vacina

Ricardo Noblat: Bolsonaro descumpre a Constituição que jurou respeitar

Comportamento criminoso

Jair Messias Bolsonaro tem o direito de comportar-se como um suicida diante da pandemia que matou mais de 182 mil pessoas no Brasil desde março último. A vida é sua e ele faz com ela o que quiser. Mas nem ele e nem ninguém tem o direito de pôr em risco a vida alheia por não dar valor à sua ou porque se julga imortal.

Direito à opinião todo mundo tem. Bolsonaro e seus devotos de raiz, por exemplo, acreditam que a Covid-19 é um vírus criado em laboratório e posto a circular pelo mundo para servir aos interesses geopolíticos da China. Direito a fatos ninguém tem. Fatos são verdades provadas, comprovadas e inquestionáveis.

Repete o presidente que sua saúde é de atleta. De fato, foi de atleta quando ele se destacava nos quartéis por correr a grande velocidade. Ganhou várias provas. Há registros no seu prontuário. Quanto a gozar ainda de saúde de atleta, não passa de opinião. Nunca mais deu provas disso. Foi vítima do coronavírus.

Somente ontem, em três ocasiões, protagonizou atos contra a vida – dos outros, diga-se. O primeiro ao reunir-se com milhares de produtores e de vendedores de frutas e legumes em São Paulo, quase todos sem máscaras, ele também. O segundo, outra vez sem máscara, ao visitar Sílvio Santos, um idoso de 90 anos de idade.

O terceiro foi o mais escandaloso. Bolsonaro aconselhou Eduardo Pazuello, doublé de general e de ministro da Saúde, a fazer uma campanha nacional de propaganda alertando os brasileiros para o perigo de se vacinarem. Desta vez não se referiu diretamente à vacina da China. Haveria perigo de morte em tomar qualquer uma.

Sua conduta não foi quase criminosa. Foi inteiramente criminosa. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão técnico do governo agora contaminado pelo vírus ideológico, existe para testar e conferir a eficácia de remédios e de vacinas. Sem o seu aval, nenhum produto médico é liberado para uso em massa.

Desacreditar a Anvisa, e é isso o que está em curso, e tocar horror nas pessoas para que elas fujam de vacinas que estão sendo aplicadas largamente em outros países, é atentar contra a vida coletiva. Haverá crime maior do que esse? E logo praticado por um presidente que ao tomar posse jurou cumprir a Constituição?

Diz o artigo 5º do Capítulo 1 da Constituição em vigor: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Inviolabilidade do direito à vida!

O que isso significa? Que na atual legislação brasileira “o direito à vida é tido como o alicerce para a prerrogativa jurídica da pessoa, motivo pelo qual o Estado tem por dever resguardar a vida humana, desde a concepção até a morte. Diante de sua importância o direito à vida é uma cláusula pétrea.”

E o que é uma cláusula pétrea? “É um artigo da Constituição que não pode ser alterado. Pétrea é um adjetivo para aquilo que é como pedra, imutável e perpétuo. Uma cláusula pétrea é, portanto, um dispositivo do texto constitucional que é estabelecido como regra e que não pode sofrer nenhuma mudança.”

Por quanto tempo mais o país assistirá inerte o presidente da República afrontar a lei? Não se trata de opinião que ele desrespeita a vida, é um fato que se sucede à vista de todos e quase que diariamente. Se apesar disso nada acontece, a Constituição então serve para quê?


Merval Pereira: Estamos sem rumo

O Brasil está encarando uma segunda onda da COVID-19 sob a influência quase criminosa da postura do presidente Bolsonaro, que continua não usando máscara, cumprimentando seus admiradores como se não houvesse mais pandemia, provocando aglomerações sem respeitar o distanciamento social.

Além disso, não temos plano de vacinação nacional, e nem mesmo vacinas para uma tarefa tão gigantesca quanto a de vacinar um país de mais de 200 milhões de habitantes. Como o próprio presidente é contrário à vacina, agora ele inventou que o cidadão terá que assinar um termo de responsabilidade para ser vacinado, o que é um absurdo legal, pois a responsabilidade por ações de saúde pública como a vacinação em massa é do Governo Federal.

Assim como está acontecendo nos Estados Unidos, onde, depois do Thanksgiving, houve uma explosão de infecções pelo coronavírus e um crescimento exponencial do número de mortes, que pode chegar a 300 mil em breve, caminhamos para o mesmo precipício no Natal e no Réveillon.

O governo americano pelo menos tentou, mas não teve sucesso, segurar a massa de pessoas que tradicionalmente se deslocam para seus estados para comemorar com a família a festa nacional mais tradicional do país, como se fosse o Natal entre nós.

Mas o vírus ainda está em circulação, e causou um estrago entre os americanos. Estamos diante do mesmo panorama, e nas festas do Natal e do réveillon o temor é que haja uma explosão de casos. O ministério da Saúde se exime de qualquer ação de cunho nacional, alegando que o Supremo Tribunal Federal (STF) delegou aos Estados as políticas públicas relativas ao controle da pandemia.

Muitos prefeitos e governadores estão tentando controlar a disseminação do vírus proibindo festas no réveillon e reduzindo o horário de funcionamento dos bares e restaurantes. Alguns, como o prefeito de Belo Horizonte Alexandre Kalil, tomaram providências para impedir aglomerações no Natal e no Ano Novo, e governadores, como o petista Rui Costa, estão impondo uma série de restrições para evitar que o vírus se espalhe durante as festas de fim de ano.

Outros prefeitos, como o do Rio, Marcelo Crivella, no entanto, estão autorizando festas, como as nos quiosques das praias, e havia até mesmo a ideia de realizar shows na orla na noite do dia 31, com palanques para shows na praia, mas sem a presença de público. A irresponsabilidade foi cancelada, e haverá shows transmitidos por um sistema de plataformas digitais e um canal de televisão da Prefeitura.

