vacina

Marta Suplicy: Pulsão de morte

Como seria bom ter um líder que lutasse pela vida

Tenho pensado sobre o que ocorre no Brasil desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência. O país vive em constante turbulência, incentivada por falas e atitudes do presidente. Não se tem paz nem harmonia.

Existe uma necessidade, intrínseca à sua personalidade, de caminhar sempre para o afrontamento, a violência, o desrespeito, a destruição e, finalmente, a morte. Seja de parceiros, mulheres, quilombolas, indígenas, ministros, Poderes institucionais. São exceções sua família e um ou outro apaniguado, enquanto não desgostar ou ameaçar a popularidade presidencial. Estes são desautorizados, fritados e demitidos. Não aparece sofrimento. Ao contrário, a vitória sobre a morte acalma. Assim como sua obsessão com sexo e suas insinuações com ministros namoram a vida, enquanto lutam com o precipício da morte. Não é intencional, é uma força psíquica e inconsciente. Por isso, difícil de entender.

A maioria das ações de Bolsonaro não aponta em direção à vida ou à agregação. Coitados de nós, governados por uma pessoa tão comprometida emocionalmente. São atitudes na direção da destruição do meio ambiente, da extinção de animais já em risco, de indígenas que não conseguem sobreviver à queimada e à poluição de seus rios. Enfrentando e ameaçando os outros dois Poderes, o presidente cria insegurança no Judiciário e no Legislativo e posterga votações fundamentais ao desenvolvimento do país.

Fazendo apologia e aumentando a liberação da posse de armas, o que já resultou no aumento de assassinatos e feminicídios, contribui fortemente para o perfil de um país cada vez mais violento. Não está nem aí. Sente-se até mais seguro. Dentre todas essas ações desvairadas, as mais sérias —pois são as de maiores ​consequências— são contra o isolamento social e o deboche do uso de máscaras. Não creio que registre a responsabilidade do que significa a autoridade máxima apoiar e ter posturas contrárias à proteção das pessoas.

Sua pulsão de morte aplaude. Há semanas faz campanha contra a vacinação, o que já teve impacto no número de crianças que deixaram de serem vacinadas. Agora faz disputa política contra a vacina de origem chinesa, fabricada no Butantan.

A atitude de questionar a qualidade ou a necessidade de vacinação contra este terrível vírus coroa a política genocida do presidente. Será diretamente responsabilizado, assim como o foi na postura contra o uso da máscara, pela morte de milhares de desavisados ou seguidores que serão levados pela sua fala a evitarem a vacinação.

Como seria bom ter alguém agregador, que buscasse e lutasse pela vida: sua e dos outros.

A Frente Ampla, movimento suprapartidário que acredita na democracia e que podemos ser agregadores, tem a consciência de que o Brasil precisa reagir e mudar de rumos.

Impõem-se a união para a construção de consensos, superação de divergências e foco no que mais interessa: a defesa intransigente da democracia, a articulação de uma nova perspectiva e de um projeto para uma sociedade com menos desigualdade social.

É possível. Votemos pela vida.


Marcus Pestana: O nevoeiro e o vácuo de liderança

Tancredo Neves assinalou certa vez, com a experiência de quem viveu muitos momentos tensos e decisivos: “A esperança é o único patrimônio dos deserdados, e é a ela que recorrem as nações, ao ressurgirem dos desastres históricos”. O mundo inteiro ainda assiste apreensivo e perplexo o furacão que devastou 2020, a partir da explosão pandêmica da COVID-19. Para despertar esperança, estadistas e líderes políticos precisam de firmeza, clareza, capacidade de previsão e compartilhamento convincente sobre os rumos a serem seguidos. Mas a sociedade não se alimenta só de retórica e promessas, quer ações e resultados.

Confesso que está difícil, no Brasil de nossos dias, ser um “realista esperançoso” como queria Ariano Suassuna. A cruzada contra a “vacina chinesa”, o fato de o próprio governo desestimular a população a se imunizar e a permanente exaltação de “medicamentos milagrosos” contra a COVID-19 não formam propriamente um quadro otimista. Tantos desafios e a energia sendo desperdiçada em polêmicas inúteis. Como diria Nelson Rodrigues é óbvio ululante que só serão oferecidas à população vacinas registradas na ANVISA, portanto seguras e eficazes. Assim como é uma sonora idiotice achar que há um plano diabólico do Partido Comunista Chinês por trás de sua vacina.

Se o horizonte no front da saúde pública é turvado pelo nevoeiro, na economia o cenário também é confuso e preocupante. O ufanismo governamental pode até tentar pintar de cor de rosa a realidade, mas o Brasil fechará o ano com uma dívida pública equivalente a 100% do PIB, um déficit primário de cerca de 860 bilhões, títulos do Tesouro Nacional sendo negociados com prazos cada vez mais curtos e juros cada vez mais altos, dólar batendo recordes de valorização e o mercado financeiro e de capitais nervoso e desconfiado.

Não é para menos. Amanhã entraremos em novembro e faltarão apenas oito semanas de trabalho parlamentar. A LDO ainda não foi votada. A Comissão Mista de Orçamento sequer foi instalada. O Orçamento Geral da União, que é a bússola necessária para sinalizar como lidaremos com a enorme restrição fiscal em 2021 e afastar especulações sobre experimentos heterodoxos e extravagantes, poderá não ser votado. As propostas de emendas constitucionais do pacto federativo, emergencial e dos fundos públicos e suas variantes, que poderiam flexibilizar a execução orçamentária, descansam empoeiradas nas gavetas. A dois meses do final do ano, os 64 milhões de brasileiros beneficiados pelo auxílio emergencial durante a pandemia não têm ideia do que ocorrerá em janeiro. E os 17 setores desonerados? Qual a previsão para o início do próximo ano? Nenhuma.

As reformas tributária e administrativa empacaram diante da falta de apetite reformador do governo. As privatizações naufragaram no vácuo de liderança e de apoio parlamentar. Medidas desburocratizantes e a abertura externa caminham a passo de tartaruga. O Congresso, que tanto tem a deliberar ainda em 2020, está bloqueado em suas votações por obstrução parlamentar, instrumento clássico das oposições. Mas aqui não, é a própria base do Governo liderada pelo “Centrão” que obstruí os trabalhos.

