Opas aconteceu a partir de novembro. Na época, porém, as evidências científicas divulgadas pela OMS eram contra o uso da hidroxicloroquina e da cloroquina no tratamento da Covid-19. Em 30 de outubro, a própria Opas divulgou uma revisão de estudos realizados em todo o mundo que apontava que o uso de cloroquina e hidroxicloroquina não mostrava benefícios na redução das taxas de mortalidade, tempo de internação ou necessidade de intubação.
Procurado, o Ministério da Saúde disse que “procede constante levantamento de evidências científicas” e que pode contar com o “aporte de consultores externos ad hoc para eventuais avaliações de expertise técnica”. Quanto ao critério de escolha de Zimerman, o ministério não se manifestou. A Opas, por sua vez, disse que se “resguarda o direito de manter a privacidade das pessoas contratadas para fazer parte de sua equipe e daquelas que prestam serviços pontuais”. Zimerman foi procurado por telefone e por mensagens de texto, mas, até o fechamento desta edição, não respondeu aos contatos e bloqueou o contato com seu celular.
Fonte:
O Globo
Fernando Gabeira: Pandemia e lição de casa
Já estamos um pouco cansados de falar da pandemia. Quem caiu, quem não caiu, amigo entubado, amigo extubado, CoronaVac, AstraZeneca, vozes abafadas pelas máscaras, CPIs, mentiras e gravações.
Mas a Humanidade tem de enfrentar seus erros e fazer a lição de casa, pois, nas condições de crise ambiental, novas pandemias podem nos atacar.
Um passo importante foi a comissão especial criada pela OMS, que divulgou seu relatório. Nele, o grupo liderado pela ex-primeira-ministra da Nova Zelândia Helen Clark aponta os erros da própria OMS, que perdeu um mês antes de decretar a emergência.
Governos locais — com seu negacionismo, isso conhecemos bem —também foram responsáveis por políticas destruidoras.
Em outras palavras, a tragédia que o mundo vive hoje poderia ter sido evitada. Comissões internacionais como essa são importantes para despertar uma nova consciência. No final da década dos 60, o Clube de Roma publicou um relatório de personalidades políticas alertando para a produção e o consumo insustentáveis. Isso foi um marco.
No meu entender, existe uma lição implícita na pandemia, já absorvida no século XIX por Humboldt. Ao escalar a montanha do vulcão Chimborazo, ele compreendeu algo que já estava amadurecendo em seu pensamento: os elementos da natureza são interligados, ela é uma rede viva e, portanto, vulnerável.
Lição semelhante pode ser transplantada para a política internacional num caso de pandemia. Estamos todos no mesmo barco. Ninguém estará a salvo enquanto todos não estiverem a salvo.
Daí meu apoio à quebra das patentes, mesmo sabendo que o efeito imediato da medida não é tão promissor quanto a distribuição de vacinas por países que têm mais do que necessitam para vacinar sua população.
Essa noção de interdependência deve ser levada também para o plano interno, em que, sem solidariedade, dificilmente atravessaremos a crise.
O governo brasileiro fez tudo errado. Negou a pandemia, resistiu à vacina e contribuiu para que tivéssemos um número absurdo de mortes.
Como se não bastasse isso, o desmatamento na Amazônia atinge números recordes, o Congresso acaba com as leis que definem o licenciamento ambiental.
O processo de destruição da natureza será mais acentuado no Brasil, sem falar no aumento da pobreza, por remarmos contra a corrente mundial que defende a sustentabilidade.
O governo e o Congresso não respeitam o alerta sobre uma exploração sustentável da natureza. E muito menos os conselhos para preservar vidas durante uma pandemia.
Simultaneamente, portanto, criam as bases de uma nova pandemia e estabelecem a política negacionista de um sacrifício humano ainda maior.
A única esperança, se isso merece o nome de esperança, é que não conseguirão destruir tudo nem matar todos os brasileiros até 2022.
É simples: ou deixam o poder, ou acabam com o Brasil.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/pandemia-e-licao-de-casa.html
Ricardo Noblat: Balanço das descobertas feitas até aqui pela CPI da Covid-19
Duas semanas, não mais do que duas semanas bastaram para que a CPI da Covid-19 no Senado ouvisse de meia dúzia de depoentes a revelação de fatos que confirmam a incúria do governo do presidente Jair Bolsonaro no combate à doença.
