vacina

Helena Chagas: A resiliência não tão resiliente de Bolsonaro

É falta de honestidade intelectual acreditar nas pesquisas quando seus resultados nos agradam e contestá-las quando trazem dados adversos. É o que muita gente está fazendo hoje, decepcionada com os números do Datafolha que mostram certa resiliência na popularidade de Jair Bolsonaro, que segue com o seu nível mais alto de aprovação, na casa dos 37% de ótimo e bom. Vamos e convenhamos, não é lá essa Brastemp. É um resultado medíocre, o pior, com um ano de 11 meses de mandato, entre os presidentes eleitos diretamente na redemocratização — com a exceção de Fernando Collor, que a esta altura do campeonato já estava entrando pelo cano do impeachment.

Mas pesquisa é assim mesmo: temos a pesquisa e a narrativa da pesquisa, e ganha quem conseguir torcer melhor os números para comprovar sua tese. No caso de Bolsonaro, é forçoso reconhecer que o número dos que o avaliam como ruim ou péssimo (32%) está menor do que os que o aprovam, enquanto o regular está estável em 29%.

Só que é o próprio Datafolha que traz em si os germes do que pode representar a destruição da popularidade estável do presidente. As pesquisas vem mostrando há meses a relação direta entre o crescimento da aprovação de Bolsonaro junto aos setores de menor renda – teve uma alta de 11 pontos percentuais na faixa até dois mínimos – e a injeção de recursos do auxílio emergencial e outros benefícios dados durante a pandemia.

PANDEMIA

Esse auxílio, porém, foi reduzido à metade e acaba a partir de 31 de dezembro. É razoável supor que, junto com fatores como o desemprego e a segunda onda da pandemia, essa situação se reflita na aprovacão de Bolsonaro. E de forma ainda mais forte do  que no primeiro semestre de 2020, início da pandemia, quando houve uma queda na popularidade presidencial, revertida em agosto.

A segunda onda da Covid-19 está sendo tratada pelo governo com o mesmo desleixo mostrado na primeira, mas com o agravante de que, desta vez, outros países do mundo começam a ter acesso à vacinação, enquanto as autoridades brasileiras continuam no bate-cabeças.

Sem vacina disponível, como estará a população daqui a alguns meses?. O Planalto deve estar festejando que 52% dos entrevistados não atribuam ao presidente da República a culpa pelas 181 mil mortes registradas. Mas 46% acham que ele tem responsabilidade por elas.

O resiliente Bolsonaro, a mais de dois anos da sonhada reeleição, pode até comemorar a popularidade medíocre que registra hoje nas pesquisas telefônicas. Mas a realidade é que sua posição é frágil e o horizonte cheio de previsões negativas.


Elena Landau: Ho, ho, ho

Mesmo que o calendário de fim de ano seja uma ficção, ele deixa a gente sonhar

Antes de mais nada, boas-festas para todos. Parece um desejo quase impossível neste ano terrível de 2020. Mais de 180 mil brasileiros não estarão nem nas mesas com suas famílias, nem via zoom, nem em grupos de zap. A vacina é o principal pedido para Papai Noel, juntando adultos e crianças na esperança de um milagre de Natal. Só que, do mundo imaginário ao real, um longo caminho nos espera. Os imunizantes apareceram em tempo recorde no mundo, mas por aqui a politização da saúde, a negligência, a incompetência, reflexo do pouco caso oficial, tornam o acesso dos brasileiros à vacinação um sonho duvidoso e incerto.

No jornal, o Bonequinho me recomenda uma ida ao cinema para ver a nova versão de Poderoso Chefão e a declaração de amor a Babenco. Junto com as ofertas de viagem e hotéis que chegam, me soa como bullying. Parece que há uma realidade paralela. E há; está refletida na imagem de um Bolsonaro possuído, discursando na Ceagesp. Nem Joaquin Phoenix faria melhor.

A saudade do beijo e do abraço é enorme. Até da turbulência de um voo de verão, para ver amigos na cidade de São Paulo, eu sinto falta. É a volta da normalidade, com seus perigos e delícias. São meus sonhos mesquinhos, mas não posso fingir que não é o que quero para 2021. Fazer planos. Enquanto isso, vou atravessando este momento, seguindo Guimarães Rosa: “A felicidade se acha em horinhas de descuido”. É procurar.

Com a chegada do fim do pior ano da minha vida, há um natural alívio gerado pela mística ideia de que a virada da meia-noite nos trará um mundo novo. Estava nesse espírito até que recebi um meme “Antes de entrar 2021, eu quero ver o trailer”. De fato, com esse governo, tudo sempre pode piorar. Para quem tem alguma dúvida, recomendo assistir o documentário Cercados, na Globoplay. Em duas horas, o resumo da atuação do Capitão Morte. O deboche e o desprezo pelos brasileiros sendo revivido dia a dia.

Nove meses se passaram desde os primeiros sinais da pandemia e o documentário mostra a escalada das mortes. Impressionante. Fiquei pensando como ainda estamos, passivamente, como sociedade, aceitando a permanência na Presidência da República de uma pessoa que comete crimes contra a saúde de seu povo de forma tão consciente e premeditada. Quantos mais precisarão morrer? Aí vejo o resultado das pesquisas de opinião e a perplexidade aumenta. De volta à Idade das Trevas. 

Se o presidente é um irresponsável, para dizer o mínimo, o que dizer das nossas instituições? Uma agência reguladora, capturada pelo mais mesquinho critério político, se junta no desrespeito aos brasileiros a um Ministério da Saúde, que obedece a qualquer ordem porque (acha) que tem juízo. 

A vida vai seguindo como se fosse natural encher três Maracanãs com vítimas da covid-19. E Pazuello nos pergunta por que tanta ansiedade, tanta angústia? Diz que podemos confiar nele, o rei da logística, que deixou testes perderem validade esquecidos em um canto qualquer. 

