vacina
Luiz Sérgio Henriques: O que legaremos para 2021
2020 é um daqueles anos cujos fantasmas vão querer nos assediar sem descanso
Como se fossem poucos os desafios ultimamente lançados às democracias, com as novas e audaciosas estratégias de corrosão da legitimidade das suas instituições, o ano que ora se encerra nos trouxe, na forma de uma pandemia, recados que costumamos imprudentemente esquecer nas horas ditas normais. O processo civilizatório avança constantemente, mas aos saltos. Vivemos mais e melhor, mas há intolerável desigualdade no gozo desse tempo adicional de vida. E tudo isso sem falar que o relativo “recuo das barreiras naturais” possibilitado por aquele avanço não se faz sem riscos permanentes. Somos seres precários, cujos impulsos de conquista convém temperar para manter a harmonia com o mundo natural e não alimentar a ilusão de domínio absoluto sobre ele.
O vírus que saltou a barreira entre espécies num remoto mercado teve o condão de nos lembrar que a máquina do mundo não funciona em moto contínuo e nem sempre estamos preparados para responder do modo mais racional ao inesperado, pelo menos não num primeiro momento. E muitos não responderão racionalmente em momento algum.
Não faltou quem, no início do grande drama, apostasse na ideia de um “vírus inventado” para propiciar o fortalecimento dos mecanismos societais encarregados de vigiar e punir. Uma ideia que, apregoada em setores progressistas, encontraria terreno já intensamente lavrado pelo moderno negacionismo científico de marca ultraconservadora. Não por acaso os negacionistas propriamente ditos passaram a repetir à exaustão a fábula do vírus desenhado em laboratório chinês, assim como, antes, haviam se atrevido a afirmações destrambelhadas, como a de que vacinas infantis são perigosas a ponto de levarem ao autismo.
Tal absurdo, aliás, propalado há alguns anos por Donald Trump em pessoa, leva-nos ao ponto em que se cruzam, hoje, os ataques simultâneos à ciência e à democracia. É bem verdade que tais ataques não são monopólio da extrema direita contemporânea, basta mencionar que, em episódio grotesco há quase cem anos, a “epistemologia” marxista-leninista reinante na antiga URSS dividia as ciências em “burguesas” ou “proletárias”, de acordo com os desígnios do ditador ou prepostos seus na ciência oficial. Trofim Lysenko, por exemplo, teve seu nome para sempre associado à manipulação política da genética e ao fracasso da agricultura soviética, um fracasso que moldaria profundamente toda aquela sociedade e os impasses que jamais superou.
O fato é que hoje as ameaças mais evidentes carregam um sinal oposto. Os problemas nascem, ironicamente, de uma mutação genética no campo conservador. Saiu de cena, ao menos em boa medida e em muitos contextos nacionais, o conservadorismo voltado para a preservação das instituições e para hipóteses de mudanças lentas e controladas na estrutura social. Em seu lugar, ameaçadoramente autoritário, surge o conservadorismo com pretensões revolucionárias, se é que vale a expressão paradoxal. Um conservadorismo em busca da uniformidade (étnica, religiosa, cultural) que teria sido perdida na vida moderna, intrinsecamente cosmopolita, e deveria ser reencontrada num passado imaginário e inventado dos pés à cabeça.
Na sua versão clássica, o pensamento conservador é índice das complexidades do mundo real. O tipo de abordagem que em geral propõe permite o debate produtivo com as mais diversas tradições, incluídos o marxismo e o socialismo “evolucionários”, para os quais a revolução há muito deixou de ser uma irrupção violenta ou um fetiche ideológico a que todo o resto deve estar subordinado. Também dessa ponta do espectro se propõem mudanças “moleculares”, certamente em direções novas e diferentes, e tais mudanças, sendo pela própria natureza objeto de disputa ou de negociação, envolvem a participação consciente dos cidadãos e decidem-se no terreno da política como mútua persuasão.
O conservadorismo revolucionário, porém, é inerentemente subversivo. As instituições e as interações sociais devem ser dobradas em sentido autoritário e, se preciso, dilapidadas. Há um pesado elemento ideológico nele envolvido, a saber, a difusão massiva de meias-verdades ou mentiras consumadas. Um elemento, portanto, com amplas implicações “cognitivas”, a disseminar a irracionalidade. Inaugurando a noite em que todos os gatos são pardos, a irrazão é que permite a construção de um consenso passivo em torno de práticas e políticas fortemente regressivas. Não há nenhuma inocência na estratégia que promove a “pós-verdade” nem se trata propriamente de diversionismo para encobrir assuntos mais sérios.
Esse conjunto de problemas, de dimensões mundiais, também nos afeta em cheio e será um legado tremendo para o ano próximo. Nesse sentido, 2020 é mais um daqueles anos cujos fantasmas vão querer nos assediar sem descanso. Só que agora nosso país, muitas vezes desanimadoramente lento em curar suas feridas, não tem tempo a perder. Homens e mulheres de bem, só com as armas da política, terão de encontrar rapidamente outro caminho mais razoável.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Luiz Werneck Vianna: As nossas duas pragas
Um ano aziago, sem dúvida, esse que começamos a deixar para trás. Então “que se foda 2020”, como se estampa no rótulo do vinho português da Adega Azoeira, aliás bem caro, porque ele superou todas as medidas ao combinar duas pragas pestilenciais, o covid19 e o governo Bolsonaro. Deixa em seus rastros cerca de 190 mil mortos, até aqui, e uma obra de destruição de muitas instituições frutos de conquistas de lutas democráticas e populares em que se acalentavam aspirações por uma sociedade menos injusta e mais igualitária. Desse flagelo, em que ainda se vive, acumulamos perdas, algumas irreparáveis como a de vidas ceifadas, e outras, que mais à frente, podemos com o tempo recuperar.
Contudo, esses têm sido também os tempos de avanços na valorização da ciência, como no empenho na busca de vacinas eficazes que interrompam a propagação incontrolada da atual pandemia, que ora se realiza por meio de uma comunidade científica que atua em caráter cosmopolita, ultrapassando os estreitos limites do Estado-nação. Igualmente viram renascer a agenda dos ideais da solidariedade, e impuseram com vigor os temas ambientais, especialmente entre os jovens.
Sobretudo, 2020 foi o ano da derrota eleitoral de Donald Trump e seu projeto malévolo de imprimir um movimento de marcha à ré nas coisas do mundo a fim de nos devolver por inteiro, em pleno século XXI, o Estado-nação de infausta memória.
A ascensão de Joe Biden ao governo dos EUA, na esteira dos movimentos sociais mobilizados em sua campanha vitoriosa, não deve ser relativizada em sua importância como o fazem certas análises trêfegas, pois trata-se, na verdade, de um acontecimento de repercussão estratégica que afeta para melhor a disposição de processos fundamentais, tais como os do meio ambiente, cujo alvo é o capitalismo vitoriano predatório, e a revalorização dos organismos internacionais, especialmente da ONU. Muito particularmente, e isso é de evidência solar, a nefasta ação da atual política externa brasileira e do seu ministério do Meio Ambiente, a partir de 20 de janeiro, data da posse de Biden, perderão seus pontos de sustentação, o que não é de pouca monta.
