vacina
Merval Pereira: Doria exagerou na dose
A Revolta da Vacina 2.0, com o sinal trocado, começou. O governador de São Paulo, João Dória, teve o mérito de alertar para a lentidão do governo Bolsonaro no plano nacional de vacinação contra a Covid-19, e deu a saída para uma rebelião civil a favor da vacina.
Vários outros governadores saíram em busca de uma solução, alguns querendo partilhar com São Paulo as primeiras doses. Aproveitando a onda a favor, Dória exagerou na dose e prometeu vacina para todo brasileiro que estiver em São Paulo, não precisando viver lá, e ainda ofereceu milhões de doses para os Estados que necessitarem.
O resultado previsível é uma corrida para o Estado, e muitos prefeitos de cidades fronteiriças temem uma invasão. Outros governadores querem frear Dória, defendendo uma vacinação nacional concomitante, temerosos de que sejam considerados incapazes comparados com o governador paulista.
O governo Bolsonaro está lento mesmo, e começa-se a desconfiar que está lento de propósito, porque não leva a vacina a sério, não acha que seja a solução, e vai retardando suas decisões. O ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello, já tinha descartado a vacina da Pfizer, com a alegação de que era muito cara sua manutenção. Vários países da América Latina já estão se organizando para recebê-la, países às vezes bem menos organizados e ricos que nós.
O governador da Bahia, o petista Rui Costa, começou uma negociação direta com a Pfizer, e iniciou a compra de refrigeradores compatíveis com a exigência de conservação a - 70. O ministério da Saúde teve que ficar esperto e já está negociando 60 milhões de doses com a Pfizer. O governador do Maranhão, Flavio Dino, do PCdoB, já entrou no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo autorização para usar qualquer vacina aprovada por instituições de controle sanitário, como a Food and Drugs Administration (FDA), nos EUA.
Era claro que isso aconteceria, porque só os irresponsáveis não sabem que a vacina é a solução. Só um governo irresponsável não dá prioridade a este assunto, e fica inaugurando uma patética exposição da roupa de posse do presidente.
Uma lei, publicada logo no início da pandemia, permite o uso de vacinas aprovadas por órgãos oficiais de controle de outros países como Estados Unidos, União Européia, Japão, China. A ANVISA precisa apenas autorizar, e não aprovar as vacinas, e tem 72 horas para isso. Caso não autorize nesse tempo, a vacina está automaticamente aprovada. Para recusar, terá que ter argumento muito forte para se contrapor a suas congêneres internacionais.
O governo não quis fazer um plano nacional de vacinação, e perdeu o controle da situação. Agora está tentando retomar o domínio, aproveitando-se de que alguns governadores e prefeitos estão incomodados com a pretensão de Dória de liderar o processo de vacinação. O prefeito eleito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, citado por Doria como pretendente à vacina do Butantan, desmentiu ontem, avisando que vai esperar a vacinação nacional do ministério da Saúde.
A Fiocruz, no Rio de Janeiro, está se programando para iniciar a vacinação junto com o ministério da Saúde, em março. O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, bolsonarista, acha que Doria está tirando proveito político por ter em seu Estado o Instituto que fez acordo com a Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca.
O ministro Pazuello tentou colocar Doria contra os demais governadores dizendo que a vacina não é de São Paulo, mas do Instituto Butantan. Acontece que o Instituto foi fundado pelo governo de São Paulo em 1901, e desde então faz parte da Secretaria de Saúde do Estado.
Os movimentos do governador João Doria foram fundamentais para tirar o governo do imobilismo, mas ele precisa conter-se para não deixar a impressão de que está abusando politicamente da vacina. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse recentemente que Doria precisa nacionalizar seu nome, se quiser ser candidato à presidência da República, e parece que o governador paulista está seguindo seu conselho, distribuindo a vacina para quem quiser. É preciso saber se terá tantos milhões de doses necessárias para nacionalizar a vacinação.
Jamil Chade: As veias abertas do mundo
Três décadas depois do ápice da crise da Aids, o planeta comete os mesmos erros e ameaça deixar bilhões de pessoas sem acesso a tratamentos e vacinas contra a covid-19
Em meados dos anos noventa, um tratamento contra o vírus HIV já existia, permitindo ampliar a sobrevivência daqueles que tinham sido infectados. Mas esse benefício da ciência praticamente só era uma realidade para aqueles que viviam em países ricos. O tratamento custava em média 10.000 dólares por ano e, assim, um paciente na África precisaria do equivalente a 20 anos de salários para pagar por apenas alguns meses do coquetel de remédios que deveria tomar para o resto de sua vida.
Na prática, o tratamento não existia para uma enorme porção da população mundial.
- Lições do HIV para a covid-19
- Britânica de 90 anos é a primeira pessoa do Reino Unido a receber vacina contra covid-19 após testes
- Wanderson de Oliveira: “Não é possível uma grande campanha de vacinação no Brasil já a partir do primeiro semestre”
De acordo com a entidade Médicos Sem Fronteiras, até que os remédios fossem disponibilizados em sua versão genérica e sem patentes para essas populações mais pobres a um custo de 1 dólar por dia, 11 milhões de pessoas morreram apenas no continente africano.
Nem todos eles teriam sido salvos se os remédios chegassem antes. Mas certamente milhões de famílias poderiam ter evitado o pior e prolongado a vida —inclusive produtiva— de seus entes queridos.
Trinta anos depois, o mundo caminha para repetir uma história similar e revelar que a humanidade sofre de uma amnésia aguda quando o tema é salvar vidas.
Diante da pandemia da covid-19, vacinas começam a chegar ao mercado e a ciência revela todo seu esplendor em promover um resultado em tempo recorde. No Reino Unido, uma senhora de 90 anos, Margaret Keenan, entrará para a história como a primeira a receber a vacina num país ocidental, nesta terça. Para muitos, a esperança é de que aquela dose represente o começo do fim de um pesadelo.
Mas nem essa ciência é para todos nem esse recorde é universal. Como já foi dito antes, se na primeira vez a história ocorreu como uma tragédia, ela se repete como uma farsa.
Atualmente, mais de 50% da capacidade de produção de vacinas no mundo já está reservada ou compradapor um grupo pequeno de países que, juntos, representam apenas 13% da população mundial. Levantamentos da Universidade Duke, nos EUA, revelam que Canadá, EUA e UE já garantiram doses que seriam suficientes para vacinar várias vezes toda sua população. Já dezenas de Governos simplesmente não contam com nem sequer uma dose.
Na esperança de garantir maior acesso e um melhor equilíbrio na distribuição, cem países em desenvolvimento apresentaram um projeto ambicioso: suspender patentes de produtos relacionados com a covid-19 e, assim, garantir sua produção genérica para permitir uma queda acentuada de preços e uma maior fabricação pelo mundo. Mas nem todos estão de acordo.
Nesta quinta-feira, uma reunião na Organização Mundial do Comércio (OMC) pode começar a definir qual o caminho que será tomado. Fundamental para a inovação, as patentes também são monopólios estabelecidos para recompensar o inventor pelos riscos que assumiu. Mas a qual preço para a humanidade?
Em salas elegantes em Genebra, negociadores de países desenvolvidos e detentores dessas patentes circulam na OMC com argumentos eloquentes, aparentemente sofisticados e repletos de diplomacia para justificar uma recusa ao projeto.
Para esse grupo, basta seguir a lei internacional de propriedade intelectual para assegurar um abastecimento. Por essas normas, um país pode solicitar a importação de um produto genérico caso uma situação de emergência exija. Na teoria, isso pode fazer sentido. Mas a realidade é que, em alguns casos, tal autorização poderia levar até três anos para ser concedida. Quantos morrerão até lá?
Alguns desses negociadores usam ainda de argumentos reais: de que vale quebrar uma patente para um remédio, tratamento ou vacina se a estrada até chegar a um certo povoado não existe?
