vacina

Murillo de Aragão: O jogo da polarização

As mudanças nas regras eleitorais em 2015, ainda vigentes, fizeram em 2018 a campanha eleitoral durar apenas 45 dias, em vez de noventa. Além disso, foram banidos os financiamentos empresariais de campanhas e estabelecido um teto de gastos por tipo de candidatura.

Outra consequência importante de tais mudanças foi dar maior relevância aos potenciais candidatos no período pré-­eleitoral. É o que está acontecendo agora. No Congresso e nos partidos e, obviamente, na Presidência da República, a pré-campanha já está em curso.

Mas enquanto o debate sucessório toma o mundo político, o eleitorado ainda se mantém distante do tema. A Covid-19 e o desemprego são questões prioritárias e decisivas para a escolha do próximo presidente em 2022. E o debate midiático sobre a política ainda não causa efeito mobilizador entre o eleitorado.

No momento, dois presidenciáveis largam na frente. O primeiro é Jair Bolsonaro, que, pela força do cargo, tem condições de impor sua narrativa, o que, naturalmente, terá grande repercussão. Além disso, Bolsonaro conta com forte apoio nas redes sociais. Embora outros presidenciáveis também façam uso dessas mídias, só ele possui militância engajada com capacidade de disseminar conteúdo nas redes.

“Um problema do centro político é que, quando se tem muitos candidatos, na verdade não se tem nenhum”

Quem também leva vantagem na pré-campanha é o ex-presidente Lula (PT). Apesar de o Lula de hoje não ter, por exemplo, a força do Lula de 2010, quando foi o maior responsável pela eleição de Dilma Rousseff, ele mobiliza a maior parte das esquerdas. Sem contar que parte significativa do eleitorado, sobretudo no Nordeste, e os segmentos de menor renda têm uma lembrança positiva de seu governo no campo econômico e social.

As demais opções — João Doria (PSDB), Eduardo Leite (PSDB), Tasso Jereissati (PSDB), Ciro Gomes (PDT), Luiz Henrique Mandetta (DEM), João Amoêdo (Novo), Luciano Huck e Sergio Moro — não estão apresentando narrativa consolidada nem militância partidária ou digital engajada.

No centro político existe uma dúvida sobre se o engajamento eleitoral deve ser antecipado. Tal dúvida se fortalece pelo fato de não haver um candidato natural que aglutine as forças de oposição. Quando se tem muitos candidatos, na verdade não se tem nenhum. É o caso. Nenhum dos nomes acima aglutina, e a luta por uma frente ampla contra Bolsonaro e Lula parece difícil de ser construída. Mas isso não deixará de ser tentado.

Enquanto o centro político está desorganizado e parte do Centrão já foi cooptada por Bolsonaro, o que deve acontecer nos próximos meses? Enquanto se tenta uma frente ampla contra Bolsonaro e Lula, eles devem tentar rachar o centro tendo em vista neutralizá-lo. A desunião do centro interessa tanto a Lula quanto a Bolsonaro.

Não à toa a estratégia preferencial de Lula é manter Bolsonaro sob pressão, sem, porém, que ele seja inviabilizado pela CPI da Covid: que ele se mantenha no poder, mas enfraquecido. Já Bolsonaro aposta que seu adversário ideal é Lula, uma vez que acredita que o antipetismo forçaria o eleitorado centrista a escolhê-lo. Sendo assim, a polarização acirrada interessa a ambos, ainda que não necessariamente ao país.

Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738

Fonte:


Monica de Bolle: Biden brasileiro?

Nas últimas semanas tenho escrito sobre o que ocorre nos Estados Unidos sob a liderança de Joe Biden. Para quem vive aqui, vê e sente as mudanças, inclusive no cotidiano, a transformação é extraordinária. Em poucos meses, os Estados Unidos deixaram de ser o país com a pandemia mais descontrolada no mundo para estar entre aqueles que, em breve, deixarão para trás os piores temores em relação à saúde pública e à economia. Alguns estados já atingiram a marca de mais de 70% de vacinados com ao menos uma dose dos imunizantes em uso; outros logo alcançarão esse patamar. Em Washington D.C., há uma sensação palpável de alívio: escolas estão reabrindo, as restrições mais duras estão sendo gradualmente removidas, as pessoas sentem que podem voltar a viver. É claro que há hesitação vacinal, um dos motivos que explica a falácia de se pensar em imunidade de rebanho. Mas, apesar desse grupo, em poucos meses o país estará em condições de deixar para trás o pior da pandemia.

Além de ter conseguido entregar esse resultado no tempo prometido, o governo Biden também montou uma agenda notável de reconstrução da economia e do investimento no país. Como expliquei em artigos anteriores, a agenda Biden não rompe com o passado dos EUA, com a tradição do envolvimento do Estado no desenvolvimento de longo prazo do país. Ao contrário, os planos anunciados e parcialmente aprovados resgatam essa tradição, com a novidade de orientá-la para as pessoas, sobretudo as mais pobres e vulneráveis. Como também já escrevi por aqui, não tem sentido afirmar que, por isso, Biden se tornou um radical de esquerda. Na coluna publicada na edição passada apresentei uma reflexão sobre como Biden está reposicionando as disputas políticas em uma democracia madura e fazendo algo que poucos no Brasil conseguem compreender: removendo o protagonismo da economia como definidora do que é ou não democrático e entregando esse papel novamente à política. Enquanto Biden articula sua agenda reconhecendo os conflitos como centrais para o bom funcionamento de qualquer democracia, o partido Republicano se aproxima rapidamente de uma fratura possivelmente irreversível. A expulsão da deputada Liz Cheney — ferrenha opositora de Trump e filha do ex-presidente Dick Cheney — da posição de liderança e prestígio que teve no partido revela aquilo que já se sabia: Trump foi um golpe de misericórdia para os Republicanos.

Em 2022, haverá eleições legislativas. Com o Partido Republicano rachado e a agenda de Biden a pleno vapor, para não falar do sucesso no controle da pandemia e de todas as suas repercussões — notavelmente, a recuperação econômica —, o campo parece aberto aos democratas. Ainda que existam desavenças intrapartidárias sobre várias questões, elas em nada se comparam à crise existencial dos republicanos. E aí está a razão de ser de Biden ter se tornado o 46º presidente americano: as fraturas, o desarranjo, os desmandos de quatro anos de Trump. Mas Trump não é comparável a Bolsonaro, a não ser de forma extremamente superficial. O dano que causou ao Partido Republicano não tem equivalente no sistema político brasileiro. As origens das disputas entre republicanos de diferentes linhagens e democratas não tem paralelos no Brasil.

Não há um “Biden brasileiro”. Insistir nesse raciocínio, com a apresentação de nomes supostamente mais centristas à direita, à esquerda e mesmo ao que, no Brasil, entende-se por centro é uma perda de tempo tremenda.

Esse tempo deveria estar sendo empregado para buscar soluções imediatas, de médio e de longo prazo para um país destroçado.

De acordo com as pesquisas de opinião, Bolsonaro se mantém com cerca de 40% de aprovação. Nas disputas simuladas com outros candidatos presumidos, Bolsonaro mantém a liderança. A exceção? A exceção é aquilo que parte do Brasil se recusa a reconhecer: Lula. Lula, goste-se ou não, não é Bolsonaro. Podem ser polos opostos, porque Lula não é Bolsonaro, e por isso mesmo não se equivalem: insistir em sua equivalência é uma fantasia besta, outra perda de tempo. Por outro lado, se foi o antilulismo que pariu o bolsonarismo, não deixa de ser interessante que a única via que se apresenta como viável hoje seja o caminho contrário.