Os mais graves deles:
1) Houve uma tentativa de mudar a bula da cloroquina, medicamento sem eficácia contra o vírus, mas defendido com obsessão pelo presidente da República e seus áulicos;
2) O vereador Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, participou de reuniões para a compra de vacinas, embora não tenha cargo formal dentro do governo do pai;
3) O governo recusou sete propostas de compra da vacina Pfizer, só aceitando a sétima. Com isso, o país deixou de receber 1,5 milhões de doses em dezembro passado e 3 milhões até o final de março.
À CPI, o Ministério da Economia admitiu que não reservou dinheiro no Orçamento da União para o combate, este ano, da Covid. Acreditou que a pandemia estava no finalzinho.
O senador Omar Aziz (PDS-AM), presidente da CPI, não tem mais dúvidas:
– Pelo que já apuramos, pelo que eu estou vendo nos depoimentos, nunca houve o compromisso da compra da vacina. Sempre se tratou das questões da cloroquina, da ivermectina e de protocolos.
Novas descobertas poderão ser feitas com o depoimento marcado para a próxima quarta-feira do general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde. Ele só poderá ficar calado até certo ponto.
A CPI tem mais de 70 dias pela frente para concluir seus trabalhos. O prazo deverá ser prorrogado por mais de 90. Daí o desespero de Bolsonaro que radicaliza seu discurso justamente por causa disso.
General, ministro da Defesa, discursa em manifestação bolsonarista
Braga Neto sobe em carro de som em Brasília e diz que as Forças Armadas estão prontas para garantir a volta ao trabalho dos brasileiros
Quando o presidente da República diz, referindo-se a Lula, que “eles tiraram da cadeia o maior canalha da história do país”, sabendo, como sabe Jair Bolsonaro, que quem tirou foi a mais alta Corte de Justiça, o que ele pretende com isso?
Elementar, meus caros: jogar o povo, particularmente seus devotos, contra a mais alta Corte de Justiça do país, no caso o Supremo Tribunal Federal. Indiretamente, assina embaixo dos cartazes exibidos por eles que pregam o fechamento do tribunal.
Isso é ou não é estímulo ao golpe que está na dele e na cabeça dos seus seguidores mais radicais? Relaxem, não haverá golpe. Não há disposição dos militares para instalar por aqui uma nova ditadura. General não dá golpe para beneficiar ex-capitão.
O general Braga Neto, ministro da Defesa, participou da manifestação de apoio a Bolsonaro promovida ontem, em Brasília, por evangélicos e ruralistas. Passeou entre eles, posou para fotos e discursou em cima do caminhão de som. A certa altura, avisou:
– As Forças Armadas estão prontas para garantir que todos tenham direito de trabalhar.
No início da semana, Bolsonaro havia dito que está pronto um decreto que assinará em breve acabando com as medidas de isolamento baixadas por governadores e prefeitos. Um blefe, ao que tudo indica, porque o Supremo conferiu a eles tal poder.
Braga Neto endossou o blefe. Ora, ninguém está impedido de sair de casa para trabalhar. Então as Forças Armadas abandonariam os quartéis para não prender ninguém. Para quê? Para assegurar o direito a aglomerações e o acesso de banhistas às praias?
O general, apesar do seu cargo, não fala pela boca dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, a não ser sobre questões administrativas. E os comandantes estão calados, a uma distância segura do governo para não serem contaminados.
Candidato que aparece na rabeira das pesquisas de intenção de voto, confrontado com seus números, não passa recibo. Ou tenta desacreditar as pesquisas ou afirma que ainda falta muito tempo para o dia da eleição e que até lá ultrapassará seus concorrentes.
No momento, em segundo lugar, faltando ainda 20 semanas para o primeiro turno da eleição do ano que vem, Bolsonaro passa recibo do seu incômodo e parte para atacar Lula com insultos do mais baixo nível. É coisa de político amador e assustado!
Pela primeira vez, a parcela dos brasileiros que apoia o impeachment de Bolsonaro é numericamente superior à parcela dos que são contra, segundo a mais recente pesquisa Datafolha (49% a 46%). Em abril de 2020, 53% rejeitavam o impeachment.