A prefeitura do Rio tem que cair em si, cancelar as festas nos quiosques, e fechar a orla. Os quiosques já estão vendendo convites, e são centenas de pessoas em cada um deles. E para completar, o presidente da República dá um péssimo exemplo, aparecendo sem máscaras, cumprimentando todos. Num país como o nosso, o presidente, por pior que seja, tem uma imagem popular e, nas regiões menos favorecidas, as pessoas absorvem muito o que ele faz. Então é uma situação trágica.

Ainda os militares

A formatura dos novos delegados da Polícia Federal na segunda-feira trouxe mais uma vez a marca da politização das forças policiais, assim como já existe esse movimento nas Forças Armadas. Os novos integrantes da Polícia Federal, que é um órgão de Estado e tem autonomia, prestaram homenagens a Bolsonaro além do que seria razoável, aclamando-o com os gritos de “mito”, como nos tempos da campanha eleitoral.
O presidente Bolsonaro cultiva desde seu primeiro dia de governo as festas de formaturas das Forças Armadas, e das forças policiais auxiliares, as trata como se comícios fossem. A absorção de oficiais das três Armas no serviço público vem subindo, notadamente no Exército, que tem a maior parte dos 3144 militares em postos nos diversos escalões.

Bolsonaro tem o reconhecimento dos militares pelas melhorias que concedeu, e é também muito sujeito às suas reivindicações. Um exemplo claro é o tratamento preferencial que deu a eles na reforma da Previdência. No caso do decreto sobre o qual escrevi ontem, o presidente Bolsonaro revogou a alteração que fizera, cancelando as promoções por antiguidade, justamente por pressão de seus pares, contrariando a diretriz do ministério da Defesa, que gostaria que os últimos postos da carreira - coronéis do Exército e da Aeronáutica e Capitães de Mar e Guerra - só fossem atingidos por merecimento. será tão rápida’.


RPD || Editorial: Horizonte sombrio

Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional. Colheu os frutos do programa de transferência de renda decidido no âmbito do Congresso Nacional, na forma de elevação do percentual de aprovação junto aos eleitores. Finalmente, operou com sucesso a mudança radical de uma estratégia de confronto das instituições, que teria o golpe como único corolário possível, para o funcionamento novo, na forma de “governo parlamentar”, com apoio dos partidos classificads como “centrão”. 

Ao fim do ano, contudo, dois contratempos relevantes para os projetos governamentais emergiram. Em primeiro lugar, a derrota de Trump nas eleições americanas, retirando de cena o único contraponto possível aos retrocessos procurados deliberadamente nas relações com a China e a União Europeia. Em segundo lugar, a derrota contundente da grande maioria dos candidatos que obtiveram o apoio presidencial explícito nas eleições municipais de novembro. Aparentemente, em muitos casos o apoio declarado do Presidente teria funcionado como “beijo da morte”, afundando candidaturas até promissoras até aquele momento. 

Ambos os revezes acontecem às vésperas da passagem para um ano que promete elevar os problemas do país e do governo a outro patamar. No que respeita ao enfrentamento da pandemia, tudo indica que a incapacidade do governo federal para obter vacinas em quantidade suficiente e planejar sua aplicação ordenada no conjunto da população será desvelada. A situação que se avizinha é a de comparação cotidiana, completamente desfavorável para nós, com países que conseguirão vacinar a tempo sua população.  

Na perspectiva econômica, por sua vez, a situação inspira cuidados. O fracasso em conter a pandemia impede uma retomada consistente. Por outro lado, não é viável manter o auxílio no montante atual e a comparação nesse caso acontecerá entre o cidadão de 2020 que recebia um tanto e o de 2021, que passará a receber uma fração desse montante. 

Comparações desfavoráveis geralmente são fonte de insatisfação, com potencial para evoluir para rejeição e fúria no plano da política. Num quadro com essas características, índices de popularidade são os primeiros a desaparecer e, na sua ausência, o debate sobre o abreviamento do mandato presidencial pode tomar assento na agenda da política. À luz da experiência recente, esse é o cenário mais provável, num cenário de aprofundamento das diversas crises. No entanto, na perspectiva da experiência mais antiga, que anima setores relevantes do governo, a situação de tempestade poderia, paradoxalmente, reunificar os defensores da ordem a qualquer custo em torno do fortalecimento político do Presidente da República. 


RPD || Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo

Alheio às mais de 177 mil mortes por conta da pandemia e já em campo pela reeleição em 2022, Jair Bolsonaro politiza uma questão eminentemente de saúde pública em uma disputa com o Governador João Doria, seu concorrente direto

“Todavia não se pode dizer que haja virtude em exterminar concidadãos, trair os amigos, não ter fé nem piedade nem religião; pois é possível conquistar o poder por esses meios, mas não a glória”
Nicolau Maquiavel – O Príncipe

Provavelmente, o ano de 2020 seja palco não apenas de cenas dramáticas de uma pandemia que levou à enfermidade e à morte milhares de pessoas, mas, também, de uma das maiores evoluções no campo da ciência ao se permitir uma vacina em menos de um ano. Em 08/12/2020, na Inglaterra, foi iniciada a imunização de sua população. E nós, brasileiros, como estamos?

Em nosso país, houve uma conjugação de crises. Crise sanitária, advinda do coronavírus; crise econômica, consequência direta da pandemia; crise política e de liderança, cujo fulcro está nas ações e discursos de Jair Bolsonaro e dos bolsonaristas. Já sabíamos, desde os idos de 2018, que o então deputado Jair Bolsonaro trilhava o caminho sinuoso das redes sociais, especialmente, alicerçado sobre clima de ódio, medo e rejeição – todos característicos da eleição de 2018 – mas, ainda, seguia lépido e à vontade junto às fake news, negacionismos, pós-verdade e teorias da conspiração. Bolsonaro foi eleito, mas não governou nesta primeira metade do mandato.