Para Ariano Suassuna, o otimista é um tolo e o pessimista um chato. Mas está difícil ser “um realista esperançoso” diante dos fatos que marcam o final de ano de um Brasil mergulhado na pandemia.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


Fernando Gabeira: Novas batalhas de Itararé

No Brasil, como nos EUA, pandemia e obscurantismo político andam de mãos dadas

O mundo ainda vive o impacto da pandemia. A segunda onda atinge a Europa, alguns países, como a Bélgica, estão com os hospitais sobrecarregados. Recordes planetários em número de casos foram batidos várias vezes em outubro. Só os Estados Unidos registraram 80 mil casos diários.

Com oito Estados tendendo para um aumento, o Brasil deveria estar preocupado. Deveríamos estar vacinados contra as bobagens de Bolsonaro e esse estéril duelo com Doria. No entanto, entramos numa estúpida guerra da vacina, como se estivéssemos ainda em 1904 nos bairros insalubres do Rio de Janeiro.

Bolsonaro recusa-se a comprar vacinas de origem chinesa e desautoriza seu general na Saúde. Ele ignora que neste mundo ninguém se importa tanto com a origem de uma vacina, mas apenas com sua segurança e eficácia. É um ébrio ideológico que não pode saber que os chineses inventaram a pólvora, senão vai interditar todos os paióis do País.

O programa brasileiro de imunização deve se basear apenas nos critérios técnicos e a exclusão de uma vacina aprovada pela Anvisa pode ser anulada pelo Supremo.

Bolsonaro prefere a hidroxicloroquina. Disse que talvez fosse melhor investir na cura do que na vacina contra o vírus. Ainda bem que é apenas uma opinião pessoal. O Brasil já investiu mais em vacina do que em hidroxicloroquina porque essa é a lógica científica. O que não significa que não devamos, como se faz lá fora, pesquisar antivirais eficazes.

No outro canto do ringue está o governador João Doria. Todos os políticos realmente vocacionados proporiam, antes de tudo, que a vacina fosse gratuita. Há um grande interesse em se vacinar, mas nem todos poderão comprar sua dose. Doria preferiu afirmar que a vacina seria obrigatória e isso acabou desfechando um debate que acabará no Supremo Tribunal, como a batalha final do ciclo Itararé.

Ainda não temos a vacina. Não sabemos qual será o seu nível de eficácia, algo que talvez seja possível conhecer no início do ano que vem. Não sabemos ainda em quanto tempo haverá vacina disponível para todo mundo. Talvez leve um ano. Qual o sentido de tornar obrigatório algo inalcançável num determinado espaço de tempo?

As vacinas podem ser apenas 50% eficazes. Já existem mais de 5 milhões de brasileiros com anticorpos, porque foram contaminados. E há doenças, como a do uruguaio José Mujica, que são incompatíveis com a vacina.

O Supremo será levado a determinar algo que talvez seja desnecessário. Há mais gente querendo a vacina do que vacina disponível. Se 80% da população se vacinar, tem sentido impor restrições aos restantes 20%? Não teríamos atingido, por esse caminho, a imunização de rebanho?

Se abstrairmos o episódio da Revolta da Vacina, no início do século 20, o tema parece absurdo. Acontece que Bolsonaro sabe que alguns bolsões da internet se encantam com os movimentos antivacina modernos. Uma teoria conspiratória as associa ao poder dos chineses, ou à forma como Bill Gates vai se apoderar do mundo.

São grupos minoritários e vivem, como Bolsonaro, numa espécie de bolha da teoria conspirativa que lhes dá a sensação de serem especiais, de entenderem o significado secreto de acontecimentos de que as pessoas comuns só captam a superfície.

É uma escolha política, como foi a de Trump de não denunciar o supremacismo branco quando chamado a opinar sobre isso. Ou de fingir que não conhece o grupo QAnon, que divulga a existência de uma associação de políticos pedófilos que se reúnem em porões de pizzaria.

Com a existência de pessoas isoladas em seus grupos de internet é possível alimentar a insanidade, até mesmo com a ajuda das grandes plataformas sociais. Os terraplanistas, por exemplo, encontram farto material para sustentar sua tese.

O fato de Trump e Bolsonaro terem triunfado nas eleições explorando ressentimentos, ou mesmo a ingenuidade das pessoas, é um dado real da conjuntura das duas Américas. No entanto, a maneira errática como governam, por meio de mensagens vulgares e sensacionalistas, vai mostrar que a vitória de ambos foi um acidente histórico, uma alerta.

Isto não significa que depois dessa vulgaridade virá o melhor dos mundos. Haverá tempo para corrigir alguns erros e avançar modestamente.

É possível que o resultado das eleições americanas seja a vitória de Joe Biden. Estaremos apenas acordando de um pesadelo, mas dentro das condições dramáticas que o tornaram possível.

De certa forma, Camus previu isso no romance sobre a peste, que pode ser vista como o ataque do vírus ou o assalto do obscurantismo autoritário. Essa ameaça nunca desaparece, ela está em toda parte, à espreita, pronta para reaparecer.

Com Trump e Bolsonaro tivemos uma combinação nefasta. No caso de Bolsonaro, não bastou o elogio da hidroxicloquina. Era preciso lançar dúvidas sobre a vacina, enfraquecer a busca nacional por esse recurso.

Em A Peste, o vírus é apenas uma alusão a regimes opressivos. No Brasil e nos Estados Unidos vivemos uma redundância: pandemia e obscurantismo político andam de mãos dadas.

*Jornalista


Vera Magalhães: Por W.O.

Alerta de Maia sobre prerrogativa de decidir a respeito de vacina pode ser tardio

Rodrigo Maia tem razão, em tese, quando diz que deveriam ser o Executivo e o Legislativo a definir uma política de vacinação contra o SARS-Cov-2, o maldito do novo coronavírus, em vez de passarem de novo pelo carão de ter o Judiciário fazendo seu trabalho. Digo em tese porque, de novo, pode ser tarde demais.

