União Europeia
Fome: Em busca de uma saída solidária e global
Claudio Fernandes, Outras Palavras*
Caro leitor e cara leitora. Não se espante com o título aparentemente alarmista deste artigo, pois ele reflete uma verdade sobre fatos! Ouso dizer que, do jeito como as coisas estão colocadas, a humanidade não irá respirar tranquila pelos próximos anos. Contudo, meu trabalho aqui não será fazer previsões pessimistas para o futuro, mas sim, refletir sobre alguns aspectos da arquitetura financeira mundial, o papel das Nações Unidas e os compromissos políticos que os Estados-nações precisam assumir para construir e implementar uma resposta efetiva às crises que se acumulam.
Começo esta reflexão a partir de uma experiência recente, quando estive representando a Gestos e o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda (GT Agenda 2030) em Nova York, durante o VII Fórum de Financiamento para o Desenvolvimento (FfD), promovido pela Organização das Nações Unidas. O fórum buscava discutir estratégias de atuação que pudessem responder à perspectiva de uma nova grande crise global resultante de um colapso no pagamento das dívidas externas de países em desenvolvimento.
Lembro-me que, em seu segundo dia, a guerra imposta pela Rússia à Ucrânia chegou de forma pesada à quarta reunião de debates do FfD. Para além das mortes e da violência militar explícita que tem chocado a comunidade internacional, outro problema já se apresenta: vários países dependem de grãos importados do país atacado. O tema dominante, então, passou a ser o novo perigo de racionamento de alimentos e a insegurança alimentar, multiplicados pelos riscos do aumento da inflação, resultado dos problemas de cadeia de valor causados pela pandemia da Covid-19.
Contudo – e apesar do clamor da sociedade civil internacional para traçar alternativas socialmente responsáveis e verdadeiramente sustentáveis para reconstruir a economia mundial de forma equitativa – o que se ouviu no VII FfD foi mais do mesmo. A pura repetição de estratégias fracassadas que favorecem prioritariamente o 0,1% mais rico, enquanto os 99% da população mundial são arrastados para o fundo do abismo que a atual arquitetura financeira global cavou ao longo das últimas décadas. Diante disso, voltei para casa maquinando algumas das reflexões abaixo.
Para além da guerra, pode-se perceber a falta de compreensão da urgência em que o mundo está colocado. A emergência climática é uma disrupção presente e destinada a acelerar exponencialmente. Estamos falando de uma resposta logarítmica do planeta. O tempo já se esgotou para muitas populações em muitos países. Otimizar os fluxos financeiros em direção à sustentabilidade tem sido um apelo urgente há, pelo menos, sete anos, mas pouco avançou nesse sentido.
É preciso reconhecer que as soluções financeiras projetadas até agora ficaram aquém de seus objetivos. O “mercado” (esta entidade mítica e abstrata que engole todas as instâncias da economia política), como sempre, é o que domina o processo de financiamento para o desenvolvimento sustentável. Por quê? Porque os players e as regras do jogo não mudaram nem um milímetro para criar um processo normativo de transformação. O risco já há muito tempo tem sido considerado por meio da expansão de instrumentos derivativos para manter o sistema em rotatividade. Não podemos priorizar a mera reprodução do capital através do sistema financeiro enquanto continuamos a prejudicar pessoas e comunidades – o verdadeiro material concreto que faz a sociedade e a economia existirem.
A esses desafios, somam-se problemas sistêmicos e históricos já existentes que atrasam, e em certos casos, impedem a implementação da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Como proposta para se encontrar soluções efetivas, a sociedade civil organizada vem requerendo explicitamente a convocação da quarta Conferência Internacional do Financiamento para o Desenvolvimento, entendendo que é o único espaço legítimo onde decisões que levam a mudanças fundamentais na arquitetura financeira global podem ser tomadas. Enquanto a União Europeia apoia a iniciativa, a China e os 134 países (incluindo o Brasil) que compõem o G77 estão divididos sobre o tema. Em conversa com um representante brasileiro, nos foi confiado que o motivo é o “medo de que uma nova conferência tenha como resultado um retrocesso nas questões em discussão”. Outros países do Sul Global também expressaram a mesma preocupação.
Realmente o mundo hoje está bem diferente do que era em 2015, quando foram aprovadas as resoluções da Agenda 2030, do Acordo de Paris e da Agenda de Ação de Addis Ababa. Desde então vários países se mostraram contrários aos processos de mitigação da emergência climática, de equidade de gênero e de expansão democrática. Em diversas regiões, a política foi infectada pela intolerância, pelo desrespeito e pela violência, criando riscos às liberdades e às instituições de direito. No entanto, decisões precisam ser tomadas sobre a arquitetura financeira vigente, que tem exacerbado os problemas ao invés de oferecer soluções sustentáveis para os diversos desafios que persistentemente ampliam os níveis de desigualdade presentes em cada país e entre as nações.
Em debate especial com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e as instituições Bretton Woods – isso é, Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial e Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) – tornou-se evidente que as medidas tomadas para mitigar os efeitos da pandemia de Covid-19 foram insuficientes. Por exemplo, os Direitos Especiais de Saque (SDR) emitidos pelo FMI, equivalentes a 650 bilhões de dólares, ficaram principalmente nas mãos dos países que menos precisavam. Isso ocorreu porque o critério de distribuição foi baseado em quotas dos países na instituição; essas quotas, por sua vez, são determinadas por volumes de doação. Ou seja, os países com mais recursos tiveram as maiores quotas.
Como salientou Bodo Elmers, do Global Policy Forum e representante do grupo da sociedade civil para o FfD, “neste momento 400 bilhões de dólares estão dormentes nos bancos centrais de países que não precisam, enquanto os que precisam não conseguem acesso aos recursos”. É importante ressaltar que essas instituições foram criadas no contexto da maior crise mundial do século XX para prevenir crises futuras; mas aparentemente não foram capazes de prevenir ou mitigar satisfatoriamente as crises atuais.
Este órgão, a Organização das Nações Unidas, deveria representar o compromisso com os valores mais elevados para a humanidade e assumir um papel de protagonismo na tentativa de resolver a confluência de crises em que nos encontramos; particularmente o crescente desafio financeiro para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030. Uma nova Conferência Internacional de financiamento para o desenvolvimento em um futuro próximo, mas que deve ser decidida com urgência, é o único processo legítimo para realmente assumir a responsabilidade que o mundo precisa da comunidade internacional.
Portanto, precisamos de políticas públicas concretas e pragmáticas para reprojetar o equilíbrio das relações de poder que criaram a confluência de crises que vivemos e viveremos nos próximos anos. O que este fórum pode decidir? Pode decidir estabelecer um quadro normativo para um mecanismo de resolução de dívida soberana dos países, mas recusa-se a fazê-lo. Tem um mandato para criar uma convenção tributária internacional, conforme solicitado pelo G77, o que atualizaria o quadro normativo para um mundo globalizado e digitalizado. Mas tampouco avança.
De fato, a Agenda 2030 parece, cada vez mais, ser um sonho inalcançável; porém, algumas medidas governamentais também poderiam ajudar a amortecer os impactos globais e ampliar a implementação dos ODSs, como a precificação das emissões de carbono, a taxação sobre grandes fortunas e a adoção de tributos sobre transações financeiras em contexto multi-jurisdicional. A emissão de títulos da dívida pública com a condicionalidade para o financiamento do desenvolvimento sustentável também poderiam, em tese, servir para fazer girar a engrenagem financeira necessária para uma mudança sistêmica na aplicação de recursos privados.
