vacina

Míriam Leitão: A morte, a vacina e o presidente

Em 2020, estamos morrendo, mas o presidente só pensa em 2022. É capaz de qualquer ato, o mais temerário que seja, para realizar seu plano. Ontem foi um dia em que o Brasil perdeu tempo na nova desordem criada por Jair Bolsonaro. Ele atacou a China, o governador João Doria, humilhou o general Pazuello e fez sua revolta da vacina para agradar sua milícia digital. O presidente conspira contra a saúde dos brasileiros para aplacar seus radicais.

Há uma minoria muito estridente nas redes que cobra dele provas de lealdade. Abraçado a políticos com dinheiro nas cuecas, com sua família toda enrolada, o presidente não pode mesmo entregar a promessa de combate à corrupção. Então ele cria conflitos com a China, com Doria, com a vacina para provar que permanece sendo o mesmo. Ele foi cobrado pelo acordo de intenção assinado com o governo de São Paulo e por isso deu o seu chilique.

O Instituto Butantan é o maior fornecedor de vacina para o programa nacional de imunização e tem a confiança do país. É óbvio que será um dos fornecedores, caso a vacina desenvolvida na cooperação com a China passe bem por todo o processo da Anvisa. Como disse ontem a agência, existem quatro “protocolos de desenvolvimento vacinal” correndo na Anvisa e nenhum pedido ainda de registro. Quando houver, será avaliado tecnicamente. O presidente da Anvisa, Antonio Barra, procurava palavras para não sair do roteiro da agência. Barra é o mesmo que em março foi para uma manifestação contra o Congresso junto com o presidente, participando de aglomeração. Recebeu esta semana a aprovação do Senado e agora tem mandato.

No entorno do presidente a explicação dada pela manhã foi que Bolsonaro estava dizendo que o governador Doria havia distorcido o que fora dito por Pazuello na videoconferência. Doria divulgou o comunicado da reunião para mostrar o que havia acontecido e que todo mundo tinha entendido, aliás. Uma intenção de compra caso a vacina seja aprovada e tenha registro. Inventando uma briga inexistente, Bolsonaro postou que qualquer vacina deverá ser comprovada cientificamente e aprovada pela Anvisa. Mas fez isso escrevendo em caixa alta: “A vacina chinesa de João Doria.” E conclui que não vai comprar a vacina. Depois usou a palavra “traição” e era em relação ao ministro da Saúde.

Ao atacar Doria, ele está tentando enfraquecer um suposto adversário de 2022. Ao fazer sucessivas referências depreciativas à China, ele estigmatiza o país. Mas mais do que isso: Bolsonaro agride nosso principal parceiro comercial e investidor estratégico. Não ganhamos nada em tomarmos partido na nova guerra fria. O interesse americano nessa briga não é o nosso interesse.

A embaixada chinesa já havia soltado uma nota na terça-feira para rebater as acusações do secretário americano, Mike Pompeo, e do conselheiro de Segurança Nacional, Robert O’Brien, de que a China seria uma ameaça ao Brasil. No trecho mais duro contra os americanos, os chineses disseram que os EUA tinham um “histórico sujo” em segurança cibernética, com operações massivas de espionagem contra vários países, incluindo o Brasil. Ontem, após a polêmica com a vacina, o embaixador chinês, Yang Wanming, afirmou que investimentos chineses no Brasil geraram mais de 50 mil empregos diretos e poderiam chegar a US$ 100 bilhões em um período de cinco anos. Era uma forma de comparar com o que foi oferecido pela missão americana. Perto do volume que precisa ser mobilizado para o investimento em 5G, o US$ 1 bi de financiamento americano não é nada.

Num mesmo ataque de nervos o presidente agrediu um parceiro estratégico, mostrou de novo que não tem atributos para comandar uma federação, humilhou o ministro da Saúde, justamente o mais submisso aos seus caprichos.

O pior, contudo, é que Bolsonaro atentou contra a saúde dos brasileiros. Ele espalha o vírus da desconfiança em relação a uma vacina que pode vir a salvar milhares de vidas. Desde o começo da pandemia ele já brigou com governadores, agrediu o STF, demitiu dois ministros da Saúde, defendeu remédios não comprovados, ajudou a disseminar o coronavírus com suas aglomerações e seu exemplo de desprezo à proteção. Bolsonaro é um atentado à saúde pública no meio de uma pandemia. E já são 155.459 os nossos mortos.


William Waack: A cor da vacina

Bolsonaro ignora que o eleitor é mais pragmático do que ele pensa

Por ter muita raiva da China ou de João Doria, o rompante de Jair Bolsonaro prometendo que não vai comprar a vacina chinesa – desautorizando o general da Saúde – ajuda a entender a razão de capitães comandarem uma companhia, enquanto generais comandam divisões, exércitos, grupos de exércitos. É a falta de visão de conjunto.

Bolsonaro submeteu tudo ao projeto de reeleição, confundindo seu destino político com o do País. É postura comum a políticos de várias colorações, mas, no caso de Bolsonaro, a obsessão com o ganho eleitoral de curtíssimo prazo paradoxalmente ameaça seu próprio projeto de reeleição. A popularidade desse presidente, como a de outros, está diretamente ligada ao desempenho da economia, e esse desempenho (até o fim de 2022, digamos) é função de uma série de decisões políticas difíceis que ele está protelando – em nome do conforto da popularidade no curto prazo.

Da mesma maneira, mais atrapalha do que ajuda a economia brasileira, que depende em grande parte do agronegócio, que depende em grande parte da China, alinhar-se à agenda pessoal do atual presidente americano, Donald Trump. Nem é o caso de se perguntar se esse personagem estará ainda na Casa Branca daqui a menos de duas semanas. Mesmo que Trump produza um excepcional milagre eleitoral e se reeleja, ao abraçá-lo da forma subserviente e bajuladora, Bolsonaro comete um erro básico de política externa: ignorar o fato de que países não têm amigos, só têm interesses.