Ao mencionar fragilidades dos países pobres, eles parecem ignorar como, no caso da Aids, os remédios genéricos transformaram a realidade de dezenas de países.
Eles tampouco citam dados da ONU que revelam que, durante a atual pandemia, a importação per capita de produtos médicos destinados a mitigar o impacto da covid-19 foi 100 vezes maior nos países ricos, em comparação às economias mais pobres do mundo.
Tampouco é mencionado como, na Itália, dois engenheiros resolveram usar uma impressora 3D para fabricar válvulas para respiradores de um hospital foram processados por violar regras de patentes. Quantas vidas aquela impressora teria salvo?
Uma vez mais, a crise sanitária de 2020 escancara a falácia de que o avanço da ciência funciona para todos. Por décadas, empresas abandonaram pesquisas sobre doenças que afetavam os mais pobres e que, portanto, não renderiam dividendo aos investidores. Elas foram chamadas de “doenças negligenciadas”, um nome hipócrita para falar, no fundo, de povos negligenciados.
Outro argumento que se desfaz na atual pandemia é de que empresas privadas precisam ser devidamente recompensadas por suas apostas na pesquisa de uma nova vacina, que poderia não funcionar. Elas têm razão. Mas, antes, precisariam revelar como, apenas no caso da covid-19, receberam o equivalente a 12 bilhões de dólares em recursos públicos de Governos para garantir suas inovações.
A equação é clara: o risco é coletivo. Se uma aposta numa vacina não funcionar, a empresa tem a segurança de ser resgatada por dinheiro público. Mas, em caso de vitória, a patente é sua recompensa e o lucro, obviamente, é privado.
A longo da atual pandemia, empresas têm alegado que precisam de 1 bilhão de dólares para desenvolver uma vacina e, portanto, querem a proteção de suas invenções. Esse mesmo setor privado, porém, não revela quanto recebem em isenções fiscais, em apoio de instituições públicas de inovação e nem qual será a margem de lucro de seu novo produto.
Na atual crise, há ainda um casamento silencioso sendo estabelecido. Nas negociações internacionais, Governos de países ricos garantem a proteção a suas multinacionais e indicam que não vão aceitar a ideia da quebra de patentes de produtos relacionados com a covid-19 na OMC. Em troca, recebem garantias de que serão os primeiros a serem abastecidos pelas vacinas.
Para preencher o vácuo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se apressou para criar um sistema que permita que uma parcela dessa inovação chegue aos países mais pobres e que essas populações não sejam pisoteadas na corrida pela salvação. Assim, a aliança mundial de vacinas —a Covax— foi estabelecida.
Mas a iniciativa vive uma falta crônica de recursos e simplesmente, com o que tem em caixa, não conseguirá atingir seu objetivo de chegar a 1 bilhão de pessoas até o final de 2021 em mais de 90 países.
Em eventos na ONU, na OMS, no G20 ou em outros fóruns internacionais, não são poucos os líderes que fazem discursos garantindo que a vacina precisa ser um bem público internacional.
Mas não aceitam a quebra de patentes nem abrem seus bolsos para garantir que a inovação chegue aos países mais pobres. Promessas vazias e uma fraude à humanidade.
Uma vez mais, os ricos vão ser os primeiros a serem imunizados. Enquanto isso, o restante —frequentemente mais escuro, mais exausto, mais distante de seus sonhos e mais desprotegido— faz uma fila interminável de esperança na forma de uma dose da vacina.
Em 2020, existe a cura para muitas doenças que matam. Existem alimentos para abastecer três planetas. E existem pessoas dispostas a ir ao socorro dessas populações. O que nem sempre existe é o compromisso politico para que isso se transforme em realidade.
O que existe hoje no mundo é um sistema que serve para estancar o sangue de uma ferida mais profunda, sem que a estrutura de poder seja modificada e sem que o monopólio seja desfeito. Para as veias abertas do mundo, o que temos no momento são curativos improvisados e insuficientes, prestes a definhar.
Assim como nos anos noventa, fica mais uma vez claro em 2020 que a vida ou a morte não dependem apenas do avanço da ciência. Mas de quem você é e onde, por acidente, nasceu.
Joel Pinheiro da Fonseca: Bolsonaro prefere prolongar a pandemia a beneficiar Doria
Esperar uma conduta digna e racional do presidente virou utopia
Imagine um país no qual a descoberta de uma vacina salvadora para a pior epidemia do século contasse com o apoio do presidente, e não com a sabotagem ativa de seu governo e da rede de bajuladores profissionais. Sim, estou ousado na utopia.
Lá atrás, no início da pandemia, Jair Bolsonaro e João Doria fizeram cada um a sua aposta de vacina: um no consórcio da Fiocruz com a AstraZeneca, o outro no do Butantan com a Sinovac.
Não tinha como saber qual ficaria pronta antes; era questão de sorte. Calhou de ser a vacina de SP, que está mais avançada no processo de testagem.
Era natural de se esperar que aquela que ficasse pronta antes traria algum ganho ao político que nela apostou. Isso é do jogo. O governo Bolsonaro tinha, ademais, a faca e o queijo na mão para partilhar com Doria os louros dessa vitória. O ministro da Saúde até tentou fazer seu trabalho: negociou a compra de doses da Coronavac pelo governo federal (desde que ela fosse devidamente testada e aprovada) e já apontava a direção: ela seria a vacina do Brasil, não de um estado específico.
Bolsonaro não gostou. Para negar qualquer holofote a um possível futuro rival, ele prefere deixar a pandemia correr solta.
Apoiadores de Bolsonaro atacam o governo de São Paulo por não ter aguardado a autorização da Anvisa antes de colocar prazos em seu plano de vacinação.
Ora, se se pautasse pela lerdeza proposta pelos críticos —fizesse, em suma, como o governo federal— o governo de São Paulo estaria traindo a população. É preciso que tudo já esteja pronto e planejado para quando a Anvisa finalmente liberar a aplicação. Se deixar as providências para depois, aí é que não teremos vacina tão cedo.
Em um texto particularmente alucinado, o assessor internacional de Bolsonaro, Filipe Martins, disse que os atos de Doria o alinham à "tirania global". Ter um plano para vacinar a população (inclusive pessoas de outros estados) e comprar doses da vacina. Que tirania terrível!
Só não é tão terrível quanto a omissão criminosa de Bolsonaro. Não tem plano de vacinação estruturado, não comprou os insumos para vacinar a população, não tem doses de vacina em quantidade.
Segundo informações da BBC, as compras de seringas, algodão e outros insumos já estão atrasadas. Mesmo que a licitação seja concluída ainda em dezembro, serão de 60 a 90 dias até que a compra seja entregue. Ou seja, perder-se-ão dias valiosos.
Todo mundo é político: Doria não menos que Bolsonaro. O grande teste é até onde se está disposto a sacrificar outros valores em nome do ganho político. Para um líder comprometido com o bem comum, haverá certas coisas que ele não estará disposto a fazer para ganhar mais poder. Para um projeto tirânico, não há limite: vale tudo para abocanhar uma fatia maior ou para prejudicar um adversário, o que dá no mesmo.
Agora a bola está com a Anvisa. Não acredito que ela seria capaz do crime de atrasar propositalmente a certificação de uma vacina apenas para agradar ao chefe do Executivo.
Graças a legislação aprovada pelo próprio Bolsonaro no início da pandemia, no entanto, já existem caminhos legais para aplicar a vacina em caráter emergencial caso a Anvisa demore.