Mas como lembra o editorial The private-equality delusion (A ilusão da igualdade privada, em tradução livre), publicado em 4 de março deste ano pela revista The Economist, “nós precisamos passar a levar a sério e refletir o que os mercados privados podem e não podem fazer”. Enquanto faltam recursos para a sociedade civil promover as mudanças necessárias para implementar a Agenda 2030, os agentes privados, de diversos tamanhos e volume de capital, já demonstraram que não têm compromisso efetivo com o desenvolvimento sustentável.
Um exemplo emblemático é o do Estado brasileiro que em 2012 (ainda durante o governo Dilma), optou por zerar as alíquotas do imposto sobre operações financeiras (IOF) na bolsa de valores e futuros. Isso fez com que este tributo passasse a ser sentido apenas pelo cidadão médio. Além disso, o país está na contramão das grandes economias do mundo em vários sentidos, entre eles figuram a não progressividade de impostos sobre fortunas e medidas de austeridade fiscal como a Emenda Constitucional 95/2016 (que estabeleceu o famigerado “teto de gastos” para investimentos fundamentais para o desenvolvimento social) – isso para não falar do problema (cultural) inflacionário que está sendo tratado da pior forma possível – e de uma economia oligopolizada que abre espaço para a formação de cartéis e moderna engenharia de preços.
Verdade seja dita: é inadmissível que enquanto o mundo amarga 6 milhões de mortes por Covid-19 e cada vez mais pessoas são jogadas para a pobreza e extrema pobreza, os bilionários do mundo tenha ampliado suas fortunas em cerca de 60% (segundos dados da Forbes e da Oxfam). Reorganizar o fluxo de capitais, bem como os destinos e condicionalidades sustentáveis de suas aplicações deve ser um compromisso humanista.
Temos os recursos necessários para fazer isso, mas é preciso coragem. Coragem das pessoas responsáveis pela formulação de leis, de chefes de Estado e players da geopolítica para abandonar um modelo econômico falido que coloca a existência da vida humana no planeta em risco. Acima de tudo, é preciso reconhecer a capacidade ímpar das organizações da sociedade civil em liderar o caminho para uma comunidade global sustentável e equitativa. Sabemos como fazer e, cada vez mais, precisamos dos recursos necessários para alavancar nossas ações e causar impacto positivo em maior grau e volume.
*Texto publicado originalmente em Outras Palavras
Hélio Schwartsman: Um problema patente
A decisão do presidente Joe Biden de apoiar a suspensão de proteções patentárias a vacinas durante a pandemia mostra que os EUA agora apostam no multilateralismo e estão atentos para as questões humanitárias. É um belo gesto político. No plano prático, porém, mesmo que a medida seja aprovada, terá papel limitado sobre a oferta de imunizantes no curto prazo.
O principal entrave à produção de vacinas hoje não são as patentes, mas a capacidade produtiva. O Brasil é um bom exemplo. Já temos em princípio acordos de transferência de tecnologia que nos permitirão fabricar por aqui dois imunizantes, mas ainda não conseguimos pôr de pé a estrutura fabril para fazê-lo.
De todo modo, penso que o instituto das patentes precisa mesmo ser repensado. Ele é menos eficaz do que se imagina para estimular a inovação e, nas últimas décadas, tornou-se em alguns casos fator de desestímulo. Isso fica claro no fenômeno da grilagem de patentes em biotecnologia, pelo qual grupos vão patenteando tudo o que de algum modo se relacione a uma área de pesquisa, não tanto para assegurar legítimos lucros futuros, mas para evitar que possíveis competidores se interessem pelo assunto.
Mesmo assim, há situações em que a patente parece ainda ser importante. É o caso da indústria farmacêutica, não porque a inovação aqui siga outras regras, mas pelo elevado custo para desenvolver e licenciar drogas. Se não houver um mecanismo que assegure o retorno desses investimentos, dificilmente alguém se arriscaria nesse tipo de empreendimento.
Já vemos um pouco disso na área de antibióticos. Como não são drogas que deem muito retorno financeiro, há muito tempo não aparecem novas classes desses quimioterápicos —o que poderá mostrar-se um seriíssimo problema de saúde pública no futuro próximo.
Independentemente de pandemia, chegou a hora de reavaliarmos as patentes, buscando aperfeiçoamentos no sistema.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/um-problema-patente.shtml
Afonso Benites: Com posse de Biden, Brasil sofrerá pressão conjunta de EUA e Europa por Amazônia
Diplomatas avaliam que nova Casa Branca se dedicará a vincular política ambiental à comercial. Embaixadores em Brasília dizem que, para não perder dinheiro, Planalto terá que ajustar discurso
Pelos próximos dois anos, a boa relação do Brasil com os Estados Unidos dependerá muito mais do Governo Jair Bolsonaro do que o de Joe Biden, que será empossado na presidência americana nesta quarta-feira. Se o presidente brasileiro insistir na sua política ambiental que pouco protege o meio ambiente e na condução ideológica de seu ministério das Relações Exteriores, corre o risco de fazer o país perder dinheiro e ser cada vez mais um pária na arena internacional. A avaliação foi feita por quatro embaixadores europeus e asiáticos que trabalham em Brasília e foram ouvidos para esta reportagem. Todos falaram sob a condição de não terem seus nomes publicados. E todos entendem que uma sinalização de que a política brasileira estaria além da relação Donald Trump-Bolsonaro seria demitindo os ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Ernesto Araújo (Itamaraty).
Conforme esses diplomatas, os chanceleres de países europeus, principalmente, darão suporte a qualquer veto ou restrição que Biden fizer ao Brasil por conta política ambiental. E mais. Já pediram que o presidente americano o faça. “A França já sinalizou que quer deixar de ser dependente da soja brasileira. A tendência é que, sem a proteção ambiental, os países encontrem mais argumentos para impor barreiras ao Brasil e, consecutivamente, protegerem os seus próprios produtores”, disse um diplomata europeu. “Quem não cuidar do que resta das florestas no mundo, acabará duramente punido onde mais dói, no bolso”, afirma outro representante de embaixada estrangeira.
A chegada de Biden encontra o Brasil em uma situação já frágil em termos internacionais. Se, sob sombra de Trump, Bolsonaro tinha uma caixa de ressonância poderosa e relativo pouco custo para a estratégia de isolamento internacional, agora o jogo começa a mudar. As últimas semanas foram de reveses para o Planalto na chamada “diplomacia da vacina”. O país, tenta, sem sucesso, acelerar a chegada de compras de doses prontas da vacina Oxford/AstraZeneca da Índia assim como de insumos para a fabricação de imunizantes vindos da China.
Uma das possibilidades que tem sido aventada no âmbito internacional seria a de Biden apoiar que a Organização Mundial do Comércio (OMC) estabeleça uma política de restrição a quem infringir determinadas normas ambientais. É algo parecido com o que ocorreu na década de 1990, quando havia severos vetos aos negócios com países em que eram registrados trabalho infantil ou escravo. É um debate que ocorrerá ainda ao longo de 2021.
