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Monica de Bolle: As vacinas da desigualdade

Os vulneráveis, os trabalhadores essenciais, as cuidadoras, as pessoas que precisam sair para trabalhar assistirão não apenas ao resto do mundo recebendo os imunizantes, como também a seus conterrâneos abastados sendo inoculados

Desde que soubemos os resultados dos ensaios clínicos em fase III da Pfizer/BioNTech e da Moderna, tenho refletido sobre como as estratégias de imunização em diferentes países podem interagir com as desigualdades existentes, multiplicando-as. São muitos os canais, mas esboçarei aqui os que mais me preocupam.

O primeiro deles é óbvio: as vacinas de última geração, as que utilizam o RNA mensageiro para induzir uma resposta imune, são vacinas relativamente caras, o que significa que países mais pobres dificilmente terão acesso a elas — isso sem considerar os desafios de armazenamento e distribuição associados a essas vacinas. Portanto, é bastante provável, quase certo na verdade, que a população dos países mais ricos tenha mais proteção para a Covid-19 do que a população dos países mais pobres.

Raciocínio semelhante se aplica ao Brasil. O país fez acordo para a produção e distribuição de duas vacinas: a da AstraZeneca/Oxford, em associação com a Fiocruz, e a CoronaVac, parceria da Sinovac com o Butantan. Essas vacinas, entretanto, ainda não têm resultados claros sobre sua eficácia, isto é, sobre o grau de proteção que conferem. A CoronaVac não publicou tais resultados provenientes do ensaio clínico, enquanto a AstraZeneca teve problemas significativos de transparência nos dados e de dosagem durante os ensaios conduzidos no Reino Unido. Os dados de eficácia que juntaram as informações obtidas dos ensaios no Brasil com as do Reino Unido não foram conclusivos a ponto de dar uma boa margem de confiança sobre o grau de proteção.

Diante desses problemas e da constatação de que as campanhas de imunização com as vacinas de última geração estão começando em vários países, o governo brasileiro anunciou a compra de 70 milhões de doses da vacina da Pfizer, que requer cadeias de ultrarrefrigeração para armazenamento. Contudo, apenas 8,5 milhões de doses estarão disponíveis no primeiro semestre, pois o planejamento do Ministério da Saúde foi falho. Como a vacina é dada em duas doses, apenas 4,3 milhões de pessoas receberão a vacina cuja eficácia já é conhecida no primeiro semestre de 2021. Haverá, portanto, racionamento. E não é difícil imaginar que aqueles que receberão as vacinas de ponta serão os mais ricos, não os mais pobres desproporcionalmente afetados pela doença.

Há mais. No dia 1º de dezembro, o governo brasileiro anunciou um “plano” para a campanha de vacinação prevendo tão somente o uso da vacina da AstraZeneca. Como sabemos, a politização da CoronaVac, ou da “vacina chinesa”, chegou às raias do absurdo.

Bolsonaro chegou a dizer que não compraria a CoronaVac, deixando o país praticamente à deriva com apenas uma opção de vacina.

Em nota recente, o Observatório Covid-19, rede da qual faço parte, avaliou o plano do governo brasileiro como um “esboço rudimentar” repleto de falhas e lacunas. Diz a nota: “São marcantes a falta de ambição, de senso de urgência e de comprometimento em oferecer à população brasileira um plano de vacinação competente, factível, que contemple as diversas vacinas em teste no Brasil, com transparência e em articulação com estados e municípios”.

Diante desse quadro, é razoável imaginar que, em algum momento, clínicas e redes privadas façam acordos com os laboratórios responsáveis pelas vacinas de última geração, disponibilizando-as para a população que pode pagar por elas. O restante da população brasileira, os vulneráveis, os trabalhadores essenciais, as cuidadoras, as pessoas que precisam sair para trabalhar, ficarão a ver navios. Essa é a mesma população que hoje não poderá contar com o auxílio emergencial a partir de 1º de janeiro de 2021 e é também a população que depende do SUS. O SUS, por sua vez, ficará sem os recursos de que necessita, porque no dia 1º de janeiro voltará a valer a camisa de força do teto de gastos, já que o Decreto de Calamidade que o suspende também haverá de expirar.

Essas são as pessoas que assistirão não apenas ao resto do mundo recebendo as vacinas, como também a seus conterrâneos abastados sendo inoculados. Nesse cenário, não é difícil imaginar um quadro de convulsão social, aquele que talvez tenhamos conseguido evitar em 2020 a despeito do governo: afinal, não foi Bolsoguedes quem apoiou e fez acontecer o auxílio emergencial.

Vejo poucas pessoas preocupadas com a possibilidade de que a falta de estratégia em relação às vacinas possa ser um multiplicador de desigualdades. É hora de pensar nisso com a devida urgência.

Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Míriam Leitão: Onze pessoas e um destino

Onze integrantes da equipe econômica se reuniram com o presidente da República e tiraram uma foto. Dias atrás. Todos eles sem máscara no meio de uma pandemia. É o retrato de uma equipe que se rendeu ao presidente. Aos seus erros. Economistas sabem ler as curvas de tendências e elas mostram aumento dos casos e das mortes. Economistas também sabem o que é hedge, seguro contra o risco. Os equipamentos de proteção individual têm esse papel. Equipe econômica que acerta é aquela que defende suas convicções contra as conveniências políticas ou os equívocos do chefe do governo.

Os gestos de pessoas públicas induzem comportamentos. O não uso de máscara estimula uma atitude perigosa que tem feito vítimas. Render-se a essa imposição do presidente pode parecer apenas um detalhe, mas representa muito mais. Resume o principal erro desta equipe econômica, que é a rendição incondicional ao presidente. Mesmo quando ele está completamente errado.

