URSS
Antônio Fausto: Gorbachev e a democracia
Há trinta anos era extinta a URSS e caía seu presidente, Mikhail Gorbachev, qualificado estadista soviético, que iniciou uma era de mudança reformadora, a partir de 1985. Precedida por quase setenta anos, desde a Primeira Guerra Mundial e tomada do poder por via revolucionária, uma guerra civil devastadora, intervenção estrangeira, desordem econômica, desemprego e fome. Uma ditadura pessoal de trinta anos, implacável e facinorosa, que militarizou a vida social e criminalizou a atividade política.
Na década de vinte, a Nova Política Econômica-NEP foi uma oportunidade perdida de recuperação, com a introdução de mecanismos de mercado. A par da construção forçada de uma grande economia industrial capaz de enfrentar a invasão nazista e de ganhar a guerra contra a Alemanha, ao lado das potências ocidentais.
A sucessão de Stálin, após 1953, dividiu o círculo próximo do ditador e teve um desfecho sangrento, com a execução do chefe da polícia, famoso por sua crueldade e ambição de poder.
O novo governo, liderado por Nikita Kruschev, antigo comissário político do Exército, em Stalingrado, teve o mérito histórico da denúncia dos crimes e do culto à personalidade do ditador, de uma anistia parcial de presos e perseguidos políticos e de outras medidas liberalizantes do regime.
Abrandamento dos “gulagui” (campos de prisioneiros e trabalho forçado) e da censura da imprensa, da literatura e das artes. Escritores até então perseguidos, puderam publicar seus livros. Kruschev lançou a política de coexistência pacífica com os antigos aliados da Segunda Guerra Mundial e conteve os impulsos belicistas e autoritários do Maoismo, na China.
Mísseis em Cuba
Seu maior erro político, no campo internacional, foi a colocação de mísseis em Cuba, que por pouco não levou a uma guerra nuclear com os Estados Unidos, implicando em queda do governo e restauração mitigada da Nomenclatura, a casta dirigente da URSS, desde os tempos de Stálin, a cujos integrantes o povo chamava, sarcasticamente, de “magnatas”. O governo Kruschev foi a primeira tentativa, embora malograda, de reforma democrática e modernização do sistema soviético.
Atraso e dependência de importações na Agricultura, baixa produtividade da Indústria e dos Serviços, ganhos imerecidos e burocracia, conjugados ao retorno do autoritarismo e da censura, repressão de dissidentes, estendidos aos países do Leste europeu, com intervenções militares na Hungria, Tchecoslováquia, Polônia e até mesmo no Afeganistão. Construção do Muro de Berlim. Foi o chamado período de estagnação, que levou inquietação às elites dirigentes internas e divisão do movimento socialista e democrático internacional.
O historiador I. Afanassiev escreveu: “Nosso sistema gerou uma categoria de indivíduos sustentados pela sociedade, mais interessados em receber do que dar. Consequência de uma política de igualitarismo que invadiu totalmente a sociedade soviética. O Homo soviéticos é ao mesmo tempo lastro e freio. De um lado se opõe à reforma, por outro, constitui a base de apoio para o sistema existente”. Nesse aspecto, muito parecido com as corporações do serviço público brasileiro.
Gorbachev
Em meio às perdas na competição com o Ocidente, assume o governo e a liderança política da URSS, Mikhail Gorbachev, que passou a representar os anseios reformistas de parcela significativa da Sociedade e dos próprios grupos dirigentes. Pela primeira vez, em sete décadas de sistema soviético, é colocada a questão da legalidade, do Estado de direito e da construção socialista com democracia, racionalidade econômica, sem o igualitarismo improdutivo vigente até então.
Segue-se ampla anistia, com extensão póstuma, o desmantelamento dos “gulagui”, abolição da censura aos meios de comunicação e uma reforma constitucional democratizante e modernizadora.
Na Economia e Administração Pública, a Perestroika (reestruturação), a busca da produtividade e eficiência aproximadas do capitalismo desenvolvido. Mecanismos de mercado, redução gradual do planejamento centralizado e dos subsídios fiscais e monetários.