Negociações para presidência da Câmara e do Senado continuam com base nas mesmas pautas comezinhas, tratando a responsabilidade de Bolsonaro na tragédia da pandemia como questão menor.

E a vacina é só o primeiro passo. Ano que vem ainda serão sentidos os graves efeitos da pandemia, que escancarou a realidade da desigualdade social. Os tais invisíveis. Habitação insalubre, falta de saneamento e acesso a itens básicos de higiene, desigualdades na educação e transporte público de péssima qualidade foram estampados nos jornais. Não dá mais para varrer para debaixo do tapete.

Apesar disso, não há nenhuma iniciativa do governo. Representante supremo do mundo da fantasia, o ministro da Economia foi abduzido de vez pela realidade paralela. Sumiu, junto com as reformas prometidas. E enquanto isso, no apagar das luzes, a diretriz orçamentária é votada a toque de caixa, com seus puxadinhos e sem obedecer os ritos tradicionais. Em fato inédito, Orçamento mesmo, só em fevereiro. Pelo jeito, já vamos começar 2021 devendo 2023.

Não há perspectiva de crescimento sustentado. Nem há na agenda nenhuma política social de qualidade. O único alento é que não ficamos parados esperando as novidades da semana que vem e uma Lei de Responsabilidade Social foi proposta.

Para sorte de muitos, a sociedade civil se mobilizou; cestas básicas foram distribuídas, vizinhos se cuidaram e doações de todo tipo apareceram. Tem quem pense ser esse um novo normal, mais humano, que veio para ficar. Não acredito nisso. As aglomerações e o abandono dos cuidados mostram como é fácil tudo isso se desmanchar no ar. São necessárias políticas públicas bem desenhadas e permanentes que possam, ao menos, reduzir a segregação da população e salvar vidas.

Este dezembro está sendo um teste para meu lado Pollyanna, peço desculpas pelo pessimismo. Afinal, é hora de festejar. Mesmo que o calendário de fim de ano seja uma ficção, ele deixa a gente sonhar. Então vamos lá, são só mais 13 dias. Feliz 2021.

Mas se a tristeza baixar em você, cante Belchior, como faz Emicida: “Ano passado eu morri, mas esse ano não morro”.

*ECONOMISTA E ADVOGADA 


El País: STF decide que vacina contra covid-19 poderá ser obrigatória e impõe derrota para Bolsonaro

Ministros determinam que população não poderá ser forçada a se vacinar, mas União, Estados e municípios poderão criar restrições para quem não tomar o imunizante

Marcelo Cabral, Beatriz Jucá, El País

Os ministros do Supremo Tribunal Federal, o STF, decidiram nesta quinta-feira pela obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19 no país. Por dez votos a um, o STF entendeu que as vacinas são obrigatórias ―mas não forçadas―, porque, na visão da corte, a decisão individual de cada pessoa não pode se sobrepor à saúde coletiva do país como um todo. Na prática, isso significa que ninguém será forçado ou coagido a tomar uma vacina, mas que poderá sofrer medidas restritivas por leis criadas pela União, Estados e Municípios, caso deixe de fazê-lo. Essas restrições podem incluir a proibição de embarcar para viagens ou de frequentar alguns espaços públicos, por exemplo.

A decisão do Supremo representa uma derrota para o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que declarou publicamente várias vezes ser contra a obrigatoriedade da vacinação. Na terça-feira, durante entrevista ao apresentador José Luiz Datena, Bolsonaro afirmou que " Como cidadão é uma coisa, e como presidente é outra. Mas como eu nunca fugi da verdade, eu digo: Eu não vou tomar a vacina. Se alguém acha que a minha vida está em risco, o problema é meu e ponto final”.

Bolsonaro também não irá participar de campanhas para incentivar a população a se vacinar contra o novo coronavírus, segundo o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello― uma posição contrária à de diversos líderes mundiais, como o presidente eleitos dos EUA, Joe Biden, que deve se imunizar na próxima semana, ou a rainha Elizabeth, do Reino Unido. “Sobre o presidente ser voluntário ou não, eu acho que é o mesmo enfoque: ele está reforçando a voluntariedade, e não a obrigatoriedade. É uma visão”, afirmou o ministro, durante sessão no Senado nesta quinta.

O presidente também vem defendendo a exigência de um termo de consentimento, a ser assinado pelas pessoas que receberem doses das vacinas que forem autorizadas em caráter emergencial. No entanto, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que não irá incluir esse termo na votação da Medida Provisória que autoriza o Brasil a aderir ao consórcio mundial liderado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para providenciar o acesso à vacinas a preços mais baixos. “O relator não vai incluir esse retrocesso na MP. Que seja incluído por emenda do governo, não por um partido da presidência da Câmara. O governo que tente ganhar no Plenário”, disse Maia.

O líder da Câmara também chamou de “lamentável” a decisão de Bolsonaro de não se vacinar. “Enquanto ele briga pelo tema, milhares de brasileiros vão se infectando e centenas vão perdendo suas vidas. Está tratando de um tema tão grave de forma tão irresponsável, mas tenho fé que ele compreenda seu papel e consiga não fazer uma guerra ideológica e responder aos anseios da sociedade brasileira”, criticou o político.

Já a oposição celebrou a decisão do STF. O ex-ministro da Saúde e deputado federal Alexandre Padilha (PT) destacou que a vacina não é proteção individual, mas proteção coletiva. “Quem se vacina protege a si, aos seus pais, seus filhos, seus colegas de trabalho, seus pares no mundo”, afirmou no Twitter. Já o deputado federal Marcelo Freixo considerou a decisão importante após Bolsonaro criticar publicamente a vacina. “Nós só vamos vencer a covid-19 se nós lutarmos juntos e pensarmos uns nos outros. Cuidar de si é cuidar de todos”, publicou o parlamentar do PSOL.