Até agora, a equipe não entregou o programa que prometeu e não o fez exatamente pelo mesmo motivo que a leva a não usar a máscara para agradar o presidente. O ministro Paulo Guedes não tem sido capaz de convencer Bolsonaro das etapas indispensáveis do seu programa. Não há nada de liberal no atual governo. Guedes não fez a abertura do comércio, mas aceitou estimular a importação de armas. Não livros, não computadores, nenhum outro bem ficou dispensado de impostos. O comércio livre de tributos ficou apenas para revólveres e pistolas.

Um momento importante que salvou o projeto de consolidação do Plano Real foi quando todos os integrantes da equipe econômica, em 1995, foram ao Palácio do Alvorada à noite avisar que pediriam demissão coletiva caso o presidente Fernando Henrique cedesse no meio da crise bancária. Havia pressão política contra a intervenção no Banco Econômico, vinda de um aliado do presidente, o poderoso Antônio Carlos Magalhães. A bancada da Bahia era grande e havia propostas econômicas importantes dependendo de aprovação. A reunião terminou de madrugada, mas a equipe garantiu a autonomia para fechar o banco e continuar enfrentando a crise.

Bolsonaro já demitiu secretário da Receita, presidente do BNDES, mandou arquivar ideias, desidratou reformas. O país está há nove meses em uma pandemia e a equipe não formulou uma proposta sustentável de ampliação da rede de proteção social, nem uma proposta crível para o futuro das contas públicas. As ideias são bombardeadas pelo presidente, e o ministro as recolhe.

A PEC emergencial atropelou uma proposta maior e melhor feita no legislativo, a do deputado Pedro Paulo. Teve uma tramitação confusa e foi perdendo consistência. Foi misturada a outras duas medidas e o que economizaria bilhões vai na verdade poupar alguns milhões. Se for aprovada. A reforma administrativa foi engavetada por um tempo e depois esvaziada por Bolsonaro. Quando chegou no Congresso era uma sombra da que havia sido concebida.

O ministro Paulo Guedes com uma frequência monótona defende ideias abstratas, em vez de formular propostas concretas. Desiste de projetos, diante da primeira cara feia do presidente. E vive no mesmo estado de negação de Bolsonaro. Primeiro achava que o Brasil não seria atingido pela pandemia, um equívoco de avaliação que atrasou a adoção de medidas. Agora diz que não haverá a segunda onda, quando as curvas de mortes e contaminações já estão subindo. Os bons gestores trabalham com o princípio da precaução. Economistas fazem cenário e se preparam para as contingências.

Essa foto do ministro e seus assessores ao lado de Jair Bolsonaro sem máscaras é um detalhe eloquente. Eles sorriem num país que vive uma tragédia sanitária, que está de novo se agravando, e que não tem um plano de vacinação. É fundamental que o Ministério da Economia se prepare para esse novo agravamento da Covid-19 e que faça tudo o que for da sua alçada para garantir o melhor cenário na economia, que só acontecerá com a vacinação em massa da população brasileira.


Reinaldo Azevedo: O país não precisa dos milicos de pijama da Anvisa

Prestem atenção a quem está ocupado em combater a pandemia

O Instituto Butantan começou a produzir a Coronavac no Brasil, em parceria com a Sinovac. Onze estados negociam a compra da vacina. É assim que se faz. Devemos dar uma solene banana para a Anvisa, hoje abrigo de milicos de pijama, agarrados a uma boquinha. Ignorância gera subserviência.

Precisamos de uma Agência Nacional de Vigilância Sanitária que bata continência à saúde dos brasileiros, não a um general da ativa, subordinado a um capitão da reserva, chutado do Exército por alimentar delírios terroristas. É subversão demais para parágrafo tão curto.

A agência publicou um documento autorizando o uso emergencial, mas nem tanto, das vacinas. O texto teria ficado mais claro, a alguns ao menos, se escrito em grego antigo. Querem saber? Não sofram —não por isso! Ignorem o que diz a Anvisa. Prestem atenção a quem está ocupado em combater a pandemia.

Com a doença em expansão e um caso confirmado de reinfecção no país, Jair Bolsonaro decreta que “estamos vivendo um finalzinho de pandemia”. Até seus diminutivos são ofensivos e negacionistas. Nem o governo federal nem a Anvisa decidirão o destino dos brasileiros nesse particular.

A palavra final sobre a imunização, se necessário, será do Supremo, não de bananas de pijama ou de uniforme. Leiam os artigos 6º e 196 a 198 da Constituição. O inciso VIII do artigo 3º da lei 13.979 dispensa o registro da vacina na Anvisa para que se possa proceder à imunização mesmo em larga escala. Basta a certificação de uma de suas respectivas congêneres nos EUA, União Europeia, Japão ou China —país que é sede da Sinovac.

A propósito: o Supremo tem de dar celeridade às ações que lá estão e que dizem respeito à obrigatoriedade ou não da vacinação e aos deveres do governo federal. Nesta quinta (10), no Rio Grande do Sul, Bolsonaro voltou a assegurar a eficácia da cloroquina no que chamou de tratamento precoce da doença.

É preciso, senhores ministros, pôr alguma ordem no hospício, ainda que o presidente do tribunal, Luiz Fux, esteja ocupado em exaltar as glórias de Sergio Moro, o defunto moral da Lava Jato, e em encaixar a palavra “orgia” num discurso fescenino sobre o Estado de Direito. Se os pilotos sumiram, assumam a aeronave os que devem.