Os dois anos restantes do governo Bolsonaro terão como horizonte pautas e agendas estranhas àquelas de sua afeição, uma sobrevivência exótica do trumpismo sem régua e compasso para agir tanto no cenário internacional como no interno. Difícil, nessas condições, conceber a sua reeleição, a que o faro apurado das elites políticas tradicionais não deixará escapar. De qualquer modo, o novo ano não será como aquele que passou, cabendo a ele dar continuidade criativa ao legado que recebeu das lutas de resistência das instituições republicanas, com papel destacado do STF e de suas câmaras de representação política.
As recentes eleições municipais, embora de modo geral tenham confirmado a natureza conservadora da sociedade, viram nascer novas lideranças, vale ressaltar o caso de Guilherme Boulos de óbvia vocação nacional, inclusive muitas delas originárias do mundo popular e de movimentos sociais libertários como o feminista e dos que se empenham na agenda das denúncias contra as desigualdades raciais.
Numa apreciação mais abrangente, fica do ano do qual nos despedimos uma evidente revalorização da política, revigorada pela decisão do STF que interditou, em leitura literal do texto constitucional, a reeleição do comando das casas legislativas na mesma legislatura, animando partidos e parlamentares a ações autônomas quanto ao poder executivo, vindo a estimular, inesperadamente, práticas de negociação política e ações concertadas em frentes multipartidárias em torno de valores comuns.
Vista da perspectiva de hoje, o que se descortina é uma paisagem em mutação quando confrontada com os idos da última sucessão presidencial. Sem triunfalismo, pode-se sustentar que o fascismo, mesmo que tabajara, apesar de sempre latente numa sociedade com a história de formação da nossa, foi um risco exorcizado ao menos imediatamente, e que ora se abre diante de nós uma via franca para a política, à condição de que saibamos nos desatrelar dos erros que nos levaram ao desastre que aí está. Sobretudo se soubermos aproveitar dos bons ventos que nos vêm de fora, e dar sequência às recentes e benfazejas práticas de alguns partidos e várias personalidades políticas em buscar soluções negociadas em favor da democracia.
A tragédia da pandemia que nos assola e ao mundo, como tantos e tão bem têm registrado, induz à mudança que leve a um combate sem tréguas a fim de reduzir, se possível erradicar, os seus efeitos macabros. Uma delas, visível a olho nu, está na destituição do paradigma neoliberal, influente por décadas, como narrativa capaz de explicar e reger a vida social. Na esteira disso, chega igualmente ao fim a primazia do Estado-nação na ordenação da cena internacional, nenhum deles é uma ilha apartada dos demais, o regime dos ventos que vinha de Chernobil conduzia pelas nuvens sua carga tóxica aos distantes países nórdicos. O efeito bumerangue, magistralmente descrito por Ulrich Beck, em Sociologia do Risco, mantém países ricos e pobres atados ao mesmo destino no que se refere aos perigos ambientais.
Entre nós, a luta contra a pandemia transcende as dimensões técnico-científicas em razão, como sabido, das convicções temerárias do chefe do Executivo e do seu obtuso desconhecimento do que lhe diz respeito, incidindo diretamente na agenda política. Seu reino é o do absurdo, e sua contumácia inveterada em alardear despropósitos – a vacina vai fazer com que nos tornemos jacarés – parece estar orientada em conduzir seu rebanho não para a imunidade, mas direto ao precipício. Tal como se dizia, décadas atrás, em muitos dos filmes do nascente cinema novo, é preciso fazer alguma coisa e colocar um ponto final nessa história de horrores.
Ascânio Seleme: Quem vai pagar a conta?
Custos serão altos, mas ainda mais grave é o número assustador de mortes que a doença continuará produzindo, por causa e entre os negacionistas
Não se preocupe, se você se vacinar direitinho, tomar as duas doses como recomendado, não vai ser infectado por negacionistas, seja um vizinho, um parente, um amigo ou um desconhecido com quem esbarrar na rua. Você estará imune. Do ponto de vista da sua saúde ou da sua família, não precisa fazer mais nada, embora seja conveniente manter o uso de máscaras por ainda algum tempo. Também não custa nada lavar sempre as mãos com bastante água e sabão. Seu problema será outro e terá natureza financeira. Você vai solidariamente pagar a conta que os que se negaram a tomar a vacina contra a Covid acabarão gerando para os cofres públicos. E ela não será pequena.
Imagine o cenário final, pós-vacinação. Neste momento, 46 milhões de brasileiros, ou 22% da população, não estarão imunizados e continuarão a exercer pressão sobre a rede pública de saúde. Se hoje os leitos dos hospitais estão quase 100% ocupados por pacientes com Covid, no futuro terão 22% da sua capacidade tomada por pessoas infectadas por uma doença que poderia ser evitada. Quem vai pagar esta conta? Você e eu. Na verdade, este volume pode ser maior, se os planos de saúde corretamente se recusarem a pagar internações hospitalares e remédios de quem se recusou a se vacinar. Se a doença era evitável, os planos vão recorrer e os pacientes com planos poderão acabar na rede pública.
Se a Justiça acabar obrigando os planos de saúde a pagar as contas dos negacionistas, o que sempre é possível, mesmo assim você e eu arcaremos com um custo adicional. Ninguém aqui é bobo, claro que os planos repassarão a conta para toda a sua clientela. Nós.
Haverá ainda outros custos indiretos gerados pelos negacionistas mas que serão arcados por nós. Primeiro, calcule o impacto que terão sobre a cadeia produtiva quando o mundo voltar ao normal. Se uma gripezinha de influenza afasta uma pessoa por dois ou três dias do trabalho, uma infecção pela Convid pode tirar o funcionário por até 14 dias da linha de produção, quando não o afastar definitivamente. Isso tem um custo que as empresas pagam e repassam aos preços dos produtos e serviços que você e eu iremos consumir.
Os não vacinados vão também compor uma nova estatística de morbidade no Brasil. Com a vida de volta ao normal, os 22% de não vacinados serão eventualmente contaminados e muitos vão morrer. Aos números. Mantida a média de 1.000 óbitos por dia, morrerão então 220 negacionistas a cada 24 horas. Em um ano, serão 80 mil. Mais do que os 12 mil que falecem a cada ano por câncer de próstata ou mama, os 44 mil que morrem em razão de doenças hipertensivas ou os 54 mil que são acometidos de diabetes. Trata-se de índice igual ao de mortes por infarto, que também somam 80 mil por ano.