Para os torcedores do presidente, cabe indagar: vale a pena —até mesmo do ponto de vista político— comprar essa briga e tentar barrar na Justiça uma vacina que pode salvar milhões? Eu já não duvido de nada. Esperar conduta digna e racional virou utopia.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
Marco Aurélio Nogueira: O Supremo, o Congresso, a vacina
A politização da vacinação é criminosa, porque afeta a saúde da população e compromete o futuro
Passada uma semana do encerramento das eleições municipais, quando ainda se faz o balanço dos recados das urnas, a agenda política ficou concentrada na possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. A questão, devidamente “judicializada”, foi resolvido pelos ministros togados do STF, que por 6 votos a 5 mantiveram a cláusula constitucional e afastaram de si o cálice do casuísmo.
Abriu-se então, a todo vapor, as negociações congressuais para definir quem substituirá Rodrigo Maria e Davi Alcolumbre.
Este foi o cenário que flutuou na superfície, importante mas não tão decisivo. Por sobre ele, afirmou-se questão mais grave, de claro caráter estratégico e enorme dramaticidade, dado que afeta diretamente a saúde da população e terminará por envolver tanto o Supremo quanto o Congresso, além dos governos estaduais e de seu relacionamento institucional com Brasília.
A vacina e a vacinação contra o COVID-19 saiu das sombras da politização para ganhar extrema visibilidade, expondo, à luz do dia, o despreparo nacional para enfrentar a pandemia. Ao passo que muitos países desenvolvidos e em desenvolvimento cuidaram de comprar doses das vacinas já aprovadas (Pfizer e Moderna), o Brasil ficou a ver navios, pendurado na cegueira do Ministério da Saúde e de seu ministro, que pouco faz além de obedecer ao presidente. O risco, agora, é que entremos em 2021 sem vacinas em tempo hábil para o conjunto da população. Há notícias, também, de que faltam insumos para a vacinação, como seringas, freezer e algodão. Ou seja, o básico.
Não há logística que possa resolver isso no curto prazo. O tempo perdido será um tempo de mais vidas perdidas. O cenário que se anuncia é da adoção plena da descentralização (federativa?): cada estado da União resolve o problema do seu jeito e conforme suas possibilidades, ou apelando para os russos da Sputnik, ou adquirindo algumas doses da produção da Coronavac em produção no Instituto Butantã, ou mesmo buscando quem a tenha para vender no mercado internacional.
O governador de São Paulo, João Doria, está atento a tudo isso. Ao mesmo tempo em que negocia politicamente o recurso de valor que detém, procura fazer o que se espera e batalha para começar a vacinação em 25 de janeiro, caso tudo seja aprovado pela ANVISA – o órgão regulador que entrou de gaiato no navio e se deixou capturar pelos conflitos políticos.
O desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19 é uma batalha tecnocientífica. O circuito organizado por cientistas de vários países conseguiu a proeza de produzir alguns imunizantes que estão a indicar alto grau de eficácia e segurança. Grandes farmacêuticas disputam entre si para ver quem venderá mais e melhor seus produtos, mas todas trabalham com critério e foco na saúde pública. Seguem parâmetros médicos rigorosos, como sempre ocorreu com toda tentativa de imunização. Dada a agressividade da pandemia, a pesquisa se acelerou extraordinariamente e tudo indica que no início do próximo ano haja boa oferta de vacinas confiáveis e eficientes.
O problema é que o mundo está contaminado por negacionistas, pessoas que recusam a ciência e desconfiam da medicina. No Brasil, o próprio governo federal se mostra hostil à imunização, seja porque rejeita a gravidade da doença, seja porque a associa a planos “imperialistas” da China, seja porque não aceita que a primazia pela “vacina nacional” seja de João Doria. Manipula a dimensão sanitária do problema, gerando com isso reações em cadeia de governadores estaduais e da opinião pública.
A politização das vacinas foi posta na mesa. Vergonhosamente. Ela é criminosa, porque afeta a saúde da população e dificulta ainda mais a imunização. Uma de suas faces mais trágicas diz respeito a definir se a vacinação será ou não “obrigatória”. Os negacionistas alegam que ninguém pode ser obrigado a tomar um remédio e não consideram que, numa pandemia, cada indivíduo se converte em um vetor de transmissão viral: a imunização de um beneficia a todos. As besteiras que vem sendo espalhadas nas redes – que vão da convicção de que as vacinas são ineficazes à afirmação de que agem para modificar a estrutura genética e o DNA das pessoas – fazem corar de vergonha qualquer bom estudante do ensino médio e qualquer cidadão de bom senso.
Com tamanha falta de coordenação, duas coisas poderão acontecer. Uma é a desmoralização do presidente da República. Outra, o relaxamento ainda maior da população quando souber da disponibilidade da vacina e achar que depois dela nenhum outro cuidado sanitário precisará ser tomado.
A disputa para saber qual vacina será mais eficaz – se a “chinesa” patrocinada pelo governador de São Paulo, se a que está sendo endossada pelo Ministério da Saúde e pelos organismos federais, se alguma outra que será comprada a toque de caixa – é mesquinha e patética. Ela expressa a falta que fazem um bom planejamento, o respeito aos especialistas, a valorização do SUS, a capacidade política de articulação e comunicação do governo federal.
Não temos nada disso no País. O despreparo governamental é acachapante, desastroso. O resultado é que a população não sabe para onde caminhar e a quem seguir, se haverá ou não vacinas disponíveis, se elas serão efetivamente distribuídas e disponibilizadas, se as informações em circulação são ou não confiáveis.
Menos mal que São Paulo parece disposto a seguir em frente, convencido da eficácia e da segurança da vacina “chinesa”.
Pesquisadores do mundo todo, incluídos os brasileiros, têm insistido na ideia de que não há vacinas “nacionais”, mas vacinas que funcionam. Quanto mais variantes delas existirem, melhor.
É uma mensagem importante, que, no entanto, não chega à população brasileira com a velocidade e o rigor que seriam necessários.
Marcelo Godoy: Vacina e legalidade: as as razões que levaram Santos Cruz à oposição a Bolsonaro
Quando decidiu escrever um artigo para o Estadão, o general decidiu que era chegada a hora de parar de poupar o ex-chefe; falta de ação contra pandemia o fez aumentar as críticas
Caro leitor,
O general Santos Cruz estava cuidando da roça quando tocou o telefone em sua casa. Queriam avisá-lo do conteúdo do inquérito dos atos antidemocráticos da Polícia Federal divulgado pelo Estadão. Pouco depois, começaram as chamadas dos jornalistas. Para a Coluna do Estadão, o general disse que nada daquilo lhe causava surpresa: “É lastimável o fluxo de dinheiro para alguns apoiadores, As consequências tem de ser dentro da lei.” O general torce. Contar a razão disso ajuda a pôr luz em alguns dos principais eventos do governo de Jair Bolsonaro.
Os privilégios aos blogueiros inventados pelo bolsonarismo para fazer propaganda do governo e gerar lucro para os envolvidos nessa operação não surpreenderam o general porque Santos Cruz conheceu de perto a ascensão de pessoas como Alan dos Santos, um dos parvenus investigados pela PF. Afinal, quem bancava as viagens a Brasília, as instalações confortáveis e as estadias no exterior dessa turma? É o que a PF e o general gostariam de saber.
Uma coisa, no entanto, o general sabe: quem abriu o gabinete presidencial para essa tropa de ‘nouveau riche’? A resposta é simples: o próprio presidente, aquele que afirmou na reunião ministerial de 22 de abril que seus adversários queriam a “nossa hemorroida, a nossa liberdade”. Sem explicar até agora o que uma tinha a ver com a outra... Generais como Santos Cruz recebem seus salários de fonte conhecida e descontam os impostos na fonte. A PF indaga como essas coisas funcionam com os blogueiros bolsonaristas.