Ao que tudo indica, está perdida a aposta bastante simplória de que o “laço pessoal” com o homem mais poderoso do mundo presidindo o país mais rico do mundo traria ao Brasil imediatas vantagens em acesso a tecnologia, mercados, instituições multilaterais e projeção no cenário internacional. No caso específico da China (que hoje é quem tem o homem mais poderoso do mundo e a maior economia), a pressão de Trump sobre o Brasil evidentemente leva em conta apenas os interesses dos Estados Unidos, enquanto Bolsonaro sacrifica um vantajoso ponto de partida, que é a possibilidade de jogar entre os dois no grande confronto do século.

Aqui entra também a questão da “diplomacia da vacina”, na qual os chineses já demonstram notável vantagem sobre os americanos. Ao contrário dos Estados Unidos, a China está anunciando “acesso preferencial” à vacina produzida pela Sinovac a países em desenvolvimento. Washington tem à disposição produtos semelhantes desenvolvidos por empresas privadas de sólida reputação mundial, mas demonstrou pouco interesse em distribuir vacinas fora dos EUA.

O Brasil é parte dessa abrangente ofensiva chinesa, com a qual Xi Jinping pretende ampliar ainda mais peso e influência do país, mas o que parece motivar Bolsonaro a falar mal da vacina comandada pelo governo comunista chinês não é o espectro (sim, esse absurdo transita em franjas do bolsonarismo) de uma “inoculação” de ideias esquerdistas via vacina. Ele teme uma candidatura para competir com ele “pela direita” e, seja qual for a razão, enxerga em Doria esse personagem.

Essa visão de túnel considerando apenas a reeleição é o que faz Bolsonaro ignorar um provérbio… chinês. Usado, aliás, de maneira célebre por um importante dirigente comunista, Deng Xiaoping, iniciador das reformas que fizeram da China o que ela é hoje, e que virou lição de pragmatismo. “Não me importa a cor do gato, contanto que pegue o rato”, respondeu, quando indagado sobre o melhor sistema econômico.

Para uma parcela importante do eleitorado também no Brasil, assustada com pandemia, pouco importa a origem da vacina, contanto que ajude a resolver uma questão literalmente de vida ou morte. Bolsonaro parece ignorar que o eleitor é mais pragmático do que ele pensa.

*JORNALISTA E APRESENTADOR DO JORNAL DA CNN


Bruno Boghossian: O circo político da vacina

Governo paga por imunizante que foi criticado pelo presidente em ataque a Doria

Nem os auxiliares de Jair Bolsonaro conseguem sustentar por muito tempo o circo político armado diariamente pelo chefe. Em menos de 24 horas, o Ministério da Saúde foi obrigado a cortar mais um fio da campanha do presidente contra a vacina chinesa para a Covid-19, produzida em São Paulo.

A pasta anunciou nesta terça (20) que vai pagar R$ 2,6 bilhões para incluir 46 milhões de doses da Coronavac em seu Programa Nacional de Imunizações. Bolsonaro deveria explicar por que vai gastar uma fortuna com um produto que, na véspera, ele mesmo tentou desmoralizar.

Na segunda (19), o presidente abriu um evento disposto a atacar a vacina chinesa para acertar o governador João Doria (PSDB). Em poucos minutos, ele criticou o preço do imunizante, insinuou que sua eficácia não está comprovada e citou um levantamento que indica que 46% dos brasileiros recusam sua aplicação.

Alguém poderia imaginar que o presidente se converteu às escrituras científicas, que passou a acreditar nas pesquisas de opinião ou que finalmente decidiu dar bola para a saúde. Mas as autoridades do próprio governo trataram de desmascarar o que já estava evidente.

A negociação com os paulistas para a distribuição da Coronavac mostra a dimensão do absurdo fabricado por Bolsonaro. Ao mirar Doria, o presidente disse que o tucano produz “terror” ao anunciar que o imunizante deve ser compulsório no estado. O ministro da Saúde descartou a obrigação, mas também não ouviu a bobagem do chefe sobre a vacina.

Bolsonaro não ficou satisfeito em atrapalhar os esforços para frear a contaminação pelo coronavírus e em desdenhar de seus mortos. Ele ainda procura novas oportunidades para extrair benefícios políticos de cada etapa da pandemia.

O presidente só conseguiu atenção agora porque, do lado oposto, a busca pelos holofotes empurrou Doria nessa direção. Ao antecipar o debate sobre a obrigatoriedade da vacina, de maneira superficial, o governador caiu na armadilha do rival.


Vera Magalhães: Tânatos

Só Freud explica a pulsão de morte que emana de Bolsonaro em plena pandemia

Não há outra explicação, a não ser a pulsão de morte descrita por Sigmund Freud em sua teoria, para um presidente de um país no qual quase 160 mil pessoas morreram em menos de um ano usar uma cerimônia oficial para, numa só tacada, divulgar desinformação sobre vacina e vender mais um medicamento sem eficácia científica comprovada, sem nenhum dado que ampare a “descoberta”.

A teoria das pulsões aparece pela primeira vez na obra de Freud em 1920, mas ganha contornos culturais, sociológicos e políticos nove anos depois, quando ele publica O Mal-Estar na Civilização. Neste texto ele descreve a dicotomia entre as pulsões do indivíduo – a pulsão de vida (Eros) e de morte (Tânatos) – e as expectativas da sociedade (ou da civilização).

Bolsonaro age movido a pulsão de morte desde os primórdios de sua curta passagem pelo Exército, em toda a sua carreira de defensor de tortura e assassinato nos porões e, agora, como promotor de caos no enfrentamento da pandemia de covid-19.