Antes que cause terror e espanto entre os leitores, explico: o que escrevi é mera constatação daquilo que vejo com o benefício da distância. Não é apoio ou rejeição. É tão somente uma tentativa de eliminar as fantasias que impedem que se veja com clareza em que o Brasil se transformou. Biden brasileiro? Balela.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins

Fonte:

Época

https://epoca.globo.com/monica-de-bolle/biden-brasileiro-1-25016297


Fernando Gabeira: Anatomia da política de negação

Pode ser que a CPI da pandemia descubra fatos novos, que revolucionem nossa visão do problema. Caso isso não aconteça, e é provável que não aconteça, já é possível, pelo menos, escrever o argumento desse filme, abstraindo os lances e peripécias de um roteiro.

Na base de tudo está a negação da pandemia por Bolsonaro. Esse conceito de negação foi lançado por Freud em 1923. E numa carta de 1937, escrita para um colega, ele cita o rei Boabdil, que ao receber a notícia de que a capital de seu reino, Alhambra, estava sitiada mandou queimar a carta e decapitar o mensageiro.

Bolsonaro não poderia aceitar a pandemia com os problemas econômicos que trazia e, sobretudo, a ameaça de sua reeleição. De certa forma, ele queimou a carta enviada pelos cientistas e decapitou os ministros que insistiam no tema.

Sua tese era de que a economia precisava seguir seu curso. Para fundamentá-la era preciso buscar algo aparentemente científico. A tese da imunização de rebanho foi a tábua de salvação. Todos se contaminariam de um modo ou de outro, pensava Bolsonaro, então que se contaminassem logo para voltarmos à normalidade.

Ele abstraiu o número de mortes implícito nessa escolha. Na verdade, era preciso trazer também a esperança de cura, uma espécie de bala de prata contra a covid-19: a hidroxicloroquina. O remédio era uma resposta simples para um problema complexo. Todos se contaminam, todos se salvam pela hidroxicloroquina

Essa negação, que teve o momento máximo quando classificou a covid como apenas uma “gripezinha”, precisava ir adiante na negação. Se a covid-19 não tinha importância, por que gastar fortunas com vacinas? Numa de suas declarações mais claras sobre o tema, Bolsonaro disse preferir gastar dinheiro com remédio a comprar vacinas.

Mais tarde voltou ao tema, criticando a “vacina chinesa de Doria”, a Coronavac, e terminando por lançar suspeitas também sobre as vacinas que usam a técnica de mensageiro RNA, no caso da Pfizer: se quiser virar jacaré, ou ver mulher de barba ou homem falando fino, tome a vacina.

Ao longo desse tempo, o número de mortos aumentava e Bolsonaro mantinha sua frieza: não sou coveiro. Era algo previsível em sua tática.

Daí o desencontro entre seu comportamento e o que esperava a imprensa. Por que evitar aglomerações, se todos vão mesmo se contaminar? Por que usar essas opressivas máscaras? Se vamos chegar a uma situação de normalidade, é melhor todos se contaminarem rapidamente.

Olhando em torno, no universo particular de seu Palácio do Planalto, a teoria da contaminação de rebanho ia muito bem: 460 funcionários se contaminaram até abril.

A história pode ser contada assim, até mesmo no embate entre Bolsonaro e governadores. Ele quer a volta de todos ao trabalho e está disposto a fazer tudo para conquistar “essa liberdade”.

São duas concepções em jogo. Uma quer que as pessoas se vacinem, não se aglomerem, usem máscaras e lavem as mãos. A de Bolsonaro é a volta ao trabalho, o fluxo pleno da economia.

Quando for concluído o relatório da CPI, é possível fazer como se fez nos Estados Unidos: convidar um grupo de sanitaristas para examinar uma por uma essas decisões, ou mesmo hesitações. Aqui, como lá, também seria possível os especialistas calcularem o número de mortes que poderiam ter sido evitadas com as escolhas corretas.

Portanto, um minucioso trabalho de coleta de dados da CPI e um relatório que articule esses dados ainda serão insuficientes. Será necessário quantificar as suas consequências.

Nesse momento, Bolsonaro pelo menos terá uma defesa. Não têm razão aqueles que o acusam por todas as mortes pela covid-19 no Brasil. Ele teria de responder apenas por uma parte delas.

Quando a CPI encerrar seu trabalho, o número total de mortos no Brasil, segundo uma previsão da Universidade de Washington, será de 600 mil pessoas. Quantas podem ser atribuídas a uma escolha política de rasgar a carta e decapitar o mensageiro?

Ainda faltam detalhes à história. Até que ponto a vacinação no Brasil seguirá em ritmo lento? Até que ponto os atrasos na remessa de IFAs não são uma represália chinesa às declarações de Bolsonaro?

A Coronavac está no braço de 80% dos vacinados no Brasil. Bem ou mal, dependemos dela para uma vacinação em massa, até o momento. Da Índia dificilmente virá alguma coisa, pois a crise lá é profunda e o próprio Instituto Serum está sob forte pressão. A Pfizer fechou um negócio de 1,5 bilhão de doses com a Europa. Vai estar sobrecarregada.

Nesse contexto, provocar um rompimento com a China é apenas o lance final da estratégia de imunização de rebanho, que, na verdade, poderia ser chamada de extermínio de rebanho.

Isso coloca a CPI diante de outra tarefa, mais imediata do que compilar os dados e determinar responsabilidades. É preciso um núcleo de emergência, a busca de algumas medidas que possam salvar vidas enquanto o trabalho transcorre. E isso se vai dar no campo das vacinas, vencida, como parece ter sido, a batalha da hidroxicloroquina.

JORNALISTA

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,anatomia-da-politica-de-negacao,70003714359


RPD || Orlando Thomé Cordeiro: Não temos tempo a perder!

No mês passado, ultrapassamos o número de 400 mil mortes na pandemia. Desse total, mais da metade foi no primeiro quadrimestre de 2021. Uma tragédia que, certamente, poderia ser minimizada não fora a combinação de negacionismo e incompetência do governo Bolsonaro. 

Também em abril, dia 27, tivemos a instalação da CPI no Senado com a participação de 18 parlamentares, sendo 11 titulares e 7 suplentes. Apesar de todas as tentativas o governo federal, a presidência e a relatoria ficaram com o grupo formado pela oposição que promete trabalhar com a faca nos dentes. 

Já no dia 30 foram divulgados os dados do desemprego para o trimestre encerrado em fevereiro: 14,4%. Isso significa que 14,4 milhões de pessoas estão na fila por um trabalho no país, o maior contingente desde 2012, início da série histórica.  

No mesmo mês, após muitas idas e vindas, o orçamento anual foi sancionado com muitas restrições e incertezas quanto à sua aplicação. Não está claro, por exemplo, como o governo fará para liberar as emendas parlamentares sem desrespeitar o teto de gastos. 