Santos Cruz fora Secretário Nacional da Segurança Pública no governo de Michel Temer e um dos oficiais que participaram da articulação que levou Jair Bolsonaro ao poder. É criticado, por isso, pela oposição, que não lhe perdoa a adesão ao bolsonarismo. Diz que, ao contrário da maioria dos eleitores que se decepcionou com o governo, ele conhecia Bolsonaro e sabia o que esperar do colega. E se pergunta quais as ligações de Santos Cruz com o chamado “partido militar”, o grupo que resolveu trocar a política do Exército pela opção de tentar fazer política no Exército.
Apesar das desconfianças de alguns, o ex-ministro-chefe da secretaria de Governo é cortejado por partidos políticos e chegou a ser convidado pelo governador João Doria para entrar no PSDB. O general se diz um homem de direita. E, ao lado de colegas, apresentava um argumento para justificar sua passagem pela política: o combate à corrupção. Mas pensava que um governo devia dialogar e ouvir a todos, independentemente de partidos.
Sabia da limitação dos militares para assumir funções civis para as quais não foram treinados. Aos amigos, dizia: "Cabos sabem fazer muito bem as coisas militares que se esperam dos cabos, assim como os sargentos, os tenentes e os generais. É uma ilusão pensar que podemos cuidar de tudo." No governo, teve a Secretaria de Comunicação – e suas verbas publicitárias – subordinada à sua pasta. Estudou como a publicidade oficial funcionava, quais contratos mantinha e com quem. E logo barrou um de R$ 39 milhões para divulgar a viagem de Bolsonaro a Davos. Justificou-se com o fato de que a imprensa já ia cobrir a presença do presidente no evento.
Também não aceitou direcionar a verba de publicidade a aliados e amigos, defendendo critérios técnicos como audiência, tiragem, abrangência e público alvo. Não demorou a entrar na mira da turma de Carlos Bolsonaro, o filho do presidente que é citado 43 vezes no inquérito que apura a existência de uma organização criminosa por trás dos atos em Brasília que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Santos Cruz não entendia por que um contrato de R$ 40 milhões era assinado com uma agência se a execução dele não passava de R$ 12 milhões.
Também não entendia por que o governo pretendia gastar tanto em publicidade com a reforma da Previdência, se era um tema já explorado pelo governo de Michel Temer e se havia apoio à medida ainda maior na atual Legislatura. Dizia então que a sociedade toda já sabia do que se tratava. E, ainda que pensasse que, ser filho de presidente, não é uma função pública, nada pôde contra as intrigas dos parvenus em busca de uma janelinha no Planalto.
Lembrava que a promessa do governo Bolsonaro era “fazer diferente” de seus antecessores. E pensava na Revolução dos Bichos, de quando Bola de Neve escreveu os princípios do animalismo – os sete mandamentos – na parede da granja. Naquele dia, todos partiram para colher o feno e quando voltaram à noite perceberam que o leite das vacas havia sumido.
Acabou demitido antes de apresentar seu plano de comunicação governamental no qual pretendia defender que a “comunicação do governo não pode ser mercadológica, não pode ser ideológica e deve transmitir informações, em vez de mera propaganda de governo ou de pessoas”. Por fim, o general pensava que a política do Planalto não podia concorrer com outros veículos de comunicação.
Após deixar o governo, Santos Cruz permaneceu quase um ano comedido ao falar do governo e poupava o presidente. Foi assim mesmo depois da demissão de Sérgio Moro e das afirmações do ministro da Justiça de que Bolsonaro queria usar a PF para favorecer o filho denunciado por desviar dinheiro público. O que o fez mudar de postura e passar a criticar abertamente o presidente foi a decisão de Bolsonaro comparecer a uma manifestação em frente ao QG do Exército, que pedia o fechamento do Congresso e do STF.
Decidiu falar no momento em que viu colegas da reserva próximos de Bolsonaro defenderem uma extravagância: o papel de Poder Moderador das Forças Armadas diante de conflitos institucionais. Era a tese do golpe de Estado que pretendia fingir legalidade onde só havia a intenção de se praticar um crime contra a Constituição. Ela levou o general a escrever um artigo publicado no Estadão. Seu primeiro passo na mudança de tom em relação ao governo.
Santos Cruz pressentiu a tentativa de se envolver o Exército em uma aventura, assim como o bridaieor Sérgio Xavier Ferolla, ex-presidente do Superior Tribunal Militar. Sabia que a grande maioria dos colegas não se envolveria na discussão, mas acreditava ser necessário enfrentar os extremistas que dominavam a cena. E se justificou para os amigos: “Há três pragas hoje no Brasil: a corrupção, o coronavírus e o fanatismo”. No dia 12 de novembro, foi mais longe ao escrever no Twitter: “Cansado do Show. O Brasil não é um País de maricas. É tolerante demais com a desigualdade social, corrupção, privilégios. Votou contra extremismos e corrupção. Votou por equilíbrio e união. Precisa de seriedade e não de show, espetáculo, embuste, fanfarronice e desrespeito."
CANSADO DE SHOW. O Brasil nâo é um país de maricas. É tolerante demais com a desigualdade social, corrupção, privilégios. Votou contra extremismos e corrupção. Votou por equilíbrio e união. Precisa de seriedade e não de show, espetáculo, embuste, fanfarronice e desrespeito. — General Santos Cruz (@GenSantosCruz) November 12, 2020
Um dia antes, havia desabafado contra Bolsonaro, que comemorara a morte de um brasileiro no que pensava ser o fracasso da coronavac, a vacina desenvolvida no Instituto Butantã em parceria com a Sinovac chinesa. “Ganhou de quem? Vacina, qualquer que seja, é saúde pública. É para a população. Não é assunto particular. O trato tem ser técnico e dentro da lei. Fora disso é irresponsabilidade, falta de noção mínima das obrigações, desrespeito pela saúde dos cidadãos. Vergonha! Sem classificação!"
Recentemente, para um político que o procurou pedindo que assinasse uma ficha de filiação partidária, o general explicou a recusa, afirmando que, assim, acredita que sua voz será ouvida por mais gente e não só pelos filiados daquele partido. Embora comemore a presença de militares na política como mais uma opção para o eleitor, Santos Cruz acredita que a uma ilusão de achar que eles são a solução para a gestão pública é muita vezes propagada pela imprensa. Militares são competentes para as coisas militares; as demais dependeriam da capacidade de cada um. Esse seria o caso do general Pazuello.
Não é de um intendente, como Pazuello, que o País precisaria à frente do Ministério da Saúde, mas de alguém que entenda de políticas públicas. O intendente especialista em logística não consegue comprar seringas e agulhas para vacinar a população. E se submete a um chefe que não o deixa comprar vacinas. Ou como afirmou Gonzalo Vecina, fundador ex-presidente da Anvisa: "Propor vacinação só em março e alcançar no máximo um terço da população em 2021 é um crime". Militar da ativa, Pazuello ajudaria a vincular o Exército ao governo que comete esse crime. Mas antes de responsabilizar o general, Santos Cruz sabe que é preciso olhar para o Planalto. É lá que está o presidente da República, que devia sentar na cabeceira da mesa de reuniões e definir o que se deve fazer na maior crise sanitária do século, em vez de se omitir, brigar por causa de vacina e chamar o povo de maricas.
Ascânio Seleme: Crime sem perdão contra os brasileiros
Muitas das dezenas de milhares de mortes que vão ocorrer nos primeiros meses do ano que vem devem ser atribuídas às estúpidas diretrizes políticas de Bolsonaro
Morrerão 44.545 brasileiros de Covid nos meses de janeiro e fevereiro do ano que vem, mantida a média atual de 775 óbitos registrados em 24 horas. Muitas destas pessoas poderiam ser salvas se o governo de Jair Bolsonaro não fosse negacionista e, por consequência, deliberadamente ineficiente. O Ministério da Saúde anunciou que vai iniciar a vacinação no Brasil apenas em março, acrescentando que somente um terço dos brasileiros serão imunizados em 2021. Além disso, descartou três das quatro vacinas que foram testadas no Brasil.
