urna eletronica
Revista online | Editorial: O calendário da democracia
Estamos às vésperas do primeiro turno das eleições gerais deste ano, momento propício para fazer o balanço das tarefas postas para candidatos, partidos e eleitores situados no campo da democracia, na resistência, portanto, aos esforços governistas de romper ou avariar os pilares do estado democrático de direito no país. Essas tarefas se distribuem ao longo do tempo, em etapas bem demarcadas pelo calendário eleitoral.
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O primeiro objetivo consiste na vitória eleitoral sobre o candidato do governo, no primeiro ou no segundo turno. Para tanto, é urgente, em primeiro lugar, praticar a campanha em prol do comparecimento às urnas, combater, consequentemente, o absenteísmo eleitoral no círculo de parentes, amigos e conhecidos. Em segundo lugar, persistir nos argumentos em favor do voto válido. Convencer o maior número possível de concidadãos a fugir do voto em branco e do voto nulo, uma vez que atitudes de recusa do conjunto de partidos e candidatos não são compatíveis com o momento presente, de alto risco para a democracia. Finalmente, levar com empenho, para o maior número possível de pessoas, o argumento do verdadeiro voto útil: toda opção é legítima e louvável, do ponto de vista da democracia, exceto o voto no candidato do governo.
A presente eleição é singular, ou seja, ao contrário das anteriores, o inesperado pode ocorrer, entre a proclamação dos resultados e a posse dos eleitos. Não faltaram, ao longo dos últimos quatro anos, ameaças, abertas e veladas, de confronto com a vontade dos eleitores, a pretexto da possibilidade fantasiosa de fraude eleitoral em benefício de candidatos da oposição. É fundamental, portanto, apoiar com serenidade e firmeza a Justiça Eleitoral, ao longo da apuração e após o anúncio dos resultados. Toda tentativa de contestação a esses resultados deve ser repudiada de público por todos os atores do campo democrático.
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Finalmente, o sucesso na eleição e na garantia do seu resultado resultará na posse dos eleitos. Abre-se então a terceira fase de recuperação da democracia no país, a reconstrução das instituições. Essa etapa exigirá um acordo amplo, construído de forma aberta e transparente, em torno dos pontos cruciais da agenda democrática, pontos que devem unificar todas as forças desse campo, independentemente de seu posicionamento enquanto governo ou oposição.
Há que reparar a arquitetura institucional do país, com um esforço de reforma direcionado com maior ênfase para todos os setores que demonstraram vulnerabilidades, após três décadas de operação à sombra das regras da Carta de 1988.
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Bolsonaro tem mais chance que Trump de pôr eleição em xeque
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) parece seguir a cartilha de Donald Trump ao mobilizar esforços para desacreditar o sistema eleitoral, mas, na visão do professor de Relações Internacionais Benjamin Teitelbaum, o brasileiro tem mais chances de sucesso do que o ex-presidente americano
Nathalia Passarinho / BBC News Brasil
Professor da Universidade de Colorado, nos Estados Unidos, Teitelbaum é autor do livro Guerra pela Eternidade (Unicamp, 2020), sobre a corrente de pensamento que inspirou Steve Bannon, ex-conselheiro de Trump, e Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo radicado no Estado americano da Virgínia.
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Em entrevista à BBC News Brasil, Teitelbaum disse considerar Bolsonaro uma ameaça mais concreta à democracia que Trump. Para ele, o presidente brasileiro parece ter uma estratégia mais elaborada, semeando um ano antes da eleição a ideia de que as urnas eletrônicas poderiam ser fraudadas.
Quando Trump se viu diante da iminente derrota na eleição de 2019, ele começou a fazer, sem provas, acusações de fraudes e erros na contagem dos votos. O sistema de votação americano é em papel. Em 2018, Bolsonaro já lançava dúvidas sobre a segurança do sistema brasileiro, que é eletrônico. Mas, neste ano, reforçou os ataques às urnas eletrônicas, incentivando protestos e sugerindo que, se o sistema não for mudado, pode não haver eleição no ano que vem.