Para ampliar as preocupações do presidente, desde dezembro de 2020 as pesquisas passaram a apontar aumento significativo nos índices de desaprovação do presidente e de seu governo. Adicionalmente, a volta do ex-presidente Lula à disputa eleitoral reaqueceu a polarização entre os dois que vêm liderando as intenções de voto para 2022. 

Diante desses fatos, tenho lido e ouvido diversas análises feitas por especialistas de ótima reputação dando como certo que, nessa batida, Bolsonaro estará fora do segundo turno. Bem, considero enorme equívoco e permito-me afirmar que, até o momento, a tendência é ele estar presente naquela fase da disputa em 2022. Apresento a seguir algumas razões para minha assertiva. 

Iniciada em 2008, na campanha de Obama à presidência dos EUA, as redes sociais passaram a fazer parte do debate político e das contendas eleitorais. Desde então, sua influência na formação de grupos e definição de voto vem crescendo vertiginosamente a ponto de muita gente, inclusive eu mesmo, ter-se surpreendido com seu papel em 2018. 

Nesse território, Bolsonaro continua a reinar quase absoluto, mantendo parcela de 16% a 18% de apoiadores fiéis. Some-se a esse nicho algo em torno de 14% que, mesmo tendo críticas ou algum grau de arrependimento, não têm demonstrado disposição para mudar seu voto em 2022, principalmente diante da candidatura petista.  

Outro fator tem a ver com a economia. Se 2021 tende a ser marcado por muitas dificuldades, a expectativa para o próximo ano é que haja razoável retomada propiciada, em grande parte, pelo provável crescimento no número de pessoas vacinadas até dezembro, podendo abranger toda população a partir de 30 anos de idade. 

Em relação ao orçamento, segundo o economista Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro, Bolsonaro terá espaço de R$ 111 bilhões para ampliar as despesas em 2022, tendendo a ser o ano mais tranquilo para o presidente cumprir o teto de gastos, regra que atrela o crescimento das despesas à inflação. Desse total, o governo deverá contar com cerca de R$ 40 bilhões para gastar livremente, justamente em ano eleitoral. 

É evidente que Bolsonaro não joga sozinho nesse campo, e a oposição não petista, mesmo não tendo encontrado ainda o melhor caminho para derrotá-lo, tem procurado se mexer. Uma coisa é certa, porém: uma dispersão de candidaturas provocará a repetição do que aconteceu em 2018. É possível evitar isso? 

Cristalino está que a polarização representada pelas candidaturas de Lula e Bolsonaro só interessa a eles. Afinal, trata-se de um processo de retroalimentação. Não tem, no entanto, efeito prático algum criticar tal polarização sem apresentar alternativa capaz de atrair aquela parcela do eleitorado que prefere não votar em nenhum dos dois. 

É imprescindível que o chamado Polo Democrático construa uma agenda mínima, olhando para frente, para o futuro. Deixar claro quais os pontos básicos que uma candidatura desse campo tem a oferecer para a população. Em complemento, há que se produzir a narrativa adequada para que as ideias-força sejam comunicadas de maneira a emocionar, engajar e mobilizar. 

São condições necessárias, mas insuficientes. Agenda e narrativa mobilizadoras necessitam de um nome que as represente. Precisa ter cara! Ser percebida pelo eleitorado como competitiva para conseguir chegar ao segundo turno e derrotar qualquer um dos dois atuais favoritos. É uma decisão pra já! Como disse o poeta, não temos tempo a perder. 

* Orlando Thomé Cordeiro é consultor em estratégia.  

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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RPD || Rogério Baptistini: O populismo e a demagogia amplificam a tragédia brasileira

No mês de abril, o Brasil atingiu a marca de 400 mil mortos pela pandemia de Covid-19. O número de vítimas do coronavírus certamente é ainda maior, dado que desde o início da crise sanitária há relatos de subnotificação e, inclusive, pouco interesse do governo federal no acompanhamento e controle dos casos. Mas o que incomoda é o alheamento do presidente e de seus auxiliares em relação ao sofrimento dos concidadãos. É como se não tivessem responsabilidades para com o povo, o elemento pessoal do Estado. E aqui, o paradoxo de nossa situação. 

Bolsonaro chegou ao governo como expressão do populismo, um fenômeno tão antigo quanto a própria democracia. Neste, confluem um líder e um povo mobilizado por um discurso que divide a sociedade política entre um nós e um eles, geralmente uma elite corrupta. A própria condição de mito, atribuída ao ex-deputado do baixíssimo clero reforça a percepção do que seria uma condição atávica de nossa evolução política. Acompanhando Ernst Cassirer, o mito, no populismo, personifica a vontade coletiva e se impõe à Constituição e às próprias instituições. “O que fica é apenas o poder e a autoridade mística do líder e a sua vontade suprema é a lei”. (2003, p. 325) 

O passado, como ensinava o historiador Mac Bloch (1886-1944), não é objeto de ciência, mas ilumina o presente.  E quando olhamos para trás, verificamos que a absolutização dos conflitos na história brasileira degenerou sempre em regressão na cultura democrática, em que pese o salto para a frente da aceleração econômica e a incorporação dos “de baixo” pela via dos direitos sociais. Estas, as camadas sociais inferiores, são o elemento central da lógica populista, manipuladas conforme a conjuntura, num dualismo de aceitação ou rejeição: mortadelas contra coxinhas, patriotas contra comunistas, cristãos contra destruidores da família. 

Pilar do Estado moderno, a noção de povo deriva diretamente do populus romano. Ali, ao lado das famílias presentes no Senado, que representavam o núcleo originário da República, este participava das decisões sobre o destino comum, constituindo o elemento democrático e plural – a civilitas – do conjunto de cidadãos que fundava o corpo social – a civitas. A lei seria a expressão de sua responsabilidade política, traço de urbanidade e o próprio contrato que os uniria. Contraditoriamente, foi o apoio popular ao Principado e, depois, ao Dominado, que encolheu o papel político do povo romano (COLLIVA, 1991), culminando no ocaso de uma civilização e nas trevas do medievo. 

Verdadeira presença ausente na democracia, o povo não é uma nulidade. Apesar de não constituir uma massa compacta, ele existe e padece as consequências do populismo. O descaso para com as leis, a corrupção da República e a demagogia como uma perversão que acomete os governos democráticos representam a catástrofe para os populares; o apocalipse medido em mortes e desesperança. E novo alimento para o irracionalismo, para as soluções que apresentam a vida como uma luta inconteste entre o Bem e o Mal. A economia contra a saúde; o mercado contra o Estado; o deus dos fundamentalistas contra o demônio.  

No momento mesmo da invenção da política como esfera autônoma, na antiguidade clássica, Platão alertava para os perigos que a manipulação do demos poderia gerar pela ação de demagogos. O risco da implantação da tirania, quando da exploração dos ressentimentos populares por um perverso e o desejo irracional de castigar o levavam a descrer do governo democrático. A agonia do momento presente representa o ápice da demagogia entre nós. 

É a atuação do povo como bloco que alimenta o populismo e faz da demagogia uma perversão. Tanto um como outra estiveram em germe, desde a redemocratização, na atividade de líderes e partidos, culminando no autocanibalismo do que se apresentava como o “novíssimo” na política brasileira, “diferente de tudo o que está aí”. A transformação do espaço público como espaço de luta pelo exclusivismo, no qual todo o adversário passou a ser visto como inimigo a ser derrotado trouxe uma vitória de Pirro para os adeptos do conflito, com consequências irreparáveis para uma geração de brasileiros, e a política sendo desviada para a margem dos canais institucionais pacientemente construídos. 