Assim como o golpe, não haverá impeachment. À oposição não interessa e ela não tem votos para aprová-lo no Congresso. Lula torce para enfrentar Bolsonaro porque acredita que poderá derrotá-lo. Bolsonaro já torceu para enfrentar Lula, agora não.
Lula calcula que Bolsonaro chegará mais fraco do que está em outubro do próximo ano. Hoje, 58% dos eleitores dizem que Bolsonaro não tem capacidade de liderar o Brasil; e 50% dizem que nunca confiam nas declarações que ele faz.
A taxa de confiança plena é a menor desde o início da série histórica de pesquisas do Datafolha em agosto de 2019, ao passo que a desconfiança total é a maior do período. Bolsonaro parece admitir uma eventual derrota ao falar em “votos auditáveis”.
Voto auditável para ele é voto impresso, abolido porque facilita a ocorrência de fraudes. Voto eletrônico é também auditável e mais seguro. Desde já, Bolsonaro empenha-se em construir uma narrativa para não aceitar o resultado da eleição se perdê-la.
Fonte:
Blog do Noblat/Metrópoles
O Globo: Orçamento paralelo de R$ 20 bilhões irriga órgãos dominados pelo Centrão
Natália Portinari, O Globo
BRASÍLIA — O “Orçamento paralelo” em emendas de R$ 20 bilhões em 2020, controlado por deputados e senadores governistas, foi direcionado para diversos órgãos chefiados por indicados do Centrão. O loteamento de cargos no governo federal permitiu que parlamentares tivessem ainda mais controle sobre o destino da verba indicada por eles.
A negociação foi operacionalizada através das emendas de relator, uma fatia do Orçamento usada para investimentos, obras e reforço para os caixas de municípios na área de saúde e educação. Governistas usaram a verba para irrigar suas bases eleitorais com verbas “extra”, além das emendas individuais de R$ 16 milhões a que cada um tem direito.
Os recursos que constituem o “Orçamento paralelo”, distribuído de forma desigual e sem transparência entre os parlamentares pela cúpula do Congresso em acordo com o governo federal, são provenientes das emendas de relator. O relator do Orçamento repassa informalmente as indicações de verbas de líderes partidários para a União, que depois autoriza os repasses dos ministérios demandados. É diferente de quando deputados e senadores indicam o destino de suas emendas parlamentares formalmente na peça orçamentária: eles têm direito a exatamente o mesmo valor, sejam da oposição ou governistas, e o Executivo é obrigado a fazer os pagamentos.
No Ministério da Educação, por exemplo, os valores empenhados (autorizados para pagamento) de emendas de relator chegam a R$ 2 bilhões. Deste valor, R$ 1,5 bilhão foi parar no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), cujo gestor, Marcelo Lopes da Ponte, é indicado do presidente do PP, o senador Ciro Nogueira (PP-PI). No órgão há ainda uma diretoria controlada por um quadro do PL, Garigham Amarante Pinto.
A maior parte das emendas de relator foi destinada ao Ministério do Desenvolvimento Regional: R$ 8 bilhões. Dessa quantia, pelo menos R$ 1,2 bilhão foi para a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba(Codevasf). Desde o fim de 2019, o órgão é chefiado por um indicado do deputado Elmar Nascimento (DEM-BA).
Líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) tem um aliado seu, Aurivalter Cordeiro, à frente da superintendência do órgão em Pernambuco. Ele fez uma indicação de R$ 175 milhões na autarquia, mais de dez vezes o valor de uma emenda individual no Congresso. A cidade de Petrolina (PE), administrada pelo filho de Bezerra, Miguel Coelho, assinou um convênio de R$ 46 milhões com o órgão para pavimentação e abastecimento de água no fim de 2020.
Como revelou o GLOBO, na Codevasf, mais de 90% da verba das emendas de relator foi indicada por aliados do governo Bolsonaro no Congresso. Nas superintendências regionais do órgão, além do indicado de Bezerra Coelho, há chefes apadrinhados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), Hildo Rocha (MDB-MA) e Arthur Maia (DEM-BA).