Situação, provavelmente, inédita de um presidente que, por dois anos, confronta as instituições da democracia, os atores políticos e a própria sociedade e que, nos próximos dois anos, buscará sua reeleição. No bojo de seu presidencialismo de confrontação, Bolsonaro e os bolsonaristas foram, como todos nós, jogados numa situação pandêmica que suspendeu a normalidade de nossas vidas cotidianas. Estamos, todos (ou quase), em compasso de espera pela vacina capaz de nos imunizar, já que não há tratamento comprovadamente eficaz para os quadros mais graves da Covid-19. Desafortunadamente, a pandemia encontrou um presidente sem liderança, um governo que não governa e uma sociedade fraturada politicamente, quase em estado de anomia.  

A ciência, os especialistas, os intelectuais públicos, os jornalistas e a Política foram, nestes tempos de bolsonarismo, atacados e, inicialmente, muitos atribuíam às declarações de Bolsonaro uma perspectiva anedótica, caótica. Em Os engenheiros do caos (2019), Giuliano Da Empoli, asseverou que: “No mundo de Donald Trump, de Boris Johnson e de Jair Bolsonaro, cada novo dia nasce com uma gafe, uma polêmica, a eclosão de um escândalo. Mal se está comentando um evento, e esse já é eclipsado por outro, numa espiral infinita que catalisa a atenção e satura a cena midiática” (p.18). Segundo o autor, esse carnaval populista não é desprovido de método e tem, nos bastidores, os “engenheiros do caos”, cientistas especializados em Big Data, ideólogos e consultores políticos que sabem – e muito bem – o porquê de tensionar as regras da democracia e desacreditar a ciência e o jornalismo profissional.

O Brasil, com cerca de 177 mil mortos, como outros países, aguarda, em compasso de espera, uma vacina ou várias capazes de nos devolver à normalidade. O governo federal abençoa a parceria da Fiocruz com a Universidade de Oxford e o Laboratório AstraZeneca, mas ainda não estendeu apoio ao Estado de São Paulo, cujo Instituto Butantan vem desenvolvendo junto com laboratório chinês Sinovac a Coronavac. Uma questão eminentemente de saúde pública está sendo politizada no altar da disputa política que o Presidente Bolsonaro, já em campo pela reeleição em 2022, vem travando com o Governador João Doria, seu concorrente direto.

Doria acaba de desfechar golpe maquiavélico no Chefe de Estado. Anunciou que, a partir de 25 de janeiro próximo, São Paulo começará a vacinar profissionais da saúde, indígenas, quilombolas e todos aqueles, residentes ou não no Estado, demandaram as dezenas de postos de saúde especialmente montados para atender aos brasileiros. Quanto à autorização da Anvisa, o governador informa que, já este mês – dia 15, mencionou – passará à agência toda as informações e os protocolos necessários para assegurar que, no espaço de 40 dias, a autorização para a vacinação seja concedida, a não ser que haja obstrução política, vale dizer, do Planalto.  

 O cenário que se desenha é bem promissor para o Estado de São Paulo A vacina Fiocruz/Oxford apresentou problemas em seus testes, especificamente no que tange às doses aplicadas nos voluntários, e isto demandará mais estudos, atrasando a conclusão dos testes. Além disso, a produção desta vacina, segundo noticiado, dependerá da construção de uma fábrica, ou seja, de mais recursos financeiros do governo federal. Tal fato demonstra que os investimentos e a logística envolvidos não permitirão que vacinas estejam disponíveis em curto prazo, como a Coronavac em São Paulo. Governadores e prefeitos – há muito descrentes de qualquer liderança presidencial – já se articulam junto ao Butantan e ao Governo de São Paulo para garantir acesso à “vacina do Doria”.  

Não se descartam atos extremados, como a judicialização do tema via Supremo Tribunal Federal, com vistas a forçar o governo federal, em última instância, Bolsonaro, a adotar a Coronavac para todo o país.

O cenário em tela será, por anos, capaz de gerar estudos de caso sobre a liderança (ou falta de) na condução do combate à pandemia, estudos que, banhados em ironia, se poderão enriquecer com a leitura de Maquiavel e suas reflexões em O Príncipe.

*Professor e Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia, pela Unesp. 


RPD || Alberto Aggio: Bolsonaro, Ano 2

Bolsonaro impinge aos brasileiros um cotidiano de infelicidade, sem nos legar obra alguma. Sequer exerce sua responsabilidade primária: a de governar, avalia Alberto Aggio em seu artigo

No final do ano passado publiquei um artigo com o título Bolsonaro, Ano 1. Mobilizei, intencionalmente, a demarcação temporal recorrendo àquilo que Benito Mussolini estabeleceu para a Itália quando instituiu o fascismo. Contava-se a sequência dos anos da “Era Fascista”, com início em 1922, ano da tomada do poder com a “Marcha sobre Roma”. Como todo aspirante a “revolucionário”, Mussolini acalentava a ideia de alterar o tempo histórico.

Imagino que Bolsonaro tenha, por um instante, cultivado pensamento semelhante, especialmente quando, com menos de três meses de governo, traiu uma de suas posições de campanha e passou a se apresentar como candidato a reeleição em 2022. Mussolini realizou uma obra na Itália nos anos do fascismo. Uma obra infame que deixou marcas. Bolsonaro nos impinge um cotidiano de infelicidade, sem nos legar obra alguma. Sequer exerce sua responsabilidade primária: a de governar.