Aos democratas, resta lutar nas trincheiras da razão e não ceder aos apelos do dualismo populista que insiste na exploração do desespero popular. A hora é de reconstrução da cultura pública essencial ao exercício da cidadania informada, ativa e plural, capaz pactuar em favor da democracia como caminho para o futuro. 

*Rogério Baptistini Mendes é sociólogo, pesquisador do LabPol -Laboratório de Ciência Política da Unesp/FCL-CAr. 

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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RPD || Sergio Besserman: Censo 2021 – Vamos perder mais dinheiro do que será economizado agora

O governo federal anunciou que o Censo 2021, que estava previsto para 2020, será novamente suspenso; desta vez, por falta de recursos no orçamento deste ano. Não há prazo para um novo levantamento. Os prejuízos para implementação de políticas públicas são incalculáveis, especialmente para a população mais pobre. 

De certo modo, o Brasil já vive sob apagão estatístico há bastante tempo. A Comissão de Estatística da Organização das Nações Unidas recomenda o censo decenal, de preferência, nos anos de final zero. O objetivo é comparar todos os censos entre si. Países que têm registros administrativos ruins, segundo a ONU, devem realizar, como melhor prática estatística, um minicenso entre os dois censos decenais. 

No Brasil, chamávamos de “contagem populacional”, mas o levantamento também fazia outras perguntas. Por razões de economia fiscal, não fazemos esse censo intermediário desde os anos 90. Os registros administrativos brasileiros são ruins. No governo federal, há alguns um pouco melhores, como o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, e dados relacionados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Mas a maior parte é inexistente ou ruim. Nos estados e municípios, a mesma coisa. 

Nós vivemos no século da informação e do conhecimento. Ter dados sólidos sobre a real situação dos brasileiros é importante para a implementação de políticas públicas eficazes. O Brasil é um país dinâmico, muda muito, especialmente desde a última década. Perceba-se que 10 anos já é um tempo bastante longo. Áreas fundamentais, como transporte urbano, saúde, educação, segurança pública, sofrem com o atraso no Censo Demográfico por mais de uma década. Prejudica, inclusive, todas as outras pesquisas, pois diversos institutos do setor público e privado utilizam esses dados. Todas as pesquisas perdem em qualidade em razão da ausência de informação censitária atualizada. 

Outro ponto a se destacar é que a grande maioria dos municípios depende de Estados e do governo federal para fechar as contas. Esta suspensão afeta diretamente a população mais pobre. Para 80% dos municípios do Brasil, a principal fonte de receita é o Fundo de Participação (FPM). O critério utilizado para a distribuição desses recursos é a população. Anualmente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) faz uma estimativa da população nacional, por Estados e municípios. Com esse longo espaçamento no tempo, aos poucos, o fundo de participação vai deixando de cumprir um dos objetivos, que é justamente combater a desigualdade. As estimativas não conseguem capturar situações de mudanças dinâmicas em diversos municípios. 

Com os dados do censo, teríamos a oportunidade de mapear informações sobre a miséria e a extrema pobreza. Esse, talvez, seja o impacto mais danoso do ponto de vista social. Não teremos as informações e o conhecimento necessário para fazer esse trabalho tão indispensável de reconstrução econômica, social e política do Brasil, que será preciso a sociedade conseguir após 2022. 

Destaco, ainda, que a principal conquista histórica do Censo Demográfico foi a consolidação do IBGE como órgão de Estado. Ele foi uma grande conquista democrática. Atravessou ditaduras, sempre mantendo sua característica de órgão de Estado, sem jamais ter sofrido qualquer tipo de intervenção, e sendo, principalmente, reconhecido quanto ao princípio do sigilo das informações obtidas. 

Entendo que a decisão de adiar o censo sem sequer anunciar, imediatamente, quando ele seria realizado, foi pautada pelo negacionismo do atual governo, seu desprezo pela informação e pelo conhecimento. Vamos perder muito mais dinheiro com esse adiamento do que aquilo o que será economizado. E quem mais vai perder é o povo pobre. 

Muitos países, como Canadá e Estados Unidos, aplicam o Censo a distância – seja pela internet ou mesmo pelos correios. A combinação do censo presencial com melhorias nas informações de registros administrativos e a conexão desses tipos de metodologias remotas deve ser prioridade, e o IBGE está trilhando esse caminho com excelência, como sempre. Afinal, a tecnologia existe e pode muito bem ser integrada com o trabalho dos recenseadores, que serão sempre importantíssimos em um país tão desigual e de proporções continentais como o Brasil. 

*Sergio Besserman é economista, é professor do Departamento de Economia da PUC e coordenador estratégico do Climate Reality Project no Brasil.  Ex-diretor do BNDES,  ex-presidente do IBGE, do Instituto Pereira Passos, e do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (RJ).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Fonte:


RPD || Entrevista Especial – Forças Armadas manterão fidelidade à Constituição, diz Santos Cruz

Por Caetano Araújo e André Amado  

O Brasil já se encontra no terceiro ano do governo Bolsonaro, a um ano e meio das eleições e em meio a uma CPI que pode ter desdobramento graves. Mas não se pode desviar a atenção do essencial, que é a vacinação da população, da recuperação da economia e o reforço das instituições do país, avalia o gerenal da reserva Carlos Alberto Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria Geral da Presidência da República do atual governo e entrevistado especial desta 31a edição da Revista Política Democrática Online.

“Se de fato estiverem ocorrendo tentativas de recorrer a medidas excepcionais, fora da cartilha democrática, fora da constituição, isso se deve à mais completa falta de noção institucional”, diz Santos Cruz, que também foi secretário nacional da Segurança Pública na gestão do presidente Michel Temer e comandou as missões da ONU no Haiti e na República Democrática do Congo. Para ele, no caso das Forças Armadas, por exemplo, “cujo apoio seria essencial em cenários desse tipo, não vejo a mínima condição de dar respaldo a qualquer proposta extrainstitucional”, completa.

Na entrevista à Revista Política Democrática Online, Santos Cruz também comenta sobre a questão da Amazônia e o meio ambiente, o papel do Brasil no cenário internacional, polícias militares, liberação de armas de fogo, segurança pública, cidadãos armados e o comunismo, o grande inimigo do bolsonarismo. “O problema nosso não é de comunismo. Infelizmente, estão usando isso daí para maniqueísmo. Hoje quem não é amigo é inimigo”, alerta.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista do general Carlos Alberto Santos Cruz.

Revista Política Democrática Online (RPD)Na situação de crise que vivemos, podemos considerar o comportamento do presidente da República como uma ameaça à democracia? 

General Carlos Alberto dos  Santos Cruz (SC): Antes de mais nada, é preciso contextualizar o momento brasileiro. Há alguns pontos que precisam ser focados. O primeiro deles é a pandemia, um trauma social, que já ceifou mais de 400 mil vidas. Todos nós conhecemos pessoas, famílias, conhecidos, parentes que se foram com a pandemia. Isso está afetando demais a sociedade brasileira. A vacinação é nossa saída, mas ela não está disponível em quantidade suficiente, o que causa enorme apreensão, tanto mais porque os cuidados que todos deveríamos seguir não estão sendo respeitados, por várias razões.  