Julgamento triplo

O julgamento do STF surgiu a partir de duas ações sobre o tema movidas por partidos políticos ―o PDT e o PTB. Na primeira, os ministros eram questionados se Estados e municípios teriam competência para determinar a vacinação compulsória durante a pandemia. Já na segunda, o PTB, partido aliado de Bolsonaro, pedia que o Supremo declarasse inconstitucional a obrigatoriedade da vacinação. O Supremo decidiu confirmar a primeira tese e rejeitar a segunda. Também foi julgada ainda uma terceira ação sobre o tema, que questionava se o Estado poderia obrigar pais a vacinarem os filhos, a despeito de objeções filosóficas, religiosas, morais e existenciais. A decisão, também nesse caso, foi favorável à obrigatoriedade da vacinação.

Durante o julgamento, os ministros lembraram, por exemplo, da obrigatoriedade do voto, em que o eleitor não é coagido a se dirigir às urnas, mas pode sofrer sanções caso não cumpra o seu dever eleitoral. Eles também disseram que, sem condições dignas de saúde pública, não existe liberdade.

Votaram a favor da vacina obrigatória os ministros Ricardo Lewandowski, relator do caso, e os magistrados Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello e Luiz Fux. O único voto parcialmente contrário foi do magistrado Kassio Nunes Marques. Ele reconheceu a possibilidade de restringir ações para quem não tomar a vacina, mas afirmou que a medida deveria depender de aval do Governo Federal, via Ministério da Saúde. Marques foi indicado ao STF em outubro deste ano, justamente por Jair Bolsonaro.

Importação rápida das vacinas

Lewandowski, aliás, também determinou uma liminar sobre vacinas na noite desta quinta-feira, determinando que prefeitos e governadores poderão importar diretamente vacinas no caso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não der o aval para uso de vacinas já registradas em agências reguladoras internacionais em um prazo de até 72 horas. Vacinas autorizadas por pelo menos uma das agências sanitárias citadas por lei ―da União Europeia, Estados Unidos, Japão ou China― e distribuídas comercialmente nos respectivos países poderão ser adquiridas por gestores locais, caso não seja cumprido o plano nacional de vacinação ou “não proveja cobertura imunológica tempestiva e suficiente contra a doença”, segundo o ministro. A decisão acontece em meio a críticas de uma suposta inércia do Governo Federal e de suspeitas de politização na agência.

Ainda nesta quinta, apesar de estar imerso em uma enxurrada de críticas nas últimas semanas pela demora para apresentar a estratégia brasileira de vacinação contra a covid-19, Pazuello afirmou que o Brasil está na vanguarda do mundo com o seu planejamento ―mesmo com países como Reino Unido, Estados Unidos e Rússia já tendo iniciado seus programas nacionais de vacinação. Segundo o ministro, o Brasil pode receber 24,7 milhões de doses das vacinas da Astrazeneca, da Pfizer e da Sinovac no mês de janeiro, caso estes imunizantes recebam o aval da Anvisa e cumpram o cronograma de entrega estabelecido em memorandos de entendimentos. Até o momento, o Governo só tem contrato assinado para a aquisição de doses com a Astrazeneca. Mesmo considerando estas três vacinas, a previsão é de chegar a 93,4 milhões de doses até março ― o que vacinaria pouco mais de 42 milhões de pessoas, considerando a necessidade de duas doses por pessoa e as perdas por eventuais problemas logísticos.

“Nós não estamos sendo atropelados, nós estamos numa vanguarda”, afirmou Pazuello, um dia depois de apresentar oficialmente o plano operacional de vacinação brasileiro. O documento já incluía a intenção de aquisição da Coronavac ―vacina desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac com parceria de produção pelo instituto Butantan, vinculado ao Governo de São Paulo―, mas não especificava um cronograma com o quantitativo de doses previstas. O ministro diz que a campanha pode começar em janeiro, se houver registro da Anvisa e se os laboratórios conseguirem entregar as doses negociadas. Uma medida provisória foi publicada no Diário Oficial nesta quinta para destinar 20 bilhões de reais para aquisição de vacinas, compra de insumos como agulhas e seringas e realização de campanha de vacinação.


Juan Arias: Brasil reage com iniciativas de vida aos instintos de morte de Bolsonaro

Sobre os ombros do presidente cairá a dor de que o o país tenha um Natal de luto e de dor por tantas vidas perdidas pela covid-19

Os dois maiores crimes do presidente Jair Bolsonaro em seus dois anos de Governo foram o negacionismo da pandemia, chamando-a de “gripezinha” e depois qualificando de “covardes e maricas” aqueles que se esforçam em tomar as medidas ditadas pela medicina e pela ciência para se proteger do contágio. Para dar o exemplo, Bolsonaro desprezou publicamente todas as medidas de prevenção.

Junto com o desprezo pela epidemia que fez mais de 180.000 vítimas, o que lhe valeu o qualificativo de genocida, Bolsonaro entrará tristemente na história também por seu desprezo pelo meio ambiente e sua destruição da Amazônia, uma das maiores riquezas do país e do mundo.

Diante desses crimes com instintos de morte e destruição, o Brasil começa a reagir com uma iniciativa de vida fortemente simbólica: a de plantar uma árvore para cada vítima da epidemia que terá gravados seus nomes. Dois desafios de vida contra os instintos de destruição do presidente.

O Brasil está, efetivamente, perdendo sua imagem no mundo com as atitudes de morte e destruição de seu Governo. O The New York Times, considerado um dos jornais mais sérios do mundo, acaba de publicar que o Brasil é o país que travou da pior maneira a luta contra o vírus, talvez junto com os Estados Unidos de Trump, o ídolo de Bolsonaro. Não por acaso são os dois países do mundo com mais óbitos.