Difícil dizer quantas exatamente, mas muitas das dezenas de milhares de mortes que vão ocorrer nos primeiros meses do ano que vem devem ser atribuídas às estúpidas diretrizes políticas de Bolsonaro, obedecidas cegamente pelo imprevidente ministro Eduardo Pazuello. Se a vacinação começar na verdade somente no final de março ou no início de abril, como informam fontes do Ministério da Saúde, o número de mortos até que se comece o processo de imunização vai passar dos 65 mil. O lamentável é que o mais provável seja mesmo o pior cenário, dada a estupenda inoperância governamental.
A Inglaterra começa a vacinação muito provavelmente antes do Natal. Outros países europeus iniciam o processo massivo de imunização na primeira semana de janeiro. Na Argentina, do “inimigo” Alberto Fernández, a vacinação começa na primeira quinzena de janeiro. Também México, Chile, Peru e Costa Rica, para ficar apenas aqui na nossa região, começam a vacinar suas populações entre o fim de dezembro e o início de janeiro de 2021. Todos estes países compraram a vacina do laboratório Pfizer, que o governo brasileiro se recusa a considerar alegando que a estocagem a temperaturas muito baixas é complicada. No Equador deve ser mais complicado que aqui, mas lá também as vacinas da Pfizer começarão a ser administradas em janeiro.
Além do negacionismo declarado de Jair Bolsonaro, seus subalternos dobram-se à sua orientação ou são demitidos, como foram Luiz Mandetta e Nelson Teich. Por isso, o ministro Pazuello, um general que temporariamente tirou a farda mas jamais conseguirá vestir um avental, fala e faz apenas o que seu chefe mandar. “Obedece quem tem juízo”, disse o desajuizado general que, indo pela cabeça do presidente, trabalha contra os interesses do seu ministério, contra a saúde pública, o que é crime. Na Anvisa, o presidente é outro militar, o almirante Antônio Barra Torres, que também bate continência para qualquer barbaridade que o capitão lhe disser.
Não foi por outra razão que a Anvisa tentou atrasar os testes da CoronaVac em São Paulo, em novembro. Jamais se justificaria a paralisação dos trabalhos em razão do suicídio cometido por uma das pessoas que estavam sendo testadas pelo Instituto Butantan. Mas foi o que a Anvisa fez. No final, foi um vexame protagonizado por um militar e dois subalternos curvados como ele. Na ocasião, o governador de São Paulo identificou corretamente o movimento como uma ação política do Planalto. Mas João Doria tinha desde então o antídoto para o caso de a má vontade da Anvisa perseverar e mais adiante ela se recusar a certificar a vacina, que já está em sua última fase de testes.
Desde meados de novembro, o governador já informava que se três agências estrangeiras do porte da Anvisa liberarem a vacina, ela pode ser usada em qualquer outro país por acordo global aprovado pela OMS. Medicamentos testados pela FDA americana, por exemplo, são importados pelo Brasil com prévia anuência da Anvisa, mesmo sem testagens ou estudos adicionais. Por isso, São Paulo vai ignorar a orientação do governo e iniciar a vacinação com a CoronaVac no estado ainda em janeiro, desafiou Doria na quinta-feira.
O problema é que Bolsonaro é um estorvo. Ele fará o que for preciso para sabotar a vacina de São Paulo, que terá 40 milhões de doses prontas para serem administradas até o dia 15 de janeiro. Evitar que São Paulo saia na frente é tudo o que o presidente negacionista mais deseja. Não estranhem se ele mandar a Polícia Federal ocupar o Instituto Butantan para impedir a produção ou a distribuição das vacinas. Seria um absurdo, claro. Bolsonaro não deve ser tão alucinado assim. O resultado seria catastrófico, e o crime imperdoável já cometido se agravaria e se tornaria doloso.
Seringas
Fabricantes dizem que vão precisar de sete meses para entregar as 200 milhões de seringas necessárias para imunizar os brasileiros. Fala sério. Aumentem a linha de produção em quatro turnos, façam novas fábricas, adaptem outras. Estamos em guerra. Logo depois do ataque japonês a Pearl Harbor, o presidente Franklin Roosevelt mandou que a indústria americana produzisse, em dois anos, 185 mil aviões, 120 mil tanques, 55 milhões de canhões antiaéreos e 18 milhões de toneladas de navios. Tudo foi produzido no prazo dado. Agora, claro, no caso das seringas é preciso haver a ordem, que até agora não foi dada pelo inoperante governo brasileiro.
Revalidando remédios
Um trabalho publicado em 2003 pela Escola de Medicina de Harvard informa que 90% dos remédios continuam sendo eficientes mesmo 15 anos depois de expiradas suas datas de validade. A questão virou assunto no Brasil quando descobriu-se que seis milhões de doses do teste para coronavírus, que foram abandonadas pelo ineficiente Ministério da Saúde em um galpão de São Paulo, têm data de validade até janeiro do ano que vem. Segundo a FDA, a seríssima similar da Anvisa nos EUA, excluídos o trinitrato de glicerina, a insulina e os antibióticos líquidos, a maioria dos medicamentos duram muito, mas muito mais do que estabelecido pelos laboratórios fabricantes.
Simplíssimo
O inacreditável presidente do Brasil produziu outra de suas costumeiras asneiras esta semana. Numa entrevista na terça explicou por que ainda não cumprimentou o presidente eleito dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden. “Teve muita fraude lá”, explicou o simplíssimo do alto da sabedoria que subtraiu do extraordinário ministro Ernesto Araújo.
Campeão de rachadinhas
O candidato de Bolsonaro para presidir a Câmara, deputado Arthur Lira, é um velho conhecido da Justiça. O indigitado é réu em processos por desvios de recursos públicos e enriquecimento ilícito, foi denunciado por lavagem de dinheiro na Lava-Jato e responde a ação no Supremo por violência doméstica. Não bastasse isso, o “Estadão” publicou na quinta-feira matéria do repórter Breno Pires relatando desvios de mais de R$ 1 milhão dos contracheques de funcionários do gabinete de Lira em Alagoas. Trata-se de um campeão de falcatruas no estado, o que não é pouca coisa em se tratando da terra de Fernando Collor e Renan Calheiros. Mas o deputado pode ficar tranquilo, Bolsonaro já mandou avisar que sua família considera que denúncias de rachadinha são sacanagem da imprensa. Sua excelência anunciou ainda que vai criar ministérios para trocar por votos em favor de Lira.
FLA incompetente
Era mito, era miragem, a famosa competência da diretoria do Flamengo. Em 2019, ao ganhar quase tudo, criou-se uma aura de infalibilidade em torno dos cartolas rubro-negros. Mas, bastou Jesus, Rafinha e Mari saírem para a verdade vir à tona. As contratações dos substitutos e reforços foram todas erradas. Na área administrativa, o novo departamento médico do clube fracassou. Além disso, os dirigentes do Flamengo flertaram com Bolsonaro e fizeram pouco caso do coronavírus. Foi um horror. Mas antes da casa cair, um deles acabou eleito vereador. Se depender do torcedor, terá um mandato só.
26 dias
Este é o prazo que falta para a gente não precisar mais falar ou pensar no bispo Marcelo Crivella. O carioca deve se sentir aliviado, como se acordasse de um pesadelo. Ou como se estivesse se levantando da cadeira do dentista depois de um demorado tratamento de canal. Isso não quer dizer que o Rio agora vai automaticamente voltar a dar certo. O voto de confiança que o carioca deu a Eduardo Paes foi carregado de cobranças. O prefeito eleito terá de comprovar sua capacidade de gerir situações emergenciais. O jovem secretariado indicado tem tudo para funcionar bem, mas não custa lembrar que 2021 não vem com a dinheirama pré-olímpica. De todo modo, só não precisar mais ouvir aquela vozinha de pastor de Crivella já é um ganho.