Sim, há os que já foram infectados e dizem que não vão se vacinar porque já têm anticorpos, como afirma o magnífico Jair Bolsonaro. Estes ignoram a potencialidade da reinfecção ou o surgimento de cepas diferentes que podem lhes acometer. Vejam o caso da gripe influenza, que já exige quatro vacinas diferentes para ser obstruída. Na rede pública, as vacinas aplicadas são as trivalentes, que imunizam contra até três variações da doença. Na rede privada já estão sendo aplicadas as tetravalentes.
Claro que os custos serão altos, mas ainda mais grave é o número assustador de mortes que a doença continuará produzindo depois da vacinação em massa, por causa e entre os negacionistas. E elas ocorrerão por todos os lados, mas serão maiores nos grotões bolsonaristas. São os seguidores fiéis de Sua Excelência que mais se rebelam contra a vacina. Seguem o líder cegamente, como ratos ao flautista de Hamelin, mesmo que seja em direção ao hospital ou ao cemitério.
Rebanho
O que vai acontecer com aqueles que se recusarem a ser vacinados? Certamente perderão alguns direitos, como o de frequentar escolas, academias e clubes. Devem também perder o acesso a bolsas e outros auxílios oficiais, o direito de participar de concursos públicos e de votar. Podem ainda ser proibidos de viajar de avião e ônibus. E também não serão imunizados. Serão apenas parte do rebanho.
Eles erram
Presidentes erram. Sarney errou na economia, mas foi o presidente que avalizou a reabertura democrática. Collor errou ao confiscar a poupança dos brasileiros e ao permitir que seu contador PC Farias trocasse influência por dinheiro, muito dinheiro. Mas é verdade também que abriu a economia brasileira para o mundo. Fernando Henrique errou ao fazer aprovar o instituto da reeleição, mas estabilizou a moeda nacional. Lula deixou seu governo e seu partido se corromperem, mas distribuiu renda como nenhum dos seus antecessores. Dilma errou feio na economia e ao tentar falsear seus resultados acabou afastada. Bolsonaro erra como jamais se viu. Erra no atacado, desde o primeiro dia de seu mandato e em todas as frentes. Como Dilma, e ao contrário de seus antecessores, não deixou até aqui qualquer legado.
Falando em Collor
O governo de Jair Bolsonaro mergulhou de corpo e alma na política de negociação de cargos por apoio político. Um dos membros da tropa de choque de Fernando Collor no Congresso, o deputado Ricardo Fiuza, batizou este tipo de operação com um trecho da Oração de São Francisco: “É dando que se recebe”. Uma prática comum na política nacional ganhava um apelido. Fiuzão, que era um conhecido “caneleiro”, morreu em 2005, mas sua criação sobreviveu. Hoje, o capitão dá cargos para receber em troca votos para o deputado Arthur Lira (desvio de dinheiro público, enriquecimento ilícito, rachadinhas, violência doméstica) na sucessão da Câmara. E, para não perder a coerência, Bolsonaro mantém Roberto Jefferson, o segundo líder da velha tropa de choque de Collor, como seu brucutu de plantão.
Extrapolei
Foi engraçado ver Bolsonaro tentando representar o papel de estadista, que se desculpa com o país quando erra. Na cerimônia de divulgação do plano (?) de vacinação, o capitão disse que se alguém extrapolou foi na busca de resultados. Uma piada. A frase deveria ser lida assim: “Se algum de nós extrapolei ou até exagerei, foi no afã de buscar solução”. O pior é que mesmo que tivesse sido franco, o presidente não teria sido honesto. Ele exagerou e extrapolou por outras razões, você sabe, não porque queria encontrar saídas.
E há o Rio
No Brasil, vices seguidamente ocupam o posto principal pelo impeachment, a desincompatibilização ou a morte do titular. Em alguns casos tivemos sorte. Itamar Franco, por exemplo, substituiu Fernando Collor e devolveu dignidade ao cargo. Em São Paulo, Bruno Covas era vice de João Doria, assumiu a prefeitura e fez uma boa gestão, a ponto de ser reeleito. Há outros exemplos no país. E há o Rio. Por aqui, parece que não tem remédio. O governador em exercício Cláudio Castro fica melhor quando não fala, ou quando não faz nada. Esta semana ele quis fazer alguma coisa e falou. Foi uma calamidade. Num discurso ao lado do zero das rachadinhas, Castro disse para quem quisesse ouvir: “Eu confio no general Pazuello”. Pasmem, há alguém que confia no general. E acrescentou: “Não é fazendo politicagem com a saúde que vamos sair dessa”. Embora seja o presidente quem faz politicagem rasteira com o vírus, o recado de Castro era para seu colega João Doria. Puxou tanto o saco do governo Bolsonaro que até mesmo o zerinho que ouvia tudo calado não conseguiu esconder seu constrangimento.
Mais mortes
Um estudo feito pelo jornal The New York Times mostra que o crescimento do número de mortes por Covid é maior em cidades universitárias depois do retorno das aulas presenciais. A pesquisa do NYT foi feita em 203 cidades cuja população estudantil é maior do que 10% do total. Também cresceu exponencialmente o número de infectados nestas localidades, bem acima da média nacional. No Rio, as aulas nas escolas públicas estaduais voltam em janeiro. Em São Paulo, as escolas estaduais funcionam com até 35% da sua capacidade desde setembro. Doria anunciou que começará a vacinar em janeiro. Aqui, vacinação só em fevereiro, março, sei lá, já que Claudio Castro diz que vai seguir seu líder, o general paradão.
Assédio
O assédio do deputado Fernando Cury à deputada Isa Penna é uma demonstração absurdamente explícita do desrespeito e do abuso. Como pôde o deputado imaginar que podia se esfregar assim numa mulher sem o seu consentimento e que não aconteceria nada? Ainda mais em se tratando de uma parlamentar do PSOL, partido conhecido por sua constante luta contra este tipo de abuso. O partido de Marielle Franco, convenhamos. E, depois, o local do assédio era o plenário da Assembleia Legislativa de SP, local monitorado por câmeras o tempo todo. Cury deve ser punido por importunação sexual, falta de decoro e burrice atroz.
Adriana Fernandes: Vacinação para todos
Guedes reconhece que vacina é essencial à sustentação da retomada em 2021
“Saúde e vacinação para todo mundo!” Foi com essa despedida que Paulo Guedes encerrou a entrevista virtual que concedeu para fazer um balanço geral de 2020. Guedes sai de férias (ele volta ao trabalho no dia 8 de janeiro) não sem antes reconhecer o que todos cobravam: a vacinação em massa dos brasileiros é essencial para a sustentação da retomada econômica em 2021.
A fala do ministro se segue à do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que defendeu também as vacinas. Sem uma vacinação rápida, mais vidas serão perdidas. Ponto. Não há nem o que se discutir. A economia naufraga e o ministro sabe que as condições para uma nova rodada de expansão de gastos na mesma magnitude da de 2020 inexistem.