Comandada pelo Centrão, a Codevasf atua prioritariamente em projetos na região do rio São Francisco. Sua área de abrangência, porém, foi ampliada pelo Congresso e vai hoje do Amapá a Minas Gerais. Inaugurado neste ano, o escritório do Amapá foi uma vitória de Davi Alcolumbre (DEM-AP), ex-presidente do Senado. Ele fez uma indicação de R$ 98 milhões em emendas de relator à Codevasf para seu estado, pedido atendido pelo órgão.
Procurado, Alcolumbre defendeu a indicação. “A instalação da companhia no meu estado mudará para sempre a rota de desenvolvimento local. Ter o Amapá na Codevasf significa mais desenvolvimento para o meu estado. Isto porque, assegurados por lei, vamos ter como aprimorar nossas condições socioambientais regionais e de bem-estar”, disse em nota.
Indicações por WhatsApp
As emendas de relator foram repartidas entre deputados e senadores pelos líderes partidários. Uma lista com a divisão foi enviada à Secretaria de Governo, que, por sua vez, repassou os pedidos aos ministérios e cuidou da liberação, concentrada no fim do ano.
— No ano passado, quem centralizou (a distribuição das emendas de relator) foi a própria Secretaria de Governo — diz o deputado Hildo Rocha.
Deputados e senadores ouvidos pelo GLOBO relatam que nem sempre há uma indicação formal das emendas de relator como a que ocorreu no Ministério do Desenvolvimento Regional. Em muitos casos os pedidos são feitos pelo WhatsApp ou em planilhas manejadas por assessores das quais não há registro. Por isso, não há transparência sobre a distribuição.
O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), também nas mãos do Centrão, recebeu R$ 225 milhões para assentamentos rurais. O presidente é Geraldo Melo Filho, indicado pelo ministro Onyx Lorenzoni (Secretaria-Geral da Presidência) e filiado ao DEM. Nas superintendências, há dezenas de indicações políticas. Os deputados Marx Beltrão (PSD-AL), Zé Silva (SD-MG) e Josimar de Maranhãozinho (PL-MA) já emplacaram chefes regionais.
Fonte:
O Globo
Correio Braziliense: ‘A ficha do brasileiro demorou a cair’, diz Marco Aurélio Mello
Por Ana Dubeux
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello enxerga uma espécie de delay coletivo do Brasil em relação à pandemia. “Custamos, em termos de Administração Pública, principalmente de poder central, a perceber a seriedade da pandemia… Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões”, diz, nesta entrevista.
Defensor do isolamento, ele acredita que a pandemia alerta sobre a necessidade de restabelecer valores caros à vida em sociedade. E preocupa-se: “A ficha do brasileiro demorou muito a cair. Constatamos, nessa fase difícil, que às vezes é preciso haver, inclusive, a atuação da polícia repressiva — a militar — para terminar com aglomerações de toda ordem. Isso é preocupante”.
Após mais de três décadas como ministro do STF e 42 anos de magistratura, Marco Aurélio está na antessala da aposentadoria, marcada para julho próximo. Mas avisa: “Não morrerei de tédio”. Não morre, nem nunca deixou ninguém morrer, é fato.
Ministro que nunca se furtou a declarações fortes e posicionamentos, ele afirma não ter arrependimentos e se declara um “estivador do direito”, referindo-se à carga de processos que hoje um ministro acumula. “Sou homem realizado e sempre me senti um servidor de meus semelhantes”. Pretende se dedicar agora à vida acadêmica.
Ser ministro do Supremo durante mais de 30 anos cansa? Do que se arrepende? Do que se orgulha?
Orgulho-me do Supremo que encontrei em 1990, quando, na gestão do ministro Néri da Silveira, tomei posse. Havia integrado o Ministério Público do Trabalho, o Tribunal Regional do Trabalho e o Tribunal Superior do Trabalho. Sempre decidi segundo ciência e consciência possuídas. Daí não haver qualquer arrependimento. Magistratura é opção de vida, e é preciso atuar sempre buscando o melhor, procurando conciliar o trinômio lei, direito e justiça, visando a entrega da prestação jurisdicional a tempo e modo. Sou homem realizado e sempre me senti um servidor de meus semelhantes. Atuo em colegiado julgador há 42 anos e completarei, em 13 de junho próximo, 31 no Supremo, com o sentimento do dever cívico cumprido. Continuarei na área acadêmica, na presidência do Instituto UniCeub de Altos Estudos. Estejam certos: não morrerei de tédio. O crescimento é infindável.