Foi, aliás, o que fez João Doria ao anunciar para janeiro o início da vacinação e ao estabelecer um calendário. “Ah, ele está tentando pavimentar a sua candidatura para a Presidência, e a vacina virou um caça-votos”, reagiram alguns. Não descarto e pergunto o que há de errado nisso. Prefiro um político que tente ganhar eleitores com uma droga que salva vidas a outro que faz da morte o seu palanque.

Como brinquei no programa de rádio “O É da Coisa”, não pertenço à mesma enfermaria ideológica do tucano. Nem mesmo votei nele em 2018. Iria fazê-lo no segundo turno. Quando pegou carona na campanha de ódio do bolsonarismo, aparecendo em péssimas companhias, desisti. Também não escolhi o seu adversário. O voto obrigatório oferece alternativas.

No caso da vacina? Aí, não! Há uma compulsão, em certos nichos da própria imprensa, de simular independência decretando um solene “ninguém presta” e narrando um permanente empate moral entre os litigantes. Às vezes, é assim mesmo. Mas há casos em que a postura traduz irresponsabilidade.

Na batalha da vacina, trata-se de fazer uma escolha entre a psicopatia política, festivamente homicida —já “que todo mundo morre um dia, e eu não sou coveiro”—, e o esforço de quem mobilizou recursos para investir na ciência. A história deu a Doria e a Bolsonaro uma pandemia. Um deles produziu negacionismo, obscurantismo, truculência, cloroquina e uma quantidade assombrosa de frases pusilânimes. O outro apostou numa vacina. Poderia ter dado errado, mas tudo indica que deu certo.

Se render votos, terá valido a aposta na civilização, não na barbárie, para voltar a uma antítese antiga, que hoje povoa os cemitérios. Reconheça-se: sem o ativismo de Doria nessa área, continuaríamos, 2021 afora, a contar os mortos em companhia do general patético e trapalhão e seus milicos de pijama.Reinaldo Azevedo

*Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.


Vinicius Torres Freire: Vacina que Bolsonaro esnobou está perto de ser aprovada nos EUA

Anvisa teria três dias para responder sobre uso do produto no Brasil, caso EUA o aprovem

vacina que Jair Bolsonaro esnobou está perto de ser aprovada nos Estados Unidos. Um comitê que assessora a “Anvisa americana” (a FDA) decidiu recomendar a aplicação da vacina da americana Pfizer e da alemã BioNTech, que já está sendo aplicada no Reino Unido.

​A FDA pode ignorar a recomendação. Caso seja liberada pela FDA, o governo americano pretende começar a aplicar a vacina quatro dias depois da aprovação.

Bolsonaro e seus paus mandados da Saúde teriam então menos de quatro horas para tentar se livrar da lambança negacionista e incompetente que promoveram, que bem poderia parar em um tribunal como negligência criminosa.Além disso, estarão contra a parede, pois a lei prevê que uma vacina aprovada nos EUA pode ser liberada por aqui em três dias.
Pela letra das leis 13.979 e 14.006, a Anvisa tem 72 horas para dar “autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia do coronavírus”, desde que tenham sido aprovados por ao menos uma das “Anvisas” de EUA, União Europeia, Japão ou China.

É “dispensada a autorização de qualquer outro órgão da administração pública direta ou indireta”. Como faz alguns anos a gente não sabe bem o que querem dizer as leis, dada a carnavalização de intepretações e jurisprudências, quem sabe se inventem argumentos ou chicanas a fim de deixar a norma para lá.

​Pode ser também que, em 72 horas, a Anvisa diga que a vacina da Pfizer/BioNTech não presta. Mas terá de criticar a decisão britânica e, talvez, também da FDA americana.

​A vacina é a BNT162b2. O estudo que relata os resultados da fase 3 de testes foi publicado nesta quarta-feira pelo “New England Medical Journal”.
No comentário do estudo, se diz que os resultados são “impressionantes”, um “triunfo”, que se “sustentam em qualquer análise concebível”.
O produto da Pfizer/BioNTech foi ignorado pelo governo Bolsonaro e suas ordenanças do almoxarifado da Saúde até dia 2 de dezembro, quando o Reino Unido a aprovou.

Desde agosto, a direção da Pfizer oferecia a vacina ao governo. A empresa diz que não teve resposta.Depois da ofensiva de João Doria e sua “vacina chinesa”, o vexame dos palermas da Saúde se tornou terminal.
Desde terça-feira (8), começaram a se desdizer, para usar um termo condescendente. No dia 9, assinaram um acerto com a Pfizer a fim de importar pelo menos 8 milhões de doses no primeiro semestre de 2021.
O general-almoxarife da Saúde chegou a balbuciar que poderia haver vacina mesmo em dezembro. Mas ele diz qualquer coisa, em especial o que Bolsonaro mandar.

A vacina, em tese, é difícil, como todo mundo já sabe. Exige supergeladeiras. Mas imunologistas e engenheiros brasileiros dizem que se dá um jeito e que a vacina pode ser aplicada pelo menos em grandes cidades, com infraestrutura melhor.

Países como Chile, Costa Rica, México, Panamá e Peru encomendaram imunizantes da Pfizer/BioNTech. Sâo países que não parecem ter condições técnicas melhores que as do Brasil.

​É possível argumentar que estejam fazendo besteira, digamos. Que se prove. Mesmo com a aprovação para uso emergencial (a vacina não poderá ser vendida), a FDA quer que os testes científicos continuem. Apesar de evitar ou atenuar a doença, não se sabe se vacina evita a transmissão. Todo o mundo ainda deveria usar máscara e tomar as providências sabidas.