“Se há uma vacina aí, com duas sociedades extraordinariamente avançadas e civilizadas vacinando, vou olhar e falar ‘quero essa aí, rápido’”, reconheceu, sem revelar se vai se vacinar. Alegou privacidade, mas com 71 anos, ninguém ao seu redor tem dúvidas de que o fará. Aliás, como deve ser feito. O Brasil precisa vacinar a maior quantidade possível de pessoas. Para eliminar a doença, mais de 70% da população teria de ser vacinada.
A declaração de Guedes foi sensata, mas, infelizmente, na direção oposta à do presidente Bolsonaro, que insiste em atrapalhar o combate da pandemia com frases como a de que “não há garantia de que a vacina não transformará quem a tomar em um jacaré”, dita da véspera. Seguimos assim, o presidente falando uma coisa e seus ministros ajustando o tom. Isto é, quando dá.
Os críticos que cobram realismo do ministro ouviram declarações do tipo: “Acabou. Não prometo mais nada”; “Eu esperava avançar nas reformas com mais ímpeto? Sim”; “Não sei se o governo é reformista ou não porque na hora da verdade chegou um vendaval”; “É natural Bolsonaro pensar em fazer obra, usar empresas estatais”, “Sou o ministro mais vulnerável” e “demissível em cinco minutos”.
Depois da ênfase da necessidade de vacina, talvez, a declaração mais franca e importante do ministro tenha sido sobre a reforma tributária. O ministro abriu o jogo e praticamente cortou os canais de diálogo para uma negociação da PEC 45 de reforma tributária que tramita na Câmara. “Tem uma proposta deles. Não é nossa; tem um impasse”. E acrescentou: “Ia exigir uma alíquota de 30%. Comércio e Serviços iam quebrar. Não posso me lançar numa aventura dessa. Prefiro esperar”. Até agora, ao menos em público, não tinha sido tão claro.
Guedes carimbou a PEC 45 como uma proposta que aumenta impostos. Um sinal evidente de que a reforma tributária não está na lista de prioridades para 2021 e que não passou de blefe a fala de líderes do governo, nas últimas semanas, apoiando a votação da proposta e até mesmo do projeto do governo que cria a CBS, o IVA federal.
O ministro teve de admitir também na entrevista que o governo não quis garantir a concessão do 13.º para os beneficiários do Bolsa, após Bolsonaro dizer que a culpa era de Rodrigo Maia. Em reação à mentira do presidente, Maia, irado, colocou em votação a MP 1.000, editada para a prorrogação do auxílio emergencial em R$ 300 até dezembro. Depois da fala de Guedes, foi retirada. Era isso ou o risco de perder o controle na votação.
Nas redes sociais, a #MP1000 pedia a votação de uma nova prorrogação do auxílio, o que o governo não quer deixar até buscar um acordo depois das eleições da Câmara e do Senado. Por isso, Guedes tem insistido num ponto: “A cobertura do auxílio emergencial vai até fevereiro, temos até lá para ver”.
É que o cronograma dos pagamentos do auxílio de 2020 foi estendido pela Caixa até o início de 2021. Mas ninguém dá detalhes sobre esses pagamentos ou responde aos questionamentos oficiais. O Ministério da Economia manda o Ministério da Cidadania explicar. E a Caixa finge que não é com ela há três semanas. Definitivamente, tem coisa aí para tanto jogo de empurra.
É curioso que depois da reação de Maia começaram a ser tiradas das gavetas dos deputados propostas de emendas à MP. Uma delas cria a Contribuição Social Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira Emergencial para bancar o benefício.
Embora tenha notadamente falhas jurídicas para avançar, é visível o ímpeto dos congressistas. Essa pressão volta com tudo em janeiro quando Guedes retornar das férias e será maior a depender do estágio da pandemia. Os sinais de piora estão aí com o aumento dos casos da doença e das mortes.
Que a vacina chegue rapidinho. A coluna termina desejando a todos os leitores um pouco mais de paciência e cuidados adicionais até lá. E também com a mesma saudação do ministro Paulo Guedes: vacinação a todos. Bom Natal em segurança!
Cristina Serra: Sobreviver até 2022
Bolsonaro ainda tem 742 dias no poder para executar seu projeto de dissolver o país; resta-nos morrer de inveja de quem tem a vacina
O mundo da ciência e das luzes pode se orgulhar de uma façanha que vai beneficiar toda a humanidade: a produção de vacinas contra o coronavírus apenas um ano depois do registro dos primeiros casos de contaminação. Os países que se adiantaram para comprar os imunizantes comemoram, autoridades se vacinam em público para dar exemplo, as populações felizardas respiram aliviadas e se preparam para um Natal cheio de esperança.
Mas isso é lá fora. No Brasil, comandado pela personificação do mal, a torcida é contra o antídoto, seja qual for a sua origem. Quem tomá-lo pode virar "jacaré"; se for homem vai "falar fino", se for mulher, pode "nascer barba". E você, que está ansioso esperando pela vacina, pode tirar o cavalinho da chuva porque "não vai ter para todo mundo".
A língua malsã de Bolsonaro reverbera no submundo digital por meio de uma rede de seguidores extremistas, jornalistas, pastores, políticos e médicos vigaristas. O vírus da desinformação se propaga tão rapidamente quanto a pandemia e se hospeda comodamente em parcela significativa da sociedade, que se reconhece e se vê representada em Bolsonaro.
Com o discurso de sabotagem à vacina, Bolsonaro consegue esfarrapar o tecido social, esvaziando as reservas de solidariedade que qualquer grupo precisa mobilizar diante de uma situação de perigo, como a que vivemos agora. Compreender isso e contrapor projetos alternativos para o Brasil são os maiores desafios nos próximos dois anos para os que acreditam na democracia.
Com o horizonte do novo ano já ao alcance da vista, se tivéssemos a certeza de um plano de vacinação para todos poderíamos tentar virar a página desse infausto 2020. Mas o vírus volta a se infiltrar entre as famílias, a abrir covas e a erguer jazigos, o impeachment é uma miragem e Bolsonaro ainda tem 742 dias no poder para executar seu projeto de dissolver o país. Resta-nos morrer de inveja de quem tem a vacina e tentar sobreviver até 2022.
Hélio Schwartsman: A culpa é do brasileiro
Um dos problemas com a democracia é que ela realiza as preferências do eleitorado
Juro que tento pautar-me pelo humanismo e pela compaixão nas avaliações que faço da epidemia de Covid-19 no Brasil, mas às vezes é difícil. O último Datafolha foi uma ducha de água fria em meus pendores filantrópicos.
Sim, Jair Bolsonaro é um dos grandes responsáveis pela situação de descalabro que vivemos, mas receio que a população brasileira não fique muito atrás. E não o afirmo apenas porque caiu a disposição do brasileiro em ser vacinado (ela agora é de 73%, contra 89% em agosto) e porque a maioria (52%) considera que o presidente não tem nenhuma culpa pelas mais de 180 mil mortes, resultado que já comentei no início da semana. Novos achados da mesma pesquisa contribuem para derrubar minha fé, senão na humanidade, ao menos no brasileiro.