O senhor foi professor na Universidade de Brasília e no Ceub. Que lembranças tem desse contato com novas gerações?
A melhor lembrança possível, e sigo no mundo acadêmico. Estive ontem na Universidade de Brasília, continuo no UniCeub e palestrei diversas vezes nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), em São Paulo. O contato com as novas gerações é enriquecedor, no que se percebe mentes abertas.
Quais mudanças o senhor destacaria na Justiça brasileira desde 1990, quando foi escolhido para o Supremo?
Houve o aprimoramento da atuação da Justiça. O que ocorre, no Brasil, é que não se caminha, por exemplo, para solucionar conflito de interesse na mesa de negociações. O País conta com lei moderníssima sobre arbitragem, mas dificilmente se tem descompasso solucionado mediante a atuação de árbitros. O brasileiro somente acredita em uma solução, a solução ditada pelo Estado-juiz. Então, há a judicialização em massa, que acaba emperrando a máquina judiciária.
As demandas da sociedade ampliaram a necessidade de o Judiciário modernizar-se, principalmente diante da pandemia. Como o STF pode contribuir no esforço para reduzir os impactos sociais da covid-19?
O Supremo somente atua mediante provocação, buscando, no âmbito de competência inimaginável, muito grande, conciliar celeridade e conteúdo. O Tribunal, não me canso de repetir, é o guarda maior da Constituição Federal. A segurança jurídica pressupõe a observância irrestrita, por todos, do arcabouço normativo.
Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
É preciso haver avanço cultural. De qualquer forma, a pandemia implicou alerta quanto à necessidade de preservar valores caros à convivência. A sociedade sairá mais fortalecida dessa quadra.
É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil? Como faz para aliviar a tensão?
Em primeiro lugar, julgo, integrando o Supremo, destinos e não papéis. Sempre busco – sei que é utopia – a perfeição. Não há tensão propriamente dita. Sou um juiz à antiga, trazendo processos para a residência. Vou ao Tribunal apenas nos dias de sessão. Aliás, ia ao Tribunal, porque, agora, quando se tem reunião de integrantes, ocorre mediante videoconferência. Como julgador, cuido muito da parte humanística. Por isso tenho sempre aberto um romance. Estou lendo obra de Hilary Mantel, sobre a Inglaterra da época de Henrique VIII, O Espelho e a Luz. Admiro muito essa escritora.
O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Tenho presente, há mais de um ano, que a vacina maior é a revelada pelo isolamento. Então o mantenho, desde março de 2020, e vou tocando a vida, buscando deixar, no gabinete, o menor resíduo possível para o sucessor, considerada a aposentadoria que se avizinha, em 5 de julho do corrente ano.
Como ficam as grandes questões da humanidade no pós-pandemia?
Os homens públicos devem ter os olhos voltados ao bem-estar social. No caso do Brasil, precisa haver atenção ímpar com os menos afortunados, proporcionando-se educação, saúde e segurança pública.
O momento exige resiliência e ativismo solidário. Engajou-se pessoalmente em alguma atividade coletiva a distância?
Exige dedicação e a busca do resgate desse predicado que é a solidariedade. Não me sobra tempo para estar engajado em outra atividade, além da acadêmica e judicante. Costumo dizer que hoje não sou, ante a carga de processos, um operador do Direito, mas sim um estivador.
Que ensinamento este momento nos deixa?
O relativo à necessidade de respeito à natureza. Em pleno século XXI, o homem veio a perceber, com essa pandemia, a fragilidade e que deve cuidar da mãe terra.
O senhor vive em Brasília há mais de 30 anos, como “sentiu” a cidade neste ano de pandemia?
Aqui cheguei, em 1981. A ficha do brasileiro demorou muito a cair quanto ao momento vivenciado, quanto aos efeitos da pandemia. Constatamos, nessa fase difícil, que às vezes é preciso haver, inclusive, a atuação da polícia repressiva – a militar – para terminar com aglomerações de toda ordem. Isso é preocupante. A conscientização passa, de qualquer forma, por uma mudança na percepção da vida gregária, da vida em sociedade.
Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
Custamos, em termos de Administração Pública, principalmente de poder central, a perceber a seriedade da pandemia, os efeitos que poderia causar. Sempre é tempo de tomar decisões visando o melhor, considerados os brasileiros. Sim, os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões. Observa-se o que ocorreu em outros países, como a Inglaterra, em que medidas foram adotadas.
A importância da união em torno de um projeto suprapartidário, para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos, é possível?
É possível desde que haja, como disse, conscientização, sobretudo dos homens públicos, e que não prevaleçam interesses isolados, momentâneos e que não levam ao bem-estar geral.
Fonte:
Correio Braziliense
Bruno Carazza: Nuvem de palavras
Descontados os intervalos, já se passaram 38 horas e 46 minutos de depoimentos desde que o senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apura as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia, convocou para se sentar à mesa a primeira testemunha: o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.
Desde então já foram realizadas seis oitivas de personagens que, em diferentes partes do roteiro, foram protagonistas ou coadjuvantes, vilões ou mocinhos, neste filme de terror que já teve mais de 435 mil vítimas.
Já subiram ao palco da CPI os ex-ministros da Saúde Mandetta (cuja audiência durou 7 horas e 20 minutos) e Nelson Teich (5 horas e 26 minutos), o atual responsável pela pasta Marcelo Queiroga (8 horas e 2 minutos), além do diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária Antônio Barra Torres (5 horas e 27 minutos), o ex-secretário de comunicação social do governo Fabio Wajngarten (7 horas e 17 minutos) e o gerente-geral da farmacêutica Pfizer na América Latina Carlos Murillo (5 horas e 14 minutos).
Ao se analisar a íntegra dos depoimentos de todos os convocados até agora, aqueles que gostariam de ver o presidente da República sendo encurralado desde as primeiras perguntas podem ter se decepcionado. Durante os depoimentos dos ministros da Saúde, o nome de Bolsonaro foi muito pouco mencionado – para ser mais exato, apenas quatro vezes (uma por Mandetta e Teich e duas por Queiroga).
À medida que a CPI começar a convocar testemunhas que tiveram envolvimento mais específico e direto com os diversos aspectos da gestão governamental da pandemia, o risco de exposição de Bolsonaro e de sua família começa a aumentar consideravelmente. Prova disso é o fato de que o sobrenome “Bolsonaro” foi citado 18 vezes por Fabio Wajngarten e mais oito vezes pelo executivo da Pfizer Carlos Murillo.
Na nuvem de palavras proferidas nos seis primeiros debates da CPI, podemos encontrar outra pista sobre o rumo que as investigações podem tomar. O tema da cloroquina teve 84 menções, a maioria concentrada nas respostas dos ministros da Saúde e do presidente da Anvisa. No entanto, o termo “vacina” e seus derivados foram utilizados 586 vezes, apresentando alta incidência em todos os testemunhos feitos, o que indica que esse é um assunto com um potencial explosivo muito maior para o governo.
Do outro lado da mesa, também podemos encontrar informações interessantes sobre o andamento dos trabalhos da Comissão. Tentando captar o tamanho da participação de cada membro da Comissão nos depoimentos, realizei um exercício bastante simples. Compilei a íntegra das notas taquigráficas de cada sessão da CPI disponível na página do Senado na internet e contabilizei o total de caracteres utilizados por cada parlamentar durante suas perguntas e comentários dirigidos aos depoentes.
Conforme pode ser visto no gráfico, o protagonismo é exercido pelo relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), seguido do presidente Aziz e do vice-presidente Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Até aí não há nada demais, visto que esses três postos têm prerrogativas regimentais para conduzir os trabalhos da comissão, o que justifica terem mais tempo e espaço para falar. Mas há alguns pontos interessantes a serem observados.
De acordo com a mesma métrica, a defesa de Bolsonaro vem sendo capitaneada por Marcos Rogério (DEM-RO) e Luis Carlos Heinze (PP-RS), enquanto Ciro Nogueira (PP-PI) tem uma das atuações mais apagadas da CPI. Com o governo atravessando um de seus piores momentos desde a posse, o relativo silêncio do poderoso cacique do Centrão vale mais do que mil palavras.