O chamado ativismo judicial é uma dessas pragas da política brasileira, um traço cultural que vai se agravando e tomando todas as áreas da vida nacional, da saúde à educação, dos tributos aos direitos trabalhistas, passando pelo meio ambiente, pelos costumes, por tudo.

Decorre do fato de que, graças ao cipoal de leis, muitas delas confusas e conflitantes com outras, e da velocidade com que a própria Constituição, jovem para os padrões de textos dessa natureza, vai sendo (r)emendada, o cidadão se sente quase obrigado a bater às portas dos tribunais para esclarecer controvérsias, demandar direitos ou tentar postergar obrigações.

E, na ausência dos seus vizinhos de Praça dos Três Poderes, muitas vezes os integrantes do Judiciário acabam avançando o sinal na hora de decidir, legislando em cima das leis ou das lacunas das mesmas.

A questão da vacina é paradigmática dessa barafunda. Não são poucos os dispositivos legais que disciplinam a questão da vacinação. Desde 1975 uma lei já confere ao poder público o poder de vacinar compulsoriamente a população como medida de saúde pública. A lei 6.259/75 leva a assinatura de Ernesto Geisel, um dos ídolos de Jair Bolsonaro, e estabelece que “cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório”. O texto foi alterado em 2018 para estabelecer punições diferentes para quem descumprir esse caráter obrigatório. A lei estabelece, ainda, a coordenação com Estados e municípios para fiscalizar o cumprimento dessa obrigação de vacinar.

Neste ano, já no curso da pandemia, o próprio Bolsonaro assinou a Lei 13.979, que estabelece as diretrizes para enfrentamento da emergência sanitária. Diz lá que o poder público pode adotar medidas de caráter compulsório para enfrentar a pandemia, entre elas a vacinação (artigo 3.º). Diante do negacionismo, inclusive legal, praticado diariamente pelo presidente, sob o beneplácito preguiçoso e conivente do Congresso comandado por Maia e Davi Alcolumbre, era inevitável a judicialização, até porque há uma série de medidas antecedentes à aprovação de alguma das vacinas em teste que precisam ser adotadas com urgência, e também elas estão sendo sabotadas por Bolsonaro.

Maia oscila entre a postura de quem entende que o governo caminha por becos tortuosos em sua relação com as instituições e atrasa a tomada de decisões inadiáveis e a de quem busca um espaço para se aproximar do Planalto. As duas coisas são difíceis de conciliar. Ainda mais com uma sucessão da própria cadeira em curso. Cabe a ele, portanto, ser mais proativo na tomada de decisões, se não quiser receber um prato feito do STF.

Esperar por Bolsonaro nesta questão, está evidente, significa submeter o Congresso e todo o País a uma exasperante rotina de ouvir sandices como a de que teria sido melhor investir na cura que na vacina. Como se fosse só o presidente do Brasil e gênio a desejar a cura para um vírus que paralisou a vida do planeta, e isso fosse algo fácil como mostrar cloroquina para a ema. No jogo de ver quem pisca primeiro entre Maia e Alcolumbre e Bolsonaro e suas várias alas trapalhonas de ministros, o melhor para o Brasil é que Luiz Fux reúna de uma vez o plenário do STF e diga a eles o que devem fazer para não aprofundar ainda mais o buraco que já vitimou quase 160 mil brasileiros.


Carlos Andreazza: Vacina - O Queiroz do futuro

É um debate falso, fora de lugar e tempo

Não existe vacina. Nunca foi tão necessário afirmar obviedades. Não há, infelizmente. Mas já se discute — até com o entusiasmo do presidente de nossa corte constitucional — sobre se a vacinação será obrigatória. Um debate falso, fora de lugar e tempo, que só mesmo a mentalidade autoritária poderia forjar.

Advirta-se — nova notícia do óbvio — que ninguém entrará na sua casa para lhe meter agulha ao braço. Tampouco seus filhos e netos serão levados pela orelha, sob a vara de um agente policial, ao posto de saúde — lá onde os esperaria a seringa compulsória. Não estamos no começo do século XX, embora esse discurso de que “ninguém me obrigará” seja estímulo a uma revolta da vacina a ter lugar não nas ruas, mas no zap-profundo. Funciona. Para um líder sectário que cultiva nicho: funciona.

Diga-se que essa pregação reacionária bolsonarista — contra ameaça inexistente — só tem campo para se exibir porque houve bravateiro, da cepa dos que confundem liderança e coação, que falasse em vacinação obrigatória como produto da autoridade coerciva do Estado. Para quê, João Doria?

A combinação das leis brasileiras — uma das quais sancionada por Jair Bolsonaro —impõe a vacinação. Ponto final. Não precisa de força. Basta que as obrigações do Estado, conforme previsto na legislação, sejam cumpridas para que a sociedade corra à vacina sem qualquer necessidade de coerção. As pessoas querem se vacinar.

O conjunto de obrigações do Estado: adquirir doses de produto certificado em quantidade capaz de cobrir o território brasileiro, distribuí-las universalmente e comunicar a disponibilidade da vacina e a importância de se imunizar. Pronto. As pessoas irão se vacinar. Temos uma cultura vacinal sólida. Seria só chamá-la.

Mas não. O concurso de autoritarismos fundou um debate que judicializará a questão; como já, com muito gosto, antecipou Luiz Fux, outro virtuoso, quase que implorando por ações a respeito. Ele quer decidir. Ele cuida de nós, como Doria. E o presidente agradecerá, mais uma vez ganhando de presente um palanque sobre o qual exercitar seu liberalismo reacionário de resignação.

Já posso mesmo enxergar-lhe a mensagem alguns meses adiante, lavando as mãos, depois de seu governo haver comprado milhões de doses da CoronaVac. Dirá: “Ninguém deveria ser obrigado a se vacinar, mas, novamente, fiquei de mãos atadas”. Vimos variação desse texto de vitimização — que distorce decisão do Supremo — ser bem-sucedida, para a popularidade de Bolsonaro, quando a Corte garantiu a autonomia de estados e municípios para baixar decretos sobre como enfrentar a pandemia.