Mariliz Pereira Jorge: Bolsonaro, um genocida

Ninguém mais deve ter dúvida de que Bolsonaro é um maldito genocida

Quanto mais demorarmos a vacinar a população contra a Covid-19, mais gente morrerá. Se antes a responsabilidade de Jair Bolsonaro era subjetiva, no momento em que vários países começam a imunizar seus cidadãos, não resta dúvida: a incompetência, o desdém e a demora do governo, na figura do presidente, serão culpados por cada morte que poderia ser evitada com uma vacina.

Para alguém que tinha tanta pressa de que o país voltasse "à normalidade", um dirigente que se preocupava tanto com a economia, é curioso que Bolsonaro não tenha sido um dos primeiros líderes a garantir a compra de vacina. Senão por causa da vida das pessoas, que fosse pela saúde da economia.

Bem, seria curioso, se fosse alguém razoável e não um idiota, que resolve inaugurar um brechó no Palácio do Planalto quando o mundo vive um acontecimento histórico. Enquanto Jair e a dona "por que Queiroz depositou R$ 89 mil na conta de Michelle?" usavam a estrutura palaciana para seu momento "memorável", eu chorava ao ver gente sendo vacinada no Reino Unido.

Bolsonaro completa dois anos na Presidência e continua sem a menor ideia do que faz lá. E quem se ferra de verde e amarelo somos nós. Sua campanha não teve proposta, além de baboseiras, como acabar com a ideologia de gênero, com o comunismo, com o PT, liberar armas, "rasgar e jogar na latrina" o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Ele não sabia o que fazer quando a pandemia chegou a não ser negar sua existência e gravidade, assim como não consegue organizar a claque de incompetentes do seu governo. Nesta quarta (9), o Ministério da Saúde anunciou que o plano de vacinação deve ser apresentado na semana que vem. Alguém me explica, como se eu fosse uma criança de cinco anos: não era para estar pronto? Se alguém tinha alguma dúvida de que Bolsonaro é um maldito genocida, não precisa mais ter.

*Jornalista e roteirista de TV.


Míriam Leitão: General não sabe preparar a guerra

O general está errando na estratégia de guerra e falhando na execução de sua missão. Ao ministro general Eduardo Pazuello foi entregue a tarefa de proteger a saúde dos brasileiros em plena pandemia. Isso é uma guerra. O inimigo é altamente letal, já foram 179 mil os brasileiros mortos. Pazuello deveria usar toda a munição e todas as armas disponíveis, mas escolheu apenas algumas. Ele nos desarma diante de inimigo perigoso ao desprezar a vacina do Instituto Butantan e demonstra ter dúvidas se haverá demanda por proteção entre as potenciais vítimas do coronavírus.

Ontem Pazuello tentou consertar o que havia dito na véspera, mas os últimos dias foram esclarecedores para quem tinha alguma dúvida de que o governo escolheu mal o general desta guerra. E escolheu mal porque o próprio presidente demonstra não se importar com os efeitos da pandemia, desde o começo.

Na reunião com os governadores na terça-feira ficaram claros os erros de estratégia, de avaliação, de planejamento e de logística do ministro da Saúde. Diante de um inimigo perigoso e desconhecido, um bom comandante não faz o que ele fez. Até agora ele escolheu uma única vacina, a Oxford AstraZeneca, e admitiu comprar a da Pfizer. Só que ele mesmo disse que as quantidades de vacinas que os laboratórios podem oferecer são “pífias”. Nesse contexto de escassez de oferta, fica ainda mais difícil entender por que ele desfez o acordo que havia firmado em outubro com a vacina Coronavac. Na briga com o governador de São Paulo, João Dória, Pazuello disse que o Instituto Butantan não é de São Paulo, e sim brasileiro. A verdade é que ele é administrativamente paulista porque há um século foi fundado pelo governo de São Paulo. Ao mesmo tempo, é de todo o país pela confiança que a população brasileira tem no nosso maior fabricante de vacinas. Mas, diante da afirmação de Pazuello, ficou mais claro que o governador João Dória fez a pergunta certa. Por que discriminar a vacina na qual trabalha o Instituto Butantan?

Todo general sabe, por dever de ofício e longo treinamento, que é preciso, numa guerra, manter a união. Pazuello até falou que não devemos nos dividir. Perfeito. Mas quem tem dividido o país desde o começo é o presidente. Ou é preciso lembrar as vezes em que ele atacou governadores? A demora de tomada de decisão do governo federal está provocando essa divisão, com cidades e estados indo procurar diretamente a forma de proteger sua população. O prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, procurou o governo de São Paulo. Vários governos estaduais, também. O governador Flávio Dino foi ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Se o ministro tivesse desde o começo assumido o papel de liderança que o governo federal sempre teve em programas de imunização, se mantivesse diálogo contínuo com os governadores, se tivesse mostrado senso de urgência e discernimento, não precisaria pedir por unidade. Ela aconteceria naturalmente e sob o comando do Ministério da Saúde. Quando os governadores pedem uma reunião com o ministro para discutir o programa nacional contra o coronavírus é a prova de falha da liderança. O ministro já deveria ter transformado esses encontros em rotina, deveria ter apresentado seu programa, deveria ter adotado a estratégia comum em todos os países de apostar em várias vacinas viáveis. Ou seja, seu dever no cumprimento da missão era usar a melhor estratégia da guerra, manter todos unidos contra o inimigo comum e usar todas as armas e munições.

A referência bélica é em sentido figurado. Armas e munições são as vacinas que nos garantirão a vida e o funcionamento normal da economia. Não apenas o imunizante, mas as seringas, agulhas, cronograma, planejamento, capacidade de estocagem e de transporte. A logística da imunização, enfim. Mas a prioridade de Bolsonaro é literal. Ontem o governo levou a zero as alíquotas de importação de revólveres e pistolas.