Se não, qual a justificativa para um presidente adotar um tom de pura picuinha e dizer explicitamente que, sob suas ordens, a Anvisa, uma agência que tem o dever de fiscalizar e regular a política de saúde, pode atrasar a aprovação de vacinas ao sabor das disputas político-partidárias que ele insiste em antecipar?

Qual a explicação para que, 116 anos depois da Revolta da Vacina, o Brasil esteja mergulhado, por obra e graça do presidente e de seus acólitos, num pântano de desinformação e calhordice em que se propagandeia de forma irresponsável que alguém (Quem? Os governadores? A polícia? Vozes da cabeça dos malucos?) vai invadir a casa de pessoas e vaciná-las à força com substâncias vindas da China (a mesma que, insinuam eles, criou um vírus em laboratório para subjugar o mundo) sem comprovação científica?

No mesmo evento em que usa mais um órgão de Estado, a Anvisa, como aparelho de suas intenções mesquinhas, o presidente dá voz ao ministro-astronauta para promover mais um medicamento sem eficácia científica comprovada em nenhum estudo sério do mundo, como sendo capaz de, nas fases iniciais da covid-19, reduzir a carga viral.

Para isso, o ministro em questão promete para dali a alguns dias (quando?) os estudos que supostamente corroboram a irresponsabilidade, ao mesmo tempo em que usa gráficos chupados de um desses bancos de imagem públicos da internet para mostrar a suposta eficácia. Garganteia diante de um chefe aparvoado que o que deveria ser um estudo de anos foi feito em quatro meses.

Tal show de mistificação, num país que não estivesse anestesiado pelos absurdos cotidianos e impunes, seria contraposto imediatamente pelo Ministério Público, pelo Judiciário, pelo Conselho Federal de Medicina e a comunidade científica, em uníssono. Com a exigência de apresentação imediata de dados, sob pena de punição.

Aqui, o contraponto fica por conta de cientistas usando suas redes pessoais para cobrar o ministro, jornalistas científicos fazendo o mesmo e, talvez, alguma representação de partido de oposição.

O Ministério Público Federal é hoje uma instituição em que os procuradores estão calados porque temem ser alvo de perseguição (volto a isso na coluna de domingo).

Diante de cenário de terra arrasada, dá até um alívio que o Ministério da Saúde se descole do teatro da morte e anuncie convênio para comprar 46 milhões de doses de vacina do Instituto Butantã quando os estudos comprovarem sua eficácia. Resta saber se também o ministro não será admoestado pelo chefe a recuar, se o Tânatos e os delírios persecutórios decorrentes dele apontarem que ele está jogando a favor de seus adversários.


Vinicius Torres Freire: Como vai a 'vacina chinesa' pelo mundo

Teste paulista é seguro, dizem cientistas; Brasil e EUA são maiores campos de prova

João Doria disse que a vacinação contra a Covid começa no dia 15 de dezembro em São Paulo, desde que seu governo tenha autorização da Anvisa. Em fins de março, a população paulista inteira estaria vacinada.

Até meados de dezembro, menos de dois meses, já será possível saber se a vacina é mesmo segura e funciona?

Duas pessoas envolvidas nos trabalhos dos testes científicos da Coronavac, a “vacina chinesa”, da Sinovac, dizem que sim.

Pelo menos em uma avaliação de uso emergencial, será possível ter dados para aplicar a vacina com segurança, embora o estudo de seu grau de proteção ainda vá depender de acompanhamento mais demorado —pelo menos até meados de 2021.

Os efeitos colaterais da vacinação com a Coronavac seriam raros ou leves, como os de uma vacina de gripe ou ainda menos, dizem esses pesquisadores de São Paulo.

Na opinião dessas pessoas, que não têm cargo político ou de direção superior, o governador paulista não está atropelando a análise científica. Dizem que o pessoal da Sinovac obviamente também não quereria colocar em risco sua reputação comercial e o prestígio diplomático da China com um desastre em país como o Brasil.

Observam que Doria correria o mesmo risco, na raia política, se avançasse o sinal.

Em suma, o prazo seria bem apertado, mas não maluco. No entanto, ninguém quis explicar quais são os critérios desse calendário da responsabilidade.

O Brasil e os Estados Unidos são os campos de prova de vacinas mais importantes do mundo, dadas a extensão e a gravidade da epidemia e o estágio em que estão os testes em fase três (o último antes da aprovação para uso geral ou regular da vacina).

Nos EUA, os testes começaram no dia 27 de julho. No Brasil, no dia 21 do mesmo mês.

A Coronavac está sendo testada apenas aqui, na Indonésia e na Turquia, que começou os exames em setembro. Nas próximas semanas, começa a ser avaliada no Chile. O acordo para o teste em Bangladesh deu chabu.

Logo, São Paulo e, por tabela, o Brasil estão por sua conta e risco de pioneirismo. Risco de grande sucesso inclusive.

Na Indonésia, país de 270 milhões de habitantes e algo mais de 12.500 mortes pela Covid, testes começaram em 11 de agosto.

A universidade e a estatal farmacêutica que fazem a pesquisa esperam concluir o acompanhamento das pessoas submetidas ao teste até o final de dezembro. O governo quer começar a vacinar um pouco antes disso, o que a Sinovac acha possível. Os indonésios também compraram vacinas de outras duas firmas chinesas. Desenvolvem ainda um produto nacional, com apoio coreano, a “vermelha e branca”, cores da bandeira do país.

A China fez também seus testes da Coronavac, mas afortunadamente não deve ter meios de verificar com facilidade o sucesso da vacinação em massa, pois o país quase não tem casos da doença. A imprensa chinesa diz que mais de 350 mil pessoas foram vacinadas no país até setembro. No final de junho, havia sido autorizada essa aplicação emergencial de quatro tipos de vacinas em pessoas que trabalham em situação de risco e nas empresas que desenvolvem os imunizantes.