A pastora evangélica Damares Alves, ministra da Mulher e dos Direitos Humanos que quer que os meninos usem azul e as meninas, rosa, nas escolas, teve o sarcasmo de afirmar que o Brasil finalmente tem o presidente que necessitava: um presidente “macho”. Talvez tenha querido dizer um presidente que odeia as mulheres, as pessoas frágeis, os diferentes, a quem chama de covardes. Um presidente sem empatia pelos que vivem à margem da sociedade, sofrendo o flagelo das terríveis desigualdades sociais e que está destruindo a economia e a convivência nacional. Um presidente com o qual o Brasil perdeu cinco posições no ranking de desenvolvimento humano, como a ONU acaba de anunciar.

Não, o Brasil não precisa de um presidente “macho”. Está precisando de um estadista com projetos de vida e de reconstrução de um país em crise. Um estadista que aposte em projetos de vida e não de morte. Que tenha um sentimento de empatia pelas pessoas, que saiba sofrer com suas dores e suas tristezas. Que seja solidário com as famílias das vítimas, que apresente programas capazes de fazer o país crescer e lhe devolva o amor pela vida e não pela morte. Um presidente que acredite no melhor deste país, que é seu amor pela vida em vez de semear ódios e instintos de morte.

Dizer que o que este país precisa é de um presidente “macho” é ofender as mulheres em um país que mais as mata e onde elas ainda não ocupam o lugar que lhes corresponde na sociedade. É a melhor forma de dizer que o Brasil deve ser governado por machistas, autoritários, amantes das armas, do autoritarismo, que despreza tudo o que é frágil e marginal. É ir na contramão de uma luta universal contra o desprezo pelo feminino e onde, com muito sofrimento e lutas, o mundo da mulher começa a abrir espaço.

Machismo é o que o mundo tem de sobra. Chegou a hora de abrir novos espaços e horizontes para combater definitivamente o preconceito em relação aos valores femininos. Com a presença de Bolsonaro, o presidente macho, o Brasil continuará indo ladeira abaixo em suas lutas para construir uma sociedade mais humanitária, menos classista e desigual. Enquanto isso o Brasil afunda, brincando com o caos, brincando com a vida. O Natal se aproxima, e o presidente macho, que coloca em seu emblema “Deus acima de tudo”, continua apostando na morte em vez de na vida.

Sobre seus ombros cairá a dor de que o Brasil tenha um Natal de luto e de dor por tantas vidas perdidas. Na boca de Bolsonaro, com o nome de Deus que evoca amor por todos e principalmente pelos abandonados e marginalizados, a vida soa mais como uma blasfêmia.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse grande desconhecido’, ‘José Saramago: o amor possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.


Eugênio Bucci: Seu desaforista!

O novo Odorico leva o povo para o altar do sacrifício. Que morram muitos mais. E daí?

Em 1973 não havia liberdade de expressão no Brasil. A ditadura militar torturava dissidentes, exterminava guerrilheiros no Araguaia e tolhia a imprensa. Nas redações dos jornais, censores cortavam reportagens inteiras poucas horas antes de os cadernos começarem a ser impressos nas rotativas. Preencher os vazios abertos pela tesoura da repressão política era um tormento. Este jornal, O Estado de S. Paulo, encontrou uma solução heterodoxa: no lugar do material censurado, passou a publicar trechos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Entre 2 de agosto de 1973 e 3 de janeiro de 1975, foram 655 inserções do épico lusitano nas páginas do Estado, conforme levantamento feito pelo jornalista José Maria Mayrink.

Pois no mesmo ano 1973, em meio a tantas trevas, entrou no ar uma criação primorosa do dramaturgo brasileiro Dias Gomes: O Bem-Amado. Sob a vigência da mordaça absoluta, O Bem-Amado estreou com a força de uma apoteose libertária e satírica. Era um contrassenso: como podia haver espaço na televisão para tamanha exuberância criativa, e tão crítica, sob uma tirania tão estupidamente violenta?

Dias Gomes era um autor de esquerda, com ligações históricas com o Partido Comunista, e dono de um talento assombroso. O protagonista que ele inventou para O Bem-Amado, Odorico Paraguaçu (interpretado pelo ator Paulo Gracindo), comandava com mão de ferro, sem nenhum constrangimento de ordem moral, a prefeitura da fictícia Sucupira. Odorico era um canalha corrupto e truculento que, sob o gênio de Dias Gomes, ganhava ares despudoradamente cômicos. Nisso residia seu carisma. Falastrão semianalfabeto, posava de orador erudito à custa de expressões incultas, mas empoladas, que proclamava em tons triunfais. Gostava de xingar os adversários de “desaforistas” e quando queria humilhar os subordinados dizia que eram “desapetrechados de inteligência”.

Se diante dos noticiários de TV a sociedade prestava silêncio obsequioso aos ditadores que se sucediam, diante da novela podia rir deles sem medo da cana. Graças a Odorico Paraguaçu, o país vilipendiado caçoava do arbítrio, da demagogia e da estultice. Foi um sucesso instantâneo e impune. Os homens da ditadura, que se viam como agentes “modernizantes” e “urbanos”, não percebiam que o prefeito de Sucupira, de feitio rural, regionalista, antiquado e ridículo, era o retrato escarrado deles mesmos. A ditadura era burra, tão burra que batia palmas para a televisão que a fazia de palhaça. Contrassenso total.

Odorico se impôs de tal maneira que nunca mais saiu de cartaz. A Rádio CBN andou usando diálogos da antiga novela para ilustrar a desconversa de políticos da vida real acusados de corrupção. Agora, nos dias que correm – embora corram sem sair do lugar –, recortes de cenas impagáveis viajam nas redes sociais para delícia dos públicos mais diversos,

As semelhanças com o presente são efetivamente cômicas, mas também estarrecem. Numa das cenas que hoje circulam nas redes, Odorico aparece conversando com seu assessor direto, o igualmente antológico Dirceu Borboleta, interpretado por Emiliano Queiroz. O assunto é uma epidemia que ameaça Sucupira. O prefeito armou uma tramoia para impedir que o dr. Leão (Jardel Filho), seu desafeto político, distribua a vacina. Dirceu não se conforma. Sabendo que Odorico vai interceptar o carregamento das vacinas do dr. Leão, interpela o chefe para expressar sua discordância exasperante.