Suspensão do financiamento e da tutela política das chamadas democracias populares do Leste europeu, da Alemanha Oriental e de Cuba. Retirada de tropas do Afeganistão e demais países.
A tentativa de golpe militar da ala conservadora da Nomenclatura, a debandada das repúblicas soviéticas e outros eventos políticos levaram à queda de Gorbachev e à dissolução da URSS. Mas a contribuição de seu governo ao socialismo com democracia, legalidade e racionalidade econômica lhe confere um protagonismo histórico vitorioso ante o futuro da luta dos trabalhadores e demais classes avançadas por liberdades políticas, justiça social, paz e cooperação entre os povos e defesa do meio-ambiente.
*Antonio Fausto é administrador
Luiz Sérgio Henriques: Quando os bárbaros bateram em retirada
Um desafio global, sistêmico, como o do comunismo histórico, é improvável que se repita...
No tempo em que a luta final parecia ser entre sistemas irremediavelmente contrapostos, a cultura bolchevique, tradução arriscada para o “Oriente” político de um pensamento claramente ocidental, como o de Marx, protagonizou não poucos episódios de fechamento sectário sobre si mesma. Exemplar, nesse sentido, o combate prioritário que em certo ponto os partidos comunistas deram aos “social-fascistas” – rótulo infame dado à esquerda social-democrata –, mesmo diante do avanço do nazismo e do fascismo. Ou, ainda nos anos 1930, a política interna da URSS stalinizada, que proclamava estar a caminho do socialismo e contraditoriamente apregoava o acirramento incessante da luta de classes, com processos falsificados, fuzilamento de velhos bolcheviques e afirmação de uma implacável estrutura verticalizada de mando.
Evidentemente, esse poder monolítico não duraria para sempre. Em face da vida política do capitalismo avançado, muito mais articulada e complexa, mesmo a versão atenuada do comunismo no poder, com a queda do ditador e a denúncia (parcial) dos seus crimes em 1956, mostrava-se primitiva e destituída de atração. Como no poema de Kaváfis, aquela constelação de partidos-Estado era como que a fonte e a razão de ser dos bárbaros à porta da cidade, que ameaçavam invadi-la e só provocavam reações irracionais, como a dos macarthistas e demais anticomunistas de profissão. Em 1989, por isso, entre esses setores atrasados da “cidade” capitalista viria a instalar-se um sentimento de frustração: para tais setores, os bárbaros eram uma “solução”, uma motivo de viver, um pretexto para cerrar fileiras e golpear os fantasmas prediletos. E agora batiam em retirada...
Ainda na última década do século 20 um novo e estridente grito de guerra se faria ouvir. É que o inimigo, sempre igual a si mesmo, mas ainda mais insidioso, teria passado a disputar corações e mentes com as armas mais lentas e, decerto, mais letais da cultura. Em consequência, gente treinada na linguagem da guerra fria reciclou-se rapidamente, apetrechando-se para ruidosas e intermináveis “guerras culturais”. Uma situação, aliás, que se agravaria exponencialmente no novíssimo ambiente das redes “sociais”, com sua capacidade inaudita de dinamitar pontes, criar tribos irascíveis e minar o terreno comum da convivência civilizada. E isso a ponto de se poder prever que minas potentes continuarão a explodir e causar danos no futuro, ainda depois de os guerreiros culturais ensarilharem as armas ou deixarem de fazer parte da corrente principal dos acontecimentos, ao contrário do que acontece hoje.
O alvo de tais guerreiros – que dão cobertura ideológica ao “populismo”, palavra ambígua e escorregadia, mas cujo conteúdo essencial consiste num ataque à democracia representativa tal como a conhecemos – deslocou-se: o comunismo perde a dimensão de desafio estatal e identifica-se sumariamente com o legado de 1968 e com a New Left multicultural. O ano que faz questão de não terminar, na frase de Zuenir Ventura, aparece agora como um nó a atar coisas díspares, mas todas muito “perigosas”: a rebelião antiautoritária, o feminismo, o pacifismo, o ambientalismo, tudo isso reunido numa crítica aos modelos de vida e consumo das sociedades desenvolvidas. Para os populistas de direita, eis a nova face do comunismo, empenhado como sempre em destruir a propriedade, mas desta vez, sobretudo, preocupado em corroer os valores familiares e os da tradição.