"Acho que os dois (Bolsonaro e Trump) tinham o objetivo de criar oportunidades de manobra diante de um eventual resultado eleitoral desfavorável. Mas, no caso de Trump, sinto que ele estava improvisando, não tinha um plano claro", disse. "No caso de Bolsonaro, há uma tentativa mais séria e sincera de gerar um clima de desconfiança na população. O que ele está fazendo não é tentar encontrar uma abertura legal para rejeitar um resultado eleitoral, mas sim criar um ambiente político, uma abertura política.
Especialista na extrema-direita e estudioso de movimentos populistas e nacionalistas contemporâneos, Teitelbaum avalia que a ideia de Bolsonaro é preparar terreno e fomentar apoio popular para, em 2022, colocar em xeque o resultado da eleição se for derrotado.
"Acho que ninguém gosta de dizer que está dando um golpe, ainda mais alguém que já está no poder. Mas sim. Trata-se de uma forma de criar oportunidades políticas para rejeitar o resultado de uma votação", disse à BBC News Brasil.
Segundo o professor americano, três características tornam o Brasil mais suscetível que os Estados Unidos à estratégia usada por Trump e por Bolsonaro de espalhar, sem provas, a ideia de fraudes nas eleições: o fato de ser uma democracia mais recente; a postura ambígua das Forças Armadas; e a existência de "ambiente" para que autoridades e apoiadores do presidente defendam abertamente regimes e ideias antidemocráticas, como o fechamento do Supremo.
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"Os Estados Unidos não têm essa história recente de mobilização dos militares na política doméstica. Esse passado recente de ditadura militar pode produzir mais tensão no caso brasileiro. A resposta pode ser maior vigilância por parte dos brasileiros ou, pelo contrário, maior receptividade a uma intervenção militar", disse Teitelbaum.
A BBC News Brasil entrou em contato com a assessoria de imprensa do Palácio do Planalto para comentar as declarações de Teitelbaum, que não respondeu até a publicação desta reportagem.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Que semelhanças ou diferenças existem entre a contestação de Trump ao resultado da eleição presidencial dos Estados Unidos e os ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral do Brasil?
Benjamin Teitelbaum - À primeira vista, parece ser uma situação análoga, em que você tem um líder estruturando o palco, plantando a semente da dúvida sobre uma eleição que parece cada vez mais desfavorável para ele, se levarmos em consideração as pesquisas de opinião. Trump certamente estava na mesma situação. No entanto, o que mais me chama a atenção são as diferenças entre as duas situações. No caso do Brasil, estamos lidando com uma democracia mais jovem e, ao mesmo tempo, com um processo eleitoral que é melhor que o dos Estados Unidos. Você tem mais pessoas votando e você conta os votos muito mais rapidamente. Então, há marcadores democráticos que apontam o Brasil como um caso menos problemático quanto ao risco de fraude eleitoral.
Então, temos uma democracia mais jovem, um robusto padrão de participação democrática e temos um líder que tem falado sobre golpes e tomada de poder por militares há muito tempo e que transformou em hábito celebrar a ditadura militar e lançar dúvidas ao processo eleitoral. Donald Trump, quando ele começou a semear dúvidas sobre o processo democrático, não era como se isso fosse uma parte da sua persona por décadas, como foi para Bolsonaro. Então, há uma diferença na aura de seriedade e intencionalidade no caso de Bolsonaro, que não se tinha com Trump.
BBC News Brasil - O objetivo final de Trump e Bolsonaro era o mesmo em lançar dúvidas sobre o processo eleitoral?
Teitelbaum - Acho que os dois tinham o objetivo de criar oportunidades de manobra diante de um eventual resultado eleitoral desfavorável. Essa é uma forma gentil de dizer que eles estavam criando espaço para rejeitar o resultado eleitoral. Mas eu sinto que, no caso de Trump, ele estava improvisando. Não me parece que ele tivesse um plano ou visão claros de como as coisas ficariam se ele tivesse conseguido ampla desconfiança no resultado eleitoral. Ele conseguiu em parte isso na invasão do Capitólio, em 6 de janeiro. Mas, por mais dramático que tenha sido esse episódio, ele foi um caminho sem volta para Trump. Ele não tinha plano, ele não tinha uma estratégia legal para fazer isso (se manter no poder).