Do lado da oposição ao governo, uma das vozes mais críticas contra a gestão de Bolsonaro na pandemia ainda se mostra discreta na comissão. Tasso Jereissati (PSDB-CE) recentemente chegou a cogitar publicamente a possibilidade de concorrer à presidência em 2022. Ao não tomar para si os holofotes na CPI da Covid, contudo, o tucano dá margens a se pensar de que esse desejo talvez não seja tão forte assim.
Voltando à nuvem de palavras, as referências a “Manaus” e “oxigênio” apareceram somente em 53 ocasiões nas duas primeiras semanas de trabalhos da CPI, indicando que esse é um flanco que ainda foi pouco explorado, pelo menos por enquanto.
Mas se o general Pazuello tiver a coragem de encarar os senadores na próxima quarta (19/05), pode sair daí a palavra-chave para se começar a demonstrar a responsabilidade do governo neste morticínio.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/nuvem-de-palavras.ghtml
Celso Rocha de Barros: Vai ser homem, Pazuello?
A CPI da Covid está descobrindo evidências de um assassinato em massa. Segundo o depoimento do gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, Bolsonaro desprezou várias ofertas de vacinas da empresa. Na estimativa do epidemiologista Pedro Hallal, só essa decisão de Bolsonaro causou entre 5.000 e 25 mil mortes.
Só essa decisão: não estamos levando em conta os ataques de Bolsonaro à Coronavac, que é responsável por cerca de 80% das vacinas do Brasil; nem da adesão tardia e parcial ao consórcio Covax Facility (entramos comprando 10% de nossas necessidades, poderíamos ter pedido até 50%); nem das vacinas já aplicadas que podem perder eficácia porque o governo federal mandou estados e municípios gastarem as reservas de Coronavac que guardavam para a segunda dose, inflando assim o número de vacinados; nem de toda a sequência de crimes documentados de Bolsonaro durante a pandemia que não se relacionam a vacinas.
A verdade é que, não fossem os adversários, reais (Doria) ou imaginários (China), de Bolsonaro, o número de brasileiros vacinados seria próximo de zero. A OMS, organizadora do consórcio Covax, também foi alvo constante de ataques bolsonaristas.
Os depoimentos à CPI também vêm reforçando a impressão de que o negacionismo bolsonarista no combate à pandemia teve base ideológica. Segundo os depoimentos, extremistas como Carlos Bolsonaro e Filipe Martins participavam das reuniões com vendedores de vacina sem terem qualquer qualificação na área médica, em suas próprias especialidades ou em qualquer outro ramo da aventura humana. Se estavam ali, era para garantir a aposta na imunidade de rebanho, na guerra contra a China e contra os “globalistas” da OMS.
E além dos capangas e soldados rasos do “Consultório do Crime”, começam a aparecer os suspeitos de serem as fontes de dinheiro e assessoria técnica. O ex-ministro Mandetta já havia declarado que Bolsonaro parecia ignorar os conselhos da área técnica porque tinha um aconselhamento paralelo.
As atenções da CPI agora se viram para o empresário Carlos Wizard, que pode ter sido o chefe dessa rede, e para a médica Nise Yamaguchi. Segundo o depoimento do presidente da Anvisa, o almirante Barra Torres, Yamaguchi defendeu a proposta de mudar a bula de remédios para mentir que eles curavam Covid-19.
É bom lembrar: Bolsonaro mandou os trabalhadores para a morte com a ilusão de que os remédios falsos os manteriam seguros. Nunca acreditou, de fato, na eficácia da cloroquina. Em suas memórias, o ex-ministro Mandetta diz que “nunca houve na cabeça dele a preocupação da cloroquina como um caminho de saúde. A preocupação dele era sempre ‘vamos dar esse remédio porque com essa caixinha de cloroquina na mão os trabalhadores voltarão a produzir’”. (p.133).
A próxima grande atração da CPI será o general Pazuello, ministro da Saúde durante a maior parte da mortandade. Pazuello ficou famoso por cancelar uma compra de Coronavac a mando de Bolsonaro, dizendo que “um manda e o outro obedece”.Agora vai ter que decidir se acaba como bode expiatório da pandemia ou se conta para os senadores quem lhe deu ordem para deixar que centenas de milhares de brasileiros morressem sem vacina.E aí, Pazuello, vai ser homem?