Como se trata de uma visão marcadamente ideológica, construída para organizar uma extrema direita de cunho anti-institucional, nada importa que o nó representado por 1968, no contexto real das coisas, não tenha muito em comum com a antiga posição comunista. Afinal, a Primavera de Praga também incendiou a imaginação de 1968. No clima da época, o velho ascetismo revolucionário sofreu golpes fatais. E num sentido que, na verdade, os enaltece, os comunistas da tradição se chocaram com uma derivação marginal, mas extremamente problemática, do espírito soixante-huitard, a saber, a trágica sedução da violência política.
Numa avaliação mais realista, um desafio global, sistêmico, como o do comunismo histórico, é altamente improvável que se venha a repetir num mundo interdependente em termos não mais só econômicos. E a New Left “multicultural”, mesmo quando vocaliza exigências essenciais, como o combate ao racismo e a defesa do ambiente, muitas vezes reproduz a própria superfície fragmentada da vida, sem estabelecer conexões entre os variados grupos que poderiam expressar alguma hipótese de ruptura. Se este diagnóstico sumário fizer sentido, então o agressivo populismo de direita dos nossos dias aparecerá como o que de fato é: um desses fenômenos regressivos que de tempos em tempos reagem virulentamente a mudanças havidas na estrutura do mundo e tentam restaurar um passado de papelão pintado. Para quem não aceita tal regresso, trata-se de uma oportunidade e tanto para alianças que defendam e aprofundem a experiência democrática em toda a sua plenitude.
El País: Kolimá, uma viagem alucinante pela Estrada dos Ossos Humanos
O jornalista Jacek Hugo-Bader relata sua viagem pela terra que abrigava o mais atroz do gulag soviético. Ele escreveu os ‘Diarios de Kolimá’ tendo Aleksandr Soljenitisn como guia moral
O trajeto começa em Magadan, Mar de Okhotsk, o início de tudo, como no Arquipélago Gulag de Aleksandr Soljenitisn, guia moral de Hugo-Bader, juntamente com o poeta Varlam Shalamov, ambos sobreviventes, cujos passos persegue neste artefato literário, livro de viagens e testemunho ao mesmo tempo do que resta depois do horror. “Kolimá, como Auschwitz, são lugares com uma grande força simbólica pelos quais me sinto muito atraído” conta Hugo-Bader por e-mail ao EL PAÍS.
Guiado por seu credo — “trabalho, esporte, viagem, encher a cara, fazer amor” — e com um mecanismo psicológico para manter o desespero longe, Hugo-Bader se encontrou em seu périplo com vítimas dos campos, gente como Maria, com a vida destruída por chegar uma hora atrasada ao trabalho, roubar uma garrafa de leite ou fazer uma piada contra o Partido, todas elas atividades antirrevolucionárias previstas no artigo 58 do código soviético. No gulag sofreram a violência dos criminosos comuns, o frio, a fome, as violações em grupo e todo tipo de atrocidades. Mas muitos sobreviveram e o contam aqui, apesar de não ser normal. “Os russos têm o que chamam de síndrome do silêncio. Não falam das atrocidades que ocorreram em seu território e fingem fazer como se nunca tivessem acontecido”, resume o repórter polonês.
No entanto, este não é um livro sobre os campos, ou não apenas. Hugo-Bader se encontra com a aristocracia do crime, com garimpeiros que parecem saídos do faroeste mais extremo, com crianças bandidos, empreendedores que montam fazendas no meio do nada, ou gente como Madame Marianne, que voltou para Kolimá desde Paris, fugindo de tudo porque “aqui existe espírito sem beleza e na França existe beleza sem espírito”.