Voltemos ao presente, porém. Não existe vacina. Mesmo assim, já há vacina — comunista! —vetada. Este é o presente, interditado por intensa trama de teorias da conspiração — desde onde se projeta um futuro que, mesmo ainda apenas incerto, veste-se para a guerra. O inimigo será obra de fantasia. Bolsonaro saberá vencer. Ou melhor: saberá comunicar a vitória. Que não houvesse oponente é sempre detalhe.

Quem falou em ministrar vacina à população sem comprovação científica e à revelia do aval da Anvisa? Ninguém. A exigência de que se cumpram todas as etapas de certificação é raro consenso. Mas Bolsonaro novamente planta o falso problema, o algoz imaginário. Prospera assim.

A falsa responsabilidade, amparada em mentira: afirma que não gastará dinheiros em vacina ainda não segura, como se o entendimento com o Butantan, mera carta de intenções, previsse dispêndios anteriores à aprovação pela autoridade brasileira; e como se não tivesse sido o governo dele — sob ordem direta dele —a jogar, aí sim, milhões fora para adquirir um medicamento, a hidroxicloroquina, inútil para o tratamento do vírus.

Não existe vacina. Mas há esperança. Há também o medo. Quando tivermos uma testada em todas as etapas, e avalizada pela Anvisa, e se essa primeira disponível for a chinesa, o fato se apresentará a Bolsonaro. E então veremos como agirá. Ele sabe ser objetivo. É intuitivo. Fareja quando a própria carne se acerca do espeto, circunstância em que o futuro de luta pela liberdade e contra o sistema se materializa em presente à mesa com Toffoli etc. O tal do medo.

Não comprar a vacina significaria botar em risco a saúde da população. Será crime. Tipificado. Significa também arriscar a própria popularidade. E falamos de alguém que é mestre em equilibrar vários pratos concomitantemente, tanto quanto em derrubar discurso em nome do pragmatismo de ocasião.

Não me surpreenderei se, enquanto mantém no alto a pipa anti-China, Bolsonaro já tiver autorizado uma costura por baixo que resulte, mais adiante, em o governo registrar mesmo o compromisso de compra da vacina ora amaldiçoada —que logo será brasileira. A realidade se impõe. A vacina chinesa pode ser um novo Queiroz diante de si, a hora de baixar a pressão da valentia e compor com o Centrão.

Não me surpreenderei se Bolsonaro vacinar Doria. Ninguém será obrigado. O presidente sabe que a vacina aplicada por Alexandre de Moraes machuca.


Fernando Gabeira: Vai-se a segunda pomba

Existe uma vacina contra a raiva, mas não existe uma vacina combinada contra raiva e estupidez

Vai-se a primeira pomba despertada…/Vai-se outra mais…/ Mais outra…/ Enfim dezenas…

Quando menino, costumava declamar esse soneto de Raimundo Correia na escola. Éramos endiabrados e fazíamos piadas de duplo sentido quando a ingênua professora dizia para as meninas que liam os versos: mostrem a pomba.

Essa lembrança me veio à cabeça com a publicação do Anuário de Segurança Pública, revelando o fracasso da política de Bolsonaro para conter a violência no país. Vai-se a segunda pomba, pensei.

A primeira já se foi há algum tempo. Era a luta contra a corrupção. Bolsonaro demitiu Moro, Queiroz foi preso, surgiram inúmeros dados sobre rachadinhas e funcionários fantasmas na família do presidente. Rolou muito dinheiro vivo, compra de lojas, apartamentos , os Bolsonaros não confiam em banco. O dinheiro tanto rolou que terminou aparecendo na cueca do senador amigo, Chico Rodrigues.

Pobre lobo-guará. As notas com sua estampa estrearam nas nádegas de Chico. Conheço uma família de lobo-guará que come todas as noites no pátio do Colégio do Caraça. Os padres que alimentam os lobos precisam rezar por nós.

Apesar da pandemia, o número de mortes aumentou em 7% em 2020. Havia caído em 2019. Era resultado do governo Temer, que criou o Ministério da Segurança, o sistema integrado e fez a intervenção militar no Rio. Bolsonaro e Moro celebraram, faz parte do jogo. Mas o mérito estava lá atrás.

Um país que tem um estupro a cada oito minutos, com uma cidade como o Rio, que perdeu mais de 50% do território para as milícias, homenageadas no passado pelos Bolsonaros, é, no mínimo, inseguro, para não dizer falido.

Bolsonaro apenas aumentou o número de armas. Seu objetivo único é ganhar votos com policiais. Seu projeto: uma licença para matar que leva o pomposo nome de “excludente de ilicitude”.

No momento em que era preciso um olhar atento de um especialista em segurança, Bolsonaro não conseguiu ver as limitações do artigo que libertou André do Rap. Simplesmente, sancionou.

Não é apenas a segunda pomba que vai. Vai-se outra, mais outra. Ao ser acusado de estupro na Itália, o jogador Robinho disse que era como Bolsonaro, perseguido pelo demônio . Ele acha que basta citar Bolsonaro e um trecho de Bíblia para justificar crimes cruéis. Em breve, essa máscara de profunda religiosidade vai cair para mostrar a verdadeira face do oportunismo político. Eduardo Cunha era supercristão, elegia-se usando rádios religiosas. A deputada Flordelis, acusada de matar o marido, é pastora, e o pastor Everaldo, que batizou Bolsonaro, está na cadeia.

Numa dimensão mais profana, em breve voará a pomba dos devotos da Santa Margaret Thatcher. Ela sempre aparecia com a bolsa no pulso, sem mexer um músculo do braço. Seus discípulos tropicais rodam a bolsinha incessantemente em busca de recursos para garantir a reeleição de Bolsonaro.

Muitos eleitores não veem quais sonhos de campanha não voltam, como voltam as pombas ao entardecer. Ficam bravos, lembram que fui um perigoso terrorista ou que usava uma tanga de crochê, não importa. É importante, no entanto, continuar mostrando o voo das pombas e de suas ilusões.

Mesmo com parte do país em chamas, com o crescimento da fome, o aumento da violência e do jugo das milícias, é preciso argumentar com eles. Alguns seguirão fiéis ao líder, mas, no fim do caminho, o Brasil pode reencontrar sua chance de ser grande país.