Na semana que passou, a província de Zhejiang começou a oferecer justamente vacinas da Sinovac para a população em geral, com prioridade para profissionais de saúde, funcionários de portos, aeroportos, alfândegas e trabalhadores de serviços essenciais.

Se houver mais vacina, o interessado pode pagar 400 iuans (cerca de R$ 330) pelas duas doses, tomadas em intervalos de 14 a 28 dias.

Mas não há liberação oficial para a vacinação em massa.


Eliane Cantanhêde: Dói na alma

A nova obsessão do Bolsonaro 4.ª versão é a ‘sua’ vacina contra a ‘dele’, Doria

Em seu quarto personagem desde a eleição e a posse, há menos de dois anos, o presidente Jair Bolsonaro vai se metamorfoseando de acordo com as circunstâncias e conveniências políticas, mas de uma coisa ele não abre mão: dobrar a aposta a toda semana, a toda hora, na sua versão da “gripezinha”. São 152 mil mortos, mais de 5,1 milhões de contaminados e o discurso do presidente do Brasil é o mesmo, inacreditavelmente, irritantemente, negacionista.

Eu estava no velório do jornalista Alberto Coura, na quarta-feira, quando Bolsonaro insistiu que a pandemia é “superestimada”. Como assim? O que mais é preciso, no Brasil e no mundo, para o presidente admitir para sua gente que o coronavírus é grave, gravíssimo, uma tragédia na história da humanidade? Ele sabe exatamente o que se passa, mas não admite por estratégia, por cálculo político. Aliás, como fez e faz seu ídolo e mentor Donald Trump nos EUA.

Beto Coura, que foi da EBC e assessorou o ministro Celso de Mello na presidência do Supremo, era muito querido em Brasília e casado com a também jornalista Vanda Célia. Tinha 63 anos, passou 84 tenebrosos dias numa UTI e morreu em função do vírus. Como falar que a pandemia foi “superestimada”? Como ouvir isso sem sentir indignação, pelo Beto, pela Vanda, pelos 152 mil mortos e suas famílias? Dói na alma.

Desde o início – quando o mundo inteiro já estava em alerta, mas ele e Trump davam de ombros – Bolsonaro não está preocupado com vírus, contaminação, mortes. Só teme o efeito na sua popularidade, no seu governo e na sua reeleição. A frase dele, ainda em março, diz tudo: “Se afundar a economia, acaba meu governo, acaba qualquer governo. É uma luta pelo poder”. Não, presidente, não é uma luta pelo poder, é uma luta pela vida.

O atual grande risco é a politização da vacina, única boia salva-vidas contra esse maldito vírus, que chega numa segunda onda e apavora novamente a Europa. Não satisfeito em relevar a obrigatoriedade de tomar a vacina, Jair Bolsonaro não acha fundamental uma vacina para acabar a pandemia, mas que a “sua” vacina chegue antes da “dele” – a do governador João Doria. Seria só mesquinho, não fosse odioso.

Ao dar ouvidos aos terraplanistas do governo, prevendo 3,5 mil mortes, e a empresários oportunistas, que imaginavam “só” 6 mil, Bolsonaro agia pensando nele mesmo. Daí vieram: “gripezinha”, “histeria da mídia”, “não sou coveiro”, “todo mundo vai morrer”, “e daí?”. Desdenhou do isolamento, promoveu aglomerações (inclusive golpistas), descartou as máscaras, demitiu dois ministros da Saúde, deixou um general interino por meses, faz propaganda de um remédio sem comprovação contra o coronavírus e, por fim, ameaça a vacina.

Bolsonaro já foi anti “velha política” e Supremo, “Jairzinho Paz e Amor”, candidato de chapéu de vaqueiro e carregando criancinha. O quarto Bolsonaro é pragmático. De almoço em almoço, café em café, ele está de volta aos braços do Centrão e virou amigo desde criancinha de ministros do Supremo, enquanto deixa o Posto Ipiranga para lá e promove o desmanche de saúde, educação, cultura, política externa e meio ambiente.

Esse “novo” Bolsonaro faz política, a velhíssima política. E não é que dá certo? Vai aprovar no Senado um sujeito com currículo todo esburacado para 27 anos no Supremo, não esquenta a cabeça com queimadas e com as angústias de Paulo Guedes com privatizações e teto de gastos e vai se consolidando nas pesquisas e construindo a reeleição. Apesar de tudo…

Inimigos 1, 2 e 3. Eis os maiores inimigos de Luiz Fux na presidência do STF: Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Lewandowski, os decanos n.º 1, 2 e 3. Nenhum deles é de brincadeira.

*Comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal e do Telejornal Globonews em Pauta


Vera Magalhães: Vacina em novembro

Erradicação da loucura que assola o mundo tem de começar pela eleição dos EUA

Parecia impossível que algum líder mundial fosse superar o festival de loucuras que Jair Bolsonaro protagonizou durante a pandemia do novo coronavírus, subindo em lombo de cavalo, promovendo aglomerações, indo a atos antidemocráticos, mostrando cloroquina para as emas, etc.

Mas aconteceu. Desde que foi diagnosticado com covid-19, na semana passada, Donald Trump deixou o pupilo brasileiro no chinelo em termos de impostura e inadequação não apenas ao cargo que ocupa e ao qual se agarra com unhas e dentes, mas também aos princípios básicos de civilidade e convívio público no curso de uma emergência sanitária.

O homem mais poderoso do planeta foi internado na sexta-feira com muitas dúvidas pairando quanto à data exata de seu diagnóstico, se ele promoveu eventos já sabendo que estava doente ou a gravidade do quadro antes e depois de ser hospitalizado.

À falta de transparência inimaginável para um País que se gaba de ser o berço e o guardião da democracia ocidental se somou a boçalidade desvairada.