A crer na "vox populi", a primeira coisa que deve ser fechada para evitar os contágios são as escolas (66%)... e a última, as igrejas (49%). Até os bares (55%) vêm antes da educação. Com prioridades assim não é um espanto que estejamos no ponto em que estamos, como a segunda nação com mais mortes no planeta.
E não são meus impulsos anticlericais que me levam à revolta. Pela própria lógica dos religiosos, que creem num Deus benevolente, onisciente e onipresente, não deveria fazer diferença se o fiel faz suas preces no templo ou em casa. Em tese, o Cara ouve de qualquer lugar.
Outro ponto que me deixa desconfortável é ter de aplaudir João Doria. O governador de São Paulo, embora não seja muito menos conservador e autoritário que o presidente, ao menos abraçou a causa da vacina e da abertura das escolas. Mais, ainda que se valendo de um certo populismo, conseguiu fazer com que o Ministério da Saúde se mexesse para acelerar a vacinação.
Um dos problemas com a democracia é que ela realiza as preferências do eleitorado. Isso significa que, se a maioria desejar bobagem, mais cedo ou mais tarde bobagens serão cometidas.
Bernardo Mello Franco: Estupidez contagiosa
Enquanto Jair Bolsonaro esperneia, o Supremo tenta proteger os brasileiros do coronavírus e do desgoverno. Em outubro, o presidente disse que a Justiça não poderia decidir “se você vai ou não tomar uma vacina”. Ontem a Corte ignorou a bravata e autorizou estados e municípios a adotarem a imunização obrigatória.
Ao contrário do que sugere a propaganda bolsonarista, ninguém será arrastado pelos cabelos até o posto de vacinação. Mas quem se negar a entrar na fila poderá ser impedido de frequentar escolas, comer em restaurantes ou usar o transporte público.
“A saúde coletiva não pode ser prejudicada por pessoas que deliberadamente se recusam a ser vacinadas”, resumiu o ministro Ricardo Lewandowski. “A Constituição não garante liberdade a uma pessoa para ela ser soberanamente egoísta”, reforçou Cármen Lúcia.
O ministro Alexandre de Moraes lembrou as mais de 180 mil mortes e disse que o momento não permite “demagogia”, “hipocrisia”, “obscurantismo” e “ignorância”. Faltou combinar com o capitão e seus aspones.
Em mais uma aglomeração no Planalto, o novo ministro do Turismo discursou contra as medidas de distanciamento social. Ele também defendeu a realização de festas de réveillon com até 300 pessoas “A gente tem que viver a vida, não dá para morrer por antecipação”, disse.
Entre um disparate e outro, o sanfoneiro do Alvorada fez uma serenata de bajulação. Sem corar, Gilson Machado afirmou que Bolsonaro está “recuperando a autoestima de todo o povo”. “Aonde o senhor vai, o povo lhe aclama”, derramou-se, de olhos postos no chefe.
No segundo palanque do dia, o presidente retomou a cruzada contra a vacina. Ele tentou assustar a claque com efeitos colaterais inexistentes, que fariam mulher cultivar barba e homem falar fino. “Se você virar um jacaré, é problema de você, pô”, pontificou.
Como a ignorância é contagiosa, o capitão continua a engordar seu rebanho. No último domingo, o Datafolha informou que cresceu de 9% para 22% a fatia de brasileiros que não querem se imunizar contra o coronavírus. E 52% acham que Bolsonaro não tem nenhuma culpa por tantas mortes no país.
Fernando Abrucio: Um 2021 a favor da vida
A mudança política nos EUA e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, e a ascensão de novos líderes vão colocar uma nova agenda nos próximos anos
Ao refletir sobre 2020 e imaginar como pode ser 2021, um verso não sai da minha cabeça: “Ano passado eu morri, mas nesse ano eu não morro”. A canção é de Belchior (“Sujeito de Zorte”) e reapareceu gravada recentemente por Emicida, numa belíssima parceria com Pablo Vittar e Majur. Não há nada mais atual para definir o que passamos nos últimos meses, marcados pela desesperança e pela morte, e a chance que temos de mudar esse cenário, abrindo as portas a favor da vida. Muitos sinais mostram que o mundo pode trilhar esse caminho, mas no Brasil a escolha pela vida ou pela morte, num sentido literal e num plano mais amplo, ainda não foi feita pelo governo Bolsonaro.
A principal causa da desesperança que marcou 2020 foi a pandemia. Já houve mais de 70 milhões de casos em todo o mundo e quase um milhão e setecentas mil mortes. São números de guerra. A covid-19, no entanto, não só foi uma arma de destruição em massa. A doença foi além disso, tendo dois outros importantes efeitos.
O primeiro ocorreu nas principais organizações e formas de sociabilidade contemporâneas, como escolas, empresas e a própria vida social dos indivíduos e famílias. Nada funcionou como antes e tivemos de nos adaptar. Só que no final das contas ninguém mais quer ficar neste mundo pandêmico, com milhões de reuniões e aulas por videoconferência, precarização do trabalho e afastamento das pessoas queridas. Quase todos estão gritando: “Tragam meu mundo de volta!”
Junto com esse efeito negativo da pandemia na vida de cada um e nas principais organizações contemporâneas, a desgraça trouxe reflexão. Isso porque os problemas trazidos pela covid-19 escancararam temas que a humanidade tinha jogado para debaixo do tapete. A mudança política nos EUA, com a eleição de Biden, e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, além da ascensão de novos líderes sociais, vão gerar uma nova agenda para os próximos anos. O Brasil precisa prestar a atenção a esse processo, para não perder o trem da história.
Destacaria cinco temas que serão colocados no centro da agenda na maior parte do mundo a partir de 2021: a revalorização da ciência, a questão ambiental vista como emergencial, a busca de soluções humanizadoras para as organizações, a preocupação com a desigualdade em suas múltiplas dimensões e, por fim, a luta para reconfigurar a comunicação de massas, dominada hoje por redes sociais polarizadas e muito influenciadas pela lógica das “fake news”. O crescimento da importância de tais temáticas não quer dizer que haverá soluções para tudo no curto prazo, pois haverá muitos conflitos e dificuldades no processo político. Todavia, os grupos defensores dessas mudanças vão ganhar força e o clima de opinião irá mudar substancialmente.
A revalorização da ciência é filha direta da esperança com as vacinas contra a covid-19. No momento, há uma discussão inútil sobre a obrigatoriedade da vacinação. Ora, se mais gente for imunizada e ficar livre da doença, surgirão barreiras contra os que não se vacinarem. Países fecharão as suas portas para os estrangeiros não vacinados e o mesmo será feito por empresas multinacionais, com o argumento de resguardar a saúde coletiva de seus funcionários. E o sucesso nem precisa ser de 100% porque muita gente morreu com a pandemia. Isso não será esquecido. Quem tem dúvida, veja o que a história diz de outras epidemias famosas.