“Os EUA querem criar uma nova doutrina mundial que prima pelos predicados da economia verde, da proteção da biodiversidade, mas também como componente vital na regulação das relações comerciais”, ressalta o cientista político e pesquisador de Harvard, Hussein Kalout, que foi secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência sob o Governo Michel Temer. A escolha de John Kerry, ex-secretário de Estado de Barack Obama, para ocupar o cargo de “czar ambiental” de Biden é uma dessas sinalizações de endurecimento da política verde do novo presidente.
Outra indicação de que a política de Biden também enfraquecerá Bolsonaro foi a opção dele por Anthony Blinken para o cargo de secretário de Estado. Ele é um defensor do multilateralismo, ao passo que o presidente brasileiro, assim como Trump era, é um crítico das organizações internacionais e defensor de acordos bilaterais.
De início, contudo, Biden terá preocupações urgentes antes de tratar da política externa com o Brasil. Entre elas, estariam o combate à pandemia de coronavírus, estratégias para recuperar a economia americana e como recompor a política interna que ficou extremamente polarizada principalmente no fim do mandato de Trump. Na visão de Kalout, a gestão do democrata será pragmática na seara internacional, e com o Brasil não será diferente. Pontes não seriam queimadas, mas o Brasil seria colocado em espera, por um tempo.
“O alinhamento entre os Governos brasileiro e americano foi para além do que é um alinhamento automático. Tivemos uma subordinação de interesses. Perdemos a autonomia decisória em matéria de política internacional. O Brasil tornou-se incapaz de tomar decisões desprendidas daquilo que o Trump entendia o que era necessário para o Brasil”, ponderou o ex-secretário de Temer.
Desde que assumiu a presidência, Bolsonaro fez questão de se aproximar de Trump. Mesmo após a confirmação da eleição de Biden, ele insistiu na infundada tese de que as eleições americanas foram fraudadas. E foi um dos últimos a parabenizar o vencedor do pleito.
Sobre a possibilidade de se demitir Salles e/ou Araújo, Kalout diz que essa medida não surtiria efeito de imediato, a menos que a condução da política dessas pastas mudasse. “Não adianta só trocar nomes. Tem de trocar o direcionamento, tem de trocar a maneira de se conduzir. E isso não depende, exclusivamente, do ministro que ocupar o cargo, mas do presidente”, diz o cientista político.
Um tema que deverá sofrer poucas mudanças é o da tecnologia da internet 5G. Trump vetou a presença da empresa chinesa Huawei dos Estados Unidos e tem pressionado para que países aliados o façam. O presidente Bolsonaro vinha sinalizando que seguiria o caminho traçado pelo republicano, mas ainda não havia uma definição final. O leilão da frequência deve ocorrer até meados deste ano. Agora, mesmo com a assunção de Biden a tendência é que alguma limitação à empresa chinesa persista, ainda que de maneira mais moderada.
“Essa guerra é suprapartidária. Se fosse o Trump ou o Biden seria a mesma coisa. Se não vierem vetos, virão barreiras que vão dificultar uma vitória da Huawei”, disse um dos diplomatas. O que está em jogo, não é apenas a questão financeira, mas a guerra geopolítica que EUA e China travam por essa tecnologia. Avaliação parecida é feita pelo cientista político Kalout. “Não tem como o Brasil banir, ele ainda depende da Huawei. Mas os EUA vão exercer pressão para delimitar essa entrada da Huawei no 5G do Brasil, mas também em toda a Europa”, afirmou.
Martin Wolf: Um acordo para pôr fim às ilusões do brexit
Saída do Reino Unido da UE é equivalente à promessa de Trump de 'tornar a América grande novamente'
Depois de quatro anos e meio dolorosos, chegamos ao fim do início do brexit. Temos um acordo. É, inevitavelmente, um acordo prejudicial para a economia britânica, comparado a continuar na União Europeia. Mas é muito melhor que a estupidez de nenhum acordo. Acima de tudo, ele mantém um relacionamento funcional com os vizinhos próximos e principais parceiros econômicos do Reino Unido.
Nenhum governo responsável deixaria poucos dias para as empresas se adaptarem às complexidades dessa nova situação. E o faria ainda menos no meio de uma pandemia. Esse continuará sendo um divórcio tolo e desnecessário. Mas a realidade do brexit poderá até trazer alguns benefícios.
A UE já deve ter visto alguns deles. Ela quase certamente teria sido incapaz de aprovar seu fundo de recuperação da pandemia de 750 bilhões de euros (R$ 4,9 trilhões) se o Reino Unido tivesse continuado à mesa. De agora em diante, a UE poderá avançar mais depressa na direção de seus objetivos comuns.
Para o Reino Unido, também, o brexit trará o grande benefício de separar a realidade da ilusão.
Algumas ilusões já desapareceram. Os defensores do brexit disseram ao país que seria fácil garantir um excelente acordo de livre comércio com a UE, porque ele tinha "todas as cartas na mão". Na verdade, mostrou-se bem difícil fazer isso, e o Reino Unido teve de fazer duras concessões desde 2016, notadamente sobre o dinheiro que devia à UE, a fronteira irlandesa e as exigências europeias de um "campo de jogo nivelado".
Essas ilusões eram sustentadas por outras. Entre elas estava a ideia de que o Reino Unido e a UE negociariam como "soberanos iguais". Sim, a UE e o Reino Unido são igualmente soberanos. Mas não são igualmente poderosos. A economia britânica é menos de 20% da europeia; 46% das exportações de mercadorias britânicas foram para a UE em 2019, enquanto apenas 15% das exportações europeias (excluindo seu comércio interno) foram para o Reino Unido.
A relação econômica entre a UE e o Reino Unido é mais como a do Canadá com os Estados Unidos. Como indica Jonathan Portes, do King's College, o acordo comercial imposto por Washington ao Canadá e ao México é bastante intrusivo.
A realidade é assimétrica. Este continuará sendo o caso nas muitas negociações com a UE que virão. Quando se lida com potências estrangeiras, especialmente mais poderosas, "recuperar o controle" é algo teórico.
Mas esse slogan também é ilusório em alguns outros aspectos. Em defesa, educação, habitação, saúde, desenvolvimento regional, investimento público e assistência social, o Reino Unido já tinha amplamente o controle. Mas a população britânica está prestes a perder valiosas oportunidades de fazer negócios ou viver, estudar e trabalhar na UE. Eles não vão "recuperar o controle" de suas vidas, mas perdê-lo.
Mesmo onde o controle será recuperado, em teoria, a realidade poderá chocar os partidários da saída da UE. Considere a imigração. Nos 12 meses que terminaram em junho de 2016 (o mês do referendo), a imigração líquida da UE mais fontes não europeias foi de 355 mil (com a emigração líquida de britânicos ignorada). Nos 12 meses que terminaram em março de 2020, a imigração líquida foi de 374 mil. A imigração líquida da UE despencou de 189 mil para 58 mil. Mas a do resto do mundo –sempre teoricamente sob controle britânico– explodiu, de 166 mil para 316 mil.
O Reino Unido preservou de fato um acesso relativamente favorável (embora marcadamente pior) para as indústrias, em que ele tem uma desvantagem comparativa, enquanto aceitou um tratamento substancialmente pior para serviços, em que tem uma vantagem comparativa. Na verdade, lutou mais duramente pelo controle da pesca, que gera 0,04% do Produto Interno Bruto britânico, do que por serviços, que geram o grosso do PIB.