O segundo ponto é a economia, que não passa por um bom momento. Mas o cidadão comum não está ligado nisso. Só os que têm alguma noção de economia sabem que nossa situação não é fácil nem boa. A vacina é a única maneira de restaurar a normalidade das atividades econômicas. Como, então, tratar da pandemia e da economia ao mesmo tempo?  

Os mais desassistidos estão sendo duramente afetados. Muitos de nós conseguimos passar bem de algum modo, mas as pessoas que perderam sua atividade econômica, que não têm rendimento garantido, são mais sacrificadas. É preciso destinar recursos federais para esse pessoal. Não adianta só jogar bilhões em emendas parlamentares. A prioridade é para quem está passando fome e outras necessidades.

“Um governo que carece de planejamento, de respeito institucional, pessoal e  funcional, tem efeitos graves para a sociedade, efeitos multiplicadores preocupantes”

Já estamos no terceiro ano de governo, a um ano e meio das eleições e em meio a uma CPI que pode ter desdobramento grave. Mas não se pode desviar a atenção do essencial, isto é, a vacina, a economia, a fome. Se de fato estiverem ocorrendo tentativas de recorrer a medidas excepcionais, fora da cartilha democrática, fora da constituição, isso se deve à mais completa falta de noção institucional. As instituições estão carentes de apoio, de planejamento. Por exemplo: o Ibama e o ICMBio, com responsabilidade de fiscalização do meio ambiente, são criticados por ineficiência. A solução tem sido mandar o Exército em apoio. O Exército pode ajudar temporariamente, mas o fundamental é reforçar a estrutura das instituições. Caso contrário, os problemas não estão sendo corrigidos. Outro exemplo: critica-se o STF. Mas o que o Executivo e o Legislativo têm feito para melhorar o Supremo? Quais propostas foram apresentadas para alterar as atribuições, estabelecer novos critérios de escolha, prazos dos mandatos? Não adianta atacar, propor melhorias milagrosas. O objetivo tem de ser aperfeiçoar as instituições e, assim, fortalecê-las.

Nossa democracia corre riscos? Corre alguns riscos, mas não no sistema e, sim, em pontos específicos. Por exemplo, não acredito que uma medida aventureira qualquer venha a ter resposta positiva. Não acredito, pois as instituições, embora fracas e carentes de aperfeiçoamento continuado, existem e não vão aceitar ações aventureiras por parte de governante. No caso das Forças Armadas, por exemplo, cujo apoio seria essencial em cenários desse tipo, não vejo a mínima condição de dar respaldo a qualquer proposta extrainstitucional. Outros riscos decorrem de atos fomentados por grupos de fanáticos. E o desfecho do fanatismo é sempre a violência. O fanatismo é de fato um risco, mas não o vejo capaz de contaminar a sociedade. 

RPDPode-se entender que a falta de planejamento, de respeito às instituições e de liderança nas altas esferas do governo tenham justificado sua decisão de deixar o Palácio do Planalto?  

SC: Não. Era início de governo. Alguns problemas já eram bem nítidos, mas não totalmente caracterizados. Eu fui dispensado da minha função pelo presidente da República, o que é uma prerrogativa daquela autoridade. Não tem nada de errado. Um governo que carece de planejamento, de respeito institucional, pessoal e  funcional, tem efeitos graves para a sociedade, efeitos multiplicadores preocupantes. Por exemplo, a conduta de fanáticos, de pequenos grupos de extremistas desqualificados, de baixíssimo nível, cujo linguajar expresso em redes sociais constrange repetir em entrevistas. Essa conduta tem influência e não contribui para conduzir o país a boas soluções.  

RPDExistiriam dois exércitos, duas Forças Armadas que se poderiam posicionar diferentemente em relação a um agravamento da situação conjuntural política brasileira?  

SC: Não vejo nenhuma possibilidade disso acontecer. As Forças Armadas têm dentro delas um sistema de liderança que abarca a todos os militares. Individualmente, todos são eleitores e podem votar em quem quiser. Não há problema nenhum. Mas, uma vez de uniforme e dentro da instituição, o militar segue o comando institucional. Isso é uma cultura. Fiquei 47 anos dentro do Exército e nunca vi discussões de caráter político. Zero discussões acerca de política. É cultural. Entrou no quartel acabou a discussão. Você pode ir discutindo no carro. Entrou no quartel, acabou!  

Os três comandantes que foram recentemente substituídos, por exemplo, deram poucas declarações sobre a saída. Tomaram posse três outros militares também excelentes. Manteve-se a mesma filosofia. Nada mudou. Nada. Pessoas da mesma cultura, da mesma geração de formação, todos contemporâneos 35, 40 anos dentro da mesma força. Não tem como você quebrar isso. Não adianta. Não será um aventureiro qualquer que vai pegar e quebrar um sistema desses.  

“Não é justo generalizar nem supor que os policiais possam ser arrastados para qualquer ação ilegal. Tanto quanto as Forças Armadas, isso não vai acontecer! Vejo as polícias militares com boa liderança”

RPDIncitação à violência por meio da internet, tentativa de disseminar o acesso a armas sem o controle devido, flerte com reivindicações corporativas da Polícia Militar, essa mistura explosiva pode levar a uma explosão de fato? 

SC: Risco sempre existe, mas de pequenas coisas. Até porque nós estamos assistindo a uma festa dos irresponsáveis. A internet é uma ferramenta de comunicação fantástica. Estamos cada um em nossas casas fazendo essa reunião virtual. São recursos maravilhosos. Só que, da maneira como se está observando, é uma verdadeira festa de exageros, oportuna para os fanáticos, para gente sem limites. Já existem providências em defesa da sociedade, no plano legislativo. Por exemplo, a legislação de combate às notícias falsas, as famosas fake news, que alimentam o fanatismo. Não tem nada a ver com liberdade de expressão. Permanecem válidos os crimes de calúnia, difamação e injúria, previstos no Código Penal.  

Sobre as polícias militares, é importante frisar que vivemos num modelo federativo. Tanto o governador como as instituições do Estado têm de seguir não só a constituição federal, mas também a estadual. O Legislativo e o Judiciário têm de atuar. Se o governador ou as instituições policiais violarem a lei, eles têm de ser responsabilizados. 

Cabe lembrar que as polícias militares têm pessoas muito boas, em geral muito bem preparadas.  O nível é bom. Esse pessoal é sensível à cadeia de comando. Eu não tenho dúvida nenhuma. Temos hoje 500 mil policiais militares no Brasil, que estão na rua em contato direto com a população. É um trabalho difícil. Sempre pode ocorrer erros. Em geral, erros pessoais. Isso é muito explorado, mas não é justo generalizar nem supor que os policiais possam ser arrastados para qualquer ação ilegal. Tanto quanto as Forças Armadas, isso não vai acontecer! Vejo as polícias militares com boa liderança.  

Sobre o problema das armas de fogo, não tenho dúvida de que a polícia militar e a polícia civil estão insatisfeitas com essa tentativa de liberar armas  sem o devido controle. Isso dificulta o trabalho dos policiais. Eles já têm a quem enfrentar, e ainda mais as armas fora de controle na mão de crime organizado, de milícias etc. É um problema essa liberação de armas sem um bom critério. Uma coisa é o comércio regulamentado. Sou a favor do que já existe, e é controlado pela Polícia Federal e o Exército. Só que as medidas de controle e de rastreamentos que o Exército fez dois anos, um ano e meio atrás, foram anuladas pelo presidente. O Exército é um órgão que trabalha só com o interesse técnico. Foi muito ruim anular esse controle.  