O Ano 2 – como dizem os jovens – “deu mal” para Bolsonaro. Ao final de 2020, seu destino é cada vez mais incerto, com popularidade declinante e problemas políticos de grande magnitude. Com a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, perdeu seu principal referente ideológico. O isolamento internacional do País é sem precedentes, depois de desavenças com a China e a União Europeia. Sob pressão, Bolsonaro estará forçado a uma readequação na política externa. Não haverá futuro caso não se supere a redução do Brasil a “País pária” na ordem mundial, admitido de bom grado pelo chanceler Ernesto Araujo.

Nas eleições municipais, os candidatos que se vincularam à imagem do presidente foram derrotados nas capitais e grandes cidades, com raríssimas exceções. O que indica movimento claro de redirecionamento do voto dado em 2018. É o resultado da postura errática de Bolsonaro nestas eleições, ora se afastando, ora se envolvendo na disputa. Mas o problema é anterior e advém do fracasso na montagem de um partido de apoio integral ao presidente, o Aliança pelo Brasil. Sem partido, Bolsonaro agiu por impulso, de forma temerária. O resultado não poderia ter sido diferente.

“Despreparado para o exercício do governo, Bolsonaro sequer consegue ganhar uma posição no contexto dramático de combate à pandemia”
Alberto Aggio

O ano termina confirmando a dispersão das lideranças bolsonaristas em cada canto do país. Esse processo começou com as defenestrações promovidas pelo presidente nos quadros do seu governo, atingindo o ápice com a demissão do ex-ministro Sérgio Moro. O resultado foi uma miríade de candidatos bolsonaristas e ex-bolsonaristas batendo cabeça, sem coesão nem unidade. As eleições municipais mostraram a que ponto chegou a fragilidade do bolsonarismo enquanto movimento, muitos duvidando inclusive da sua real existência.

Bolsonaro teve um momento de recuperação ao longo do ano em função do “auxílio emergencial” distribuído aos mais vulneráveis em razão da paralisia econômica imposta pela pandemia. Mas isso durou pouco. A retomada do emprego ainda não foi robusta o suficiente para gerar confiança e projetar nova alta em sua popularidade. E, na contracorrente, as ameaças de retorno da inflação, bem como as dificuldades da indústria, com o represamento dos investimentos, mantiveram a luz vermelha acesa.

Assim, no meio do mandato, temos um presidente enfraquecido e o Centrão – sua âncora de salvação – com mais poder depois de fechadas as urnas. Para Bolsonaro, não há mais espaço para a retomada da “guerra de movimento” do Ano 1 –, momento no qual blogueiros, ladeados pelos filhos do presidente e parlamentares golpistas, pediam intervenção militar, no auge das manifestações antidemocráticas que chegaram a realizar um “bombardeio fake” sobre o STF. A perspectiva de imposição imediata de um regime iliberal, com apoio militar, acabou ficando para trás.  

O Ano 2 foi marcado, assim, por uma mudança tática: passou-se à “guerra de posições”. Esta demanda entrincheiramento, movimentos cuidadosos e conquistas parciais, daí a necessidade de protagonismo do Centrão. Entretanto, Bolsonaro também aí se mostra inepto. Despreparado para o exercício do governo, Bolsonaro sequer consegue ganhar uma posição no contexto dramático de combate à pandemia, empreendendo “gestão” desastrosa que não evitou os mais de 175 mil mortos em menos de 12 meses. Sem mencionarmos questões mais estruturais como as reformas tributária e administrativa, que só avançam a despeito do governo.

Sem liderança e sem rumo, a filiação de Bolsonaro a algum partido do Centrão tornou-se disputa rasa, quase um leilão, com vistas a um transformismo que garanta ao presidente um “novo” protagonismo em 2022. Num cenário ainda difuso, já se pode divisar, contudo, outros transformismos em projeção, todos visando alcançar o poder nas próximas eleições.

Se, no Ano 1, o governo foi uma “usina de péssimas ideias”, no Ano 2 a imagem é de “desolação”. 2022 já começou e aos brasileiros importa superar a pandemia que nos assola, bem como a crise que desorganiza a Nação depois da sanha destruidora que se instalou no poder. Só assim se poderá conceber em que termos avançaremos para o futuro, depois da breve – assim esperamos – “era Bolsonaro”. 


Hélio Schwartsman: Luta contra Covid não é só incompetência

O fracasso contra a Covid-19 se deve à sabotagem dos consensos científicos sobre a doença

É impressionante a resiliência de Bolsonaro na pesquisa Datafolha que avaliou as percepções do eleitorado sobre sua performance. Apesar do agravamento da epidemia, a aprovação ao presidente continua em 37%, mesmo nível registrado em agosto, quando a curva das infecções refluía.

Seria tentador decretar que o eleitor é um marciano cego, incapaz de reconhecer a realidade que o cerca, desistir da democracia e sonhar com um déspota esclarecido. Mas não é tão simples. A Covid-19 é corretamente percebida como um problema, e a maior parte dos entrevistados (42%) considera o desempenho do presidente nessa frente como ruim ou péssimo --30% cravaram bom ou ótimo.

Não obstante, a maioria (52%) afirma que o presidente não tem nenhuma culpa pelos mais de 180 mil brasileiros mortos, e 38% dizem que ele tem alguma responsabilidade, mas não é o principal causador dos óbitos.

Há aqui, acredito, um problema de "accountability". Seria um despropósito apontar Bolsonaro como o principal culpado pelas mortes, como fizeram 8% dos entrevistados. O presidente se sai mal em praticamente tudo o que diz respeito ao controle sanitário da pandemia, mas não foi ele que criou e espalhou o vírus, a causa mais direta do morticínio.