Johnson prometeu que o país vai "prosperar poderosamente" mesmo sem um acordo. Mas virtualmente todos os economistas concordam que o Reino Unido ficará significativamente mais pobre em longo prazo, mesmo sob esse tipo de acordo, do que se tivesse continuado membro da UE.
Até mesmo a sobrevivência do Reino Unido está em dúvida. A Escócia e a Irlanda do Norte poderão deixar a União, a primeira para aderir à UE, afirmando que também quer "recuperar o controle", e a segunda para se unir à Irlanda e, portanto, também à UE. A Inglaterra poderá então ter uma fronteira com a UE no mar da Irlanda e no rio Tweed.
O brexit é, de muitas maneiras, o equivalente inglês à promessa de Donald Trump de "tornar a América novamente grande". Uma grande diferença é que, ao contrário do tempo de Trump como presidente, o brexit é para sempre. Parece quase certo que prejudicará permanentemente a prosperidade e a influência do Reino Unido. Mas só agora poderemos descobrir. Vamos olhar e aprender.
*Martin Wolf é comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves
Mathias Alencastro: Impossível não ver brexit como deflagrador da emancipação europeia
Europeístas que caricaturavam acordo como uma aventura chauvinista precisam rever sua posição
Longe vão os tempos da Europa paralisada pelas suas contradições sociais e subordinada aos imperativos dos aliados estratégicos. Horas depois de concluir o brexit, Bruxelas avançou para um amplo acordo de investimento com a China. A mensagem para a Presidência de Joe Biden é cristalina: a ordem ocidental não existe mais, e a União Europeia pretende triangular com as duas potências globais.
Impossível não ver o brexit como o elemento deflagrador da emancipação europeia. Desde que o Reino Unido decidiu a sua partida num referendo realizado no auge do vandalismo digital, a UE, entre outros feitos, selou um até então impensável acordo para a federalização da dívida dos países membros.
Isso posto, os europeístas que caricaturavam o brexit como uma aventura chauvinista precisam rever a sua posição.
Com o passar das emoções, o brexit deixou de ser visto como uma contingência e apareceu como uma inevitabilidade provocada pelas tensões ideológicas do Partido Conservador, a posição ambígua do Reino Unido dentro do mercado interno europeu e a experiência histórica dos britânicos com o imperialismo, que continua sendo o motor da sua identidade nacional.
Isso não salva a biografia de Boris Johnson, um bufão que provavelmente será varrido na próxima eleição. Mas seu legado será muito mais robusto do que o de Donald Trump ou de Jair Bolsonaro.
Aos trancos e barrancos, Boris assegurou ao Reino Unido uma rede respeitável de acordos comerciais.
O tratamento secundário conferido ao mercado financeiro nas negociações com a UE e a adesão unilateral a objetivos climáticos ambiciosos revelam que Boris ambiciona para o Reino Unido algo mais do que um paraíso fiscal sobre a Tâmisa.
Mais importante ainda, os últimos episódios da novela China mostram que os valores humanistas europeus ficaram do lado britânico do canal da Mancha. Bruxelas não hesitou em trocar promessas vagas sobre o trabalho forçado em Xinjiang pelo acesso da indústria franco-alemã ao mercado de consumidores da potência asiática. Entretanto, Londres já concedeu três milhões de passaportes para os cidadãos de Hong Kong, oprimidos por Pequim.
Alertas sobre uma implosão iminente do Reino Unido são fantasistas. A adesão de um país à União Europeia depende da aprovação de todos os Estados membros. Para a Espanha, em plena decadência monárquica, aceitar a integração de uma Escócia independente seria a melhor forma de provocar a secessão da Catalunha.
Com efeito, no que toca à coesão interna dos Estados, os britânicos, apesar dos seus problemas, seguem na frente dos europeus. A despedida de Angela Merkel, agendada para este ano, será um mergulho no desconhecido para a Alemanha.
Emmanuel Macron, cada vez mais isolado na Europa, perdeu o controle do seu governo. A França é o único membro do Conselho de Segurança que fracassou no desenvolvimento da vacina. Lenta e errática, a campanha de imunização é rejeitada pela maioria da população.
Se a arquitetura da União Europeia saiu reforçada da pandemia, o mesmo não se pode dizer da coesão interna das suas nações.
*Mathias Alencastro é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
RPD || Paulo Ferraciolli: RCEP, o maior tratado de livre-comércio do mundo
Acordo que permitiu a criação da Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP) deve consolidar o comércio e as cadeias de valor da Ásia e será maior que a União Europeia e o Acordo Estados Unidos-México-Canadá. Membros somam quase um terço da população mundial e 29% do Produto Interno Bruto (PIB) do planeta
A Parceria Econômica Regional Abrangente (ou Regional Comprehensive Economic Partnership - RCEP, na sigla em inglês), assinada em 15 de novembro, tem sido considerado um marco nas relações econômicas e na geopolítica dos países asiáticos. A impressão inicial é que estas relações serão cada mais determinadas por processos intra-asiáticos, o que ainda não significa, até agora, o completo afastamento das potências externas que atuam na região. Alguns aspectos e consequências deste acordo merecem ser conhecidos para facilitar seu acompanhamento futuro.
Um primeiro aspecto diferenciador do acordo é a liderança do processo, exercida pela Association of South East Asian Nations – ASEAN, composta atualmente por 10 membros com economias de dimensões bastante variadas. Dentre eles, apenas a Indonésia se destaca pelo tamanho de sua economia (maior do que a brasileira), seguida pela Tailândia com um PIB, medido em PPP, cerca de três vezes menor. Porém, o dinamismo econômico da região é notável. Por exemplo, a quinta maior economia da ASEAN, o Vietnã, após a adoção da política de “doi moi” (renovação), com aspectos semelhantes às políticas chinesas, vem crescendo a taxas anuais elevadas, sendo que, de 1990 até 2019, apenas em 1999 a taxa de crescimento anual foi inferior a 5%. São ainda membros da ASEAN, listadas por tamanho de suas economias, Malásia, Filipinas, Singapura, Myanmar, Camboja, Laos e Brunei.
Os seis participantes das negociações não membros da ASEAN - China, Índia, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia – se interessaram em participar do projeto, apesar de que os três primeiros tenham, cada um deles, economias muito maiores do que a de qualquer país do sudeste asiático. Ao final das negociações, a única defecção foi a da Índia que, em 2019, informou que o acordo não seria favorável a seus interesses e não se tornou signatário do RCEP. Duas razões ajudam a explicar a decisão de não participar: a falta de competitividade dos produtos indianos vis-à-vis os chineses e o aumento das tensões geopolíticas com a China. Contudo, esta segunda explicação fica enfraquecida, visto que estas tensões não impediram Narendra Modi de participar, com Xi Jinping, em novembro, da última Cúpula da Organização de Cooperação de Shanghai, na qual China e Índia são membros.
Para o comércio, o RCEP é importante, ainda que muitos dos países participantes já tenham acordos entre si, pois cada um deles possui regras próprias. O RCEP buscou alterar esta situação, avançando na unificação de regras comerciais dentro do bloco. Por exemplo, as “regras de origem”, essenciais no comércio internacional e que eram diferentes nos acordos já existentes, passaram por um esforço de unificação para que as exportações se beneficiem das vantagens conferidas pelo RCEP a todos os participantes.