Banalidade
São cada vez mais corriqueiros os ataques armados em pequenas cidades brasileiras, como os de Criciúma e Cametá. Nenhuma dúvida, a violência no interior não tem mais medida, embora não surpreenda tanto os moradores das grandes cidades. No Rio, aqueles ataques foram comparados aos que sofremos cotidianamente por aqui. Foi Antonio Tabet quem notou primeiro: “A madrugada em Criciúma foi o que os cariocas chamam carinhosamente de quarta-feira à tarde na Tijuca”.
Herança
Na cidade maravilhosa, aliás, o tráfico segue os passos da milícia e do bicho e também começa a se transformar em capitanias hereditárias. Julia Fernandes, a filha do traficante Elias Maluco, foi presa quarta-feira pela Polícia Civil no estouro de uma boca de fumo. Outro filho do traficante, Diego Pereira da Silva, o Maluquinho, comandava o tráfico na favela do Dique, em Vigário Geral, até ser preso em fevereiro deste ano. Parece que outros filhotes do assassino de Tim Lopes já assumiram o lugar dos irmãos presos.
Míriam Leitão: Biden e vacina elevam mercado
Você não gosta de mim, mas seu mercado gosta. Os versos de Chico Buarque poderiam ser adaptados pelo presidente eleito Joe Biden, se ele estivesse preocupado com esse longo silêncio do presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Desde que ficou claro que Biden era o vencedor das eleições americanas, houve um reviravolta nos ativos que favoreceu o Brasil, o real e até os investidores no país.
O dólar, por exemplo, caiu 11,11% aqui dentro, indo de R$ 5,76 em 29 de outubro para R$ 5,12 , ontem. A queda do dólar começou antes das eleições porque todas as projeções davam o que acabou acontecendo, uma vitória por larga margem no voto popular e no colégio eleitoral para Joe Biden.
Novembro foi o melhor mês da bolsa brasileira em muito tempo, recuperando uma parte das perdas que haviam sido provocadas pela pandemia, pela falta de entrega do programa econômico, e pelas incertezas do próprio governo. Isso trouxe de volta o investidor estrangeiro que havia ido embora. Em novembro entraram R$ 33 bilhões. No ano eles haviam sacado quase R$ 90 bi.
O mercado funciona de maneira diferente do que reagem as pessoas quando fazem as suas conexões neurais. O que liga uma coisa a outra pertence à lógica própria. A vitória de Biden é entendida pelos analistas como sinal de que haverá um pacote de ajuda mais robusto para a economia americana, o que levará à desvalorização do dólar. Isso aumenta os fluxos para os países em desenvolvimento e eleva o apetite para o risco. O resultado é essa volta do capital arisco, apesar de todos os sinais ruins dados pelo governo brasileiro.
Em resumo, não voltam porque passaram a confiar em Bolsonaro e no seu desgoverno, mas porque os fluxos globais estão nessa direção. Tanto que não foi só conosco. O dólar australiano, o dólar canadense, o won coreano e até o euro estão nos maiores valores frente ao dólar em dois anos.
O S&P 500 bateu novamente seu recorde histórico, chegando ontem a 3.699 pontos. Houve um tempo em que se dizia que o mercado gostava apenas dos republicanos. Não se confirmou nesta eleição, em que Biden recebeu mais doações do que seu opositor. A instabilidade provocada por Donald Trump e as ameaças institucionais passaram a ser disfuncionais. Um economista brasileiro que vive nos Estados Unidos disse que nunca viu tanta gente do mercado votando em democrata quanto nessa eleição.
Houve também o efeito vacina. Mas, de novo, a música pode ser a mesma, desta vez, da vacina para Bolsonaro: você não gosta de mim, mas a sua economia gosta. Tanto que todos os cenários positivos futuros estão dependendo dessa variável, aqui e no mundo. Se houver vacinação em massa, haverá economia retomando alguma normalidade. Do contrário, voltará a instabilidade negativa.
A dupla Biden e vacina, para o presidente brasileiro prisioneiro do seu negacionismo trumpista, pode ser tudo o que ele rejeita. Felizmente, para a economia do país, a chegada dos dois está elevando o humor, e reduzindo as perdas que todos os investidores, pequenos, médios e grandes, tiveram nesses longos meses de pandemia com Bolsonaro estimulando o contato e o contágio.
Claro que, da mesma forma que entrou, esse dinheiro pode sair em qualquer vento contrário. Se o governo brasileiro não conseguir organizar uma vacinação ágil e eficiente, o país será colocado para trás. Em um momento de mau humor com os emergentes, os capitais lembrarão que o Brasil tem uma dívida muito alta, o governo não tem programa crível de equilíbrio fiscal e Bolsonaro segue a política de isolamento diplomático. Acredita — até hoje — na vitória de Trump, hostiliza a China, levou um ano para fazer uma reunião com o presidente da vizinha Argentina, ameaçou “denunciar” Alemanha e França e agrediu a Noruega, que havia doado dinheiro para a proteção da Amazônia.
Mesmo com uma política ambiental desastrosa, uma condução perigosa da pandemia, e uma política econômica sem rumo, o Brasil conseguiu vender bônus no mercado internacional esta semana. O Tesouro emitiu títulos em dólar no mercado externo e atraiu três vezes mais demanda do que estava sendo oferecido. Há muitos riscos na dívida brasileira e ninguém desconhece isso. Mas neste momento tudo é festa. Começará um governo novo e mais racional nos Estados Unidos e a vacina está chegando.
Bernardo Mello Franco: Sem vacina, sem governo
Na quarta-feira, o primeiro-ministro Boris Johnson anunciou que os britânicos começarão a ser imunizados contra a Covid. Horas depois, Jair Bolsonaro voltou a lançar dúvidas sobre a eficácia das vacinas. “Se tiver um efeito colateral ou um problema qualquer, já sabem que não vão cobrar de mim”, afirmou.
O negacionismo do presidente já ajudou a alçar o Brasil à segunda posição no ranking de mortes pelo coronavírus. Nos últimos meses, Bolsonaro torpedeou as medidas de distanciamento, estimulou aglomerações e ejetou dois ministros em plena pandemia. Agora ele lidera uma campanha contra a vacina. É mais um atentado contra a saúde pública, cometido à luz do dia e sem reação do Congresso.
Na semana passada, o capitão informou que não pretende tomar a vacina. “Eu não vou tomar, é um direito meu”, disse. A estupidez pode ser um direito, mas sabotar a imunização coletiva não é. Além de minar a confiança na ciência, Bolsonaro desmobiliza a máquina do governo, que deveria estar empenhada em proteger a vida dos brasileiros.
O ministro Eduardo Pazuello é um retrato da paralisia federal. Na quarta, ele disse a parlamentares que “não se fala mais em afastamento social”. Em seguida, definiu a escalada dos números da Covid como “um pequeno aumento”. No Rio, já foi o suficiente para lotar os hospitais e levar o sistema de saúde ao colapso, segundo atestou a Fiocruz.
O Estado tem a maior taxa de mortalidade do país, mas também está entregue a um negacionista. Teleguiado por Bolsonaro, o governador interino Cláudio Castro tem ignorado os alertas de médicos e cientistas. Ontem ele voltou a descartar medidas de isolamento para reduzir a circulação do vírus.
Nove meses depois da chegada do vírus, o Rio vai inaugurar hoje um arremedo de testagem em massa. Serão abertos apenas três locais para receber a população, nenhum deles na capital. O carioca que tiver sintomas da Covid terá que se deslocar por conta própria até São Gonçalo ou Volta Redonda. Não basta a espera pela vacina: também é preciso lidar com a falta de governo.