Com a voz medrosa, em titubeios que vão e vêm, Borboleta empreende enorme esforço para externar seu protesto. Ele, sempre submisso, está quase fora de controle. Aquilo não pode ser. Dirceu se exalta. Como deixar sem proteção o povo de Sucupira?

O prefeito reage, impaciente: “E daí, seu Dirceu?”. Esse “e daí?” soa chocante. O espectador descobre que a pergunta retórica vem de entranhas imemoriais da política nacional. O “e daí?”, como expressão de desprezo pela vida, não é de hoje.

Dirceu não se cala. Tomado de furor cívico, aumenta a voz: haverá um “assassinato em massa, um genocídio”. Passa a mão direita sobre a manga da camisa no antebraço esquerdo, como se acometido de comichões, dizendo que isso lhe dá “até arrepio”.

Então Odorico se põe em brios patrióticos, ralha com o assessor e começa a explicar seu plano. Diz que não vai impedir a vacinação, mas apenas desviar o carregamento para o posto de saúde que planeja inaugurar na cidade. Aí, sim, entregará a salvação sanitária a todos e todas. O herói será ele, Odorico, e não o dr. Leão, esse tal “que está do outro lado, do lado da oposição”. Dirceu vai se resignando, vai se rendendo, compreende o plano e fica aliviado. De um jeito ou de outro, a vacina virá e, para ele, está bom assim.

É fato que hoje, na Sucupira Central, há um Odorico pior, assumidamente genocida, que quer exterminar a vacina da oposição sem ter nada para oferecer no lugar. O novo Odorico seguirá levando o próprio povo para o altar do sacrifício ritual. Que morram mais, muitos mais. “E daí?”.

Dias Gomes talvez tenha sido um humorista profético. Ou um charadista. Em que chave cômica se explica a tragédia brasileira?

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Mariliz Pereira Jorge: 'Para que essa ansiedade?', pergunta Pazuello, o tranquilão

Ministro da Saúde questionou angústia pela chegada da vacina contra Covid-19

O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que não entende xongas de saúde, não deve fazer ideia de que quatro em cada dez brasileiros tem experimentado algum nível de ansiedade por causa da pandemia. Entre 16 países, somos o que mais sofre, segundo pesquisa da Ipsos.

Talvez esses dados iluminem o titular da pasta que, ao ser questionado sobre detalhes do “plano de imunização” do governo, minimizou a complexidade de proteger 200 milhões de pessoas. “Para que essa ansiedade, essa angústia?” Segundo Pazuello, temos o maior programa de imunização do mundo e somos os maiores fabricantes de vacina da América Latina. Ok, conte agora uma novidade. Que dia começa a vacinação?

Ele diz que pode começar em dezembro. Muda para janeiro. Março. A última notícia é de que será em fevereiro. Depois da divulgação do “plano” ficou claro que o único projeto que o governo tem é de extermínio. Não tem plano. O brasileiro que não entrou em negação, se não morrer de Covid, sucumbe ao pânico. Mas o ministro tranquilão não entende por que estamos ansiosos.

Temos mais de 180 mil mortes pela Covid-19. O Brasil está perto de voltar a enterrar mil pessoas todos os dias. Os hospitais estão lotados. Os casos estão explodindo em cidades sem UTI. Para que angústia?

E ainda tem Jair Bolsonaro. Ele tem dado declarações com sinal trocado. No lançamento do “plano” falou sobre a importância de “união para buscar a solução de algo que nos aflige há meses”, um dia depois de ter conspirado sobre a segurança da vacina e de ter dito que não vai tomá-la. O resultado é o aumento da desconfiança na população. Mas pra que ficar ansioso?

Milhares de pessoas passarão as festas de dezembro, assim como já ficaram o ano todo, longe dos seus. Perdemos familiares, amigos, emprego, esperança, mas Pazuello não sabe por que estamos ansiosos por uma bendita vacina.


Vera Magalhães: Boçalidade contagiosa

Mais que o vírus, é o comportamento indigno do presidente que se alastra

As pesquisas divulgadas no fim de semana pelo Datafolha pintam um cenário tão desanimador quanto a nossa absoluta ausência de estratégia para uma campanha de vacinação eficaz contra o novo coronavírus: elas mostram que boa parte da sociedade brasileira foi inoculada pela boçalidade de Jair Bolsonaro, e que ela se alastra por terrenos perigosos e dá a esse presidente, o pior da República, uma resiliência inacreditável num cenário de mortes e crise econômica.

O presidente, com seu comportamento indigno da cadeira que ocupa, voltou a dizer nesta terça-feira que não se vacinará contra o novo coronavírus.

Como tantas vezes tem feito nos últimos dois anos, novamente se comportou como um inconsequente, ao promover aglomerações na Ceagesp e instar uma criança a tirar a máscara para ser compreendida, e mostrou o ridículo de que é feito ao se enfurnar no meio da bandinha da Polícia Militar do Estado de São Paulo, numa pose ridícula de prefeito de Sucupira.

Esse tipo de postura se impregnou em setores da sociedade de forma mais deletéria do que poderíamos imaginar antes da pandemia. No Brasil, movimentos antivacina nunca tiveram grande aderência, mas com Bolsonaro até isso vai sendo corroído.

A pesquisa Datafolha mostra que são 22% os que dizem que não pretendem se vacinar. Eram 9% em agosto! Entre os que dizem confiar em Bolsonaro, esse índice vai a 33%. E os que dizem que não aceitariam se vacinar com imunizante chinês são 47%.