Existem distorções de concepção. A segurança pública é obrigação do Estado. Não pode um governo estimular as pessoas a se armarem para melhorar a segurança pública. Isso é falta de noção completa, falta de noção das suas obrigações, porque segurança pública é obrigação do Estado e tem de ter um plano nacional de segurança pública. Isso passa pela valorização e treinamento do efetivo da polícia, pelo aperfeiçoamento da legislação, orçamento etc. Todos têm de estar envolvidos – Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público. O governante não pode tentar convencer as pessoas a se armarem para garantir a segurança pública. Isso é loucura. E mais. Considerar que o cidadão armado é uma opção política é um total absurdo. Tanto quanto dizer que o Japão não invadiu os Estados Unidos, na segunda guerra, porque os Estados Unidos tinham não sei quantos milhões de armas nas mãos dos civis. Teoria sem cabimento. Imagina a logística militar que se exigiria do Japão para invadir os Estados Unidos. Tais argumentos animam certo frenesi, uma esquizofrenia política. Tudo isso, sem dúvida nenhuma, significa risco. Se não é risco geral, ao menos localizado, com algumas possíveis iniciativas pontuais. Mesmo nos Estados Unidos, essas maluquices levaram a violências localizadas. Vejo, portanto, também aqui, risco de violência ao menos limitadas. 

RPDO que se pode dizer da versão defendida por alguns setores das Forças Armadas de que, de um lado, propostas de cooperação com comunidade de nações no tocante ao desmatamento da Amazônia podem disfarçar alegada cobiça internacional sobre a região e, de outro, que a ameaça do comunismo para a sociedade brasileira ainda persiste. 

SC: Com 15 dias de casado, 44 anos atrás, 1977, cheguei na Amazônia, em Tabatinga e Ipiranga, na beira do rios Solimões e Içá. Fiquei lá um ano e meio, sem telefone celular nem televisão, com a Radiobrás iniciando transmissão com maior potência para competir com as emissões em espanhol provenientes dos Andes.  

O pessoal militar tem um sentimento de propriedade da Amazônia, porque ali deixou seu sacrifício. Para mim, não foi sacrifício. Foi grande satisfação. Mas o pessoal tem essa cultura. É normal. A cobiça internacional sobre a Amazônia existe. E isso mexe muito com o brasileiro. Só que o pessoal também tem de entender que existem assuntos que são mundiais. No caso do meio ambiente e do clima, são assuntos mundiais em que estamos inseridos. A Amazônia é nossa, claro. Todo mundo sabe que é nossa. Mas a gente não pode, por causa disso, dizer que “eu faço o que eu quero, não participo de convenção do clima, não participo de discussões de meio ambiente e também não sigo determinados padrões de desenvolvimento”. Não é assim. 

Essa é uma questão muito sensível, e o Itamaraty tem condições de ocupar uma posição de liderança por conta de boa formação de seu pessoal, mas tem de seguir a diretriz que é dada pelo governo. Ainda em 2019, logo após a assunção deste governo, busquei contato com o Chanceler e sua equipe, para transmitir-lhes minha visão sobre alguns pontos de política exterior. Sempre tive muita ligação com o Itamaraty. No curso de minhas viagens ao exterior, costumava visitar os embaixadores brasileiros. 

Lembro-me de ter comentado que, embora prioridade da política externa, os Estados Unidos não se resumiam a Donald Trump.  Sobre meio ambiente e clima, penso que deveríamos tratar da questão com uma perspectiva mais ampla e com finalidade social. Tive oportunidade de falar sobre essa matéria com autoridades francesas, em particular com a agência de desenvolvimento, quando destaquei a importância de investimentos no Brasil, em especial no Nordeste. Depois, saí e não acompanhei mais o assunto. 

É uma coisa de loucos… o Brasil está na beira do precipício, e os comunistas estão empurrando para cair no barranco… e tem um Salvador da Pátria que vem do céu ungido por Deus para salvar o Brasil. Não é assim

As riquezas em terras indígenas despertam a cobiça de nações estrangeiras? A perspectiva de bloqueio internacional faz parte dessa estratégia? Sou da opinião de que devemos consolidar uma liderança sobre a matéria e conversar com todos, para angariar a boa vontade da cooperação internacional.  Mas fica difícil convencer nossos potenciais parceiros se nem no nosso horizonte geográfico mais próximo, América do Sul, tivemos o impulso de convocar uma reunião sequer do Pacto Amazônico, mesmo sediando em nosso território a secretaria executiva desse órgão multilateral. Poderíamos desenvolver projetos dentro das terras indígenas, por exemplo, promovendo reuniões periódicas em Manaus, Porto Velho e em outras cidades da Amazônia, para demonstrar nosso interesse, nossa liderança, e conquistar boa vontade. Tem de ter orçamento para isso. Traríamos também representantes da França, afinal um país com território na Amazônia.  

Quanto ao comunismo, registro que morei na Rússia por dois anos e um ano nos Estados Unidos. Pelo que vi, concluí que o Brasil não aproveitou o que existe de bom nos Estados Unidos e na Rússia. O Brasil poderia ter feito uma boa combinação, mas não fez.  O problema nosso não é de comunismo. Infelizmente, estão usando isso daí para maniqueísmo. Hoje quem não é amigo é inimigo. Só os patriotas que andam de verde e amarelo, e os demais são inimigos. É uma coisa de loucos… o Brasil está na beira do precipício, e os comunistas estão empurrando para cair no barranco… e tem um Salvador da Pátria que vem do céu ungido por Deus para salvar o Brasil. Não é assim. 

Temos de atuar de maneira mais racional no cenário mundial. A corrupção não tem nada a ver com o comunismo ou não-comunismo. Temos de combater os privilégios e nossas diferenças sociais. Não é possível pagarmos supersalários com dinheiro público. Temos de fazer o que precisa ser feito para melhorar a sociedade brasileira e não alimentar discussões ideológicas e estéreis. Nosso problema básico é fazer o que é melhor para nós. Por conta de postura ideológica, o Ministério das Relações Exteriores quase nos isolou na comunidade internacional. Existem saudosistas comunistas, mas comunismo está ultrapassado, tanto quanto falar de direita ou esquerda. Nessa concepção puramente ideológica, fica tudo muito limitado.  

RPDNum mundo em mudança acelerada, quais as novas tarefas necessárias à defesa nacional? 

SC: A defesa nacional hoje não está mais só com as Forças Armadas. Tinha-se a concepção de que a defesa nacional estava nas Forças Armadas. Hoje, não. As Forças Armadas têm a parte de integridade, física, a parte dissuasória. Isso ainda reside nas Forças Armadas. Mas a defesa nacional, como um conjunto, passa pelo desempenho no meio ambiente, na economia, na política.  