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro ignora Covid, mas seu governo está confinado na incompetência
Congresso para por disputa política, governo inexiste na Economia, na Saúde e na Educação
A geringonça do “parlamentarismo branco” deu a impressão de que havia algum governo do país em 2019, embora não houvesse governo propriamente dito. A Câmara dos Deputados, sob comando de Rodrigo Maia (DEM), aprovou parte das tais “reformas”, derrubou alguns papeluchos autoritários de Jair Bolsonaro e fez “notas de repúdio”.
A geringonça pifou. Não há mais nem impressão de governo do país, pois o Executivo não faz muito além de destruir ou ser levado pela burocracia estatal.
Não há governo na Economia. Há um clandestino na Educação que levou uma nas fuças na primeira decisão inepta que tomou (decretar a volta das aulas nas universidades federais).
A ordenança de Bolsonaro que toma conta do almoxarifado da Saúde, o general pisado pelo capitão, foi nesta terça-feira ao Congresso dar mais mostras de como trata o repique da epidemia com leviandade. “Ah, ele diz que vai comprar vacina”. Se não dissesse, o que deveria ser feito? Colocar o governo em um camburão, imediatamente?
Desde o final do ano passado, confrontado com a necessidade de tomar decisões sobre o gasto público e reformas divisivas, como a tributária ou privatizações, Bolsonaro para variar fugiu da responsabilidade. Foi para o ralo até a fantasia de programa econômico pregada por esse Ministério da Economia balofo, paquidérmico, incompetente e cúmplice do bolsonarismo.
Para nenhuma surpresa, Bolsonaro está colocando dinamite na máquina emperrada do Congresso. Entrou na disputa pelo comando de Câmara e Senado. Ainda que vença, não terá maiorias estáveis e deixará raivas sentidas. Até lideranças do centrão preteridas pelo capitão já se irritam em público.
Os conflitos dificultam a tramitação de projetos importantes. Até agora não foi votada nem a “prévia” do Orçamento, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), um atraso raro, nessa dimensão, e típico de momentos políticos disfuncionais. É improvável que o Congresso não vote a LDO até o final do ano. Caso não vote, o governo fecha, não pode gastar.
A geringonça entrou em pane em meados deste ano, quando Bolsonaro se viu ameaçado de impeachment e aumentou o risco de que filhos e empresários amigos fossem para a cadeia. Juntou-se ao centrão e montou uma coalizão bastante para evitar que lhe cortassem a cabeça, mas não para muito mais.
O que havia de governo do país, goste-se ou não do que havia, começou a se esfumaçar. Era um governo da Câmara, governo possível e muito limitado de um corpo legislativo no presidencialismo.
Era também um estratagema de contenção de danos maiores, para o que o Congresso teve apoio do Supremo. Mas era uma gambiarra que tolerou a presença de Bolsonaro, movida a jeitinhos ou malversação das capacidades dos Poderes.
A gambiarra continua. Como se sabe, os líderes políticos do Supremo e alguns do Congresso tentam burlar a Constituição a fim de permitir a reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Por trás dos panos, dizem que a reeleição permitiria a “contenção” de Bolsonaro (isto é, a tolerância de seus crimes de responsabilidade menores e o controle dos maiores, sob ameaça de impeachment).
A isto chegamos. Bolsonaro é desgoverno e campanha permanente para desacreditar instituições e a sanidade (vide seu plano de, desde já, desmoralizar a honestidade da eleição e negar até declarações oficialmente gravadas, caso da gripezinha). A geringonça pifou e sabe-se lá o que vai ser o Congresso de 2021: pode ser muito pior. A tentativa alegada de remediar o desastre é uma mutreta constitucional.
Ricardo Noblat: Bolsonaro tenta desacreditar a eficácia das vacinas contra o vírus
Se insistir em proceder como o anjo da morte, impeachment nele!
O presidente Jair Bolsonaro gosta de viver perigosamente – e ontem à noite, depois de mais um expediente de trabalho no Palácio do Planalto, deu nova prova ao deparar-se à entrada do Palácio da Alvorada com um grupo de devotos que suplicava por um aceno dele, um mero sorriso ou – quem sabe? – a suprema graça de desembarcar do carro para uma rápida conversa.
A suprema graça foi obtida. E Bolsonaro, que antigamente costumava demorar por ali quando havia jornalistas para serem alvos de seus insultos e também dos seus adoradores, ouviu os costumeiros gritos de “Mito”, de “Aleluia, irmãos” e de “Deus seja louvado” antes de puxar o assunto que realmente lhe interessava – a aplicação de vacinas contra a Covid-19.
Deu alguma boa notícia a respeito? Não. Pelo menos deu alguma informação de utilidade pública? Tampouco. Aproveitou a ocasião para comportar-se como uma espécie de anjo da morte na sua pior versão, o que prefere infundir terror nos que em breve deverão ser chamados a prestar conta dos seus pecados. Foi logo advertindo para surpresa dos seus ouvintes:
“Vamos supor que em uma das cláusulas da vacina que eu vou comprar, vamos dizer que, lá no meio, está escrito o seguinte: ‘Nos desobrigamos de qualquer ressarcimento, de qualquer responsabilidade com possíveis efeitos colaterais imediatos ou futuros’. E daí, vocês vão tomar a vacina?”
Alguns responderam que não, a maioria ficou calada. Bolsonaro não se deu por satisfeito e completou antes de dar meia volta volver e embarcar no carro:
“Eu vou mostrar todo o contrato para vocês. Quem tomar vai saber o que está tomando e as consequências. Se tiver um problema, um efeito colateral qualquer, já sabe que não vão cobrar de mim porque eu vou ser bem claro”.
O recado foi dado. Não cabia contestação. Naquele espaço, a contestação é mal vista. O presidente pode sempre se indignar e responder com um palavrão, ou mandar o contestador calar a boca ou simplesmente dar-lhe uma banana. Quantas vezes já não agiu assim, não é verdade? Teria sido o caso de lhe perguntarem: E se a vacina demorar a chegar, a quem cobramos por isso?
Ou então: a quem cobraremos se a vacina demorar a ser distribuída? Ou se faltar vacina para todo mundo? Ou se a desconfiança do presidente em relação à vacina estimular seus seguidores a não se vacinarem? E se disso resultar um maior número de mortos e de doentes? A quem os brasileiros deverão cobrar? Bolsonaro não responderia a nenhuma dessas indagações.
No último fim de semana, o presidente da Embratur, Gilson Machado Neto, sanfoneiro medíocre e companheiro constante de Bolsonaro em suas lives das quintas-feiras no Facebook, , revelou que o governo não conta com a possibilidade de uma segunda onda da pandemia, e “torce e reza” para que ela não aconteça. Não há um Plano B. Gilson sabe o que diz, é amigo do homem.
Ao contrário do general Eduardo Pazuello, especialista em logística, ministro da Saúde, incapaz de dar vazão a quase 7 milhões de kits para exames do vírus estocados há meses em um armazém de Guarulhos, em São Paulo, e cujos prazos de validade deverão expirar até janeiro próximo. Pazuello pode ser também amigo do homem, e dos filhos do homem, mas não sabe o que diz.
Em depoimento, ontem, no Congresso, afirmou lá pelas tantas:
“Esse vírus se propaga por aglomeração, por contato pessoal, por aerossóis, e nós tivemos a maior campanha democrática que poderia ter o nosso país, que é a municipal, nos últimos meses. Se isso não trouxe nenhum tipo de incremento ou aumento em contaminação, não podemos falar em lockdown”.
Sabe nada. E quando sabe alguma coisa e Bolsonaro ordena que ignore, ele obedece. A Fundação Oswaldo Cruz anunciou que a Rede SUS na capital do Rio está com seu sistema de saúde pública em colapso. Há uma oferta mínima de leitos, demanda reprimida de pacientes e aumento de óbitos que ocorrem em casa. Na rede privada, 98% dos leitos de terapia intensiva estão ocupados.