Uma vitória científica como essa pode afetar profundamente o negacionismo. Como consequência, será alavancado um segundo tema ao centro da agenda: a questão ambiental. Empresas, consumidores e governos em quase todo o mundo vão bater de frente contra aqueles que desdenham da mudança climática, que insistem em manter padrões que não são ambientalmente sustentáveis e que defendem atividades econômicas atrasadas, que destroem a natureza, afetando nosso futuro no planeta. Cabe frisar que as soluções nesse campo demandam um certo tempo, porém, quem fugir da cartilha básica será punido internacionalmente, especialmente no campo econômico. E isso ocorrerá mais cedo do que se imagina.
A pandemia realçou o lado sombrio de várias organizações e modos de vida atuais. A morte de tanta gente, combinada com a dificuldade de sobrevivência econômica ou psíquica de boa parte da humanidade, colocou uma palavra no topo do dicionário contemporâneo: empatia. Daí que, como terceira temática que vai crescer na agenda pública, empresas, escolas e governos vão ser pressionados a levar mais em conta os aspectos humanos. A educação, por exemplo, precisa ser vista como um processo fundamental para garantir o aprendizado de conhecimentos básicos a crianças e jovens, mas é muito mais do que isso. Ela é responsável pela formação de boa parte da personalidade de cada um e da noção de coletividade que vigora numa comunidade ou num país. As escolas nutrem nossos sonhos para a vida adulta. Educar é formar seres humanos melhores, desenvolver seus talentos e fazê-los entender que o outro é a coisa mais fantástica da vida.
O maior obstáculo da transformação humanística está no mundo empresarial, pois a lógica econômica atual ainda privilegia o individualismo exacerbado. Não obstante, muitas empresas começam a mudar seus processos seletivos para captar gente com habilidades socioemocionais mais favoráveis ao trabalho em equipe e à consciência social. Além disso, as pessoas como consumidoras e cidadãs vão exigir cada vez mais uma postura diferente de quem lhe vende bens e serviços. Por essa razão, assuntos como responsabilidade social e diversidade do corpo de funcionários vão ser alavancas para ganhar mercado.
A pressão pela maior humanização da sociedade contemporânea virá certamente de uma herança da pandemia: aumentou a percepção das múltiplas formas de desigualdade. Foi graças a políticas públicas como sistemas de saúde públicos e do trabalho de abnegados profissionais da educação, da segurança pública e assistência social que as mortes e calamidades produzidas pela covid-19 não foram maiores. No mesmo momento histórico, injustiças causadas contra negros e mulheres em várias partes do mundo mobilizaram milhões de pessoas em torno de um não rotundo contra a ordem desigual atual.
Essa quarta temática vai gerar muitos conflitos, mas já ganhou um lugar especial na agenda pública. Que os bilionários dividam mais suas riquezas, que a justiça não tenha mais cor nem gênero, que todos possam ter acessos a oportunidades mais iguais (afinal, como disse antes, a boa educação deve ser uma fábrica de sonhos), que a diversidade nos faça melhores como seres humanos. Para quem acha que essa pauta é muito utópica, pergunte aos jovens atuais o que eles pensam. Você irá se surpreender.
A agenda transformadora em favor de mais vida para todos tem um último elemento que é a batalha da comunicação. A internet produziu, inegavelmente, maior acesso à informação e aproximação de pessoas em várias partes no mundo. Contudo, essa mesma fonte emancipadora gerou redes sociais marcadas pela polarização política e pela expansão da mentira pública como estratégia política. Como remédios a esse mundo distópico, devemos alimentar a tolerância, a capacidade de ouvir o outro, de respeitar e aprender com a discordância. Ademais, só há democracia quando os fatos públicos se guiam por uma noção de transparência e verdade. Ou seja, é possível ter opiniões diferentes, mas a realidade factual não pode ser tão ampla que fuja de critérios mínimos de veracidade.
E como ficará o Brasil quando toda essa agenda estiver sendo puxada para o centro do debate em 2021? Por ora, o que se pode dizer que o governo Bolsonaro optou, nos últimos dois anos, pela destruição e pela desesperança como bussolas de sua ação. Isso antes da pandemia, quando se defendia que a solução para os problemas do país passava por armar a população, pela ocupação econômica desenfreada da Amazônia, por desprezar políticas a favor das minorias ou dos mais pobres e pela disseminação criminosa de mentiras contra os adversários e as instituições.
O pior de tudo é que o bolsonarismo não aprendeu muito com o espelho de problemas que nos estão sendo apresentados pela covid-19. Ao contrário, fechou os olhos para a profusão de mortes e lutou incansavelmente contra a ciência. É por essa razão que ninguém tem certeza se teremos, o mais rápido possível, vacinas suficientes para salvar pessoas, recuperar a economia e trazer de volta nossa vida em sociedade. Mas esse cenário pode ser transformado pela construção de uma nova agenda, antenada com as mudanças internacionais que vão sacudir o mundo nos próximos anos.
Inaugurar um novo ano marcado pela defesa da vida no Brasil, entretanto, vai além de ser contra o governo Bolsonaro. É preciso que a sociedade brasileira e suas elites se incomodem com a morte cotidiana não só dos atingidos pela covid-19, mas também por aqueles majoritariamente jovens, negros e pobres que morrem numa quantidade absurda, ano após ano. Segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública, policiais mataram 2.215 meninos e meninas entre 2017 e 2019, o que representa mais de duas crianças ou jovens por dia. Desejar um Ano Novo melhor significa dizer aos brasileiros: tenham vergonha dessa carnificina e assim estaremos dando o primeiro passo para transformar o país.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Vinicius Torres Freire: Sem vacina, com mil mortos por dia, Brasil afunda no desgoverno do anticristão
Estados e STF improvisam governo da vacina, Congresso está em pane, Bolsonaro avança
“O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê o lobo aproximar-se, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as arrebata e dispersa, porque ele é mercenário e não se importa com as ovelhas”. Está no Evangelho de João, aquele que Jair Bolsonaro cita de modo blasfemo, como se fora um clichê mundano, sem entender o que quer dizer “a verdade vos libertará”, se é que leu o texto, que de qualquer modo não entendeu, dada a sua grosseria moral e intelectual.
No início da epidemia, esse homem não apenas abandonou os brasileiros a seu próprio azar, mas sabotou os esforços de quem se bateu para não entregar as pessoas ao lobo da praga. Outra vez agora, o que restou de decência e razão no país se organiza a fim de vacinar o povo, proteger as pessoas que trabalham nos hospitais e salvar da morte pelo menos os nossos avós, de início.