Desesperado diante do revés da doença quando fazia questão de zombar dela, vender tratamentos mandrakes e defender e praticar comportamentos sociais irresponsáveis, Trump quis se mostrar forte.

Para isso, expôs assessores, seguranças e equipe do hospital a risco de contaminação. O carro em que ele fez o desfile patético é blindado inclusive para ataques químicos e biológicos, o que significa dizer que, se nada entra, tampouco sai. A carga viral de um presidente doente ficou toda concentrada no interior do carro, sujeitando os demais ocupantes a riscos.

A diferença entre os Estados Unidos e o Brasil é que lá existem menos puxa-sacos e lambe-botas que aqui. E, quando um presidente se comporta como um moleque, há quem, mesmo entre os que o circundam, com coragem para dizer em voz alta. Foi o que fez o médico James Phillips, do hospital Walter Reed. “Eles podem ficar doentes. Eles podem morrer. Por teatro político”, atestou.

Lá como aqui este teatro que se prolonga já cobrou muito em termos de corrosão dos valores e dos marcos civilizatórios. Que um presidente decida se comportar como um bufão num debate e a comissão nacional encarregada de organizar tais eventos não deixe claro que isso não irá se repetir sob hipótese alguma é sinal de que Trump venceu mais um round e conseguiu enfraquecer mais uma estrutura que sustenta a democracia norte-americana – que, mesmo com todas as suas lacunas e falhas, é uma das mais estáveis do mundo.

Por tudo isso é vital a importância da eleição dos Estados Unidos, para o mundo e para o Brasil. A era de governantes fanfarrões calhou de coincidir com o maior flagelo humano, social e econômico que as atuais gerações – sejam as mais novas, sejam as que estão vendo antecipado seu tempo útil – irão conviver no curso de suas vidas.

A presença de figuras como Trump e Bolsonaro em postos de comando agrava exponencialmente os efeitos desse calvário. Mais de 200 mil mortos lá, quase 150 mil aqui e tanto um quanto outro seguem distraídos e distraindo os seus governados com factoides midiáticos. Lá a busca vale-tudo por uma reeleição cada vez mais difícil. Aqui a costura de terreno político com vista ao mesmo objetivo e para proteger a família presidencial, cada vez mais enredada numa trama que explicita o uso de dinheiro público de gabinetes para enriquecimento.

Não se sabe o mal que Trump ainda pode fazer, desde propagar o vírus para os que o cercam até colocar em dúvida a transição do poder caso se efetive a derrota que as pesquisas apontam. Mas é fácil analisar a importância que sua eventual saída de cena em novembro representará para começar a trazer de volta a racionalidade perdida à política brasileira. Que assim seja.


Monica De Bolle: Vacina e economia

Fala do presidente sobre vacina para covid-19 é perda de tempo, sobretudo ante os desafios que o País terá para imunizar a população

Não pretendo perder tempo ou espaço nesse artigo argumentando a favor da obrigatoriedade das vacinas, quaisquer que sejam. A vacina é um direito do cidadão, estabelecido na Constituição.

Vacinas contra doenças infectocontagiosas são, também, obrigatórias, como em diversos países. A obrigatoriedade é uma questão óbvia de saúde pública e de higidez econômica: vacinas garantem a proteção não apenas daqueles que as “consomem”, como a de todos aqueles com quem possam entrar em contato.

Vacinas, portanto, geram o que os economistas chamam de “externalidades positivas”, isto é, efeitos que recaem não só sobre quem é vacinado, mas sobre toda a sociedade. Portanto, a recente fala presidencial a respeito da futura vacina para covid-19 como fonte de controvérsias é perda de tempo, sobretudo ante os imensos desafios que o País terá pela frente para imunizar a população quando a vacina para covid – ou as vacinas, já que há várias em estágios distintos de andamento – estiver à disposição.

É de extrema importância considerar tais desafios para que se possa pensar de forma realista sobre a recuperação da economia brasileira.

Não faltam economistas – incluindo o próprio ministro da Economia – a dizer que a retomada será rápida em 2021 já que teremos vacina. Muitos já aderiram à ideia de “recuperação em V” sem parar para analisar o que está em jogo. A impressão que se tem é que alguns economistas e analistas acreditam que uma vez que a vacina esteja disponível, a epidemia e suas consequências desaparecem quase da noite para o dia. Não é assim.

Consideremos, em primeiro lugar, as vacinas em estágio de ensaio clínico mais avançado. São essas as vacinas genéticas (Moderna, Pfizer), as vacinas que utilizam vetores virais (AstraZeneca/Oxford, CanSino Biologics), e as mais tradicionais de vírus desativado (Sinovac). As vacinas de origem genética injetam no paciente o RNA viral de um antígeno do Sars-CoV-2 – antígenos são moléculas virais como as proteínas.

Esse RNA viral, ao ser injetado nas células do paciente inoculado, sintetiza o antígeno (a proteína) induzindo uma resposta imunológica. Os ensaios clínicos de Fase III em que estão algumas dessas vacinas têm por objetivo estabelecer eficácia, algo que ainda desconhecemos apesar dos estudos demonstrando boas respostas, ou um grau razoável de imunogenicidade. Um problema é que essas vacinas requerem armazenamento ultrarrefrigerado – a 80 graus Celsius negativos. Como têm ressaltado muitos especialistas, não temos no Brasil a capacidade para esse tipo de armazenamento, sobretudo em larguíssima escala, como seria o requerido para imunizar parcela relevante da população. Como o RNA é material genético de alta instabilidade, tanto o armazenamento quanto a distribuição estão sujeitos a desafios logísticos enormes, assim como a capacidade de transportar doses dessas vacinas país afora.