As inevitáveis aglomerações nas festas de fim de ano não só nas grandes cidades do país deverão agravar a situação da pandemia. O governo federal não parece se importar. O ministro da Educação, Milton Ribeiro, determinou o retorno das aulas presenciais em universidades federais e particulares a partir de 4 de janeiro. Os reitores ameaçam se rebelar.
Não se brinca com a vida alheia. Até o governo chinês cairia se brincasse. Se Bolsonaro perseverar no caminho de negar o que se recusa a ver, o país assistirá ao processo de impeachment mais rápido de sua história. É como ensinou, esta semana, o prefeito Alexandre Kalil, de Belo Horizonte: “Se faltar público não tem picadeiro. Sem picadeiro não tem palhaço”.
Carlos Pereira: Nova face da polarização
A não obrigatoriedade da vacina é o novo mote identitário de Bolsonaro
Vínculos identitários para serem duradouros necessitam de novas e constantes narrativas polarizadas que reforcem conexões de lealdade entre seus membros. Funcionam como elos que dão a sensação de aconchego e pertencimento. Também atuam como barreiras de proteção contra informações que contrariem as crenças e preferências do grupo. Como consequência, tendem a desenvolver hostilidades e aversão a valores e crenças de grupos rivais podendo até enxergá-los como inimigos.
Contrariando suas promessas de campanha, o presidente Jair Bolsonaro se aproximou dos partidos do chamado Centrão em busca de uma coalizão mínima que garantisse sua sobrevivência política. Além do mais, moderou o tom de seu discurso como uma forma de diminuir animosidades com outros poderes que caracterizaram o início do seu mandato.
Essas mudanças deram fôlego governativo ao presidente, mas paradoxalmente enfraqueceram suas conexões identitárias ao deixar sua base conservadora dispersa e sem referências. Percebendo a derrota iminente que seus candidatos sofreriam nas eleições municipais, Bolsonaro teve de encontrar, mesmo que tardiamente, um novo mote que reconectasse suas identidades polares com a sua base mais fiel.
A nova face da polarização política no Brasil parece ser a obrigatoriedade da vacina contra a covid-19. Essa é uma das evidências que acabam de ser reveladas pela terceira rodada da pesquisa de opinião sobre os impactos políticos da pandemia, que venho desenvolvendo com os colegas Amanda Medeiros e Frederico Bertholini, com o apoio da FGV e do Estadão.
Das 4.569 respostas válidas obtidas na pesquisa, 58% dos respondentes são favoráveis a que a vacina seja administrada de forma obrigatória aos brasileiros, 34% são contrários e 8% não sabem ou não responderam.
Como pode ser observado na figura 1, a distribuição dessa preferência é extremamente polarizada. A grande maioria dos que aprovam a performance do governo Bolsonaro (ótimo e bom, 20%) é contra a obrigatoriedade da vacina (84%). No extremo oposto, a grande maioria dos que reprovam o desempenho do governo (ruim e péssimo, 71%) defende que a vacina seja obrigatória (74%).
Para se ter uma ideia do impacto político desse tema, perguntamos aos respondentes se eles pretendem votar na reeleição de Bolsonaro em 2022. A figura 2 mostra que, como esperado, a esmagadora maioria dos que defendem a reeleição do presidente (pró-Bolsonaro, 18%) são terminantemente contra a obrigatoriedade da vacina (81%). Por outro lado, a maioria dos eleitores que não votariam em Bolsonaro em nenhuma circunstância (anti-Bolsonaro, 65%) defendem que a vacina seja obrigatória (76%). Existe ainda uma parcela não trivial de eleitores (anti-esquerda, 17%) que consideram votar na reeleição do presidente apenas se for para evitar a vitória do PT ou outro candidato de esquerda no segundo turno. Para esse grupo de eleitores supostamente decepcionados com o Presidente, a preferência em relação a obrigatoriedade da vacina não é polarizada (54% não e 37% sim).
O presidente tem defendido que a vacinação é um direito individual ao afirmar que “quem não tomar a vacina está fazendo mal para si mesmo e não para os outros”. Nas suas próprias palavras, quem defende a vacinação obrigatória é um “ditador”… “Não vou tomar, é um direito meu”, disse ele. Entretanto, para que uma vacina surta o efeito imunizante é necessária uma cobertura mínima. No caso específico do coronavírus, estudos indicam que, para alcançar uma eficácia de 80%, seria necessário a aplicação da vacina em pelo menos 75% da população.
Independentemente da recomendação científica, parece que Bolsonaro não consegue prescindir da polarização.
- Cientista político e professor titular da FGV Ebape
Ricardo Noblat: [Des] governo de Bolsonaro ignora o vírus, Biden e a China
À caça de novos conflitos
Uma vez que desistiu, não se sabe por quanto tempo, de bater de frente com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, o presidente Jair Bolsonaro, que só vive à base de conflitos, saiu à procura de novos alvos. E, no momento, elegeu pelo menos três de grande porte: a pandemia, o futuro governo Joe Biden e a China.
Uma segunda onda, ou o recrudescimento da primeira, bate às portas do país segundo todos os indicadores conhecidos até agora. E o que faz o [des] governo? Por ora, nada. Estoca quase 7 milhões de kits de testes do Covid-19 por ser incapaz de distribuí-los com os Estados. Ou simplesmente porque não quer distribuir.
Arrasta-se no processo de compra de vacinas suficientes para imunizar toda a população do país. Persiste em discriminar a vacina chinesa que será produzida pelo Instituto Butantã, em São Paulo, Estado governado por seu arqui-inimigo João Doria (PSDB). E sequer tem um plano para a vacinação em massa.
Joe Biden, candidato do Partido Democrata, foi eleito presidente dos Estados Unidos há duas semanas. Estados onde ele venceu recontaram os votos e confirmaram sua vitória. Donald Trump, o tutor de Bolsonaro, ordenou o início da transição de governo. Nem assim, Bolsonaro cumprimentou Biden até hoje.
Difícil imaginar que os filhos Zero de Bolsonaro ajam à revelia do pai. Jamais ousariam desafiar um patriarca tão mão de ferro, e que os educou para que obedecessem às suas ordens. Carlos, o Zero Dois, quando foi para cima do general Santos Cruz, então ministro da Secretaria de Governo, tinha sinal verde do pai.
Eduardo, o Zero Três, teve o aval para escrever no Twitter que a adesão do Brasil ao programa Clean Netwok, dos Estados Unidos, sobre a tecnologia 5G, reforça a “aliança global por um 5G seguro, sem espionagem da China”. Verdade que Eduardo apagou o que havia escrito 24 horas depois, mas aí já era tarde.
Em uma longa e dura nota oficial, a embaixada da China no Brasil acusou Eduardo e “algumas personalidades” de produzirem “uma série de declarações infames que, além de desrespeitarem os fatos da cooperação sino-brasileira solapam a atmosfera amistosa entre os dois países e prejudicam a imagem do Brasil”.
E disse também: “Instamos essas personalidades a deixar de seguir a retórica da direita americana e cessar as desinformações e calúnias sobre a China. […] Caso contrário, vão arcar com as consequências negativas e carregar a responsabilidade de perturbar a normalidade da parceria China-Brasil.”
A China é o maior parceiro comercial do Brasil no mundo. O tal programa americano citado por Eduardo quer convencer governos estrangeiros a somente permitir em suas redes 5G equipamentos de fornecedores não chineses. As principais empresas brasileiras já usam tecnologia chinesa em suas redes 4G.
O que Bolsonaro pensa ganhar com o avanço da Covid-19, a falta de cortesia com Biden e a hostilidade à China? Votos o bastante para se reeleger em 2022? É apostar que um raio é capaz de cair duas vezes num mesmo lugar. As chances disso acontecer são desprezíveis.