Só que isentá-lo de qualquer responsabilidade, como fizeram, vale repetir, 52%, significa ignorar as funções precípuas do Estado contemporâneo, que existe, entre outros objetivos, para dar respostas coordenadas e efetivas a emergências nacionais, sejam elas decorrentes de guerras, desastres naturais, crises econômicas ou epidemias.

O que torna o caso de Bolsonaro especialmente revoltante é que o fracasso do Brasil no manejo da Covid-19 não se deve apenas à incompetência das autoridades, um fato da vida, mas à insistência do presidente em sabotar os poucos consensos científicos sobre a doença a fim de extrair ganhos políticos pessoais. E isso é abominável.


Pablo Ortellado: Impeachmente é pouco para Bolsonaro

Negacionismo de Bolsonaro contribuiu para descumprimento do distanciamento social e ampliação de contaminação e mortes

Parte expressiva dos cidadãos brasileiros segue encantada pelo flautista do Vale do Ribeira e vai marchando mesmerizada, prestes a se afogar no rio.

Segundo pesquisa Datafolha, 52% dos brasileiros não veem nenhuma responsabilidade do presidente nas mortes causadas pela Covid-19. As evidências contrárias, porém, são eloquentes.

Bolsonaro não elaborou com antecedência um plano nacional de vacinação e não estabeleceu protocolos para o distanciamento social, gerando descoordenação entre as iniciativas de estados e municípios. Durante todo o período da pandemia, minimizou a mortalidade da Covid, condenou o fechamento do comércio e difundiu a descrença em vacinas.

Os efeitos dessa postura negacionista foram medidos em vários estudos.

Um deles, realizado por pesquisadores da FGV e da Universidade de Cambridge, com dados da empresa In Loco, descobriu uma redução do distanciamento social em municípios com alta votação em Bolsonaro depois que ele discursou contra políticas de isolamento.

Outro estudo, feito na USP com dados do Google, mostrou que estados com alta votação em Bolsonaro relaxaram mais rapidamente a quarentena e que municípios médios e grandes de São Paulo que mais votaram em Bolsonaro cumpriram menos o distanciamento social.

Por fim, estudo de pesquisadores da UFRJ identificou maiores taxas de contaminação e de mortalidade pela Covid nos municípios nos quais Bolsonaro obteve maior votação.

A pesquisa do Datafolha divulgada no último fim de semana mostra novas correlações entre o bolsonarismo e atitudes com relação à Covid.

Simplesmente não pretendem se vacinar contra o vírus 22% dos brasileiros e 33% daqueles que sempre confiam no presidente. Os números são ainda mais chocantes quando o Datafolha pergunta especificamente sobre a vacina desenvolvida pela chinesa Sinovac --cuja confiabilidade tem sido minada pelo presidente e é alvo de intensa campanha negativa no WhatsApp.

Não pretendem tomar a Coronavac --a vacina com mais chances de ser primeiramente aprovada e distribuída-- 50% dos brasileiros e 67% daqueles que sempre confiam no presidente. Essa disposição em não vacinar é grande o suficiente para impedir que o país alcance a imunidade de rebanho.

Bolsonaro tem responsabilidade pelo aumento do descumprimento do distanciamento social, pelo aumento das contaminações e das mortes e, ao que tudo indica, terá também responsabilidade pela cobertura vacinal reduzida. Pode ser que ainda não seja politicamente viável, mas já não é mais motivo para impeachment, é motivo para cadeia.


Carlos Andreazza: A pazuellização

Nem sequer seringas temos. Mas teremos. Né, general?

Um governo que ancorou seu negacionismo frente à pandemia num discurso de compromisso radical com a saúde econômica deveria ser obcecado por vacinar maciçamente a população. Porque só a vacinação destravará a economia.

Este, no entanto, é um governo que só criou — e cria — dificuldades para a vacinação. Na prática, o governo Bolsonaro — força regressiva, dependente de imprevisibilidades, que melhor vigorará quanto maior for a calamidade — lida com a pandemia de forma antieconômica. É um contrassenso. É, pois, a mais pura expressão do bolsonarismo, fenômeno reacionário anabolizado pela dissonância cognitiva.

A principal constituição discursiva de Jair Bolsonaro ante a peste apenas se serviu da preocupação com a economia para fabricar conflitos e difundir teorias da conspiração. Falamos de um presidente que manteve taxa de aprovação acima de 30% mesmo, no auge da pandemia, quando cultivava declarações beligerantes no cercadinho do Alvorada. Ingênuo crer que sua pregação antivacina não resultasse em aumento no número daqueles que não pretendem se imunizar.

Isso passa, contudo. Reverte-se. No caso da Covid-19, é ter as doses nos postos para que a desconfiança dos que dizem que não se vacinariam se converter em braço esticado. Sim: teremos os antivacinas vacinados. E continuarão bolsonaristas. Ok. O problema é a cisão social derivada da descrença; o eco influente da desinformação — sim, genocida — sobre outrora sólida cultura vacinal. Voltou o sarampo. A estúpida campanha antivacina produz atraso objetivo quando o estúpido é o presidente da República.

No mundo real, vários países iniciam seus programas de vacinação já neste dezembro. O Brasil não poderia mesmo formar entre os primeiros. Não é o Reino Unido. A questão é se precisaria ficar tão atrás. Há países em condições político-econômicas piores que começarão antes. Isso é produto da incompetência; da pazuellização do Brasil. O governo brasileiro é péssimo de serviço, o que foi potencializado — esta ruindade sabotadora — pela doença ideológica bolsonarista.

Meses de delinquência criaram a lama para este ambiente de caos anestesiado. De modo que o governador Ronaldo Caiado, de Goiás, deveria calibrar melhor a leitura das razões para o que diagnosticou — corretamente — como corrida maluca por vacinas. E pensar sobre quem prospera investindo na loucura.