O capítulo sobre comércio de serviços apresenta regras mais liberais que as encontradas (quando existem) em outros acordos regionais. Um capítulo trata do “movimento temporário de pessoas naturais” necessárias à prestação de serviços, à venda de bens ou a investimentos, tema sempre espinhoso por sua correlação com políticas migratórias. Dentre muitos outros, merece destaque o capítulo sobre comércio eletrônico (e-commerce), que incentiva seu uso e encoraja aprimorar processos a ele relacionados, incluindo proteção de dados individuais e dos consumidores via e-commerce, além de manter a prática de não usar tarifas em transmissões eletrônicas.
Uma consequência deverá ser a expansão de cadeias regionais de valor. A RCEP surge num momento em que a concentração de grande parte das etapas das cadeias globais em um único país está sendo questionada, e a dicotomia “eficiência x resiliência” ganhou importância no processo decisório sobre a localização de novos investimentos. Um acordo que unificará mercados com bilhões de consumidores, onde há países com mão de obra barata, países tecnologicamente avançados e com a infraestrutura em expansão graças a grandes projetos de investimentos, como os da Belt and Road Initiative chinesa, torna a região bastante atrativa para empresas de todo o mundo.
Notável é que a RCEP seja o primeiro acordo comercial que inclui os três principais países do leste asiático: o Japão não tinha acordos com a China e com a Coreia do Sul. Apesar das questões geopolíticas, os três consideraram relevante sua participação conjunta no acordo liderado pela ASEAN. Há outra tentativa de acordo trilateral entre os três países cujas negociações foram iniciadas em 2012, mas ainda não estão concluídas, esperando-se sua aceleração a partir da participação dos três na RCEP. Ao final de novembro, os ministros de relações exteriores da China e do Japão tiveram negociações por dois dias seguidos, o que indica tentativa de redução das tensões entre os dois países.
Finalmente, vale destacar a posição dos EUA, que tentaram ditar as caraterísticas dos acordos comerciais asiáticos com sua liderança no TPP, o Trans Pacific Partnership, o tão citado “mega-acordo do Pacífico”, negociado por 12 países, no qual a China tentou participar, mas foi excluída por decisão de Obama. O TPP chegou a ser assinado por Obama em 2016, mas, antes de ser ratificado, Trump retirou os EUA do acordo em janeiro de 2017, o que reduziu muito de sua importância econômica e estratégica. Os 11 membros restantes aproveitaram parte significativa do que fora negociado num novo acordo, a CPTPP, Comprehensive and Progressive Trans Pacific Partnership, retirando do texto temas que haviam sido incluídos por pressão norte-americana, como cláusulas sobre propriedade intelectual e proteção a investimentos.
A RCEP, ao que tudo indica, será fator de mudança da economia e da geopolítica da Ásia. Após a assinatura da RCEP, a grande novidade é que Xi Jinping anunciou que a China cogita em pedir adesão à CPTPP. O interessante é que este tema deverá ser tratado pelo Japão, que assumiu a liderança do acordo, após a saída dos EUA, e que tem na China seu principal parceiro comercial, além de ser membro da RCEP, como a China. Certamente, dado o relacionamento entre Japão e EUA, este novo posicionamento da China exigirá profundas reflexões estratégicas de Biden e seus assessores.
*Engenheiro, mestre em economia e especialista em Relações Internacionais. Professor-convidado da FGV desde 2005. Membro de Conselhos da FIESP, FIRJAN e AEB, e membro do GT Manufaturas do CEBRICS.
Carlos Sampaio: Risco ambiental e econômico
Não podemos dar argumentos para países criarem barreiras para nossos produtos
O Brasil sempre atraiu a atenção do mundo na questão ambiental pela sua riqueza. E o fator econômico contribui para elevar as cobranças sobre o nosso país, um dos principais players no disputado mercado internacional de commodities. Ainda mais quando se discute o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, anunciado no ano passado, depois de 20 anos de negociação.
O acordo eliminará tarifas de importação para mais de 90% dos produtos comercializados entre os dois blocos, mas ainda precisa ser ratificado por cada um dos países-membros. Há, portanto, muitas resistências a vencer.
Assim, não podemos dar argumentos para países criarem dificuldades ao acordo ou barreiras para nossos produtos, alegando que o Brasil não protege o meio ambiente. A França, por exemplo, já expressou essa posição.
Neste momento, em nada ajudam iniciativas ou omissões que possam lançar desconfiança sobre a política ambiental brasileira. A revogação pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente de resoluções para a proteção de áreas de restinga, manguezais e outros sistemas sensíveis — derrubada depois pelo STF — é a polêmica mais recente.
A minimização de dados sobre o desmatamento na Amazônia ou de focos de incêndio no Pantanal e a precarização dos órgãos de fiscalização, como o Ibama, alimentam especulações contra o Brasil. Além disso, passam a mensagem de que as regras são abrandadas, o que estimula a prática de crimes.
Se não houver respostas mais objetivas e ações mais efetivas contra o desmatamento e de proteção ao meio ambiente, o Brasil continuará sendo criticado, podendo perder espaço no mercado. E, se o meio ambiente não for, de fato, protegido, as perdas serão incalculáveis para as gerações futuras.
O Brasil tem uma das legislações ambientais mais rigorosas do mundo. E, como se diz, o governo já ajuda quando não atrapalha. Ainda mais numa área tão sensível como essa.
*Carlos Sampaio é líder do PSDB na Câmara dos Deputados e procurador de Justiça licenciado
Luiz Carlos Azedo: O peso da imprudência
Falta-nos um projeto capaz de construir consensos políticos majoritários e resgatar nossa coesão social, para uma grande reforma democrática do Estado e a redução das desigualdades
Num de seus ensaios sobre a França no século XX — O peso da responsabilidade (Objetiva) —, o historiador britânico Tony Judt, falecido em 2010, aos 62 anos, analisa a vida pública francesa entre a Primeira Guerra Mundial e os anos 1970. Como se sabe, o primeiro grande Estado-nação da Europa influenciou toda a história moderna do Ocidente, em razão da Revolução Francesa e da Comuna de Paris. Por essa razão, Judt não esconde seu espanto com “a incompetência, a ‘insoucience’ indiferença e a negligência injuriosa dos homens que governavam o país e representavam seus cidadãos” nesse período, e dedica o livro a Léo Brum, Albert Camus e Raymond Aron, intelectuais franceses que nadaram contra a maré e confrontaram seus pares.
Segundo Judt, o problema da França era mais cultural do que político. Os deputados e senadores de todos os partidos, presidentes, primeiros-ministros, generais, funcionários públicos, prefeitos e dirigentes de partidos “exibiam uma assombrosa falta de entendimento de sua época e do seu lugar”. Para um país que no começo do século teve grandes líderes políticos, como o socialista Jean Jaurès, que tentou evitar a I Guerra Mundial e morreu assassinado num comício pela paz, e George Clemenceau, primeiro-ministro durante a guerra e um dos artífices do Tratado de Versalhes, chama atenção a petrificação das suas instituições políticas no período. Traumatizada pelo sangrento desastre que foi o conflito mundial, a França foi polarizada pela radicalização ideológica que antagonizava comunistas e socialistas, de um lado, liberais e fascistas, de outro, em toda a Europa, e imobilizava o país.