No caso de Bolsonaro, os anos de elogios dele ao golpe militar e o fato de a democracia brasileira ser relativamente jovem dão um significado diferente para a estratégia de semear dúvidas sobre o processo eleitoral. Há uma seriedade maior nisso. Me parece que é algo mais pensado da parte de Bolsonaro. E é mais plausível pensar que um líder brasileiro encontre uma maneira de, numa democracia relativamente jovem, rejeitar o resultado eleitoral.
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BBC News Brasil - Então, na sua avaliação, seria plausível pensar que Bolsonaro está preparando terreno para se opor ao resultado eleitoral ano que vem, promovendo algum tipo de golpe? Ou esse seria um termo forte demais?
Teitelbaum - Ele está tornando isso mais provável. Acho que ninguém gosta de dizer que está cometendo um golpe, ainda mais alguém que já está no poder. Por isso que o termo parece estranho. Mas sim. Trata-se de uma forma de criar oportunidades políticas para rejeitar o resultado de uma votação.
BBC News Brasil - Falta mais de um ano para a eleição presidencial no Brasil. Quais os possíveis motivos para iniciar com antecedência essa mobilização contra o processo eleitoral eletrônico?
Teitelbaum - Isso mostra que, no caso de Bolsonaro, há uma tentativa mais séria e sincera de gerar um clima de desconfiança na população. O que ele está fazendo não é tentar encontrar uma abertura legal para rejeitar um resultado eleitoral negativo, mas sim criar um ambiente político, uma abertura política.
Se você tem uma porção grande da população que não ratifica a legitimidade de um processo democrático, isso é um problema. Você pode alcançar um ponto em que não importa que eles estejam errados. Democracia exige confiança por parte da população. Se 40% da população rejeitar a legitimidade de um governo ou de uma eleição, isso cria oportunidades para o perdedor da eleição manobrar e recobrar o poder. Não sei exatamente como ele faria isso, mas trata-se de uma forma de criar oportunidades políticas.
BBC News Brasil - Com relação aos eleitores americanos e brasileiros, há diferenças no clima ou no discurso dos apoiadores de Bolsonaro que tornariam mais provável um desfecho favorável ao presidente brasileiro que o obtido por Trump?
Teitelbaum - Uma coisa interessante nos Estados Unidos é que, mesmo quando a eleição estava sendo contestada, os próprios adeptos dessa ideia diziam que estavam fazendo isso para garantir a democracia, o voto justo. Não queriam dispensar a democracia. No caso de Bolsonaro, ele não defende o valor democracia ao criticar o modelo atual de democracia moderna. Ele diz, 'queremos uma votação híbrida, com voto em papel e eletrônico'. Esse não é o problema em si.
Mas temos outras declarações dele defendendo outras formas de governo ou o regime militar. E isso mostra que, além de não estar comprometido com a democracia liberal, ele não se sente pressionado a se apresentar como a verdadeira versão da democracia liberal, mas como uma alternativa à democracia liberal.
BBC News Brasil - Mas nos Estados Unidos, não havia por parte de adeptos de Trump e do próprio presidente rejeição a valores democráticos?
Teitelbaum - Com certeza havia algum tolo que dizia que houve fraude na eleição e que os militares deveriam atuar para corrigir isso. E Trump pode até ter flertado com a ideia, mas essa não era, de maneira alguma, parte representativa da conversa. O discurso prevalente era: 'Achamos que essa votação foi incorreta e queremos uma nova votação'. Eles se vendiam como pessoas lutando pela integridade e legitimidade da democracia. Se queremos dar a eles o benefício da dúvida, pelo menos, eles se sentiam pressionados a se afirmar como defensores da democracia.