Não há corrida maluca porque um governador — diante, por exemplo, de empecilhos forjados por uma Anvisa a serviço de um projeto de poder — tomou a frente para assegurar a vacinação dos seus. Há corrida maluca porque o governo federal — por meio de atitude sociopata — recusou-se, boicotando qualquer esforço coordenado, a comandar o processo. O governo Bolsonaro plantou o cada um por si.

Caia quem quiser na armadilha polarizadora sobre quem teria politizado primeiro; se Bolsonaro ou Doria. Políticos politizam. Claro que olham para 2022. Normal. Todos o fazem, inclusive Caiado. Com uma diferença: tudo o mais constante, só um entre os politizadores terá vacina para aplicar em janeiro. É uma diferença civilizacional.

O pânico, esta é a palavra, quem promove agora, por medo de natureza político-eleitoral, é o governo federal reativo, cujo plano nacional de vacinação — um catadão vergonhoso cuspido no papel — só existe porque obrigado, feito às pressas sob a vara de um Supremo que se deixa enganar. Como acreditar que um Ministério da Saúde inconfiável, que se prestou a cavalo de um mistificador, cavalo também sendo o Exército, e que nada planeja desde abril, seria — será — capaz de conceber um programa vacinal em semanas?

Foram meses de escolhas cretinas. A começar pela inexistência de convênios com todos os grandes produtores de vacina. Precisaríamos de todas. O governo, porém, preferiu restringir-se a um só fabricante, incapaz de atender a toda nossa demanda — e de que ficaríamos cativos em caso de alguma delonga no trâmite de aprovação de seu imunizante. Foi o que ocorreu.

Acontece. Ninguém obrigou o Brasil a se atrelar ao destino de um só laboratório. Quem dera, porém, fosse apenas esse o nosso espeto... Nem sequer seringas temos. Mas teremos. Né, general? A questão é quando. Questão — quando? — que projeta fosso de negligência em que milhares morrerão.

Nunca tive dúvida de que, havendo vacinas, o governo federal correria para comprar todas, inclusive a CoronaVac, aquela chinesa, a comunista etc. Aquela que Bolsonaro disse que não compraria. Comprará. O mundo real se impõe. Nunca duvidei de que o governo safado testaria até a tese do confisco; a surpresa sendo um macaco velho como Caiado, pazuellizado, deixar-se servir por boi de piranha da barbárie.

O mundo real se impõe. E a lei se imporá, inclusive para tornar a Anvisa bolsonarista irrelevante... A lei se imporá também ao processo de pazuellização da vida pública. O revés é o tempo perdido —sempre ele. Veja o caso da vacina da Pfizer. O Ministério da Saúde, leviano, arrotou várias dificuldades, antecipando-se para difamar um imunizante porque exigiria geladeiras especificas. E agora é o “ai, Jesus” — com Pazuello, talvez já convencido de que haja demanda, anunciando acordo para aquisição de milhões de doses antes mesmo de o contrato assinado.

Compraremos todas, qualquer que seja o preço. E esperaremos — no fim da fila. O mais caro preço. Párias e otários.


Ricardo Noblat: Nota da Anvisa trai sua contaminação pelo bolsonavírus

Órgão técnico vira órgão político

Criada pela Lei nº 9.782 de 1999, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é uma autarquia que “tem por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população […] mediante a intervenção nos riscos decorrentes da produção e do uso de produtos e serviços sujeitos à vigilância sanitária, em ação coordenada e integrada no âmbito do Sistema Único de Saúde”

É um órgão de natureza eminentemente técnica como ela própria, em nota distribuída, ontem, a propósito do uso de vacinas contra o coronavírus, fez questão de ressaltar. Ocorre que a nota é o maior atestado público de que a Anvisa, em tempos de governo presidido por um ex-capitão do Exército e de Ministério da Saúde repleto de militares, foi inoculada pelo vírus ideológico.

A primeira parte da nota disserta sobre o plano mal ajambrado de vacinação em massa ainda sem data marcada para começar – mas até aí nada demais a levar-se em conta um presidente que tratou a Covid-19 como uma gripezinha, estimou que não mataria mais do que oitocentas pessoas, menos ele dotado de saúde de atleta, e que ao fim acabariam morrendo os que tivessem de morrer, e daí?

Vale como confissão do aparelhamento político da Anvisa o que está escrito na nota do seu meio para seu final. Está dito lá que deve ser levada em consideração ao se avaliar o uso emergencial de vacinas “a potencial influência de questões relacionadas à geopolítica que podem permear as discussões nacionais e decisões estrangeiras relacionadas à vacina da Covid-19”.

Segundo a Anvisa, “há o risco ainda de que países coloquem interesses nacionais em primeiro lugar na garantia de acesso a uma vacina para seus próprios cidadãos, criando potencial de corromper o rigor com que as vacinas candidatas contra a Covid-19 são avaliadas para autorização de uso de emergência”. E aí? Aí a nota entra no assunto que de fato a justifica: a vacina chinesa.

O Brasil é o líder internacional no processo de avaliação da Coronavac, vacina que já se encontra com Autorização de Uso Emergencial (AUE) na China desde junho. A agência argumenta que os critérios chineses para concessão de autorização de uso emergencial não são transparentes e que não há informações sobre os critérios empregados para essa tomada de decisão.

E decreta: “Até o momento, nenhuma outra autoridade reguladora estrangeira tomou decisão semelhante. Caso venha a ser autorizada a replicação automática da AUE estrangeira no Brasil, sem a devida submissão de dados à Anvisa, são esperados enfraquecimento e retardação na condução do estudo clínico no Brasil; além de expor a população brasileira a riscos”.