É impressionante a adesão de uma parcela imensa dos brasileiros à desinformação absoluta em relação às vacinas, praticada de forma deliberada e estudada pelo presidente e por seus asseclas.

Isso no momento em que o País já vive uma segunda onda de contágio pelo SarsCov2e não tem perspectiva de receber vacinas que não sejam a Coronavac, produzida pelo Butantã, pelo fato de Bolsonaro e seu ministro da Saúde, o inepto general Eduardo Pazuello, não terem feito seu trabalho.

Combinado com os outros dados da pesquisa, que mostram aprovação de 37% dos brasileiros a Bolsonaro e que 44% livram o presidente de culpa pela má condução do combate à pandemia, temos um cenário desolador em que vamos ficar no fim da fila da vacina sem que a população exija de forma altiva o seu direito a ser vacinada para que o País comece a superar a maior epidemia que o atingiu desde 1918!

Trata-se de uma corrosão muito rápida e profunda dos valores que guiam a vida em sociedade — entre os quais a constatação, que deveria ser óbvia, de que a vacinação é um direito, sim, mas também um dever de um indivíduo em relação à coletividade e à saúde pública.

A completa falta de preocupação de Bolsonaro com as mais de 181 mil mortes de brasileirose sua incapacidade de recomendar àqueles que governa qualquer conduta que não seja individualista, egoísta e baseada numa visão estreita e mesquinha de mundo vão moldando o pensamento de uma parcela do povo brasileiro à imagem e semelhança do capitão. E sua imagem é a de alguém que banaliza a vida.

Diante de tal estado de apatia combinada com cinismo cabe como último recurso contar com o funcionamento ainda que precário das instituições. Hoje o Supremo Tribunal Federal terá a chance de colocar nos trilhos o Plano Nacional de Imunizaçãoindigente divulgado pelo general Pazuello, e estabelecer regras para que sim, a vacinação (quando houver vacina) seja obrigatória para matrícula e frequência em escolas, viagens de avião, inscrição em concursos, frequência em academias de ginástica etc.

Porque só esperar o bom senso dos brasileiros, como mostram as pesquisas e as cenas de aglomeração em várias cidades e as promovidas pelo presidente, não será suficiente.


Cristiano Romero: Não há dinheiro para o auxílio emergencial?

Subsídios a grupos consumiram 21,37% da receita em 2019

O país se aproxima de mais uma tragédia anunciada _ o fim do pagamento do auxílio emergencial _ e o que mais se ouve em Brasília é que faltam recursos para bancar a despesa. Diante da pandemia, cujo número de casos e mortes voltou a crescer, trata-se de viabilizar ajuda humanitária a pelo menos 23 milhões de pessoas que, daqui a duas semanas, não terão mais direito a receber um centavo do governo federal.

O governo federal, com a ajuda do Congresso Nacional, reagiu rapidamente à primeira onda da pandemia. O Banco Central foi célere na garantia de liquidez para o sistema financeiro e as grandes empresas. Já centenas de milhares de pequenas e médias firmas sucumbiram, principalmente no setor de serviços, porque a ajuda _ modesta _ demorou a chegar e beneficiou a poucos. Dentro e fora do governo isso foi visto _ e defendido _ como algo inevitável.

Na economia informal, onde atua cerca de metade da força de trabalho do país, a ajuda poderia ter evitado o que se vê neste momento nos grandes centros urbanos: o aumento exponencial dos moradores de rua, cidadãos que se afastam de suas família por vergonha (de não ter emprego) e que não depositam mais nenhuma esperança na própria vida nem no país onde nasceram. Chegar até os informais teria sido muito mais fácil se o Ministério da Economia tivesse acolhido proposta do BC de alcançar esse público por meio das empresas de maquininha.

Trabalhadores que atuam na informalidade correm enorme de risco de mergulhar na miséria absoluta quando sobrevêm crises como a atual. Eles se tornam vulneráveis de forma muito rápida, justamente, por não gozarem dos benefícios assegurados aos trabalhadores regidos pela CLT. A pandemia paralisou subitamente o comércio em geral e colocou nas ruas milhões de pessoas. Estas sequer conhecem seus direitos porque, em geral, morrem antes de completar 65 anos, idade que assegura a brasileiros em situação de indigência requerer do Estado um salário mínimo mensal por meio do programa Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Os cidadãos que fazem das ruas sua morada em momentos como este são, aos olhos não das leis mas sim dos governantes, os invisíveis. Em São Paulo, os moradores de rua fazem parte da paisagem, para a maioria dos transeuntes, como se isso fosse obrigatório, uma espécie de lei da natureza que escolhe os mais fortes entre nós e almadiçoa os fracos, uma predestinação "social" de seres que, por "livre arbítrio", optaram por não estudar e, por essa razão, merecem estar ali, mais vulneráveis do qualquer um de nós à ação implacável do tempo e à violência que campeia nos grandes centros urbanos.

O titular desta coluna conversou com um mendigo que, empurrando uma carroça e acompanhado obedientemente por nove cachorros (a maioria, abandonada à própria sorte nas ruas, como seu "dono"), esperava na porta de uma restaurante caixas de papelão que asseguravam parte de seu sustento. Ele contou que seu destino mudou radicalmente após o advento do Plano Collor, em 1990. A indústria onde trabalhava, fabricante de tintas, não sobreviveu à recessão provocada pelo confisco.

Desempregado aos 26 anos, o rapaz, originário de Minas Gerais, tentou se recolocar no mercado de trabalho nos quatro anos seguintes. O que mais ouviu foi que não havia vagas e que ele já estava "velho" para ser contratado. Em 1994, o ano de lançamento do Plano Real, ele desistiu de procurar emprego e de morar de favor na casa de amigos e conhecidos. Tornou-se, então, habitante das ruas da então 3ª metrópole do mundo. Não deu mais notícia à família, afastou-se dos amigos, porque, para ele e a maioria dos trabalhadores, vergonhoso não é ganhar pouco, mas, não trabalhar.