Pela narrativa transitam personagens como Basania, o milionário olhos vazios, agente do serviço de espionagem russo que contamina tudo, veterano do Afeganistão, louco perigoso e quase agradável, dono das minas de ouro de Kolimá, um autêntico tesouro natural explorado antes pela máfia do Estado e agora pela máfia pura e simples
Há muito álcool, vidas inteiras encharcadas de vodka, cenas incríveis de jogos de cartas entre mafiosos, um cirurgião que opera por telefone enquanto não para de beber... No meio do caminho, Bader, que também conheceu pessoas magníficas que o ajudaram a não morrer congelado no meio da estrada, se encontra com Vladimir, um cara que quando fecha os olhos vê as montanhas de cadáveres intactos, perfeitamente conservados no permafrost, que tirou da terra com a concha de seu trator durante uma prospecção em busca de ouro.
O livro, mais na esteira da prêmio Nobel Svetlana Aleksiévitch que de Ryszard Kapuscinski, tem uma ferramenta fundamental, o humor, e um tom, quase otimista, que o tornam diferente. “Você tem de ser capaz de apagar seus maus pensamentos, inclusive um repórter. Se não, você será devorado pela depressão e não viverá muito”, confessa o autor. “Quando estou na Rússia, bebo muita vodka. Além disso, toda vez que viajo — mesmo para lugares mais escuros como Kolimá —, me concentro obsessivamente no lado bom”, acrescenta.
Por isso, talvez, ele não deixe que outro personagem, a protetora do legado literário de Shalamov, feche o livro com uma história terrível sobre como se perderam suas cartas destruídas por criminosos que antes tinham se masturbado juntos, excitados por seu conteúdo. Prefere terminar com um argumento no qual lamenta não ter conhecido melhor as pessoas que o levaram pelo caminho. “Transmitem tanta decência, tanta bondade, tanta autenticidade...”, virtudes que nem mesmo o maior massacre da história conseguiu apagar completamente.
A MEMÓRIA NECESSÁRIA
“Talvez a primeira razão que nos aproximou do livro foi dar um salto à frente e conhecer o que aconteceu com Kolimá depois das atrocidades do gulag”, comenta o editor Paco Cerdà, da La Caja Books, quando perguntado sobre o porquê deste livro e as razões pelas quais decidiu romper com a estratégia de publicação que dá nome à editora: caixas de três livros curtos sobre um assunto e que combinam ensaio, ficção e crônica).
Este Diários de Kolimá está sendo lançado separadamente, em uma coleção chamada Caja Alta. “A memória será um eixo importante desta coleção”, diz Cerdà. “É por isso que a iniciamos há um mês com Deja de Decir Mentiras, um livro apaixonante do francês Philippe Besson sobre sua descoberta da sexualidade e agora prosseguimos com Diários de Kolimá. Memória individual, memória coletiva”, explica Cerdà.
Alon Feuerwerker: E se Stálin tivesse os EUA?
Desde a morte de Mao Tsé-Tung, a China procura combinar um sistema político socialista e uma economia com fortes componentes capitalistas. E a espetacular prosperidade chinesa destes anos assenta-se, também e principalmente, no acesso aos capitais e ao mercado de consumo do Ocidente, especialmente dos Estados Unidos. Um dia, Mao e Richard Nixon enxergaram longe.
Neste um século da Revolução Bolchevique, nota-se o desejo de sentenciar o sistema da União Soviética como fadado desde o início a fracassar, o que acabou acontecendo em 1991. A derrocada teria duas razões principais: os comunistas soviéticos não preservaram a democracia liberal, desde quando fecharam a Assembléia Constituinte, e garrotearam o mercado.
Quando a ideologia dá espaço à observação da realidade, a tese vira queijo suíço. Não só a China, mas também os Tigres asiáticos, antigos e novos, alcançaram ciclos longos de prosperidade sob governos que um liberal chamaria de despóticos. Alguns transitaram para formas mais ou menos convictas de república constitucional. Alguns não. E todos vão bastante bem, obrigado.
"Ah, mas o modelo não é politicamente sustentável no tempo." Bem, aí já é futurologia. Que tal, então, um pouco de "passadologia"? E se a URSS tivesse tido ao menos quatro décadas de paz e acesso a capitais e mercados de consumo do Ocidente? E se a Nova Política Econômica tivesse podido durar mais?