As vacinas que utilizam vetores virais modificados para carregar material genético do Sars-CoV-2 e induzir respostas imunológicas no paciente enfrentam obstáculos semelhantes. Elas também precisam ser ultrarrefrigeradas – algumas a 20 graus Celsius negativos – e requerem um grau de vigilância sanitária para garantir a sua qualidade que muitas partes do Brasil não possuem. Pensem nos nossos postos de saúde desassistidos financeiramente, e na falta de estratégias de saúde pública do governo desde o início da pandemia.

O que isso significa é que mesmo a vacina da AstraZeneca/Oxford, cujo ensaio de Fase III recrutou milhares de brasileiros e brasileiras, poderá não estar disponível em quantidade suficiente para frear a epidemia de modo desejável. Ou seja, é possível – pela falta de capacidade logística – que as doses disponíveis dessa vacina no País não sejam suficientes para induzir a chamada imunidade coletiva, conceito aqui corretamente aplicado já que se refere exclusivamente à existência de uma vacina. Sem contar que, em todos esses casos, sejam as vacinas de origem genética ou as que utilizam vetores virais, passaremos ainda um bom tempo sem saber ao certo qual seu grau de eficácia.

De acordo com diversos artigos científicos e opiniões de especialistas, não é realista pensar em eficácia de 100%. E, caso a eficácia fique abaixo de determinado limiar, digamos 70% ou 75% a depender da transmissibilidade natural do vírus, é possível que não alcancemos a imunidade coletiva. Nesse caso, a epidemia permaneceria entre nós, ainda que de forma mais atenuada.

Quando se compreende o que está em jogo com a vacina, difícil é acreditar nas retomadas excessivamente otimistas projetadas por alguns. Sobra ilusão, falta realismo.

*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University


Dorrit Harazim: Ontem e hoje

Coube aos russos, sempre eles, estragar o calendário da Casa Branca, ao receber aprovação da revista ‘Lancet’ à sua vacina

Mais de meio século atrás, quando a ONU batizou 1957 de Ano Internacional da Geofísica, os Estados Unidos informaram ao mundo que seriam o primeiro país a lançar um satélite da Terra. Segundo a propaganda absorvida piamente, os bolcheviques de Moscou não representavam qualquer ameaça. Além de bárbaros, ateus e ignorantes, engatinhavam em tecnologia. O governo e os próprios serviços de inteligência dos EUA acabaram acreditando na propaganda criada. “Os primitivos cossacos não conseguem fazer nada que nós não podemos”, avaliou o chefe da CIA, Allen Dulles, quando confrontado com imagens de instalações de foguetes na Sibéria, produzidas por aviões de espionagem.

Também os analistas de inteligência da União Soviética trabalhavam sob uma ótica equivocada, mas diametralmente inversa — estavam convencidos da superioridade americana. Por isso, interromperam um projeto de satélite avançado e decidiram disparar logo o que tinham à mão: uma simples esfera de metal com quatro antenas, dotada de um radiotransmissor potente e primitivo. Foi o bastante.

Quando o Sputnik 1 rompeu os céus e entrou em órbita, na manhã de 4 de outubro de 1957, a autoconfiança dos americanos ficou prostrada. “Este é um golpe devastador no prestígio científico, industrial e tecnológico dos Estados Unidos”, resumiu à época o senador Henry Jackson. A humilhação maior foi que o raio do artefato russo emitia sons captáveis por qualquer radiorreceptor que seguisse instruções divulgadas por Moscou. Pior: o traçado do satélite, acoplado a um pedaço de foguete que pesava nove toneladas, era visível por qualquer bípede da Terra que tivesse um binóculo. De uma hora para outra, os soviéticos pareciam dominar o desconhecido naquele início da corrida espacial.

Um mês depois, novo revés quando os russos lançaram ao espaço um segundo Sputnik com a primeira criatura viva a bordo — a cadela Laika. E, para encerrar aquele ano indigesto, ainda houve um nocaute autoinfligido. O governo americano planejou restaurar a confiança na tecnologia made in USA no dia 4 de dezembro e convidou o mundo para aplaudir. O lançamento de seu primeiro satélite seria feito à vista de todos, com inédita transmissão direta de Cabo Canaveral. Deu ruim. As milhões de pessoas grudadas em seus aparelhos de TV acabaram assistindo ao vivo à explosão do malfadado foguete.

Poderia ter sido um coup de grâce, mas deu-se o contrário: já no ano seguinte o Congresso americano aprovou um incentivo maciço ao ensino da Ciência, da Matemática e de Engenharia, e criou a Nasa como agência civil para a exploração espacial. Em 1969, decorridos12 anos desde a humilhação do Sputnik, os Estados Unidos fincavam bandeira e pés na superfície da Lua. As fronteiras da imaginação humana haviam sido escancaradas.

O episódio de 1957 é aqui rememorado por remeter a algo perceptível nos EUA de hoje: em plena pandemia, uma crise de confiança nas instituições de ciência e tecnologia mais veneradas no país. Ao nomear prepostos domesticados para dirigir o respeitado CDC (centro de combate e prevenção de doenças) e ordenar à agência reguladora de alimentos e medicamentos (FDA) que abraçasse terapias não comprovadas, Donald Trump desmontou o que tinha de melhor no combate ao coronavírus.

Também atropelou a confiança nacional numa vacina segura e eficaz. Governadores de vários estados e dezenas de entidades médicas do país já comunicaram que deixarão de seguir automaticamente as orientações do CDC. Na sua cavalgada anticientífica mais recente, o presidente chegou a sugerir que, dos 187 mil americanos mortos em oito meses de pandemia, apenas 6% tenham, de fato, morrido por Covid-19. As causas mortis seriam múltiplas.

Não espanta, assim, que 81 sumidades americanas, todas laureadas com um Prêmio Nobel de Medicina, Química ou Física, tenham divulgado uma carta aberta de adesão a Joe Biden nas eleições de novembro próximo. O manifesto foi publicado pouco depois de o “Washington Post” reportar que um dos principais integrantes da força-tarefa de Trump no combate ao vírus é defensor ferrenho da estratégia da “imunidade de rebanho”. Também devem ter levado em conta o proclame presidencial de que a primeira vacina contra a Covid-19 seria americana. Disse mais: ela começaria a ser distribuída no país no dia 1º de novembro — antevéspera da eleição.