Há pouco mais de um mês, depois de ter sido autorizado pelo presidente Jair Bolsonaro, o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, reuniu-se com mais de 20 governadores e anunciou que todas as vacinas comprovadamente eficazes seriam compradas pelo governo federal, inclusive a Coronavac. Desautorizado no dia seguinte, recuou sob a desculpa de quem tem juízo obedece.

A questão é muito simples: à falta de interesse do governo federal em preservar vidas, João Doria (PSDB), governador de São Paulo, saiu em defesa do seu rebanho, e o Instituto Butantã fechou um acordo com a China para a produção da Coronavac. Ao invés de correr atrás de outras vacinas, Bolsonaro faz tudo para impedir que Doria seja bem-sucedido, mesmo que à custa de mais mortes.


Eliane Cantanhêde: O sonho e o pesadelo

Com graves dúvidas sobre vacinas, o santo remédio para Bolsonaro é… reforma ministerial

As vacinas mexem com os nervos e o medo da população, tornam-se o maior desafio do governo e serão um divisor de águas para o presidente Jair Bolsonaro, que, se você prestar atenção, vai repetindo os antecessores Dilma Rousseff e Fernando Collor. É o remake de uma série que a gente já viu, capítulo por capítulo, só que com personagens ainda mais absurdos, fantásticos.

Todos os três presidentes nunca tiveram alguma intimidade ou cumplicidade com seus vices, a quem qualificam de traidores. Assim como Dilma e Michel Temer, Collor e Itamar Franco, Bolsonaro nem consegue mais ouvir falar de Hamilton Mourão, que dá entrevistas sobre qualquer coisa, fazendo uma clara contraposição a Bolsonaro e alternando concordância e discordância com decisões do governo.

A história se repete com os ministros e com a forma de governar – ou de não governar. Todo presidente acuado, que erra muito e fica sob forte pressão da opinião pública e com medo de impeachment saca três fórmulas mágicas: cria um bunker com seu grupinho “leal”, abre os braços (e os cofres) para o Centrão de ocasião e lança uma reforma ministerial.

Dilma se trancou no palácio com meia dúzia de gatos pingados que pensavam exatamente como ela e deixou de fora até mesmo os lulistas do PT. Orelhas ardiam, principalmente as do vice Temer e do ministro da Economia, a culpa era sempre da mídia, o Centrão fazia a festa.

Collor, que se elegeu com a bandeira de “caçador de marajás”, descartou tudo isso junto com o seu PRN, jogou para segundo plano os coloridos de primeira hora e, num último e desesperado esforço para salvar o pescoço, tentou atrair Fernando Henrique Cardoso e o PSDB (que balançaram, mas não foram) e conseguiu Jorge Bornhausen e o então PFL. Era tarde demais.

Bolsonaro vem fazendo o mesmo: desvencilhou-se das bandeiras de campanha, dos bolsonaristas-raiz, do PSL e atracou-se ao Centrão. É hora de… reforma ministerial. O primeiro time reuniu velhos amigos do capitão Bolsonaro na caserna e do deputado Bolsonaro na Câmara, líderes de bancadas temáticas (como a do agro) e pitadas de estrelismo: astronauta, um economista conhecido, o ícone de Lava Jato. A segunda será mais pragmática.

Lêem-se os nomes de Temer daqui, Davi Alcolumbre (Senado) dali, José Mucio (ex-TCU) acolá. Não são nomes ao vento, isolados. Fazem parte do mesmo pacote dos sonhos – ou da necessidade – de um Bolsonaro que pode ser tudo, mas não tem nada de bobo na hora de pensar em si e nos filhos. Os candidatos são do DEM, MDB e até PSDB.

Assim como trocou neófitos por experientes nas lideranças e vice-lideranças do Congresso, Bolsonaro agora articula trocar ministros que só dão problema por gente conhecida, testada, capaz. Mais ou menos como ocorreu na eleição municipal. Depois do fiasco do “novo” de 2018, volta o “experiente”. Inclusive no governo.

Bolsonaro apostou tudo na vitória de Arthur Lira e do Centrão para a presidência da Câmara, contra Rodrigo Maia e o centro ampliado. Se vencer com Lira, terá o que entregar às suas bases eleitoral e parlamentar originais: armas, conservadorismo e recuos em costumes. E reunirá força para atrair os tais nomes conhecidos, torcendo para não ser tarde demais, como foi com Collor. Se Maia vencer, porém, o núcleo DEM, PSDB e MDB ganha impulso para 2022 e um hábil articulador: o próprio Maia.

Em meio a tudo isso, há algo maior: a vida. Se falhar com a vacina, como falhou deploravelmente até agora em tudo o que diz respeito à covid (e não só), como Bolsonaro pretende atrair para ministérios quem respeita a vida, a ciência e a própria biografia? O sonho de Bolsonaro de fazer uma boa reforma ministerial e se reeleger em 2022 esbarra no pesadelo Bolsonaro. Assim como a própria reeleição.


José Casado: Enlaçado e cercado

Governador acena com vacina na rua em 40 dias

Trinta e oito graus sobre terra queimada. É Carnaíba, no sertão, a 400 quilômetros do Recife. Lá vivem 19 mil pessoas aturdidas pelo vírus, mas fiéis à esperança de proteção. Médico e prefeito, José de Anchieta Patriota (PSB) se cansou do desgoverno federal. Entrou no Instituto Butantan e saiu com a reserva de 40 mil doses da vacina CoronaVac.

Ontem, a lista do Butantan abrigava 912 prefeituras, 13 estados mais os governos de Argentina, Chile, Peru e Honduras. A romaria ao laboratório cresce. O início da vacinação em São Paulo está marcado para 25 de janeiro, feriado pelos 466 anos da construção do barraco pioneiro da capital paulista, obra dos jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta.