A NEP (sigla em inglês) foi a distensão pró-mercado que a Rússia/ URSS praticou por um tempo nos anos 20. Por que durou pouco? Sem acesso a capitais e tecnologia externos, o nascente governo soviético centralizou a economia, estatizou o excedente agrícola e investiu tudo na industrialização acelerada.
Os custos humanos foram imensos. Mas esse desenvolvimento permitiu à URSS enfrentar e derrotar a máquina de guerra da Alemanha nazista, a um custo de 25 milhões de mortos - os americanos foram cerca de 500 mil. Não é juízo moral, mas político. Sem a industrialização soviética dos anos 30, Hitler teria arrastado as fichas na Europa.
Depois do conflito de 1939-45, após uma curta paz, veio a Guerra Fria. Ao final, a URSS não conseguiu competir e colapsou. Ironia: Mao rompeu com os soviéticos nos anos 60 também por discordar da "coexistência pacífica, competição pacífica" com o capitalismo, uma tentativa da URSS nos anos pós-Stálin de romper o bloqueio. Mais na frente, foi a China quem aplicou, com grande sucesso, a linha antes renegada.
Mas por que o socialismo soviético precisava da colaboração dos capitalistas? Não é uma contradição? Sim, e a resposta é sabida: por circunstâncias históricas, a revolução aconteceu na Rússia, o assim chamado "elo mais fraco na cadeia imperialista". Quando se tentou fazê-la em seguida na Alemanha, foi esmagada. Em vez de nascer num país capitalista maduro, ela eclodiu e ficou ilhada no país europeu com mais traços feudais.
A URSS acabou já faz um quarto de século. Enquanto isso, a República Popular da China, após quatro décadas de plena integração aos estoques de capital e aos mercados consumidores, decola. Na economia e na geopolítica. E, já que especular é grátis, fica a pergunta incômoda: o que teria sido Josef Stálin se lhe tivessem dado quatro décadas de paz e cooperação com o mundo capitalista desenvolvido?
* Alon Feuerwerker é jornalista e analista político na FSB Comunicação; foi secretário de Redação da Folha
Ivan Alves Filho: Um século russo
O século XX – um século breve, conforme a definição do historiador marxista britânico Eric Hobsbawm – começou e acabou na Rússia. Teve início em 1917, quando os revolucionários bolcheviques liderados por Vladimir Illitch Lênin tomaram de assalto o Palácio de Inverno, num sete de novembro, em São Petersburgo. E terminou com o fim da experiência soviética – iniciada em 1921 -, com a queda de Mikhail Gorbachev, o último secretário geral do Partido Comunista, em 1991.
Muito já se escreveu a propósito do desmoronamento do socialismo realmente existente. O sistema teria sido minado por seus próprios desvios burocráticos. Ou sucumbido à poderosa propaganda ideológica do inimigo capitalista. Ou, ainda, desdenhado a questão da democracia política. Para outros, a corrida armamentista deslanchada pelo campo ocidental, sobretudo pelos norte-americanos, enfraqueceria de maneira irreversível as economias socialistas, (historicamente debilitadas, se comparadas com o desenvolvimento das potências capitalistas, com o ponto de partida delas). Tudo isso é verdade. Mas existe um outro aspecto nunca lembrado nessa questão do desmoronamento da União Soviética: o país não soube – ou não pôde – se dotar de uma base material que possibilitasse sustentar no topo relações de produção de novo tipo, livres de qualquer exploração do homem pelo homem, conforme estabelecia o ideário marxista. E sem uma base material nova, não existe modo de produção historicamente novo. É o que a marcha da História nos ensina.