Existe uma vacina contra a raiva, mas não existe uma vacina combinada contra raiva e estupidez. Bolsonaro não consegue ver um vírus tal como é, mas sempre como um vírus que tem partido: é chinês ou vota em Doria.

Ao cancelar a compra de vacinas formuladas na China, mas produzidas pelo Butantan, Bolsonaro não apenas desautorizou um general que deixou tudo para ajudá-lo, adotando uma política que ameaça inclusive a presunção de sensatez das Forças Armadas.

Da negação do coronavírus à apologia da cloroquina, Bolsonaro percorreu todas as etapas de uma política insana.

Foram-se todas as pombas, e só os bolsonaristas não viram.


Vinicius Torres Freire: Na guerra da vacina e do general Maria Fofoca, bomba econômica está armada

O custo da comida ainda não incomoda porque ainda se pagam auxílios, mas se a carestia continuar e o povo perder esse dinheirinho, haverá problemas

A diversão está garantida nessas próximas semanas em que o pavio da bomba econômica continuará queimando, sem que o país em geral se importe muito. A diversão maior, no sentido de desvio de atenção, virá da guerra da vacina que ainda nem existe, das decisões que o Supremo deve tomar sobre a obrigação de tomá-la e da aprovação da "vacina chinesa paulista" pela Anvisa e pelo governo.

Enquanto isso, o centrão e alas do governo se ocupam de disputar cadeiras ministeriais. Jair Bolsonaro trata de sua preocupação maior, livrar filhos da cadeia. Parlamentares articulam a eleição dos novos comandos do Congresso.

Até fins de novembro, as eleições nos EUA e nas cidades brasileiras vão dizer qual o valor de mercado eleitoral de extremistas e lunáticos em geral.

Eventual derrota de Donald Trump e de candidatos bolsonaristas nas cidades maiores pode aumentar o passivo político de Bolsonaro, embora esse débito talvez não seja cobrado tão cedo.

O risco maior para o presidente é a política econômica, ora em estado de animação suspensa.

Parte do centrão e gente do governo disputam a cadeira do general Luiz Ramos, ministro da Secretaria de Governo. Com o general Braga Netto, ministro da Casa Civil, Ramos levou Bolsonaro a criar uma coalizão bastante pelo menos para evitar um impeachment.

Foi chamado na sexta-feira de Maria Fofoca pelo ministro do Mau Ambiente, Ricardo Salles, desafeto dos militares.

Não importa muito a rixa que detonou o mexerico vulgaríssimo, portanto condizente com este governo. Interessa que isso explicitou movimentos para decapitar Ramos. Outra disputa de boquinha-mor é a do Ministério do Desenvolvimento, que Bolsonaro estuda recriar. Enquanto o país morre, queima e se endivida, é disso que tratam no Planalto.

A revista Época revelou que Bolsonaro recorre à Polícia Federal, a seus espiões e a outros recursos do governo para cuidar de rolo de filho. É disso, talvez um crime de responsabilidade, que trata o presidente.

Não se liga muito para os sinais de infecção na economia. Desde fins de agosto, as taxas de juros subiram degraus e lá no alto ficaram. O dólar não baixa da casa perigosa dos R$ 5,60, dado o rebu incompetente de um governo endividado.

A combinação de desvalorização da moeda e de auxílio emergencial levou os preços dos alimentos às maiores altas em mais de década (como em 2008, 2013 e 2016).

O custo da comida ainda não incomoda de modo generalizado, como de costume, porque ainda se pagam auxílios. Se a carestia continuar e o povo perder esse dinheirinho, haverá problemas.

Juros de longo prazo e dólar foram às alturas em grande parte porque o país não tem Orçamento para 2021, porque pode ser que tenha até dois (um outro "emergencial") e porque os donos do dinheiro temem furos no teto de gastos. Bolsonaro e a elite política empurraram a discussão dessa crise para depois de novembro.

As soluções para o impasse orçamentário não são politicamente boas. Bolsonaro pode decidir estourar o orçamento, o que vai dar em besteira feia. Pode ignorar o auxílio aos pobres, o que vai dar em fome feia. Pode arrochar outrem a fim de financiar alguma renda básica. Terá de enfrentar reformas, como a politicamente divisiva mudança tributária, sem o que o país vai ficar mais encalacrado (não se trata de dizer que vai ficar melhor ou pior para esta ou aquela gente, mas ficará encalacrado).

Mesmo que não se tomem as piores decisões, a retomada da economia ainda será incerta. Mas a gente se diverte com outros horrores.


Elio Gaspari: Um surto de mediocridade

Bolsonaro sabia que o Ministério da Saúde havia oficializado a sua intenção de comprar 46 milhões de doses da CoronaVac

Sabe-se que Jair Bolsonaro dorme mal. No ano passado, ele revelou que penava 89 episódios de apneia por hora: “Detenho o recorde brasileiro.” Sabe-se também que instalou uma escrivaninha no espaçoso guarda-roupas do Alvorada e passa o tempo ligado nas redes sociais de sua estima.

Às 5h45m da madrugada de quarta-feira, o presidente continuava diante de seu computador quando respondeu a uma mensagem com um grito de guerra: “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. (…) Diante do exposto, minha decisão é a de não adquirir a vacina.”

Estava aberta uma ridícula Guerra da Vacina.

Bolsonaro sabia que o Ministério da Saúde havia oficializado a sua intenção de comprar 46 milhões de doses da CoronaVac, que, nas suas palavras, transformou-se na “vacina chinesa do João Doria”. Desde que o vírus chegou ao Brasil, matando mais de 150 mil pessoas, Bolsonaro militou no exercício ilegal da Medicina com sua cloroquina.

Fritou dois ministros da Saúde e, com seu surto matutino, começou a refogar o terceiro. Nos seus gritos de guerra, anunciou que a “vacina não será comprada” porque “não abro mão de minha autoridade”. Parolagem. Horas depois, a Agência de Vigilância Sanitária (detentora da autoridade) informou que, como acontece com qualquer medicamento, autorizará a compra do fármaco que cumpra os requisitos científicos.

No rescaldo do surto, 11 palavras do general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz explicam a barulheira: “Falta de capacidade e organização interna” e “um nível de mediocridade extrema”.