O governo atende ao desejo dos clubes de tiros, mas o general da Saúde tem dúvida se há interesse da população em se defender do vírus. “Se houver demanda”, disse e repetiu Pazuello. Ele assim o fez para mais uma vez demonstrar que segue na tropa do presidente da República que sempre negou a gravidade da pandemia e a necessidade de proteção contra o inimigo. O general está perdido no tiroteio.


Merval Pereira: Doria venceu

Foi uma vitória política do governador de São Paulo João Doria a admissão do ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello, de que o início da vacinação nacional pode se dar ainda em dezembro, mais certamente em janeiro.

Embora o governador Doria garanta que não haveria falta de doses para todos que procurassem, mesmo não morando no Estado, São Paulo se livrou de problemas como a superpopulação das cidades com pessoas de outros estados procurando por vacinas, e poderá promover a vacinação de maneira tranquila e rápida.

Pode ser até que sobrem vacinas para doação a outros estados, sem prejuízo da população local, que se sentiria prejudicada pelo afluxo de pessoas de outros estados. A antecipação da vacinação nacional é um anúncio que só confirma que o governo brasileiro, se tivesse se organizado com antecedência, poderia estar começando a vacinação nacional, sem polêmicas, ao mesmo tempo que vários países.

A compra da vacina da Pfizer, que já está sendo utilizada na Inglaterra e em outros países, foi atrasada por uma decisão equivocada do ministério da Saúde, que a descartou pela dificuldade de armazenamento a temperaturas muito baixas. A solução foi dada pela própria farmacêutica, que criou embalagens com gelo seco que conservam a vacina por pelo menos um mês.

Agindo sempre com rancor, e sem nunca objetivar a proteção da vida humana, o presidente Bolsonaro foi obrigado a antecipar o calendário de vacinação para não deixar o governador paulista ser o pioneiro no país, enquanto a Saúde permaneceria em estado de paralisia burocrática.

A vacinação pode começar em janeiro, e com a vacina da Pfizer, descartada por Pazuello dias antes. Poderia ser com a vacina chinesa da Sinovac, que está sendo produzida no Instituto Butantan em São Paulo, mas a idiossincrasia de Bolsonaro em relação à China e a Doria, seu provável adversário em 2022 na disputa pela presidência da República, fez com que o governo brasileiro não levasse em consideração os avanços da vacina chinesa, que até hoje não está incluída na lista oficial das vacinas negociadas.

O que sempre foi óbvio, que a vacinação dos brasileiros atrasada em relação a muitos outros países pelo mundo provocaria uma forte reação da opinião pública, somente agora parece ter ficado claro para nossos governantes, que correm atrás do prejuízo improvisadamente.

A antecipação do calendário de vacinação nacional, que aliás ainda não foi divulgado de maneira oficial, vai ser feita não para salvar vidas, mas para salvar a pele do próprio presidente, que nega os benefícios da vacina, mas quer impedir que o governador de São Paulo tenha a dianteira nesse processo, o mais importante procedimento diante da pandemia da COVID-19.

Com a notícia de que a vacina da Pfizer pode causar efeitos colaterais nas pessoas alérgicas em alto grau, o presidente Bolsonaro é capaz de alegar que tem razão quando não recomenda a vacinação. A vacina em que o governo joga suas fichas é a da AztraZeneca, da Universidade de Oxford, que está sendo feita no Rio na Fiocruz.

Mas há problemas a serem superados, como a possibilidade de essa vacina não ser eficaz para idosos. Essa possibilidade surgiu nos estudos publicados na revista Lancet, que confirmou que a eficácia da imunização, que é de 60%, aumenta para 90% quando se dá uma meia dose na primeira vez, e depois completa-se com uma dose inteira.

Porém, não há explicação científica ainda para essa disparidade, e também o número de voluntários idosos foi insuficiente, segundo pesquisadores independentes, para se afirmar que a vacina de Oxford é eficaz para esse grupo de risco. Esses atropelos são naturais, pois foi um esforço internacional de emergência que permitiu que vários tipos de vacinas fossem produzidas em cerca de 1 ano de pandemia, o que é excepcional.


Míriam Leitão: Inflação em alta complica a vida

Os juros não vão subir nesta reunião do Copom, mas a inflação em alta está pondo todos no mesmo córner: o Tesouro, o Banco Central, as contas públicas e as famílias brasileiras. O INPC pode passar de 5% e esse é o índice que corrige várias despesas do Orçamento da União. Os gastos, portanto, subirão mais do que o calculado no projeto enviado ao Congresso, porque a inflação acelerou no segundo semestre. O Banco Central não elevará os juros nesta quarta-feira, mas esse fator novo, a taxa de inflação, tira o Copom da zona de conforto. Quando ele tiver que subir a Selic, a dívida fica mais cara.

Para as famílias, a alta da inflação atinge um nervo exposto. O IPCA subiu 0,89% em novembro. As maiores altas são dos preços de alimentos e de alguns serviços que não podemos deixar de consumir. Para o professor Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio, o que mais pesou nos índices divulgados ontem, depois dos alimentos, foi a luz. E ele calcula que dezembro deve trazer uma taxa de 1%:

— Com 1% em dezembro, o IPCA vai a 4,16%, mas pode ser um pouco mais. O INPC iria para mais de 5%, porque no ano o INPC acumula 3,93%, e o IPCA, 3,13%.