Coube aos russos, sempre eles, estragar o calendário da Casa Branca. No mês passado, eles haviam registrado a toque de caixa, e sem respaldo científico conclusivo, uma primeira vacina de nome sugestivo — Sputnik V. Foi recebida com reservas e suspeição pela comunidade científica mundial. Mas esta semana ela recebeu aprovação de uma das principais revistas médicas do mundo, a britânica “The Lancet”, que considerou bom o desempenho da Sputnik V nas primeiras fases de teste.

Ao descartar a expertise e integridade de instituições científicas que há muito servem de referência ao mundo, Donald Trump arrisca igualar-se aos líderes russos a qualquer custo. Perde a ciência, perde a saúde da Terra e de suas gentes.


Hélio Schwartsman: A vacina

Esperar o fármaco parece ser o melhor roteiro, mas será que sua chegada representará o fim de nossos problemas?

Nossa esperança de controle da pandemia de Covid-19 agora recai sobre a vacina. O novo mantra é que devemos aguentar por mais alguns meses sob a versão degenerada de normalidade que conseguimos criar até que o imunizante esteja disponível e todos possamos regressar à normalidade normal.

Esse parece ser mesmo o melhor roteiro. Mas será que a chegada da vacina representará o fim de nossos problemas? Infelizmente, não é tão simples. E nem estou falando da dificuldade logística de produzir bilhões de doses de um imunizante, distribuí-las e aplicá-las em populações que talvez resistam à ideia.

Muito do efeito que a vacinação terá sobre a pandemia depende das características do produto. O fator mais sensível é a eficácia. Não será nenhuma surpresa se uma vacina desenvolvida às pressas não se revelar muito boa. Suponhamos que ela tenha uma eficácia de 40%.

Já seria uma inestimável ajuda na contenção da epidemia, mas não é o bastante para que cada indivíduo vacinado se sinta seguro para retomar plenamente as atividades. A crise poderia não acabar tão cedo para setores como os de restaurantes, entretenimento e turismo.

Às vezes, o fármaco é melhor para prevenir formas agravadas da doença do que o contágio propriamente dito. Seria ótimo para reduzir a mortandade da Covid-19, mas não nos livraria de lidar com surtos da doença. A proteção de uma vacina também pode variar conforme o grupo a que é aplicada. Há imunizantes que não funcionam tão bem para idosos, outros que falham mais com obesos etc.

O lado bom da história é que nunca antes cientistas, empresas e governos se esforçaram tanto para desenvolver uma vacina. Há seis delas na fase 3 de testes e várias outras a caminho. Não é inverossímil que, no próximo ano, tenhamos uma dezena de produtos utilizáveis, o que ampliaria bastante a chance de oferecer alguma proteção a indivíduos com todos os perfis de risco.


Fernando Exman: Politizar vacina é negativo para o país

Brasil se posiciona na corrida global contra a covid-19

O governo definiu seu lado na corrida global pela vacina contra a covid-19. Fez uma análise técnica e optou por associar-se ao projeto desenvolvido pela Universidade de Oxford, que foi licenciado para a farmacêutica britânica AstraZeneca e terá a Fiocruz como parceira.

A notícia é capaz de produzir um relativo alívio psicológico à população, em meio à certeza de que nos próximos dias será alcançada a assombrosa marca de 100 mil vítimas do coronavírus no país. Por outro lado, poderá conturbar novamente as relações político-federativas, se essa agenda não for conduzida com moderação.

O presidente Jair Bolsonaro deve evitar a tentação de politizar o assunto. A vacina é esperada por milhões de famílias, por empresas e investidores que aguardam as condições necessárias para a retomada das atividades. Apenas a massificação de uma ou mais vacinas garantirá previsibilidade aos agentes econômicos.

Só ela permitirá o retorno completo de trabalhadores e consumidores às ruas em segurança, sem o risco de sistemas de saúde entrarem em colapso. Por isso está em curso uma corrida mundial protagonizada tanto por empresas quanto por governos. A imprensa americana aponta risco político semelhante por lá.

Segundo o jornal “The New York Times”, cientistas de dentro e de fora das agências oficiais temem que o presidente Donald Trump aumente a pressão para que autoridades sanitárias aprovem uma vacina contra a moléstia no máximo até outubro. Um mês antes do pleito nacional, quando o presidente buscará a reeleição.

Nos EUA, a vacina pode servir de trunfo político para um presidente que relativizou os riscos representados pelo novo coronavírus e, agora com dificuldades na disputa, parece tentar se reposicionar no debate e melhorar sua imagem entre os eleitores. Aqui, a controvérsia apresenta nuances. Tem como pano de fundo a rivalidade entre Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria.

O presidente também menosprezou o vírus. A área técnica, contudo, tinha uma estratégia traçada desde o início do ano e logo definiu que não entraria para valer na corrida pelo desenvolvimento de uma vacina própria.

O plano desenhado ainda na gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta foi preparar o parque tecnológico brasileiro para produzir em massa alguma das vacinas a serem desenvolvidas no exterior, assim que ela estivesse pronta e testada.

Essa visão tem como fundamento a certeza de que, embora legítimos, os esforços para a produção de uma vacina “made in Brazil” poderiam deixar o país para trás no combate à pandemia e desperdiçar recursos públicos durante uma grave crise econômica.

Os números mostram que essa opção estratégica foi racional. Hoje há, segundo o Ministério da Saúde, 231 vacinas contra covid-19 sendo desenvolvidas no mundo. Dessas, 33 já estão em fase clínica - etapa em que a testagem começa em seres humanos e são feitas análises de segurança e em grandes grupos de amostragem.