Santos Cruz foi um dos 13 azes militares levados para o governo pelo capitão Bolsonaro. Os outros dois foram Hamilton Mourão e Augusto Heleno. Ele era o único a não ter se envolvido em episódios de indisciplina. Durou seis meses, dois dos quais em processo de fritura. Desde que saiu do governo, Santos Cruz tem sido um crítico raro, porém, pontual. Se quisesse, teria sido candidato à Prefeitura do Rio, mas afastou-se do cálice.

Quem entende o mundo dos generais garante que Santos Cruz é ouvido.

Uma grande História dos EUA

Está nas livrarias “Estas verdades — História da formação dos Estados Unidos”, da professora Jill Lepore, de Harvard. Com 866 páginas e quase dois quilos, vai de Cristóvão Colombo a Donald Trump. Lepore gosta da vida, de História e dos Estados Unidos. Isso faz com que sua produção tenha um discreto bom humor, levando-a a tratar de tudo, inclusive cinema e esporte.

Os personagens de “Estas Verdades” têm carne e osso. Ela olha para os magnatas, os poderosos, os negros, os índios e as mulheres. Em 1760, o fazendeiro George Washington consertou sua boca usando dentes de escravizados. (Pelo menos 43 deles fugiram e um combateu ao lado dos ingleses. Da fazenda de Thomas Jefferson, fugiram 13). O futuro presidente acasalava-se com a escrava Sally Hemings, meia-irmã de sua falecida mulher. Na conta do erudito amante e senhor, ela só tinha um oitavo de sangue negro.

No século XVIII, as colônias americanas tiveram duas revoluções, uma contra o domínio inglês, outra contra a escravatura. Esta levou quase um século para prevalecer. O que levou os colonos a rebelar não foram apenas os impostos e a repressão, mas sobretudo a oferta da liberdade para os escravos.

Em 1776, um grupo de “subversivos”, segundo o filósofo inglês Jeremy Bentham, criou um estado “absurdo e visionário”. Em 1801, a Suprema Corte se reunia na pensão em que viviam seus juízes.

Lepore diz coisas assim: “A Inglaterra manteve-se no Caribe e desistiu da América.” Ou ainda, tratando da Guerra Civil: “O Sul perdeu a guerra, mas ganhou a paz.”

A grande nação americana foi construída também pelos movimentos dos trabalhadores, dos imigrantes e dos negros. “Estas verdades” vai mostrando essa história aos poucos, com um elegante domínio dos fatos: em 1776, quando foi proclamada a independência dos Estados Unidos, a temperatura na cidade de Philadelphia era de 11 graus; às vésperas da chegada de Donald Trump, era de 15.

Para Bill Gates, “Estas Verdades” é o “relato mais honesto e mais bem escrito que já li sobre a História dos Estados Unidos". Jill Lepore conta uma grande aventura e termina com certa ansiedade: “Uma nação não pode escolher seu passado, só pode escolher seu futuro”.

Recordar é viver

Deu no “The New York Times”: pelo menos 545 crianças cujas famílias tentavam entrar ilegalmente nos Estados Unidos estão em abrigos, sem que seus pais tenham sido localizados. No debate de quinta-feira, Donald Trump fugiu da pergunta durante vários minutos.

Essas coisas acabam passando despercebidas enquanto a vida segue, naquilo que parece ser uma rotina maior que pequenos dramas.

No dia 12 de dezembro de 1938, chegou a Londres um navio que transportava 200 crianças judias alemãs, entregues pelos pais para que fossem criadas por famílias inglesas. Até o fim da guerra foram mais de 10 mil. O filho de uma delas, Michael Moritz, tornou-se um milionário e doou 15 milhões de dólares para programas de ajuda aos pobres da Universidade de Oxford.

Nas semanas em que as crianças judias desceram em Londres, Josef Stalin assinou 30 listas com os nomes de cinco mil pessoas que deviam ser executadas e foi ao cinema do Kremlin ver uma comédia.

No Rio, Vargas posou para o escultor Leão Veloso e foi ao cinema ver “Corpo e alma de uma raça”.

Passou o tempo e a história de Nicholas Winton, o inglês que organizou o resgate está na rede, em vários vídeos. Quem quiser, poderá cultivar suas emoções por alguns minutos. O título de um deles é “Nicholas Winton, o herói anônimo da Segunda Guerra”.

Amy e Kassio

O ministro Gilmar Mendes não gosta que se façam paralelos entre a Corte Suprema dos Estados Unidos e o Supremo Tribunal Federal.

O que aconteceria com a escolha da juíza Amy Coney Barrett, indicada para o tribunal, se dissesse aos senadores americanos que seu marido trabalha lá, mas não sabe exatamente o que ele faz? E se o senador em cujo gabinete o cidadão está lotado, também não souber?

O desembargador Kássio Nunes Marques não soube dizer aos senadores o que sua mulher faz no gabinete do senador Elmano Férrer. Nem ele.

Nunes Marques explicou aos doutores que o custo de vida em Brasília é muito caro. Treze milhões de desempregados encaram o custo de vida sem salário algum, mas faça-se justiça: ela é economista e não advoga nas Cortes de Brasília.

Jesse Barrett, o marido de Amy, é advogado criminalista e trabalha numa banca em Indiana.


Vinicius Torres Freire: A 'vacina paulista' no outro lado do mundo

Indonésios correm, mas ainda não têm certeza de quando começam a usar a Coronavac

A Indonésia pode ser um dos primeiros países do mundo a vacinar sua população contra a Covid-19. De início, vai usar a mesma vacina comprada pelo governo paulista, a CoronaVac, da empresa chinesa Sinovac. Mas pretende começar uma vacinação emergencial e por ora apenas prevista para fins de novembro. Pode ser bem depois, talvez em janeiro ou depois. Não é bem como dizem por aqui.

Um ex-colega de faculdade deste jornalista trabalha no governo da Indonésia, embora não no ministério da Saúde. Conta que eles ficaram tão interessados no que se passa no Brasil como nós agora começamos a nos informar sobre o que se faz por lá com a “vacina paulista”.

A associação dos médicos e parlamentares indonésios dizem que o governo não deve se apressar e deve esperar a publicação dos testes. O próprio governo diz que precisa da aprovação da vigilância sanitária, permissão por ora apenas para vacinação emergencial, e das autoridades religiosas.