Quando a gente deixa de ser respeitado internacionalmente na política, isso afeta todos os componentes da defesa nacional. Uma boa economia, sólida, uma sociedade não dividida, harmônica, unida, são fundamentais para a defesa nacional. As Forças Armadas são uma das poucas instituições que fica e tem condições de se manter em locais remotos e ali marcar a presença nacional e apoiar os outros setores, outros Ministérios que, às vezes, têm que fazer alguma tarefa na fronteira, mas não têm estrutura. Mas lá tem as Forças Armadas para acolher e auxiliar. Não adianta desenvolver as Forças Armadas e não desenvolver a economia, o respeito internacional, não desenvolver a união da sociedade e outros órgãos internos que precisam ser desenvolvidos.  

“O governante não pode tentar convencer as pessoas a se armarem para garantir a segurança pública. Isso é loucura. E mais. Considerar que o cidadão armado é uma opção política é um total absurdo”

A modernização das Forças Armadas passará também pela política industrial, pela segurança cibernética. Imagina uma interferência no banco de dados do Bolsa Família, da Caixa Econômica, do Banco do Brasil? E que tal uma guerra cibernética como essa ou mesmo uma guerra biológica, com vírus ou qualquer coisa que ainda não se tenha estruturado? 

Além das ideias já citadas, imagina o tumulto de uma interferência no banco de dados dos benefícios assistenciais do INSS. Isso deixaria muita gente necessitada sem receber o auxílio. Defesa Nacional é a tranquilidade e a paz social. Ela não depende só das Forças Armadas. 

Saiba mais sobre o entrevistado

General Carlos Alberto Santos Cruz
Entrevistado especial da Edição 31 da Revista Política Democrática Online, Carlos Alberto dos Santos Cruz é general de divisão da reserva do Exército Brasileiro, que foi comandante das forças da ONU no Haiti e no Congo, Secretário Nacional de Segurança Pública e ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência do Brasil.

Saiba mais sobre os autores

Caetano Araújo é graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e consultor legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.

André Amado é escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática Online. É autor de diversos livros, entre eles, A história de detetives e a ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Fonte:


Alon Feuerwerker: Brasil, Indonésia

O Instituto Butantan completou a entrega das 46 milhões de doses da CoronaVac ao Ministério da Saúde (leia), correspondentes ao primeiro contrato.

O desafio agora é produzir e distribuir as 56 milhões de doses relativas ao segundo contrato, para completar as 100 milhões de doses previstas para essa vacina.

Aparentemente há atraso no embarque de insumos da China para o Brasil, e o governo de São Paulo diz que o problema é político.

Já na Indonésia, um levantamento feito com profissionais de saúde imunizados com as duas doses de CoronaVac indicou que a vacina, igual à do Butantan, apresenta-se 98% eficaz para evitar mortes pela Covid-19. E 96% na prevenção de hospitalização.

Esses números têm variado bastante de estudo para estudo no caso da CoronaVac, como tb em outras vacinas. De todo modo, o índice indonésio agora divulgado é uma ótima notícia.

E está em linha com estudo publicado há um mês na Lancet (leia).

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

Fonte:

Análise Política

http://www.alon.jor.br/2021/05/brasil-indonesia.html


Bruno Boghossian: Chefe da Anvisa escancara na CPI conduta destrutiva de Bolsonaro

Antônio Barra Torres se diz amigo de Jair Bolsonaro. Nos primeiros meses da pandemia, o presidente da Anvisa frequentava o Palácio da Alvorada e aconselhava um presidente que já fazia questão de minimizar os riscos daquela crise. Agora, com o país mergulhado na tragédia, ele reconheceu que o governo levou o país pelo caminho errado.

O depoimento de Barra Torres à CPI da Covid escancara a conduta destrutiva de Bolsonaro. A comissão já esperava colher depoimentos incômodos para o presidente entre seus desafetos, como o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, mas nem mesmo um amigo foi capaz de acobertar o estrago feito até aqui.

Indicado por Bolsonaro para o comando da Anvisa, o contra-almirante disse que as declarações feitas pelo presidente sobre a vacinação vão “contra tudo” o que a agência defende. “Discordar de vacina, falar contra vacina não guarda uma razoabilidade histórica”, afirmou. “Eu penso que a população não deva se orientar por condutas dessa maneira.”

Barra Torres tem mandato na Anvisa até 2024. A estabilidade no cargo deve ter garantido tranquilidade para que ele entregasse os delitos do presidente. No depoimento, o contra-almirante disse, sem meias palavras, que a cloroquina não funciona contra a Covid-19 e confirmou que o Palácio do Planalto sediou uma reunião para tentar adequar a bula do remédio aos delírios de Bolsonaro.

Embora tenha participado de uma manifestação ao lado do presidente quando o coronavírus já circulava no país, Barra Torres criticou o incentivo a aglomerações. “[Apesar] da amizade que tenho, a conduta do presidente difere da minha nesse sentido”, declarou. “Não tem nenhum sentido do ponto de vista sanitário.”

O depoimento do amigo de Bolsonaro mostrou que o governo vai ter dificuldades para controlar os estragos que podem ser produzidos pela CPI. O futuro do presidente depende cada vez mais de puxa-sacos como Eduardo Pazuello e de uma tropa de choque bem alimentada formada por políticos do centrão.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/05/chefe-da-anvisa-escancara-na-cpi-conduta-destrutiva-de-bolsonaro.shtml

 


Rosângela Bittar: Fraulein, o regresso

Assim como não existe legalmente, o Centrão não tem preços fixos. De um lado do balcão, o presidente da República. Do outro lado, as legendas, da Câmara sobretudo. Com suas condições no atacado e no varejo. Em postos bem posicionados, com domínio de comissões decisivas para a linha de montagem dos produtos, representantes fanáticas do presidente Jair Bolsonaro.

Essas transações produzem um escândalo atrás do outro. Quem se importa ou se envergonha?

A Câmara dos Deputados descobriu que o preço do presidente Jair Bolsonaro está abaixo da expectativa do Centrão, uma vez que os critérios da barganha parlamentar só consideram de milhões para cima. Para a sociedade tudo isso é incompreensível e doloroso. Como compatibilizar a votação de uma mudança de costumes com as obras físicas inúteis e superfaturadas? Como pesar o engavetamento do impeachment tendo no outro prato da balança a anulação das minorias parlamentares com uma simples mudança do regimento?

As concessões de Bolsonaro são em moeda corrente. Já o capital do Centrão inclui principalmente bens intangíveis. O preço da involução dos costumes, por exemplo, está ficando insuportavelmente alto. As imposições do presidente são, na verdade, um conjunto de ideias fixas, resultantes de seu voluntarismo.

A abertura da Câmara para o voto impresso, por exemplo, é inexplicável em qualquer idioma, um risco não tabelado.

O presidente da Câmara, que conduz as negociações, não atua propriamente como líder, mas como um intermediário que costura composições onerosas.

Quem presta atenção no fato de que puxam o Brasil para trás, exatamente no quesito com que causam admiração ao mundo?

Absurdo que este retrocesso, com a revogação do sistema eletrônico de votação, parta de uma pessoa que não respira a não ser pelos aparelhos do Instagram, do WhatsApp, do Facebook, do Telegram, etc. Nem sabe ainda o que fazer da montanha de papéis inúteis que produzirá.