A inflação de alimentos e bebidas teve alta de 12,14% no ano e 15,94% em 12 meses. Quando se mede a alta só dos alimentos no domicílio a taxa chega a 21,13% em 12 meses. Ou seja, ela é maior nos itens que pesam mais no bolso. As famílias estão chegando ao fim do ano num país em que o desemprego subiu, a renda caiu, o auxílio deixará de ser transferido aos mais pobres, e a comida está mais cara. Visivelmente mais cara. E existem aumentos à espreita para o começo de 2021. Muito reajuste foi adiado porque a ideia é que a esta altura estaríamos livres da pandemia. Mas não. Estamos numa segunda onda de aceleração da doença. Planos de saúde, tarifas de serviços públicos, remédios subiram menos ou não foram reajustados em 2020. E essa conta chegará em 2021.

O projeto de orçamento que está no Congresso previa que as despesas indexadas — salário mínimo, benefícios previdenciários e assistenciais —seriam corrigidas por 2,09%. Se o INPC, que indexa, terminar o ano acima de 5%, teremos um aumento muito grande das despesas, como já alertamos aqui neste espaço na semana passada. Talvez R$ 17 bi ou mais. O teto de gastos é corrigido também, mas pelo IPCA em 12 meses até junho, que deu 2,13%. O teto subirá menos que a despesa fixa. Haverá, portanto, mais dificuldade para ajustar o orçamento. E há um problema extra: ainda não temos nem a LDO aprovada.

O Tesouro terá um vencimento de R$ 600 bilhões de dívida nos quatro primeiros meses do ano. O governo tem que estar bem atento a isso, exatamente porque a dívida deu um salto forte com a pandemia. É por isso que o Ministério da Economia está querendo deixar bem claro que pelo menos metade desses recursos de refinanciamento da dívida já está garantida.

— Teremos R$ 100 bilhões de pagamento do BNDES da dívida que o banco tem com o Tesouro, e vamos ficar com R$ 190 bilhões do lucro contábil do Banco Central — diz uma fonte da equipe econômica.

O Tesouro do Brasil tem uma dívida alta, e com muitos vencimentos no curto prazo. A grande vantagem é a Selic estar em 2%. Mas por quanto tempo mais a Selic ficará nesse patamar com a inflação subindo além do previsto? Um dos poucos pontos de alívio dos últimos tempos é a reversão da alta do dólar. O câmbio vinha pressionando muito os preços, mas nas últimas semanas o real se valorizou frente à moeda americana.

A inflação quando sobe de forma rápida sempre desorganiza tudo. Não era previsível que ela subisse, já que o país está em um contexto recessivo. A taxa não está em níveis tão altos quanto, por exemplo, em 2015, mas o que já subiu teve efeito de tornar mais apertado o orçamento das famílias, elevar o gasto público e alimentar a dúvida sobre quanto tempo mais o BC pode permanecer sem elevar a taxa de juros.

Pior do que a inflação de agora é a sensação de que outros preços vão subir quando o país ainda não se recuperou. De que eles estão à espreita, como eu disse. A vida de todo mundo fica mais difícil: do governo e das famílias. Até porque essa é uma inflação que tem muitas origens: a alta de alimentos, a falta de insumos na cadeia produtiva, os adiamentos de reajustes de preços administrados, a subida do dólar. A vida não ficará fácil tão cedo. Em todos os sentidos, mas hoje falo da inflação, aquela velha senhora.


Elio Gaspari: A nova Revolta da Vacina

Só um burocrata megalomaníaco pode acreditar que poderá impedir que as pessoas busquem os postos de saúde

Depois de ter dito que a Covid era uma “gripezinha” que o brasileiro tiraria de letra e que a cloroquina era remédio eficaz, Jair Bolsonaro não deve esperar da plateia que ela lhe dê ouvidos. Já morreram mais de 178 mil pessoas, número superior ao dos mortos de Hiroshima em 1945. Contra bomba atômica não há vacina, mas contra a Covid haverá. Enquanto o processo de imunização segue um curso de racionalidade pelo mundo afora, em Pindorama o jogo político contaminou a discussão.

O governador João Doria anunciou que começará a oferecer vacinas a partir do dia 25 de janeiro. Pintada para a guerra, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária apressou-se para informar que “não foram encaminhados dados relativos à fase três, que é a fase que confirma a segurança e eficácia da vacina, esse dado é essencial para a avaliação tanto de pedidos de autorização de uso emergencial quanto pedidos de registro”.

Só um burocrata megalomaníaco pode acreditar que poderá impedir que as pessoas busquem os postos de saúde. A vacina só será oferecida em janeiro aos índios, quilombolas e profissionais de saúde. Quem anda pelas ruas de São Paulo não costuma cruzar com índios nem quilombolas. Restam os profissionais de saúde. Admitindo que esse burocrata existe, seria ridículo vê-lo dizendo ao doutor David Uip que não pode tomar a CoronaVac. Até as pedras sabem que os tribunais derrubarão quaisquer tentativas para impedir a aplicação das vacinas. Países andam para trás: em 1904, houve no Rio uma revolta contra a vacina obrigatória, o desconforto da Anvisa estimularia em 2020 uma revolta contra a vacina voluntária.

Bolsonaro falava em “menos Brasília, mais Brasil”. Pois é disso que se precisa. Se o almirante da Anvisa ou o general do Ministério da Saúde tiverem argumentos para bloquear a aplicação da CoronaVac, que coloquem a cara na vitrine dando suas razões. Há poucas semanas, a Anvisa meteu-se num vexame suspendendo testes a partir da morte de um voluntário que se havia suicidado.

Bolsonaro e Doria acusam-se de fazer política no meio da pandemia. É verdade, mas um detalhe os separa. Um faz política com a “gripezinha”, o outro oferece uma vacina.