O fato é que a antiga URSS fez uma revolução política mas herdou a base material por excelência do sistema capitalista – a unidade fabril. E não criou nada no lugar dela. E o mais dramático ainda estaria por vir: a base material da sociedade sem classes – representada pela revolução técnico-científica em curso no mundo há pelo menos três décadas, com base na automação – surgiria primeiro no Ocidente capitalista. A base técnica dessa sociedade, bem entendido – e não a sua base social e política. É como se a Revolução Russa de 1917 tivesse colocado a política na frente da economia (ou das forças produtivas, mais concretamente) e o Ocidente tivesse feito justamente o contrário disso.
Seja como for, a União Soviética não somente deixaria de modificar essa base material (o capitalismo, diga-se de passagem, mudou a base do feudalismo, o que possibilitou explodir de fato com as relações servis de produção, reforçando assim o próprio capitalismo) como também manteria as relações assalariadas de produção já presentes no capitalismo. E o que é ainda mais sintomático, o capital permaneceria intocado também no interior do socialismo real. A pergunta parecia ser: o que fazer com ele?
O que o socialismo real modificaria estruturalmente, então? Na verdade, apenas o estatuto formal dos meios de produção, doravante sob o controle do Estado, não necessariamente socializado. É preciso reconhecer isso. Não é demérito. É que não havia condições de se caminhar mais longe do que isso, dada as condições da sua implantação. No fundo, os bolcheviques contavam com o pipocar da revolução na Alemanha, área mais avançada, para viabilizar de fato a Revolução Russa. Tanto que o idioma oficial da III Internacional, criada em 1919, era o alemão.
Problemas fundamentais que têm que ver com o caráter da gestão, tão ou mais importantes até do que o próprio estatuto da propriedade, foram praticamente postos de lado. Afinal, se apropriar dos meios de produção é inseparável de se apropriar dos meios de gestão – ou deveria ser. Pior ainda: a ideia de socialismo se restringia à esfera econômica, mais concretamente às nacionalizações operadas no âmbito da indústria. Vale destacar ainda que o próprio Karl Marx evitava se referir ao termo socialismo: para o filósofo e ativista alemão o que havia, na realidade, eram duas fases do comunismo, uma inferior e outra superior. Está na Crítica do Programa de Gotha.
E a relação com a propriedade assim como a relação de exploração do trabalho não eram as únicas apontadas por ele como responsáveis pela alienação do homem. Ou seja, a coisificação crescente do ser humano e a opressão exercida pelo Estado sobre ele foram ignoradas pelo socialismo realmente existente. Vale dizer, são muitas as áreas da experiência humana que mereceram a atenção de Marx, e não apenas a opressão econômica. Contudo, acabou prevalecendo a redução da “etapa inferior” do comunismo à simples organização de um sistema econômico com base nas empresas estatais. Deu no que deu.
Na seara política, prevaleceria um absolutismo próximo daquele vigente na Europa do Oeste durante o século XIX. Absolutismo esse que deitava raízes no velho czarismo, é bem verdade – mas que o fechamento da Assembleia Constituinte pelos bolcheviques só agravaria. Na realidade, os líderes políticos russos viraram as costas a algumas das mais caras práticas democráticas presentes desde o final do século XIX no movimento socialista e operário europeu, como os direitos de greve, de reunião e de voto. Ora, se essas conquistas foram obtidas sob o capitalismo, mais uma razão para que fossem mantidas por aqueles revolucionários. Questão complexa esta da democracia.
O fato é que a Revolução Russa teve dificuldades em assimilar o que a civilização humana havia produzido de melhor, até então. E a democracia é justamente isso: um conjunto de valores civilizatórios, em que despontam conquistas como o habeas corpus, que data do Império Romano. A tradição autoritária russa – uma área de frágil presença da sociedade civil, frequentemente engolida pelo Estado, em prática nitidamente “oriental” – acabou falando mais alto.
A extraordinária contribuição da União Soviética à luta contra o nazismo não seria, infelizmente, assimilada internamente no sentido de uma abertura política. Mesmo assim, os comunistas ajudaram a consolidar a democracia no Ocidente, participando de governos de União Nacional, como na França e na Itália, e estimulando políticas de frentes populares. Propuseram a importantíssima política de coexistência pacífica entre regimes sociais diferentes. E o papel dos comunistas nas lutas pela descolonização também foi digno de nota, com destaque para seu apoio inabalável ao povo do Vietnam. Os comunistas da III Internacional – é preciso dizer – também fizeram sua parte na luta contra a barbárie. Lamentavelmente, por momentos também mergulharam nela, como no período stalinista.