Indagado sobre a existência do BPC, que a esta altura de sua vida poderia ser um alento para a sua sobrevivência, nosso entrevistado disse que nunca ouvira falar, duvidou de "tamanha bondade" do governo, mas, antes de assoviar para os cachorros e bater em retirada, fez uma pergunta: "Doutor, é preciso ter quantos anos para ganhar esse BP, como é que é mesmo, BPC?". "Sessenta e cinco." "Ah, doutor, eu tenho só 57", disse gargalhando o homem, cuja aparência remetia facilmemente a alguém com mais de 70 anos.

O auxílio emergencial destinado aos brasileiros em situação mais vulnerável nesta pandemia foi instituído em pouco tempo, embora caiba aqui observação: ao escolher o público do programa Bolsa Família (BF) _ cerca de 44 milhões de pessoas _ como o mais elegível, governo e parlamento agiram com um olhar mais na política do que no bem-estar da maioria. Os beneficiários do BF já recebiam seus pagamentos, ainda que a um valor (R$ 150 em média por pessoa) que realmente precisava ser reajustado.

O auxílio foi definido em R$ 600 para o período entre abril e agosto, e de R$ 300 de setembro a dezembro. Além do público do BF, outras 23 milhões de pessoas teriam acessado o auxílio. A partir de janeiro, o pessoal do BF volta a receber R$ 150 e os outros, nada.

Falta dinheiro? Leitor, quando lhe disserem isso, olhe os números do orçamento de perto. O que se vê é que, apenas no ano passado, a União deixou de arrecadar R$ 308 bilhões e, em 2020, R$ 320 bilhões em tributos e impostos federais (ver gráfico). Esta fortuna foi apropriada pelos grupos de interesse específico mais bem representados em Brasília, entre eles, a indústria automobilística, os grandes grupos privados de educação e saúde e as classes média e alta.


Elio Gaspari: Bolsonaro e Mourão mostram o caos

O general e o capitão tiveram posições diferentes, mas fazem parte do mesmo pandemônio

Pelos mais diversos motivos, 57 milhões de pessoas votaram em Jair Bolsonaro. O general da reserva Hamilton Mourão fez mais que isso, aceitando ser o seu vice-presidente. Hoje os dois mal se falam e não se ouvem.Mourão tinha grandes expectativas para si e para o governo. Nas suas palavras:-- Eu me vejo como um assessor qualificado do presidente, um homem próximo ali, junto dele, dentro do Planalto, ali do lado dele, nossas salas serão juntas. Não seremos duas figuras distantes, como já aconteceu, um para o lado e o outro para o outro lado. Aquelas reuniões que ocorrem ali, eu estarei presente.Ou ainda:-- Posso atender à necessidade de coordenar trabalhos que sejam interministeriais. Ele pode me delegar essa tarefa. Por exemplo, em projetos de infraestrutura, de parceria público-privada, coisas que a gente tenha algum conhecimento.

Deu em nada. Hoje, Mourão reconhece que "faz algum tempo" que não conversa em particular com Bolsonaro. Era apenas ilusão de um general ajudando a campanha do capitão. Mourão sempre soube onde se metia.

O grande Stanislaw Ponte Preta ensinou que o vice-presidente acorda mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada. Marco Maciel (vice de FHC) e José Alencar (vice de Lula) seguiram a lição, cada um à sua maneira.

Mourão agora revela que está "pronto para acompanhar Bolsonaro caso ele deseje e vá ser candidato em 2022, porque tudo é possível daqui para lá".

Tudo é possível, mas com recessão, uma pandemia e tanta maluquice solta por aí, o que o país menos precisa é de uma crise entre o presidente e seu vice. Michel Temer detonou Dilma Rousseff, mas sua origem e força política estavam no Congresso. Mourão veio da caserna e, como muitos militares, entrou numa campanha e caiu num governo que pouco tem a ver com o que esperava. O general Eduardo Pazuello não sabia o real tamanho da encrenca em que se meteria. Militar, ele é capaz de achar que manda em quem o ouve e obedece ao que determina o presidente. Melhor destino teve o paisano Nelson Teich, que aceitou o ministério da Saúde e foi-se embora 28 dias depois, salvando sua biografia de médico.Tudo é sempre possível, mas há o tudo indesejável. O capitão Bolsonaro governa criando conflitos.Sua última proeza foi a construção de uma briga sanitária que, se não for aplacada, caminha para um desfecho desfavorável ao Planalto no Supremo Tribunal Federal. Supremo esse no qual ele já achou que poderia "intervir".

O vice-presidente tornou-se um personagem secundário nessa usina de conflitos, mas é parte dela. Bolsonaro pode ter exagerado quando disse que "Mourão é mais tosco do que eu", mas os dois se conhecem melhor do que a maioria das pessoas que votou neles.

Em dois anos de coabitação palaciana, o general e o capitão tiveram algumas posições diferentes mas, no essencial, fazem parte do mesmo pandemônio. Bolsonaro não fez de Hamilton Mourão um "assessor qualificado" e o general deslizou para uma condição de eventual contraponto.

Como ensinou o poeta, no vasto mundo das confusões de Bolsonaro, se ele se chamasse Raimundo, seria uma rima, não seria uma solução.