Meu ex-colega conta que a resistência às vacinas aumentou faz uns anos, depois de um rolo com a vacinação contra o sarampo. Certas autoridades islâmicas disseram então que a vacina talvez não fosse “halal”, permitida pela religião (talvez fosse contaminada por algum produto proibido pela lei religiosa). O rolo foi tamanho que as autorizações religiosas foram distribuídas por três instituições diferentes –cerca de 87% dos indonésios são muçulmanos.

Outra preocupação meio “pop” é se a vacina seria adequada às etnias indonésias (centenas) e apropriada para evitar o vírus que circula no país.

A vacinação vai começar em cerca de 9 milhões dos 270 milhões de indonésios, prioritariamente em trabalhadores de saúde ou em situação de risco, em pessoas de 18 a 59 anos, sem comorbidades. Os pesquisadores responsáveis pelos testes clínicos diziam no início deste mês, em entrevistas à imprensa local, que os primeiros exames de eficácia ficariam prontos apenas em dezembro. E então, como fica?

É esse o debate, diz meu ex-colega. Todo mundo quer a vacina, mas não quer ser cobaia, embora exista confiança na universidade, na estatal que vai fabricá-la e na vigilância sanitária, diz.

Brasil e Indonésia estão quase no mesmo estágio de teste da Coronavac. Os indonésios começaram a avaliação em agosto, três semanas depois do programa brasileiro. Há testes em estágios ainda mais preliminares na Turquia e um para começar no Chile. Os indonésios vão comprar a Coronavac e outras duas vacinas chinesas, além daquela desenvolvida pela Astra Zeneca e pela Universidade Oxford. Desenvolvem uma vacina nacional, que pretendem testar em massa a partir de meados do ano que vem.

A Indonésia conta muito menos mortos de Covid que o Brasil, 12.857, ante mais de 155 mil –em termos relativos, o número de vítimas por aqui é 15 vezes maior. O país é uma das 20 maiores economias do mundo. A renda (PIB) per capita do Brasil é 26% superior, o Índice de Desenvolvimento Humano é maior e a expectativa de vida também, embora não muito mais.

O país é uma democracia desde o fim da ditadura de Suharto (1966-1998). O presidente Joko “Jokowi” Widodo foi acusado de causar confusão na política anticoronavírus, de ter subestimado a doença etc., entrando em conflito com governos locais que impuseram medidas de distanciamento social. Mas Jokowi jogou a toalha ainda em abril. O governo central agora diz que, mesmo com a vacina, não será possível relaxar no distanciamento e no uso de máscaras.

Parece uma situação bem melhor do que a nossa. Né.


Hélio Schwartsman: Quando a leviandade mata

Chilique presidencial é cálculo político míope e mesquinho

Jair Bolsonaro é o presidente. Foi eleito democraticamente. Mas não tem condição moral nem intelectual de exercer o cargo, do que dá prova a leviandade com que trata a questão da vacina.

Não sei se a Coronavac, a "vacina chinesa do Doria", no linguajar presidencial, vai funcionar bem. Ninguém sabe. Mas, na atual conjuntura, é um dos fármacos mais promissores em fase final de testes. Engajar-se num programa de compra e produção antecipadas é uma opção de risco, mas, se o imunizante tiver sucesso, fazê-lo nos dará um ou dois meses de dianteira no processo de vacinação, o que pode salvar muitas vidas e reduzir o estrago econômico da pandemia.

Vale observar que o governo fez exatamente a mesma aposta no caso da vacina da Universidade de Oxford, o que desmonta por inteiro a afirmação de Bolsonaro de que não se pode avançar na compra de vacinas até que elas tenham sido licenciadas pelos órgãos competentes.

Ao que tudo indica, o chilique presidencial não tem motivação técnica, mas é fruto de um cálculo político míope e mesquinho, que procura agradar à base mais amalucada do bolsonarismo, que tem alergia a coisas feitas por "chineses comunistas", ao mesmo tempo em que se recusa a fazer qualquer gesto que possa beneficiar um rival, no caso, Doria.

Num país um pouco mais sério, um líder que tomasse decisões de vida e morte com base em comentários de simpatizantes em redes sociais e não em justificativas racionais já teria sido democraticamente defenestrado pelo impeachment. Mas estamos no Brasil.

Meu consolo é que a posição dos bolsonaristas é pior que a minha. Quem se opõe ao presidente apenas perdeu uma eleição, mas os que o apoiaram foram traídos. O candidato que falava em acabar com a corrupção, varrer o sistema político carcomido e impor uma agenda ultraliberal se tornou um protetor de corruptos, que come na mão do centrão e está prestes a furar o teto.


Eugênio Bucci: Uma trilha sonora para um Brasil pandêmico

O presidente está mais para lobisomem de filme de Mazzaropi do que para Duce…

O presidente da República está em plena Revolta da Vacina. Tem ciúme da vacina. Tem ciúme de quem a tem e mais ciúme ainda de quem a terá. O presidente se descabela e se rebela. Homem do seu tempo, vive com ardor o ano de 1904. Quer atirar cadeiras nos mata-mosquitos de Oswaldo Cruz, mas o sanitarista, mau brasileiro, impatriótico, sumiu de cena antes que terminasse o ano da desgraça e não mais se voluntaria a receber desaforos.

O presidente, resoluto, impoluto e estulto, não desiste. Não abre mão da revolta. Na falta do Cruz, dispara perdigotos contra o Instituto Butantan. A vacina que se cuide. Estão pensando o quê?

A fúria presidencial, impetuosa, pomposa e prosa, é máscula, mas dança conforme a cançoneta: “Anda o povo acelerado/ com horror à palmatória/ por causa dessa lambança/ da vacina obrigatória”. Na voz do cantor Mário Pinheiro, os versos ressequidos arranham o mármore do Palácio do Planalto. Raiva da vacina. Ódio febril e varonil.

E o que virá depois? Inútil tentar descobrir. No Brasil, o passado é imprevisível (abraço, Pedro Malan).