É um momento essencial para que os pesquisadores obtenham as informações mais concretas sobre a segurança de se massificar essas vacinas. Os Estados Unidos têm 58 vacinas em desenvolvimento. Dessas, 6 em fase clínica de testagem. A China possui um total de 32 projetos desenvolvidos, sendo 11 em fase clínica.

O Canadá conta com 16, mas apenas 1 em fase adiantada. O Reino Unido dispõe de 2 vacinas em fase clínica de teste de um total de 9, enquanto a Rússia tem 1 uma em estágio mais avançado e outras 7 em fase pré-clínica.

O Brasil tem 6 vacinas em desenvolvimento, mas nenhuma dessas em fase clínica de pesquisa. Autoridades do governo gostam de dizer que a vacina Oxford/AstraZeneca está na fase mais adiantada de testes com seres humanos.

Citam, inclusive, o reconhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto a esse estágio. E aqui cabe um registro: valem-se justamente do respaldo de um organismo internacional tão criticado por integrantes do próprio Executivo, principalmente pela ala ideológica e antiglobalista da administração federal.

Pode ser um sinal positivo de despolitização do tema. O governo também considerou a garantia de acessar a vacina de forma segura, eficaz e rápida, além da possibilidade de fortalecer o complexo industrial e a transferência de tecnologia.

A medida provisória que tratará do assunto irá prever recursos para pagar a AstraZeneca e, também, investir no Instituto Tecnológico em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos). Outro ponto positivo, ainda de acordo com integrantes do Executivo, é o Brasil poder participar da atual etapa de pesquisa clínica. Isso permitirá que se verifique como o produto interage com o clima local e reage na população brasileira, a qual tem as suas especificidades e características genéticas.

Mesmo assim, na semana passada Bolsonaro ironizou, nas redes sociais, a parceria conduzida pelo governo de São Paulo com a China para a produção de uma outra vacina. O Instituto Butantan, de São Paulo, também mantém conversas com a Rússia no mesmo sentido e com a declaração o presidente acabou por alimentar os questionamentos que já vinham sendo feitos por seus apoiadores na internet. “Se fala muito da vacina da covid-19. Nós entramos naquele consórcio lá de Oxford.

Pelo que tudo indica, vai dar certo e 100 milhões de unidades chegarão para nós. Não é daquele outro país não, está OK, pessoal? É de Oxford”, afirmou o presidente. Os apoiadores foram além, escrevendo nas redes que paulistas serviriam de cobaia para uma vacina chinesa.

A politização dessas tratativas destoa do status das relações que o Ministério da Saúde conseguiu construir nos últimos meses com Estados e municípios. A pasta tem garantido que insumos e equipamentos cheguem para todas as administrações locais de acordo com suas necessidades, mesmo que governadas por adversários de Bolsonaro.

É esse o relato elogioso que secretários estaduais, municipais e também parlamentares estão fazendo chegar ao Planalto - um apoio que dá tranquilidade ao presidente na sua decisão de manter o general Eduardo Pazuello como ministro interino da Saúde.


Pablo Ortellado: Politização da vacina pode comprometer imunização

Pesquisas têm mostrado correlação entre posicionamento político e disposição a tomar vacina contra Covid

Se tudo der certo, entre dezembro e janeiro, o Brasil poderá começar a imunizar a população, seja com a vacina de Oxford e da AstraZeneca, em parceria com a Fiocruz, seja com a vacina da Sinovac, em parceria com o Instituto Butantã.

Para que as vacinas nos tirem da crise, porém, não será necessário apenas que elas se mostrem eficazes na terceira fase dos testes clínicos, será necessário também que uma população politicamente polarizada se disponha a ser vacinada.

Depois de meses de uma extenuante política de distanciamento social, seria de se esperar uma população ansiosa para se vacinar e retomar a normalidade. Mas não é isso o que mostram estudos em diferentes países.

Uma pesquisa coordenada pela Universidade de Hamburgo mostrou que a disposição a se vacinar contra a Covid na Alemanha caiu de 70% em abril para 61% em junho (com um preocupante índice de 52% na região da Bavária). Nos Estados Unidos, pesquisa do YouGov realizada em julho mostrou que 25% dos americanos não tomariam a vacina e 28% não tinham certeza se tomariam.

Um elemento particularmente preocupante das pesquisas é como a disposição a se vacinar contra a Covid correlaciona com posições políticas. Na pesquisa do YouGov, eleitores democratas são mais propensos a se vacinar (61%) do que republicanos (45%). O índice baixa para 34% entre os que pretendem votar em Donald Trump.

A contaminação política funciona também no sentido oposto: pesquisa da Reuters/ Ipsos de maio mostrou que 36% dos americanos tenderiam a não se vacinar se a vacina fosse recomendada pelo presidente Trump.

Não temos ainda pesquisas no Brasil medindo a disposição a se vacinar contra a Covid e correlacionando essa disposição com posicionamento político e crença em boatos —mas está na hora de investigar o problema, já que há risco concreto de uma baixa adesão à vacina comprometer uma saída segura da quarentena.

Nas mídias sociais e no WhatsApp, há algumas semanas circula desinformação sobre as vacinas para a Covid com forte teor político. Boa parte desses boatos e rumores mentirosos se apoia na postura antichinesa que o bolsonarismo tem adotado.

Se a vacina desenvolvida pela Sinovac vingar, poderemos ver uma intensificação das campanhas de desinformação promovidas pelo bolsonarismo que antagoniza tanto com a China, como com o governador João Doria, responsável pelo Instituto Butantã.

Em termos muito concretos: pode ser que não cheguemos à imunidade de rebanho com uma campanha de vacinação que tenha vacina com eficácia de 75% e adesão de apenas 60% da população.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.