No fundo, a grande diferença entre a proposta comunista e a capitalista é de natureza antropológica. Ou seja, reside na batalha pela desalienação do homem em todos os planos da sua existência, do econômico ao modo de vida. Uma batalha pela superação daquilo que Marx denominava por “pré-história” do homem. Não basta mudar a sociedade; é preciso também mudar a própria civilização. A rigor, a Revolução Russa ficará para a História como uma espécie de ala esquerda da sociedade industrial.
A História ensina que, com todas as limitações de uma primeira experiência revolucionária, a luta pela preservação da Revolução e a montagem de um Capitalismo de Estado – a definição é do próprio Lênin, em seus escritos sobre o caráter da Rússia pós-1917, mais exatamente em seus artigos econômicos – liberaria uma energia extraordinária, como que represada por longos anos na velha Rússia dos czares. É que havia a esperança de uma mudança radical no modo de vida. E, em vários setores do conhecimento e da prática humanas, essa esperança se concretizou. E isso também é inegável, é preciso que se reconheça. Da servidão à industrialização: a Rússia, em pouquíssimas décadas, passou de um país de servos a um país onde os proletários almejavam, pela primeira vez na História, chegar ao poder. Tudo isso não é pouco mesmo.
Os artistas e a arte russa e soviética materializariam esse início de mudança – para melhor, imagino – das fontes da vida no chamado socialismo real. É o que a própria realidade objetiva nos diz. Vejamos a coisa de perto. O cinema documental, com Dziga Vertov à frente, nasceu durante o processo revolucionário russo. Seu belíssimo “Três cânticos para Lênin” até hoje emociona as plateias do mundo inteiro, pela força de suas imagens, até por uma certa aspereza que delas emana. Fascinante, realmente. Serguei Eisenstein, pelo lado do cinema ficcional, dirigiu e montou verdadeiras obras-primas, como “Outubro”, “Ivan, o Terrível” e “Que viva México!” (este último inacabado. Os soviéticos chegaram então a sondar Glauber Rocha para terminar o filme.). Como esquecer um criador como Eisenstein, se ele já pertence ao patrimônio cultural da humanidade?
Se caminharmos para o lado das artes plásticas, impossível deixar de mencionar os nomes dos criadores russos Marc Chagall (que chegou a ser comissário do povo ou ministro no novo governo da Revolução), Malevitch e Kandinsky, verdadeiros ícones da modernidade, compreendendo aí os experimentos com as linguagens abstratas na pintura.
E a história se repete na poesia, na dramaturgia e na novelística, onde despontam nomes como Maiacovski, Essenin, Bloch, Meierhold e Máximo Gorki, todos de primeiríssima linha. A influência desses artistas e escritores extrapolou a própria cultura russa, encantando o conjunto da cultura ocidental.
O que dizer ainda? No terreno das práticas educacionais, não podemos esquecer tampouco o nome de Makarenko. O pensamento revolucionário russo não ficaria atrás: teóricos como Lênin, Bukharin, Lunacharski e Trotsky enriqueceriam a compreensão dos fatos políticos no século XX. E é preciso reconhecer que o próprio Josef Stalin, em que pese seus erros e crimes brutais, foi autor de um estudo dos mais rigorosos sobre a questão da nacionalidade. Difícil encontrar um país como a Rússia, decididamente.
Revolução, pelo visto, também é cultura. Esta, talvez, uma das heranças mais memoráveis de 1917 – talvez até a principal delas. E essa memória aquece os nossos corações, irremediavelmente esperançosos, apesar das vicissitudes da História recente.
Na velha Rússia, e também fora dela.
* Ivan Alves Filho é jornalista, historiador, autor de mais de uma dezena de importantes livros, o último dos quais é O Homem e o Tapeceiro, editado pela Fundação Astrojildo Pereira