Colocada à mesa de negociações diante de outra insensatez, que é a demolição do sistema educacional brasileiro e seus avanços seculares, a Câmara se entregou. Achou uma pechincha a imposição da velha escola, a domiciliar. Que tal uma enquete com os pais de estudantes que estão vivendo esta longa temporada de pandemia com os filhos submetidos a aulas remotas ou a aula nenhuma? Como se fosse possível suprimir o papel dos professores e a socialização das crianças e adolescentes, ou eliminar as novas técnicas pedagógicas e sua integração com a ciência e a vida.

A volta a este passado invoca um dos personagens marcantes da literatura brasileira que está no livro Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade, publicado em 1927. A inesquecível fraulein Elza, mais que professora, mestra em tudo. É esta a proposta? O ensino doméstico acabou na primeira Lei de Diretrizes e Bases.

Quem poderá pagar por isso? Quem controlará os planos, métodos e conteúdos? A quem se prestará contas? Quem fará a atualização de conhecimento? Não vale a pena sequer especular.

Produtos caríssimos, que o Centrão paga sem pedir desconto.

Nesse escambo, vale quanto pesa a regressão nas reformas constitucionais. Ou fatiar a reforma tributária não é o mesmo que dela desistir?

Para ter os votos da maioria que transformam o país nesta colcha de retalhos, o presidente vai criando novas moedas, e o Centrão se farta. A mais recente está expressa em um orçamento paralelo e secreto, revelado por Breno Pires em reportagem publicada pelo Estadão. Invenção que vale ouro nesta contabilidade. O resultado pode ser um trator trombando com uma retroescavadeira, um hospital ao lado de outro, uma rodoviária em cima da outra. Obras eleitorais explodirão neste governo como resultado da cooptação da Câmara.

E o vírus da pandemia sob dezenas de novas cepas.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fraulein-o-regresso,70003712017


Fernando Exman: Centro entra na briga pelo “agro-eleitor”

Fevereiro de 2015. Cerca de nove meses antes do início do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, estavam mais do que dados os sinais da polarização em gestação e que há anos trava o jogo político. Aquele evento no Rio de Janeiro, agendado para ser um ato em defesa da administração petista e a gestão do partido à frente da Petrobras, seria lembrado até hoje por produtores rurais que justificam a decisão de aderir ao projeto político do presidente Jair Bolsonaro e já entraram no radar das siglas de centro.

Havia tensão no ar. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegara ao local depois que militantes petistas e oposicionistas já haviam trocado sopapos. A polícia precisou ser acionada.

“Em vez de ficarmos chorando, vamos defender o que é nosso. Defender a Petrobras é defender a democracia e defender a democracia é defender a continuidade do desenvolvimento social neste país”, discursou Lula, convocando os aliados a saírem pelas ruas. Aplausos na plateia.

Entre os presentes, pouco importava a proposital confusão entre a defesa de uma empresa estatal que sofrera um verdadeiro saque e o desagravo a um governo em derrocada. Sabia-se que Dilma não chegaria ao último dia de mandato. Mas, para Lula e seus aliados, era necessário, antes de tudo, manter a militância vigilante.

Ao concluir sua fala, o petista deu a senha para aqueles que precisavam de um motivo para radicalizar do outro lado: “Quero paz e democracia. Mas, se eles não querem, nós sabemos brigar também. Sobretudo quando o João Pedro Stédile colocar o exército dele do nosso lado”.

Era uma óbvia referência ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e à sua capacidade de mobilização no campo ou na cidade. O MST sempre esteve onde o PT ou outros movimentos sociais precisaram de uma forcinha para aumentar o número de participantes em manifestações.

Àquela altura, não estava claro até onde iria chegar o esgarçamento das relações partidárias, quem emergiria para vencer o pleito de 2018 e de que lado se posicionariam os atores políticos dali em diante. Ficou patente, contudo, que o agronegócio teria que procurar alternativas, embora Lula tenha colocado em seu próprio ministério Roberto Rodrigues, uma unanimidade no setor.

Decidiu-se, então, adubar a campanha do deputado Jair Bolsonaro. Os dois grupos passaram a caminhar lado a lado. Só deixarão de marchar juntos novamente em 2022, se uma força de centro conseguir atrair o setor agropecuário para fortalecer uma terceira via.

Depois de eleito, o presidente até achou que poderia governar se aproveitando dessa proximidade. Sua ideia era driblar os partidos e falar diretamente com as bancadas temáticas do Parlamento, entre as quais se destaca justamente a frente parlamentar do agronegócio. Não conseguiu, para a satisfação do Centrão, mas mesmo assim nunca deixou de patrocinar as pautas de interesse do segmento.

Neste mês, por exemplo, duas propostas defendidas pela bancada ruralista passaram a tramitar de forma mais rápida. A Câmara dos Deputados deve aprovar em breve um novo marco regulatório para o licenciamento ambiental. Outro projeto em discussão versa sobre regularização fundiária, bandeira comum entre produtores rurais e autoridades do governo que citam essa medida como panaceia para o combate ao desmatamento ilegal na Amazônia.

Além dos programas conduzidos pelo Ministério da Agricultura, com o Ministério da Infraestrutura Bolsonaro tem buscado dar um empurrão em diversas obras voltadas ao escoamento da produção. Ao Ministério do Desenvolvimento Regional, cabe acelerar a entrega dos empreendimentos relacionados à irrigação.

A Caixa Econômica Federal deve passar a atuar com mais intensidade no setor, onde o Banco do Brasil já é uma referência. Uma das apostas do governo é assegurar oferta de crédito para a construção de silos. Essa medida daria um conveniente apoio ao produtor de menor porte.

Também se tenta destravar os debates internos sobre o próximo Plano Safra, o qual tende a ter seu desenho concluído ainda neste mês. Restrições orçamentárias devem limitar o seu alcance.

A política de flexibilização do acesso a armas e munições também atende ao homem do campo, mas nada se compara ao que se observa em relação à atual debilidade do MST. A escassez de notícias de novas invasões realizadas pelo movimento se tornou um grande trunfo de Bolsonaro. O presidente já incorporou esse fato ao seu discurso. Isso inevitavelmente estará presente na campanha à reeleição.

A redução desse tipo de ocorrência e a alta do preço das commodities estreitam a cada dia a relação dos produtores rurais com o atual ocupante do Palácio do Planalto. Essa conjunção de fatores parece fazê-los esquecer que em praticamente toda semana algum representante do governo federal, se não o próprio presidente da República, protagoniza algum desaforo em direção à China, principal cliente do setor.

Um ato nacional está sendo preparado para o dia 15 e basta percorrer de carro o país para se ter outras evidências dessa parceria. São muitas as placas publicitárias instaladas às margens das estradas por associações rurais locais. Todas em apoio ao presidente.

Se o Ministério Público não tomar alguma atitude para retirar esses anúncios em razão da proximidade do período eleitoral, dificilmente alguma legenda formalizará pedido na Justiça para que a prática seja considerada campanha antecipada. Restaria aos partidos uma saída que buscasse criar conexões diretas com essa parcela da população, como a escolha de um vice originário do agronegócio para a composição de uma chapa alternativa às que serão encabeçadas por Lula e Bolsonaro. É isso o que lideranças políticas de Brasília pensam quando falam de um vice ideal para o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, se o mineiro decidir mesmo deixar o DEM e filiar-se ao PSD para concorrer a Presidência da República

Fonte:

Valor Econômico

https://valor.globo.com/politica/coluna/centro-entra-na-briga-pelo-agro-eleitor.ghtml