É essa a mudança relevante na perspectiva política. Faz diferença quem chega antes com respostas objetivas à ansiedade pandêmica. O governador João Doria (PSDB) acena com vacina na rua em 40 dias.

Em contraste, depois de nove meses Jair Bolsonaro não tem vacina nem seringas — corre atrás de 331 milhões, mas vai precisar de 600 milhões. Mandou ao STF um plano sem data ou quantidade de pessoas nas fases de vacinação. Enviou ao Congresso um orçamento com déficit na Saúde (R$ 40 bilhões em 2021), sem prever gasto com imunizantes.

Diretores da Pfizer tomam chá de cadeira na Saúde desde abril, mas sua vacina já é usada nos EUA. O Butantan ainda espera resposta às três cartas que enviou no primeiro semestre oferecendo a CoronaVac.

A romaria de governantes a São Paulo evidencia fadiga com a inépcia. Bolsonaro acabou enlaçado por Doria e cercado em Brasília. O Supremo exige-lhe um plano consistente. O Ministério Público liberou estados e municípios na procura de solução, diante da omissão federal. O Congresso prepara lei para a imunização, legitimando o uso da CoronaVac.

Restou a aposta no socorro da agência reguladora, que não oculta disposição de vetar ou atrapalhar a “vacina do Doria”. É risco puro, porque o Congresso já engatilhou uma CPI da Anvisa. Ela, inevitavelmente, empurraria Bolsonaro no precipício que ele tanto contempla.


Demétrio Magnoli: 2 + 2 = 5

A polarização política saltou um degrau, convertendo-se em polarização cognitiva

A pandemia “é uma coisa política”. A Covid-19 “não é tão grave”. As UTIs “não correm risco de colapso”. As quarentenas “destinam-se a quebrar a economia”. Você, como eu, ouve teorias da conspiração desse tipo quase todos os dias. São bolsonaristas? Sim, mas não apenas. Ignorantes? Claro, mas também indivíduos com diplomas universitários — e de instituições prestigiosas. Não se (auto)engane: uma cisão cognitiva profunda atravessa a sociedade.

A extrema-direita não monopoliza as teorias da conspiração. O governo dos EUA sabia de antemão sobre os atentados do 11 de setembro (e talvez até tenha sido responsável por eles). Os EUA deflagraram a guerra na Síria para fortalecer Israel. Os judeus, donos do dinheiro, controlam Wall Street e dirigem a política americana no Oriente Médio. Sergio Moro perseguiu Lula, pois é agente do FBI ou do Departamento de Justiça dos EUA. 2 + 2 = 5: em certas circunstâncias, a esquerda compartilha a paixão pelo pensamento mágico.

A aprovação de Bolsonaro cresceu ao longo da pandemia — e não só entre beneficiários do auxílio emergencial. Na crise sanitária, dois Brasis separaram-se um pouco mais. Numa ponta, situa-se a população que circula na economia digitalizada e no funcionalismo público: os que conservaram seus empregos e salários durante as quarentenas. Na outra, a população presa à economia analógica ou presencial: os que enfrentam o desemprego, a perda de renda, a falência de negócios, a dissolução de patrimônios. Esqueça a conversa condescendente de que “estamos no mesmo barco”. Tente enxergar a paisagem do ângulo desses últimos.

Os “progressistas”, acampados na economia digitalizada, selecionaram seus especialistas. Os mais aclamados, arautos de uma epidemiologia fundamentalista, projetaram milhões de óbitos no Brasil, mesmo sob nossas precárias quarentenas. Nessa linha, exercitando o pensamento mágico, exigiram rígidos lockdowns de duração ilimitada. Como essa exposição do mais cru elitismo foi interpretada do lado de lá, entre trabalhadores “essenciais” de transportes e supermercados, donos de pequenos negócios comerciais, entregadores de aplicativos, ambulantes, empregadas domésticas?

A oferta de intelectuais e acadêmicos é elástica: todas as correntes políticas têm um estoque deles. Surgiram, previsivelmente, os especialistas do negacionismo. Primeiro, eles definiram a Covid como “gripezinha”. Depois, engajaram-se na “guerra da cloroquina” e na denúncia da “vacina chinesa”. No trajeto, apoiando-se nos dramáticos exageros e nas óbvias manipulações dos especialistas aclamados, engajaram-se nas suas próprias manipulações estatísticas, exibindo gráficos que comprovariam um absoluto fracasso de todas as quarentenas. A “ciência” — isto é, um discurso cifrado acompanhado por números —também pode ser posta a serviço de teorias da conspiração. Você tem uma “prova científica”? Ok, eles também: 2 + 2 = 5.

Teorias da conspiração sempre existiram, ainda que se espalhem mais rápido na era das redes virtuais. A demanda por elas vem de baixo, especialmente em tempos de crise, como resposta a difusas angústias sociais. Seu sucesso reflete a fragilidade dos laços de confiança que conectam a massa da população à “elite pensante”. A verdadeira novidade, fonte da força inédita que adquiriram, está no papel desempenhado pelas lideranças políticas da direita populista. Quando, como fazem Trump e Bolsonaro, o chefe de Estado torna-se porta-voz da irracionalidade, rompe-se a barreira psicológica da vergonha, coagulam-se crenças insanas e cada um ganha o direito de proclamá-las em público sem medo da censura alheia.

A polarização política saltou um degrau, convertendo-se em polarização cognitiva. A “elite pensante” não se interroga sobre as raízes da difusão popular de teorias da conspiração. Prefere a via fácil: dialoga exclusivamente com seus pares, repete incansavelmente suas próprias verdades e, nariz cada vez mais empinado, exibindo superioridade moral, faz troça dos “ignorantes”. Não entendeu o óbvio: rindo deles, você reforça as crenças que imagina combater. 2 + 2 = 5.