Dividida entre um anseio pela prosperidade, equivocadamente inspirada no passado, e pela estabilidade dos anos anteriores à guerra, de um lado, e as promessas de reforma e renovação a serem pagas com recursos financeiros da punição à Alemanha, de outro, a elite francesa não tinha a menor chance de acertar. Qualquer tentativa de mudança em favor de melhores condições de vida para os franceses era barrada por uma política polarizada entre esquerda e direita, toda reforma institucional ou econômica era tratada como um jogo de soma zero. O desfecho foi a ocupação alemã, período ainda mais traumático, do qual a França foi salva pela vitória dos aliados, sem embargo da heroica resistência dos maquis.
A crítica de Judt é duríssima: “Que a França tenha sido salva de seus líderes políticos, de um modo como não podia ser salvar década antes, se deu graças a grandes mudanças no pós-guerra nas relações internacionais. Membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), beneficiária do Plano Marshall e cada vez mais integrada à nascente comunidade europeia, a França não dependia de seus próprios recursos e decisões para ter segurança e prosperidade, e a incompetência e os erros de seus governantes lhe custaram muito menos do que ocorrera em anos anteriores”.
Um paralelo
A tradução literal de “insoucience” é imprudência. Essa é a palavra-chave do paralelo entre esse período da história francesa e a política brasileira atual. Talvez a maior imprudência visível seja a atual política ambiental, que está fadada ao desastre absoluto, porque assentada em base políticas e ideológicas com 50 anos de atraso, ou seja, que remontam à estratégia de ocupação e exploração econômica da Amazônia do regime militar. Suas consequências de curto prazo — perda de investimentos, dificuldades de comercialização de produtos e isolamento internacional —, apontam para um desastre muito maior, porque o mundo passa por uma mudança de padrão energético que está nos deixando muito para trás, como aconteceu na Segunda Revolução Industrial, à qual só viemos a nos incorporar na década de 1950.
A questão ambiental é apenas a ponta do iceberg: falta-nos um projeto capaz de construir consensos políticos majoritários e resgatar nossa coesão social, para uma grande reforma democrática do Estado e a redução das desigualdades, no espaço de uma ou duas gerações. Ninguém tem uma fórmula pronta e acabada para isso. A única certeza é que os velhos paradigmas, que alimentam a polarização ideológica atual, não são capazes de dar as respostas adequadas aos problemas brasileiros. O pior é que o velho nacional desenvolvimentismo e os populismos de direita e de esquerda rondam as instituições políticas, sem que nenhuma dessas vertentes tenha a menor capacidade de dar respostas adequadas às contradições atuais.
A Revolução Francesa inspirou nossas instituições políticas, assim como a Revolução Americana, matriz das nossas ideias federativas. Tanto a França como os Estados Unidos, porém, vivem novos dilemas, com a revolução tecnológica e a globalização, em que perdem protagonismo econômico e político, a primeira para Alemanha, os segundos para a China. Esses quatro países protagonizam as linhas de força do desenvolvimento mundial, no qual precisamos nos inserir de maneira mais proativa. Nenhum deles, porém, nos serve de modelo de desenvolvimento.
Os Estados Unidos não nos darão de bandeja um Plano Marshall, o Mercosul está cada vez mais na contramão da União Europeia e não nos interessa a militarização do Atlântico Sul. Precisamos traçar o nosso próprio rumo. Nossos gargalos econômicos e sociais têm raízes ibéricas (patrimonialismo, compadrio, clientelismo) e escravocratas (a exclusão social e o racismo estrutural). O xis da questão é produzir uma nova síntese sobre a realidade brasileira e, politicamente, desatar os nós institucionais que impedem o nosso desenvolvimento sustentável. Nossa elite política não tem se demonstrado capaz de cumprir essa tarefa.
Celso Ming: Acordo entre Mercosul e União Europeia está sob ataque
Nesta quarta-feira, o Parlamento Europeu rechaçou “em seu estado atual” os termos do acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul.
Não é decisão que produz efeito imediato porque, para ratificação de tratados, o Parlamento Europeu não é instância decisória da União Europeia. Mas essa votação tem enorme influência sobre o destino do acordo, que foi fechado em junho de 2019 depois de 20 anos de árduas negociações. Com essa rejeição, fica mais difícil a aprovação final pelos Parlamentos dos 27 países que integram a União Europeia e pela Comissão Europeia, formada pelos chefes de governo da área.
Nas justificativas para a decisão tomada, o argumento central é o de que os tratados não podem respaldar a desastrada política de preservação da Amazônia pelo governo Bolsonaro.
Para o governo brasileiro, trata-se de um falso motivo. A má vontade dos políticos europeus, liderada pelo presidente da França, Emmanuel Macron, é mais que tudo protecionista. Os europeus temem que a liberação do comércio entre os dois blocos produziria invasão de produtos agropecuários do Mercosul, o que colocaria em risco os negócios pouco competitivos da área, sustentados artificialmente por subsídios e reservas de mercado.
Essa análise do governo brasileiro está correta. Desde o início das negociações, houve enorme pressão do lobby da agricultura da União Europeia pelo fechamento de um acordo. A crise produzida pela pandemia e as crescentes dificuldades políticas no interior dos países mais importantes da área apenas acirraram essa oposição.
Antes de prosseguir, convém apontar alguns paradoxos. O primeiro deles é o de que os argumentos contrários ao acordo de livre comércio se voltam contra a política de Bolsonaro, cujo governo é conhecido como defensor do livre comércio.
A oposição ao acordo por políticos da União Europeia, por sua vez, não levanta nem a indignação do governo de Buenos Aires nem a contestação da área diplomática da Argentina porque, diante da grave crise cambial do país, a última coisa que o governo argentino pretende, neste momento, é a liberação do seu comércio exterior. Ainda assim, o governo Fernández poderá aproveitar a oportunidade para acusar o governo Bolsonaro de ter solapado um acordo comercial estratégico e, portanto, de ter trabalhado contra os interesses dos outros sócios do Mercosul, em consequência de sua catastrófica política ambiental.
O caráter inequivocamente protecionista prevalecente na União Europeia não justifica as graves omissões e as decisões brutais do governo brasileiro na área ambiental. O governo do Brasil não pode fugir de seus deveres na preservação da Amazônia e em todas as outras dimensões do meio ambiente interno, não só por uma questão de interesse nacional, mas também de responsabilidade perante as demais nações.
Não dá para seguir argumentando, como vêm fazendo autoridades da área do governo Bolsonaro, que europeus, americanos e asiáticos destruíram suas florestas, emporcalharam seus rios e poluíram o ar antes dos brasileiros e agora lhes cobram um preço que eles próprios não se cobraram nem pagaram em seu tempo.
Se não for capaz de manter em relação a esse assunto uma política sadia como simples consequência de convicções científicas e doutrinárias, o governo Bolsonaro terá ao menos de lutar pela preservação ambiental por mero pragmatismo. Essa decisão do Parlamento Europeu é mais uma advertência de que a deterioração ambiental no Brasil implicará perda de negócios e fechamento de empregos por aqui.