Autoridades da Casa Branca visitam o palácio. A presidente do EximBank, o Banco de Exportação e Importação dos EUA, e o ministro da Economia daqui mesmo assinam um memorando que pode render empréstimos de até US$ 1 bilhão para o Brasil. Em troca, apoios auriverdes à cruzada de Washington para afugentar do mercado as tecnologias e empresas chinesas na implantação do 5G. Ao lado do presidente, o conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos participa da cerimônia.

Pensa o improvável leitor que essa solenidade foi anteontem, certo? Pois pensa errado. Outra vez, estamos mergulhados no interminável passado imprevisível. Ao fundo, Juca Chaves e um violãozinho se infiltram pelo ar-condicionado: “Hoje em dia o meu Brasil/ é uma país independente/ dentre as coisas que nós temos/ vê-se até dois presidentes./ (…) Um do sul, outro do norte/ que governam muito bem/ só que o norte é bem mais forte e governa o sul também (…)”.

Se fôssemos um pouco mais briosos – e irônicos –, iríamos de Assis Valente, o mais valente de todos e todas. Iríamos de Brasil Pandeiro. Celebraríamos malandramente que “o Tio Sam anda querendo conhecer a nossa batucada”. Festejaríamos desconfiados que “na Casa Branca já tocou a batucada de ioiô e iaiá”.

Depois disso, a gente brasileira abriria mão da malícia. Alguém desfilaria de bananas na cabeça – Carmem Miranda que nos acuda – e sacaria da manga do paletó, ou do decote, a carta ufanista que faz do samba o Rei Momo da cultura pátria, o símbolo brasileiro por excelência. Se não tiver samba, vai de rumba mesmo. Zé Carioca de mãos dadas a Mickey Mouse, Getúlio Vargas em bombachas. Se faltar a rumba, volte o samba-exaltação na veia, Ary Barroso na cabeça, “mulato inzoneiro” no meio da testa, hino nacional em feitio de batucada, jamais de oração. “Ai, essas fontes murmurantes”, coitado do jornalismo. Ai, esses vazamentos trepidantes. Ai, esse passado alucinante.

A TV Brasil exibiu com exclusividade um jogo do escrete canarinho. Consta que o narrador deu de mandar um abraço para o presidente do sul, o que deixou em estado de alerta máximo a vigilância democrática. Com toda a razão, embora não seja de hoje que as emissoras estatais botam banca e montam palanque para as “otoridade” se derramarem nos elogios recíprocos, fazendo campanha eleitoral fora de temporada. Não, não é de hoje. O cacoete da autopromoção em microfones públicos é antigo: é do passado.

O presidente prometera acabar com a EBC, a estatal que controla a TV Brasil, mas não era para acreditar. Não dava para acreditar. A facção de extrema direita que ganhou as eleições se julga a portadora da verdade e como confunde verdade com propaganda não pode viver sem propaganda. Ficaria sem verdade. Por isso jamais jogará fora um equipamento como a EBC, prontinho para ser repaginado em usina de verdades absolutas.

O que nos salva, agora, é que a facção de extrema direita que aí está não tem competência nem para ser fascista. Não é pra valer. Não tem compromisso com a coerência. Na TV Brasil, o presidente está mais para lobisomem de filmes de Mazzaropi (reprisados todos os dias) do que para Duce ou técnico de futebol. O seu fascismo é pastiche. Anauê paranauê. O fascismo termina no colo do Centrão, que quando o mercado favorece é direitão, mas não é bobo, não.

Um surdo pequeno bate o compasso. O presidente chuta a causa autoritária para escanteio e se enturma na patota do dinheiro na cueca, mais velha que a Revolta da Vacina. Entra a cuíca, que não é cueca, para entrecortar o balanço com agudos miúdos. Que samba bom. A voz macia de Blecaute estufa os alto-falantes estatais. De terno claro, camisa branca sem gravata, ginga natural, ele manda ver: “Ô, que samba bom/ ô, que coisa louca/ eu também tô aí/ tô aí, que é que há/ também tô nessa boca”.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Bernardo Mello Franco: Não há vacina contra a insensatez

Durou pouco a ilusão de que o governo deixaria a saúde passar à frente da politicagem. Na terça-feira, o ministro Eduardo Pazuello anunciou a compra de 46 milhões de doses da vacina desenvolvida pela Sinovac e pelo Instituto Butantan. Menos de 24 horas depois, o capitão desautorizou o general.

Eduardo Pazuello havia sido taxativo. “A vacina do Butantan será a vacina do Brasil”, afirmou. Ao ler a declaração nos jornais, Jair Bolsonaro metralhou o próprio ministro. “Alerto que não compraremos vacina da China”, escreveu, em mensagem a aliados.

Nas redes sociais, o presidente chamou a Coronavac de “vacina chinesa de João Doria”. O ataque uniu duas obsessões bolsonaristas: a paranoia com a China e a ideia fixa com o governador de São Paulo.

Para agradar seus radicais, Bolsonaro imita Donald Trump, que chama o coronavírus de “praga chinesa”. A macaquice ignora uma diferença sensível. Washington trava uma disputa por hegemonia com Pequim, enquanto Brasília só tem a perder ao provocar seu maior parceiro comercial.

Com Doria, o problema é a disputa de 2022. Em campanha antecipada à reeleição, o presidente vê o ex-aliado como um adversário em potencial. Por isso aproveita qualquer chance de alvejá-lo, mesmo que isso signifique atentar contra a saúde pública.

Ao tratorar a Coronavac, Bolsonaro também atropelou Pazuello. O paraquedista nem pode reclamar da sorte. Ele foi escolhido para isso mesmo: bater continência e cumprir as ordens do chefe.

Ao assumir a pasta, o general se sujeitou a receitar cloroquina aos doentes. Em seguida, comandou uma operação para maquiar dados oficiais. Numa coincidência infeliz, ele foi humilhado pelo chefe no momento em que está fora de combate. Depois de cumprir muitas agendas sem máscara, o ministro foi diagnosticado com a Covid.

Enquanto Bolsonaro insiste em politizar a pandemia, o vírus continua a matar brasileiros. Ontem o país ultrapassou a marca de 155 mil vidas perdidas. Para nosso azar, não há vacina contra a insensatez.