A CoronaVac só será oferecida para quem tem mais de 75 anos a partir de 8 de fevereiro. Jair Bolsonaro, se quiser, só poderá ser vacinado a partir de 21 de março, quando completará 65 anos.

O negacionismo de Bolsonaro levou-o a uma armadilha. Continuar na linha que adota desde março será apenas falta de juízo. A Anvisa e o Instituto Butantan têm profissionais qualificados para discutir as qualidades ou os defeitos da CoronaVac. Um finge que se deve respeitar o rito burocrático; e o outro finge que respeita esse mesmo rito, impondo-lhe um prazo de validade.

O ministro da Saúde, general Pazuello, fez fama como um especialista em logística. Reunido com governadores, disse a João Doria: “Não sei por que o senhor diz tanto que ela [a vacina] é de São Paulo. Ela é do Butantan”. Ganha uma viagem a Caracas quem souber a importância disso. Do jeito que o general fala, se a logística do desembarque na Normandia estivesse nas suas mãos, em agosto de 1944 os Aliados não estariam em Paris. Os alemães é que teriam chegado a Londres.


Vinicius Torres Freire: Doria presta um serviço, mas exagera na guerra da vacina da Covid contra Bolsonaro

Anvisa será quase obrigada a liberar Coronavac se vacina for aprovada na China

Se a “vacina chinesa de João Doria” prestar e for aprovada pela Anvisa da China, Jair Bolsonaro terá perdido a primeira grande batalha dessa guerra idiota na saúde. Será quase impossível evitar a aprovação da Coronavac também por aqui e quase imediatamente (explicações mais adiante).

A fim de pelo menos empatar o jogo, Bolsonaro e seu capacho da Saúde teriam de correr para importar outra vacina já aprovada, como começam a fazer no caso da Pfizer, sobre a qual estavam sentados com a nauseabunda incompetência dos dois. Teriam também de começar uma campanha de vacinação antes de fevereiro. Ainda assim, ponto para Doria, que teria então prestado pelo menos o serviço de fazer com que Bolsonaro pare de sabotar a vacinação.

Obviamente, Doria perdeu a mão, subiu nas tamancas e queimou o filme com um monte de governadores presentes à reunião desta terça-feira com o chefe do almoxarifado da Saúde, esse Eduardo Pazuello. Em vez de apenas generosamente oferecer cooperação ao restante do país, Doria se dedicou a limpar seu sapatênis no capacho da Saúde e disse que fazia e acontecia. Não pegou bem. Politiza a vacina tanto quanto Bolsonaro, embora não seja negacionista. Etc. Mas passemos.

E a aprovação da vacina?

Segundo lei deste ano, a Anvisa pode liberar o uso da Coronavac ou de qualquer outro imunizante já aprovado pelas agências de Estados Unidos, União Europeia, Japão ou China. Se não o fizer e não tiver bons motivos para explicar sua recusa ao público, provocará um salseiro, que respingará em Bolsonaro, que de resto tenta aparelhar a agência dando mais boquinhas a militares.

Se vários países começarem a vacinar e o Brasil ficar para trás, sem solução e injeção, pior ainda. Doria prometeu vacinação a partir do dia 25 de janeiro, sabe-se lá com base em quê. Mas, suponha-se que dê certo e não exista outra vacina no Brasil.

Sem vacina, com o repique da Covid apenas controlado, na melhor das hipóteses, com inflação da comida nas alturas, sem auxílio emergencial e com desemprego perto do pico, o clima não estará bom no país e para Bolsonaro.

As aulas das crianças começam no início de fevereiro. Mesmo que a vacinação começasse amanhã no país inteiro, as escolas ainda voltariam em situação precária em 2021. No entanto, se não houver ao menos perspectiva de alívio e mais aulas presenciais seguras, as famílias vão ficar entre nervosas e enfurecidas, pelo menos um tanto desesperadas. No front econômico, a inflação continuará subindo. Mês a mês, tende a aumentar mais devagar, a partir de fevereiro. Mas a taxa anual acumulada do IPCA irá a mais de 6% até maio. A inflação da comida (“alimentação no domicílio”) já está em mais de 21% ao ano, a maior desde 2003.

No final de janeiro, não haverá pagamento de auxílio emergencial, que acaba neste dezembro. O desemprego deverá estar nas máximas de 2021 (deve piorar até março, por aí).

Em 21 de outubro, Bolsonaro escrevia nas redes insociáveis que a “vacina chinesa de João Doria” “NÃO SERÁ COMPRADA”. As medidas do governador paulista e sua campanha política puseram Bolsonaro na defensiva e, agora, em uma reação desordenada, mas que pode ser positiva para o que interessa, que é a vacinação. Sem a ameaça da Coronavac, seria mais difícil pressionar Bolsonaro e sua ordenança na Saúde.

Até aqui chegamos.

No entanto, é preciso lembrar: ainda não existe Coronavac. Se a vacina for um fiasco, essa bomba vai explodir no colo de Doria, que então terá falecido politicamente.


Rosângela Bittar: Os prazos e o desespero

O trágico enredo da pandemia parece ter chegado ao limite com a indefinição sobre a vacina

Começando pelo fim: os prazos costumam definir a tolerância que a sociedade concede aos governos e líderes. Ao se esgotarem, alteram o humor das mais passivas e indiferentes criaturas. Então, o desespero, que parecia contido, transborda, como um aviso aos governantes. Sinalizou-se, no caso da negligência homicida com a imunização contra o coronavírus, que algo precisa ser feito. É imperativa uma intervenção no ritmo da insensatez do presidente Jair Bolsonaro.