Brexit e União Europeia: o que muda? Veja análise de Joan del Alcázar
Em artigo publicado na revista Política Democrática online, historiador diz que bloco deve buscar unidade
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
“Há importante déficit de liderança na Europa, sobretudo se recordarmos os líderes que tivemos no passado”. A avaliação é do historiador Joan del Alcázar, catedrático em História Contemporânea da América Latina da Universidade de Valencia, na Espanha. Em artigo produzido exclusivamente para a nova edição da revista Política Democrática online, ele analisa o Brexit, que é a saída do Reino Unido da União Europeia, e diz que os europeus deverão tomar medidas para reforçar as instituições continentais.
» Acesse aqui a íntegra do artigo na 15 edição da revista Política Democrática online
Com colaboração de renomados especialistas e pesquisadores, revista mensal Política Democrática online é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao partido político Cidadania. Todos os conteúdos podem ser acessados de forma gratuita no site (www.fundacaoastrojildo.com.br
De acordo com Alcázar, em momentos como o atual, os cidadãos devem assumir suas responsabilidades e saber transmitir aos mais variados dirigentes políticos que não resta outra opção, a não ser reforçar a União Europeia. “A Europa, mais concretamente o território da União Europeia, é a região mais habitável do planeta Terra, e com diferenças, como verificaram todos e cada um dos que viajaram a qualquer outro continente nas últimas décadas”, analisa o autor, em outro trecho.
Considerando a segurança na cobertura social e a cultura de liberdades individuais como parâmetro, conforme o artigo publicado na revista Política Democrática online, a Europa permite uma qualidade de vida a seus cidadãos superior à de qualquer outra região. “Infelizmente, como deixou patente nas últimas eleições britânicas – além dos resultados tanto para a Escócia como para a Irlanda do Norte –, a ideia da unidade europeia não é tão hegemônica como nos conviria”, afirma o historiador.
Segundo o autor, essa unidade é necessária, imprescindível, e não só para os cidadãos. “Fez-se evidente na Cúpula do Clima, reunida em Madri, apesar dos desacordos sobre a obrigação de endurecer a redução de emissões”, escreve ele.
Alcázar também é autor de diversos livros, dentre os quais Política y utopia en América Latina - las izquierdas en su lucha por un mundo nuevo (Tirant humanidades, València, 2019). Além disso, ele é responsável pelo blog El cronista periferico (elcronistaperiferico.
Todos os artigos desta edição da revista Política Democrática online serão divulgados no site e nas redes sociais da FAP ao longo dos próximos dias. O conselho editorial da publicação é composto por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.
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Política Democrática || Juan del Alcázar: Ganhou o Brexit. Falta reforçar a União Europeia
Com a proximidade do desfecho do Brexit, integrantes da União Europeia devem tomar medidas para reforçar as instituições continentais e, ao mesmo tempo, cobrar-lhes mais presença, eficiência e maior implantação no dia a dia dos cidadãos
Depois da vitória esmagadora de Boris Johnson e do Partido Conservador nas eleições britânicas, e estando próximo o desfecho do Brexit, com prejuízos incalculáveis para todos, os europeus convencidos deverão tomar medidas para reforçar as instituições continentais e, ao mesmo tempo, cobrar-lhes maior presença, maior eficiência e maior implantação no dia a dia dos cidadãos da União.
A Europa, mais concretamente o território da União Europeia, é a região mais habitável do planeta Terra, e com diferenças, como o verificaram todos e cada um dos que viajaram a qualquer outro continente nas últimas décadas. Considerando a segurança na cobertura social e a cultura de liberdades individuais como parâmetro, a Europa permite – a despeito de todos os problemas que comporta, que não são poucos – uma qualidade de vida a seus cidadãos superior à de outras regiões. Infelizmente, como deixaram patente as últimas eleições britânicas – além dos resultados tanto para a Escócia como para a Irlanda do Norte – a ideia da unidade europeia não é tão hegemônica como nos conviria.
Essa unidade é necessária, imprescindível, e não só para os cidadãos. Fez-se evidente na Cúpula do Clima, reunida em Madri, apesar dos desacordos sobre a obrigação de endurecer a redução de emissões. Também o será na hora de negociar com Londres as condições da saída da EU. E, além de temas concretos, por mais relevantes que sejam, e o são, sem dúvida, a unidade dos europeus é imprescindível para evitar que os gigantes que disputam o controle do planeta – Estados Unidos, Rússia, China e, em menor escala, Índia – nos conduzam ao desastre total.
Malgrado as fortes tensões endógenas e os inimigos internos e externos, que esfregam as mãos cada vez que a União Europeia exibe sintomas de debilidade, os europeus temos a obrigação de nos entendermos, e não só por razões culturais ou econômicas. A Europa, assolada por duas guerras totais no século XX, com uma longa história de enfrentamentos brutais entre os territórios que a integram, ainda é a região do mundo em que se alcançaram os mais altos níveis de liberdade individual; cujos Estados lograram assegurar a mais elevada capacidade redistributiva da riqueza; a região que estabeleceu as mais altas quotas de proteção social; a que atingiu os mais altos níveis de segurança pessoal; a que manteve o Estado mais emancipado do confessionismo religioso.
A União Europeia é, indiscutivelmente, o marco jurídico e legal mais adequado, mais operativo, para resolver problemas internos dos diversos estados nacionais e plurinacionais, como é o caso da Espanha. Tendo a Europa como perspectiva, torna-se mais tangível uma compreensão mais objetiva dos problemas internos de cada país, na medida em que as instâncias ou instituições que os forem resolver não estão maculados por interferências, imposições, obstrução ou má vontade dos diretamente afetados por eles.
A Grã-Bretanha partirá logo; abandona a União Europeia. Teremos de negociar essa saída, e parece que, com a nova composição do Parlamento das Ilhas, será mais fácil celebrar acordos bilaterais, mas será necessário que a União Europeia tenha uma única voz. Teremos também de observar com atenção o que ocorrerá particularmente com a Escócia, bem como na Irlanda do Norte, que votaram em um sentido diferente dos que apoiaram o Brexit.
Em relação ao ocorrido com a Grã-Bretanha, temos, ainda, de ser conscientes de que, dentro da União Europeia, há muitos inimigos que a desestimam, em especial a extrema direita populista, xenófoba e racista. Devemos, também, reconhecer que interesses poderosos, de Washington a Moscou, tudo farão para fortalecê-los. Temos, portanto, não só de não baixar a guarda, mas também fortificar a Europa, unir a Europa, construir mais Europa.
É um momento de fato difícil, mas é em tempos complexos que se tem de demonstrar fortaleza. Há importante déficit de liderança na Europa, sobretudo se recordarmos os líderes que tivemos no passado. Mas, em momentos como o atual, os cidadãos devem assumir suas responsabilidades e saber transmitir aos mais variados dirigentes políticos que não nos resta outra opção do que a Europa, a Europa e a Europa. Agora, que a União sofreu o golpe do Brexit, é exatamente quando devemos reforçá-la. Temos muito em jogo.
*Catedrático em História Contemporânea da América Latina da Universidade de Valencia, Espanha. Autor de diversos livros, dentre eles, Política y utopia en América Latina - las izquierdas en su lucha por un mundo nuevo (Tirant humanidades, València, 2019). Dirige o Blog “El cronista periferico” (elcronistaperiferico.blogspot.com).