Ruy Castro: Pazuello já merece uma biografia

Da gerência das cuecas do quartel à morte de, em breve, 200 mil brasileiros

Aos 57 anos, o general Eduardo Pazuello, militar de carreira e ministro da Saúde do governo Bolsonaro por carreirismo, nunca imaginou que, um dia, fosse merecer uma biografia. Oficiais da Intendência do Exército, como ele, não têm muitas ocasiões para usar a espada exceto no dia 7 de setembro. Sua função é prover o suprimento do quartel —aviar a merenda da tropa, supervisionar a lavagem das fardas, manter os mictórios em condições e cuidar da manutenção dos pára-quedas. E também vigiar os transportes de munição, cuidando para que não haja desvio de cartuchos pelo caminho.

Até há pouco, o único episódio na trajetória de Pazuello que poderia justificar uma referência foi quando, em 2005, ao dirigir o Depósito Central de Munição, em Brasília, puniu um soldado sob seu comando, obrigando-o a puxar uma carroça, atrelado a ela por arreios, como uma mula, e transportando um colega na presença dos companheiros. Pazuello era tenente-coronel, mas isso não turvou sua escalada ao generalato.

Ao ser convocado por Jair Bolsonaro para substituir um médico na direção do Ministério da Saúde no meio de uma pandemia, Pazuello tinha duas opções: recusar o convite, alegando incompetência para o cargo e certeza de comprometer a saúde nacional, ou aceitá-lo e ter de mentir, omitir-se e errar perversamente no combate ao vírus. Escolheu a segunda. Ou delirou, achando que daria conta da tarefa, ou dispôs-se a babar e se humilhar para servir ao capitão. Pelo que se vê, vale também a segunda hipótese.

Pazuello na saúde é mais absurdo do que um médico comandando a lavagem das cuecas do quartel. É mais letal. Recebeu o cargo com 15 mil mortos pela Covid e logo nos entregará 200 mil. É injusto chamá-lo de palerma, como fazem. Mais exato será cobrar sua cumplicidade no extermínio promovido por seu chefe.

Pazuello já merece uma biografia. A ser lida sob revolta e náuseas.


Hélio Schwartsman: Como deve ser a fila da vacina?

Pode-se priorizar os mais vulneráveis ou buscar o máximo de proteção coletiva

A epidemiologia é uma ciência firmemente calcada na matemática, mas que não trabalha bem com a conceituação binária certo e errado. A razão do paradoxo é que é grande a interface entre epidemiologia e ética, e esta, apesar dos esforços de certas correntes filosóficas, resiste à matematização.

O problema fica escancarado agora, quando países definem os grupos prioritários para a vacinação contra a Covid-19. Existem duas lógicas a orientar as decisões. Pode-se tanto dar primazia aos mais vulneráveis como procurar extrair o máximo de proteção coletiva de cada dose aplicada. Nada impede a criação de um sistema híbrido, que combine as duas.

Pelo primeiro critério, ganham dianteira na fila idosos, portadores de doenças que agravam a Covid-19, populações institucionalizadas, indígenas etc. Pelo segundo, a prioridade deve ser dada a indivíduos que, mesmo sem correr grande risco pessoal, desempenham funções essenciais e lidam como muita gente, o que os torna elos importantes na cadeia de transmissão: profissionais de saúde, policiais, certos comerciários, motoristas de coletivos, entregadores etc.

Como tudo é novo com essa doença, estamos fazendo as escolhas meio no escuro. Se as vacinas previnem a infecção e não só quadros sintomáticos, teríamos um motivo adicional para enfatizar a segunda estratégia. Se elas não funcionam tão bem com idosos, um efeito esperado, a melhor forma de proteger essa população pode ser imunizando não o indivíduo diretamente, mas as pessoas que se relacionam com ele.

Para tornar tudo mais complicado, há o problema dos "free riders", a turma que quer furar fila. Critérios como idade são relativamente fáceis de controlar. Já os que dependem de autodeclaração (sou motoboy) podem gerar confusão.

Aqui não há certo e errado, mas escolhas diferentes. Só o que é definitivamente errado é menosprezar a vacinação, como fazem alguns governantes.


Bernardo Mello Franco: O ralo da educação

O Senado fechou ontem um ralo que ameaçava sugar R$ 12,8 bilhões por ano da educação pública. O dinheiro pertence ao Fundeb, o fundo de apoio ao ensino básico. Na quinta passada, a Câmara abriu um dreno para direcioná-lo a escolas filantrópicas, confessionais ou comunitárias.

O contrabando foi patrocinado pela bancada evangélica. Coube à deputada Soraya Santos propor a mudança no texto original do Fundeb. A alteração foi aprovada com aval do governo, interessado no apoio das igrejas.

O bolsonarismo prometia combater a doutrinação política nas salas de aula. Era conversa fiada para perseguir professores e abrir caminho à doutrinação religiosa. As igrejas já contam com a isenção de impostos. Com a emenda aprovada na Câmara, passariam a receber repasses dos cofres públicos, numa afronta à laicidade do Estado.

“Existe um empenho para ampliar as escolas confessionais no Brasil. Isso está ligado às eleições de 2022 e ao aumento da influência das igrejas na política”, observa a presidente-executiva do Todos pela Educação, Priscila Cruz.

Ontem senadores usaram termos menos diplomáticos para descrever a manobra da Câmara. Rose de Freitas falou em “armação vergonhosa”. Paulo Paim classificou a emenda como um “golpe sem precedentes contra a escola pública”.

O Senado também fechou o ralo que ameaçava drenar dinheiro para escolas ligadas ao Sistema S. Até o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, admitiu que os colegas foram “longe demais” ao aprovar a ideia. “Daqui a pouco você vai ter uma redução de recurso público para escola pública”, afirmou, numa conclusão de fazer inveja ao Conselheiro Acácio.

A pandemia aprofundou as desigualdades na educação brasileira. Enquanto as escolas particulares se organizaram para oferecer aulas remotas, as públicas sofreram com a falta de infraestrutura e com a paralisia do MEC. A pasta já teve três titulares desde junho. O atual, que deveria proteger o Fundeb do proselitismo religioso, é pastor da Igreja Presbiteriana.