A maioria dos governadores, prefeitos e o Supremo Tribunal Federal tentam improvisar um governo nacional pelo menos no que diz respeito à emergência da saúde. A desgraça recrudesceu, as mortes outra vez passam das mil por dia. É possível que entre o Ano Novo e o que alguns cristãos chamam da festa de Reis, 6 de janeiro, pelo menos 200 mil brasileiros tenham morrido de Covid-19. Em São Paulo, as internações e mortes aumentaram na casa de 60% desde o início de novembro.
A iniciativa de criar ao menos um governo para as vacinas é um arranjo precário, o que se tenta salvar do incêndio. Para piorar, o Congresso ou pelo menos o arranjo que continha os piores arreganhos de Bolsonaro está em pane. O Parlamento pode cair sob seu controle ou influência maior na eleição de fevereiro para os comandos da Casa. Uma perna do sistema de governo improvisado para limitar a destruição bolsonarista está para ser cortada. Bolsonaro, pois, ganha força para tocar seu projeto de destruição. É o anticristão, em todos os sentidos da palavra, no aumentativo do substantivo e no adjetivo.
O mercenário outra vez sabota o trabalho de quem quer proteger as pessoas da morte, desmoralizando a vacinação, disseminando dúvidas sem fundamento de modo a alimentar o desvario que é sua razão de ser e poder. Faz assim com qualquer instituição ou ideia racional. Tenta desmoralizar as eleições, imitando Donald Trump feito um sabujo rábico. Nega e estimula a destruição do ambiente, até agora o projeto mais bem-sucedido. Difunde a ideia de que o morticínio também pelas armas de fogo é uma solução para o problema da violência. Não são abstrações, são suas medidas ou propagandas mais recentes.
No submundo em que vive, tenta manipular com cada vez mais afinco os órgãos de polícia e fiscalização (como a Receita). Espalha agentes da Abin pelos ministérios. Depois de ser obrigado a parar com os comícios golpistas, toca seu projeto de destruição de modo mais insidioso.
Se o Congresso cair sob a influência de Bolsonaro, será pior. Mesmo a fantasia de “reformas” escorre pela vala suja. O capitão da extrema direita jamais se importou com isso. A fim de atacar João Doria, negou até privatização de um entreposto federal de alimentos, a Ceagesp.
Sem governo e com o Congresso em pane, não haverá socorro para os milhões que cairão em pobreza ainda maior com o fim dos auxílios. Não há plano de recuperação econômica em geral, nem mesmo para as contas do governo, “ajuste” que para os donos do dinheiro grosso justificou a eleição do capitão da extrema direita, o mercenário de João, que passeia pelo Brasil dizendo baixezas e mentiras com seu esgar demoníaco.
Reinaldo Azevedo: A democracia brasileira precisa aprender a punir a barbárie
Espero que Bolsonaro e Pazuello, mesmo fora do cargo, respondam por improbidade
Enquanto escrevo nesta quinta a coluna que você lê agora, o precioso tempo dos ministros do Supremo Tribunal Federal é consumido numa questão já pacificada na Constituição, na legislação ordinária e numa portaria do ministério da Saúde: a compulsoriedade da vacina. Por compulsória, os recalcitrantes sem causa, que não uma injustificada obstinação, têm de arcar com as consequências de sua resistência.
Não se aplica a vacina à força, escreveu o ministro Ricardo Lewandowski, relator de duas ações diretas de inconstitucionalidade, num voto impecável. Mas é legítimo que o Estado casse benefícios ou crie restrições de circulação a quem decidir se apartar da imunização desde que isso esteja previsto em lei.
Ao ler o voto do ministro na quarta à noite, uma música de protesto começou a soar aos meus ouvidos, vinda lá de 1969, ano seguinte à decretação do AI-5: "E na gente deu o hábito/ De caminhar pelas trevas/ De murmurar entre as pregas/ De tirar leite das pedras/ De ver o tempo correr".
É trecho de "Rosa dos Ventos", de Chico Buarque, que deu nome a um show de Maria Bethânia, com direito a LP, em 1971. Tudo muito antigo. Santo Deus! Não é possível que, 50 anos depois, estejamos aqui a caçar metáforas nas trevas, entre as pregas, nas pedras, vendo o tempo correr...
A rigor —e não se trata de uma crítica a Lewandowski, deixo claro—, o ministro nem deveria, como se diz no jargão técnico, ter "conhecido das ações". Sim, leitor, em direito, o "conhecer" é verbo transitivo indireto, no sentido de "tomar conhecimento de". E, no entanto, ao se ver obrigado a fazer o desnecessário, assim como o tribunal, acabou fazendo a coisa certa.
Eis aí um emblema do grande salto civilizatório para trás que é o governo Bolsonaro. O país e as instituições deixam de se ocupar dos desafios do presente com vistas ao futuro —e não se trata de mera retórica— para ter de refazer o que esses depredadores da ordem vão destruindo com sua ignorância truculenta.
Exceção feita à pororoca —à bossa nova, a um Machado, a um Drummond, a um Rosa ou a uma Clarice, que, de vez em quando, brotam em nosso jardim—, já há tão pouco do que nos orgulhar... Como destacou o The New York Times, o mundo da ciência reconhecia um sistema eficiente de imunização em Banânia, mesmo em meio às nossas obscenidades sangrentas.
Um capitão da reserva e um general da ativa, como dois arruaceiros, chegaram arrebentando as portas da excelência, cobrindo com o véu opaco de sua estupidez o que havia de clareza no setor, de modo a obrigar a Corte Suprema do país a decidir o que decidido já está desde a lei 6.259, de 1975 —no tempo em que ainda caminhávamos nas trevas.
Estamos, como sociedade, nos acostumando ao atraso, normalizando o absurdo, normatizando a burrice. A delinquência vai se esgueirando às margens da lei ou contra ela, de sorte que mesmo aquilo que já está sacramentado pela legislação ou pacificado pelo entendimento majoritário de tribunais superiores vai sendo permanentemente desafiado, um pouco por dia, de forma determinada, obsessiva, contínua, constituindo um método, ainda que seja o da desordem.
Expresso na minha última coluna deste 2020 os bons auspícios no modo que segue.
Espero que Bolsonaro e Pazuello, quando fora do cargo, venham a responder por uma tempestade de ações de improbidade administrativa, nos termos em que a medida provisória 966 foi admitida como constitucional pelo Supremo.
Estou entre os que entendem que ex-presidentes e ex-ministros podem responder por improbidade. Há condicionantes muito claras definidas pelo tribunal.
O STF assentou, então, que a inobservância de critérios científicos e técnicos na tomada de uma decisão, ignorando-se normas das autoridades nacionais e de organismos internacionais na área da saúde, constitui "erro grosseiro" e "elevado grau" de negligência. Que os Recrutas Zero da cloroquina paguem por seus feitos. É o que posso desejar de melhor, leitores!