Marcelo Tognozzi: Sonho e realidade se encontram na eleição do Parlamento europeu
Pleito está marcado para 25 de maio serão onde "sonho e realidade se encontram" European Union. Europeus prezam seu sistema de vida, mas não conseguem bons trabalhos. Na Espanha, há Previdência quebrada. Jovens têm sido atraídos pela direita, pelo discurso de retomar empregos
Diferente do Brasil, onde a conta das aposentadorias e pensões é paga com dinheiro do Tesouro, na Espanha, a exemplo de outros países da União Europeia, há um fundo de reserva para bancar a Previdência. Mas as contas não fecham porque os trabalhadores da ativa não estão gerando contribuições suficientes para bancar os inativos.
Um fenômeno em toda Europa é o envelhecimento da população e a Espanha é o país com menor taxa de natalidade do mundo desenvolvido. A mais baixa desde 1941, quando o país se reerguia após uma guerra civil que em quatro anos matou mais de 500 mil pessoas.
Em 3 cidades não nascem crianças há uma década, como no pequeno município de Yernes y Tameza, em Astúrias. Lá o único menor de idade, com 13 anos, é o menino Adrian Beovides, o último a nascer ali.
Boa parte dos jovens espanhóis, como a maioria dos europeus, terminou a universidade, mas não consegue emprego. Na faixa entre 20 e 30 anos, já são praticamente 1/3 os excluídos do mercado de trabalho. Muitos deles com uma pós-graduação, às vezes duas, e enorme frustração por não conseguirem exercer a profissão escolhida.
A sociedade está diante de uma encruzilhada: jovens super qualificados não conseguem trabalho e, consequentemente, pagam menos impostos e contribuições. Disputam vagas de garçom, vendedor ou recepcionista com imigrantes com pouco ou nenhum estudo.
O Estado investe muito na formação das pessoas e, quando estão prontas para devolver este investimento sob a forma de impostos, são excluídas do mercado de trabalho. O resultado é este curto-circuito nas constas da Previdência.
Esta rapaziada está de mau humor. As duas últimas pesquisas do CIS (Centro de Investigação Social), órgão público responsável pelas pesquisas de opinião mostram uma descrença nos políticos, a percepção de uma política contaminada pela corrupção e uma baixa expectativa de que o atual governo será capaz de oferecer soluções.
A esquerda e a centro-esquerda parecem ter esgotado sua criatividade para manter e expandir o estado de bem-estar coletivo (welfare state) com base em políticas sociais. Há uma evidente falta de propostas em relação ao tema que mais preocupa os espanhóis: o desemprego e a falta de perspectivas para a criação de novos postos para profissionais qualificados.
O descontentamento levou boa parte dos jovens a votarem na direita e centro-direita em dezembro passado, nas eleições da Andalucía, derrotando a esquerda depois de 36 anos de sucessivos governos. Após estas eleições, a extrema direita e a centro-direita passaram a gerar uma expectativa concreta de poder para o eleitorado.
Na França, após os protestos dos coletes amarelos, as últimas pesquisas indicam um crescimento de Marie Le Pen, a candidata de extrema direita derrotada por Emanuel Macron. O voto na direita não reflete ideologia, mas um pragmatismo de quem deseja ver seu problema resolvido no curto praz e que cansou de esperar.
Quando um engenheiro, psicólogo ou arquiteto, disputa uma vaga de 1.000, 1.500 euros com um trabalhador que veio do Oriente ou da África fugindo da fome e da morte, é sinal de que as coisas estão indo de mal a pior. A maioria continua sendo absorvida pelo setor de serviços, no qual o Turismo segue como o grande empregador de mão-de-obra qualificada ou não.
A esquerda e a centro-esquerda perderam a conexão entre o discurso, a prática e os resultados. Hoje milhares de diplomas vão para o fundo de alguma gaveta sem a menor utilidade numa Europa em que o setor financeiro não para de aumentar seus lucros e gerando cada vez menos postos de trabalho graças a automação, enquanto um contingente cada vez maior de trabalhadores é obrigado a sobreviver fazendo o que não gosta e abandonar o sonho de exercer a profissão escolhida.
Há ainda um agravante: os imigrantes com algum dinheiro “compram” seu próprio trabalho investindo num negócio, como fizeram milhares de chineses com suas lojas de quinquilharias.
Os europeus prezam muito seu sistema de vida. E têm horror quando são obrigados a sair da zona de conforto. Ao contrário dos sul-americanos, asiáticos e africanos, não sabem e não gostam de improvisar.
Foram acostumados durante décadas a uma rotina iniciada na escola de tempo integral e encerrada numa aposentadoria com direito a remédios, médico, transporte público e segurança para ir e vir.
A crise está colocando tudo isso em risco. O discurso adotado pela direita e centro-direita incluindo a revisão das políticas sociais, luta contra a corrupção, resgate dos valores da família e de estímulo aos que desejam ter filhos tem soado como música para uma fatia cada vez maior do eleitorado por propor o resgate desta zona de conforto ameaçada.
Para eles, questão da imigração não é problema quando o imigrante pode pagar impostos e ajudar a financiar um sistema no qual os contribuintes são cada vez mais escassos.
Há ainda a falta de crédito para o consumo que colabora para agravar a situação. Enquanto no Brasil e nos Estados Unidos as pessoas compram comida e bens de consumo como roupas e eletrodomésticos financiados em 10, 12, 24 vezes, os consumidores europeus não podem fazer isso.
Os limites dos cartões de crédito são curtos e o crédito disponível se concentra no setor imobiliário e na venda de veículos. Ou seja: o dinheiro circula menos, as vendas são menores e há menos oferta de emprego.
Stéphane Hessel (1917-2013), escritor, diplomata e um dos redatores da Declaração Universal dos Direitos do Homem, lançou em 2010 um panfleto de 32 páginas intitulado “Indignai-vos”, pelo qual exortava os jovens europeus a uma insurreição pacífica contra um capitalismo de privilégios para o setor financeiro em detrimento da cidadania.
Mais de 1,5 milhão de exemplares foram vendidos somente na França, servindo de inspiração para protestos e o surgimento de novos influenciadores. Na Espanha, a jornalista Rosa Maria Artal coordenou a livro “Reaja” (Reacciona), lançado em 2011, reunindo textos de intelectuais progressistas sobre a necessidade de combater a corrupção, os poderes financeiros e uma política cada vez mais distante da cidadania.
Nove anos depois, o pragmatismo do eleitor que quer emprego e aposentadoria fez a indignação e a reação começarem a migrar para uma direita que adotou as mesmas palavras de ordem.
Assim como os trabalhadores da Deep America votaram em Donald Trump em troca da promessa receber de volta seus empregos perdidos para os asiáticos, os jovens europeus namoram a direita pesando no seu 1º emprego, em uma Europa de oportunidades. No caso dos Estados Unidos os empregos e as oportunidades reapareceram.
Na Europa eles ainda são sonho e embalam o crescimento da direita na Itália, Espanha, França, Holanda, Áustria, Bélgica e Hungria. Até chegarmos na encruzilhada de 2019, o ano em que o sonho e a realidade têm encontro marcado dia 25 de maio nas eleições do Parlamento Europeu.