Não se propõe impeachment, esclareça-se. Até os eleitores frustrados o desprezam. Mas os poderes Legislativo e Judiciário, os Estados e municípios, as instituições de Estado, os movimentos sociais, dispõem de meios e métodos menos agudos e mais eficientes.

Ontem, em Brasília, empreendeu-se uma dessas batalhas. Em reunião com o ministro da Saúde, os governadores pretenderam mover o governo Bolsonaro em alguma direção. Apesar do mundo civilizado estar celebrando o início da imunização no Reino Unido, pediam o básico do óbvio. O tenso encontro produziu as promessas de sempre, mas apressou o anúncio de intenções negociadas de véspera.

No primeiro encontro, há um mês, Eduardo Pazuello anunciou que iria adquirir a vacina do Instituto Butantã, desenvolvida com o laboratório chinês Sinovac. No dia seguinte recuou, sob vara, com advertência pública do presidente. Ontem, fez nova promessa, de compra da vacina da Pfizer, que o sistema não tem nem condições de armazenar a 70 graus negativos. Mas desta não deve recuar. A vacina é americana e o protocolo de intenções para adquiri-la foi assinado ontem mesmo.

Já esperado, a reunião produziu mais um lance na disputa política de Bolsonaro com João Doria. Ao condenar planos estaduais de vacinação, como o de São Paulo, que contrapôs ao plano nacional, inexistente, o ministro não deu transparência ao que fará com a vacina do Butantã.

A série histórica de afirmações e recuos de Pazuello e Bolsonaro não animam expectativas positivas.

No caos que se delineia, os governadores devem esperar um desfecho carregando pedras, pois têm novo obstáculo imediato, o descaso culposo da Anvisa. O órgão regulador assumiu o critério político para a questão sanitária. E produziu uma pérola de bula administrativa: “Para a solicitação do uso emergencial é esperado que sejam apresentados minimamente os dados descritos do guia sobre os requisitos mínimos para submissão de solicitação de autorização temporária…” Ainda tirou da sacola um prazo novo: depois de receber a papelada final, vai precisar de 60 dias para ruminá-la.

A loucura federal deixou sem sentido a escalada de fortes adjetivos com que cidadãos e críticos se referem ao governo Bolsonaro. Demência. Fascismo. Obscurantismo. Ignorância. Ao se completarem, amanhã, nove meses de devastação e isolamento social, o trágico enredo da pandemia parece ter chegado ao limite.

O governo, com seus tanques movidos a ódio, insulta a população, acuada, tentando exercer discretamente seu direito à sobrevivência. E a ataca, de um lado, com a bandeira do Ministério da Saúde, o campeão da morte. De outro, com a bandeira do Ministério da Educação, o vice-campeão. Repartição que se atribui a tarefa de manter sob tensão e risco 53 milhões de estudantes, 2,6 milhões de professores e outros tantos milhões de servidores das escolas. E suas famílias.

Em nove meses de pandemia, o terceiro ministro da Saúde do governo Bolsonaro foi incapaz de negociar para o País uma única dose de vacina. O quarto ministro da Educação foi incapaz de organizar a reabertura de uma única escola. Bolsonaro segue na sua fixação: a campanha eleitoral de 2022. É de reeleição que trata ao se empenhar no domínio do Poder Legislativo. É de reeleição que se ocupa ao providenciar reforma ministerial para ampliar o cofre do Centrão. Sem ilusões: não estaria a vacina sendo usada também na barganha dos interesses eleitorais?


Bernardo Mello Franco: Pazuello quer vencer o vírus com autoajuda

Ao assumir o Ministério da Saúde, o general Eduardo Pazuello foi apresentado como um especialista em logística. Pelos resultados da sua gestão, seria arriscado nomeá-lo para administrar uma barraca de feira.

Sob as botas do militar, a pasta permitiu o encalhe de quase sete milhões de testes de Covid. O material ficou esquecido num depósito no aeroporto de Guarulhos. Depois que o caso veio à tona, o ministro ofereceu uma solução mambembe: estender o prazo de validade dos kits, que começa a expirar neste mês.

Até hoje Pazuello não foi capaz de apresentar um cronograma de imunização para o Brasil. Nem a compra de seringas e agulhas está definida. O apagão logístico vai além do combate ao coronavírus. Pacientes com HIV e hepatite C estão sem exames de genotipagem porque o ministério deixou o contrato vencer.

Ontem o general deu novas provas de que é o homem errado no lugar errado. De manhã, ele se envolveu num bate-boca com o governador de São Paulo, João Doria, que reclamou de boicote federal à vacina do Butantan.

O ministro já havia anunciado a compra de 46 milhões de doses. No dia seguinte, foi desautorizado pelo chefe e sumiu de cena. Agora ele diz que a Anvisa levará 60 dias para liberar a vacina. Isso melaria a promessa do tucano de iniciar a imunização em janeiro.

À tarde, Pazuello fez um pronunciamento no Planalto. Ele repetiu generalidades e se recusou a responder perguntas. Limitou-se a recitar frases motivacionais como “não podemos desanimar” e “erguer a cabeça e dar a volta por cima é o padrão brasileiro”.

Sem ações concretas, o general indica que pretende vencer o vírus com chavões patrióticos e discurso de autoajuda. “Temos que acreditar que nós podemos vencer. Vamos ter fé. Tudo isso vai passar”, enrolou.

A conversa lembrou uma entrevista de Luiz Felipe Scolari na Copa de 2014. Antes da semifinal, o professor disse que a seleção estava “dando o seu melhor” e jogaria “pelo país”. Ele acrescentou que já havia estudado as táticas da Alemanha. “As observações me deram confiança de que estamos fazendo a coisa certa”, garantiu. A embromação de Pazuello parece anteceder um novo 7 a 1.