Este escriba tira quatro colunas de férias e retoma a lida no dia 22 de janeiro. Mantenha o distanciamento social e cultive o jardim. Um Voltaire de máscara.
Bruno Boghossian: Sabotagem de Bolsonaro à vacina atrapalha também a retomada da economia
Fica claro que o presidente não liga nem para a recuperação das atividades nem para a saúde da população
Dias depois de chamar a Covid-19 de gripezinha, em março, Jair Bolsonaro usou um argumento econômico para justificar sua indiferença diante da pandemia. “Não é apenas a questão de vida. É a questão da economia também”, declarou.
Bolsonaro fez uma escolha e defendeu por meses o retorno forçado a uma normalidade impossível. Agora, quando a chegada da vacinação abre o primeiro caminho para a redução do distanciamento e para uma retomada segura, a sabotagem presidencial permanece na equação.
As sirenes tocam alto na área econômica. O presidente do Banco Central declarou nos últimos dias que um atraso na vacinação “obviamente vai ter impacto na atividade”.
Já o número dois do Ministério da Economia precisou lembrar que a recuperação de vários setores está ligada à imunização. “Com a vacina, a população vai se sentir segura e, com isso, a economia vai se recuperar mais rapidamente”, disse o secretário-executivo Marcelo Guaranys.
O ministério de Paulo Guedes tem feito propaganda da destinação de R$ 20 bilhões para a compra e a distribuição de imunizantes. Mas o Palácio do Planalto se recusa a entender que não adianta despejar dinheiro no programa se o presidente continuar estimulando a população a recusar a vacina contra o coronavírus.
Os perigos são mais do que evidentes na cúpula da equipe econômica. O secretário Adolfo Sachsida disse ao SBT que a estimativa do governo para 2021 pressupõe “que a vacina está aí”, que os brasileiros seguem recomendações dos órgãos de saúde e que, aos poucos, “a pandemia vai diminuindo”. Sem essas condições, portanto, economia tem mais chances de continuar no buraco.
Pensando na própria sobrevivência política, Bolsonaro atacou as medidas de distanciamento que provocaram uma redução das atividades. Ele afirmava que “economia e saúde têm que andar de mãos dadas”. Primeiro, parecia que o presidente só queria saber do primeiro item, mas já está claro que ele não liga para uma coisa nem outra.
Ricardo Noblat: O dia amargo em que Bolsonaro só colheu derrotas
Seus seguidores estão ficando impacientes
Para o gosto do presidente Jair Bolsonaro, a quinta-feira 17 de dezembro até que começara bem. Em cerimônia no Palácio do Planalto, ele deu posse ao novo ministro do Turismo, Gilson Machado, líder de uma banda de forró em Pernambuco, e sanfoneiro que costuma tocar o instrumento nas lives semanais do presidente no Facebook. Uma vez até cantou a Ave-Maria.
O que disse Machado no seu discurso soou como música aos ouvidos de Bolsonaro e o deixou feliz a poucas horas de ter que voar para inauguração de obras em Minas Gerais e na Bahia. Refratário, como seu chefe, a medidas de isolamento social, Machado defendeu que festas de fim de ano reúnam ao menos 300 pessoas. Assim as aglomerações seriam evitadas.
“A gente tem que viver a vida, não morrer por antecipação”, argumentou o ministro, e recebeu aplausos. Em seguida, derramou-se em elogios a Bolsonaro: “O senhor está recuperando a autoestima do povo” (mais aplausos). “Aonde o senhor vai, o povo o aclama” (nesse momento, Bolsonaro sorriu). A cerimônia foi curta. O dia seria estafante para o presidente, e de fato foi.
Ele ainda estava em Jacinto, município de Minas Gerais, para o lançamento da pedra fundamental da implantação e pavimentação da BR-367, quando começou a receber notícias que o indignaram. O Supremo Tribunal Federal decidira que a vacinação contra a Covid-19 seria obrigatória. E também que governadores e prefeitos poderão impor restrições a quem não se vacinar.
Em Porto Seguro, na Bahia, segunda escala da viagem, Bolsonaro ficou sabendo que uma liminar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski autorizara Estados e municípios a comprar vacinas registradas por agências sanitárias de outros países. Foi em Porto Seguro que Bolsonaro resolveu passar recibo do seu desconforto. Sem referir-se às notícias, discursou:
– Se o cara não quer ser tratado, que não seja. Eu não quero fazer uma quimioterapia e vou morrer, o problema é meu, porra.
Ao desembarcar de volta a Brasília, seu humor só fez piorar. Foi quando conheceu trechos dos votos dos ministros do Supremo no julgamento das ações sobre a vacinação. Todos, à exceção do único ministro indicado por ele para o tribunal, Kássio Nunes Marques, bateram de frente com o que Bolsonaro pensa, fala e repete à exaustão país afora, dia sim e o outro também.
“A preservação da vida, da saúde individual ou pública, em país como Brasil com quase 200 mil mortos pela Covid-19, não permite demagogia, hipocrisia, ideologias, obscurantismo, disputas eleitoreiras e ignorância” (Alexandre de Moraes). “O egoísmo não é compatível com a democracia. A Constituição não garante liberdade a uma pessoa para ela ser egoísta” (Cármen Lúcia).
Para amargar ainda mais o dia de Bolsonaro, a Câmara endossou decisão do Senado e rejeitou ampliar o repasse de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica para escolas ligadas a igrejas. E, nas redes sociais, seguidores dele ocuparam-se em criticá-lo a pretexto de qualquer coisa – uma delas, o não pagamento este ano da 13ª parcela do Bolsa Família.
Bolsonaro jogou a culpa no deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. Que retrucou chamando-o de “mentiroso”. O presidente só foi dormir depois de responder pessoalmente aos ataques dos que antigamente se limitavam a lhe dar razão em tudo ou em quase tudo:
– Impressionante, os caras descem a lenha em mim. Lógico que a esquerda bate palma para essa direita burra, direita idiota. Bateram palmas para vocês. Vocês não sabem, não interpretam, não conseguem saber o que foi votado e descem o cacete. Não fica agindo como papagaio, repetindo o que um idiota escreve.
A certa altura, cairá a ficha da maior parte dos brasileiros e eles descobrirão que o presidente acidentalmente eleito lhes fez muito mal. O risco é de que tal momento de iluminação só se dê depois de ele ser reeleito daqui a dois anos. Seriam mais quatro anos perdidos – e a que preço? Preservar o meio ambiente não lhe interessa como já demonstrado. Tampouco educação e cultura.
Reforma do Estado foi promessa para atrair o voto dos liberais. A combater a corrupção, prefere aliar-se a políticos corruptos. Segurança pública resume-se a facilitar o acesso a armas – e os milicianos agradecem. Enfrentar a pandemia é deixar o vírus livre para infectar o maior número de pessoas. Vidas não importam porque todos haverão de morrer um dia, e ele não é coveiro.