BBC News Brasil - Isso quer dizer que a democracia brasileira está mais sob ameaça com as atitudes do presidente Bolsonaro que a democracia americana esteve sob Trump, quando houve contestação das eleições?
Teitelbaum - Sim. Isso tem a ver com consenso. Olavo de Carvalho mesmo escreveu que democracia é sobre administrar discordâncias, é sobre ter uma série de consentimentos de base. Quando essa fundação começa a ruir, o fato de não vermos isso acontecer nos Estados Unidos… O fato de não vermos ruir um comprometimento ideológico com a democracia ou uma democracia republicana cair, isso era tranquilizador. Mas esse não é o caso no Brasil.
O legado e comprometimento com a democracia é mais recente no Brasil e menos sedimentado. Falamos de hegemonia quando uma ideia é entendida como senso comum, como estando para além de preferências políticas. Em muitas democracias modernas, a democracia goza dessa hegemonia, não questionamos a validade dela, mesmo se odiamos o governo atual. Se isso começa a se tornar condicional, se dizemos que gostamos da democracia apenas nessa ou naquela circunstância, entramos em terreno diferente.
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BBC News Brasil - De que maneiras Trump pode ter influenciado ou inspirado Bolsonaro, mesmo não tendo sido bem-sucedido em contestar a eleição americana?
Teitelbaum - Uma conclusão pode ser a de que Trump não pressionou o suficiente, não se preparou o suficiente ou não preparou terreno a tempo para que a contestação da eleição fosse bem-sucedida. Portanto, eu preciso começar agora (a semear dúvidas sobre o sistema eleitoral) e pressionar mais fortemente.
BBC News Brasil - Que diferenças há na resposta das Forças Armadas americanas e do Brasil às ambições de Trump e de Bolsonaro?
Teitelbaum - Os Estados Unidos não têm essa história recente de intervenção e participação dos militares na política doméstica. A conclusão não é que os Estados Unidos sejam imunes a isso. Talvez sejamos menos vigilantes. Mas, pelo menos, isso não está em pauta, não há conversas sobre possibilidades de intervenção militar na política. Pelo menos, não num nível nacional. Portanto, essa história recente de ditadura militar pode produzir mais tensão no caso brasileiro. A resposta pode ser maior vigilância por parte dos brasileiros e instituições ou, pelo contrário, maior receptividade a uma intervenção militar.
BBC News Brasil - Quais os possíveis resultados dessa estratégia de Bolsonaro?
Teitelbaum - Vamos supor que Lula vença. Se uma fatia considerável da população não aceitar o resultado, não acreditar que ele foi legítimo, eu não sei o que isso significa hoje. Podemos olhar para o passado. Em outras democracias jovens, isso gerou conflito militar, insurgência civil, movimentos separatistas… Mas pode também gerar um cenário completamente novo. Não é possível prever o que acontecerá se uma fatia considerável da população decidir que democracia não funciona para eles, e acho que esse vai ser o resultado (no Brasil).
BBC News Brasil - A candidatura de Lula e a polarização entre o petista e Bolsonaro alimentam essa estratégia do presidente?
Teitelbaum - Sim, essa é minha opinião. De certa maneira, com relação a esse aspecto especificamente, você pode comparar Lula a Hillary Clinton. Você tem uma reação negativa de parte da sociedade. Há a pessoa perfeita para simbolizar tudo o que essa parcela da população odeia num governo. Lula cumpre bem esse papel. Há atualmente um movimento anti-establishment (antissistema). E Trump e Bolsonaro tiveram sorte de concorrerem contra pessoas que personificavam o establishment, o sistema. Não tenho certeza se Trump teria ganhado de Bernie Sanders quando se elegeu em 2016, porque Sanders não servia tão bem ao papel de personificar o sistema, um sistema visto como corrupto. Lula é muito popular e parece capaz de vencer Bolsonaro. Mas os ingredientes estão lá para que Bolsonaro use Lula como essa figura.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58079438