Ucrânia
Revista online | A COP 27 fracassou?
Benjamin Sicsú*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
A resposta ao título provocativo depende, claro, da premissa adotada para a análise. De todos os temas analisados no âmbito das Nações Unidas, a mudança climática é, atualmente, o que encontra maior engajamento, ainda que a intensidade das decisões seja diferente a cada rodada de discussão.
A precariedade do contexto mundial, desencadeado pela pandemia da covid-19, e posterior invasão da Ucrânia pela Rússia, forçou países a tomarem algumas medidas que se refletiram sobre essa edição da COP, levando à leitura de que ela não teve sucesso.
A Conferência das Partes (COP) é o órgão supremo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, adotada em 1992. As reuniões de deliberação ocorrem anualmente desde 1995. Durante duas semanas, os países avaliam a situação do clima no planeta e propõem mecanismos para garantir a efetividade da convenção.
Este ano, o encontro realizou-se no Egito e muitas das expectativas do mundo ecológico-climático não foram atendidas, o que gerou o sentimento de frustração. Mas é preciso avaliar a situação dentro do marco histórico e do contexto político mundial para se ter a real dimensão dos resultados obtidos em Sharm el-Sheikh.
Os resultados acordados na COP de Paris, em sua edição de número 21, ocorrida em 2015, foram, até o momento, os mais impactantes para o encaminhamento de soluções visando equacionar a crise climática. Decidiu-se ali que era preciso manter a temperatura média da terra abaixo de 2 graus celsius acima dos níveis pré-industriais.
Pactuou-se também a necessidade de realizar esforços para que esse limite não ultrapasse 1,5% acima dos níveis pré-industriais. Foi acordado, ainda, que os países desenvolvidos manteriam um fluxo regular de financiamento de recursos financeiros para os países mais pobres poderem adotar tais medidas visando a redução do aquecimento global.
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De Paris para o Egito, as sucessivas COPs foram destinadas a avaliar e criar as condições de implantação dessas medidas, sendo também monitorado o anúncio feito por cada um dos países sobre quais seriam suas contribuições para o objetivo de redução da temperatura.
Este ano, havia grande expectativa de que fossem pactuadas novas medidas em direção à eliminação do uso de combustíveis fósseis, como o carvão. Eles representam atualmente 80% das emissões que causam aumento de temperatura. Na COP 26, realizada em Glasgow, pela primeira vez, o texto final trouxe a citação ao carvão e enunciou medidas necessárias para o fim de seu uso. Não houve, então, qualquer menção ao uso de gás e de petróleo.
Na COP do Egito, além de continuar não priorizando medidas em relação ao gás e petróleo, o acordo finalizado retirou o foco dado ao uso do carvão. No texto final, foi trocado o termo “redução gradativa” para “eliminar subsídios ineficientes”, e isso foi entendido como um retrocesso.
Em função da invasão da Ucrânia, temos que entender que, no último ano, países líderes nas medidas de contenção da temperatura, como a Alemanha, foram impelidos a adotar medidas contrárias ao enunciado em Glasgow. País da Europa mais dependente do gás russo, a Alemanha teve que acionar usinas a carvão para se contrapor à diminuição do recebimento do insumo importado da Rússia. Logicamente, esse choque de realidade refletiu-se sobre o documento final da COP 27.
Mas essa é uma situação transitória. Tão logo o mundo reequacione as consequências geopolíticas da invasão da Ucrânia, medidas de extinção do uso do carvão voltaram a ser debatidas e adotadas. As razões técnico-científicas permanecem apontando o carvão como o grande vilão do aquecimento. Portanto, esse pequeno recuo não pode ser entendido como um fracasso. Trata-se de uma acomodação política a um imperativo causado por uma situação-limite.
O que se tem que levar em conta é que a COP 27 produziu uma grande vitória. O documento final cria, pela primeira vez, o mecanismo denominado “perdas e danos”. Por ele, os países ricos pagarão os mais pobres na implantação de medidas de combate à destruição climática. Significa que países que sofreram danos humanos e materiais por causa do aquecimento global poderão ser compensados ou indenizados pelos países que causaram a alteração.
Essa questão, que remonta às consequências do passado colonial, terá seu mecanismo detalhado tecnicamente ao longo do próximo ano. E poderá, em sua parte operacional, ser implementada na próxima COP. Trata-se de um acordo histórico, pois, pela primeira vez, os países do passado colonizador se comprometeram a pagar àqueles que foram objetos de políticas destrutivas relacionadas ao clima.
Confira, a seguir, galeria:
Outra importante vitória é a menção a florestas e a soluções baseadas na natureza. Embora vagas, essas referências colaboram para criar uma ponte entre as COPs do Clima e as da Biodiversidade, que também são organizadas no âmbito das Nações Unidas. Passa-se a ter o entendimento de que, para resolver a crise climática, é preciso levar em conta as questões da biodiversidade. Este é um passo fundamental para o melhor encaminhamento da relação clima-biodiversidade, essencial para a sobrevivência do planeta. Já poderemos ver consequência desse novo elo nas discussões da COP 15 da Biodiversidade, marcada para dezembro de 2022, em Ottawa.
Por todas essas questões e considerando a reentrada do Brasil como um dos líderes da discussão das mudanças climáticas e o anúncio feito, pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, de adotar a política de desmatamento zero da Amazônia, considero que a COP 27 foi um sucesso.
Sobre o autor
*Benjamin Sicsú é ex-ministro de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do governo Fernando Henrique Cardoso; presidente do conselho administrativo da Fundação Amazônia Sustentável, maior ONG a atuar na Floresta Amazônica, e integrante do Conselho Fiscal da Fundação Astrojildo Pereira.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de novembro de 2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Ataques russos deixam 4,5 milhões sem energia na Ucrânia
DW Made for Minds*
Os ataques russos à infraestrutura civil da Ucrânia deixaram nesta quinta-feira (03/11) cerca de 4,5 milhões de ucranianos sem energia – o equivalente a 10% da população do país antes do início da guerra – , afirmou o presidente Volodimir Zelenski, acrescentando que a falta de eletricidade ocorreu em Kiev e em outras dez regiões.
Zelenski pediu ainda que as autoridades locais economizem energia, desligando letreiros, vitrines e placas. "Se alguém fica sem eletricidade por oito ou dez horas, e tudo está ligado, incluindo a iluminação pública do outro lado da rua, é definitivamente injusto", ressaltou.
Segundo o chefe de Estado ucraniano, a Rússia está usando "terror energético" e atacando instalações elétricas do país porque não pode derrotar a Ucrânia no campo de batalha.
"Que a Rússia tenha recorrido ao terror contra a indústria energética mostra a fraqueza do inimigo. Não podem derrotar a Ucrânia no campo de batalha, e é por isso que estão tentando quebrar nosso povo dessa maneira", declarou o presidente ucraniano em seu habitual discurso noturno.
Mencionando que os ataques russos às instalações energéticas do país "não param um único dia" e terão que receber "uma poderosa resposta global", Zelenski frisou que o desafio de suportar o "terror energético russo" é agora a "tarefa nacional" de todos os ucranianos,
Com a aproximação do inverno, há semanas, a Rússia vem focando os bombardeios na Ucrânia em alvos civis, numa aparente tentativa de deixar a população no escuro e no frio nos próximos meses. Os ataques já destruíram cerca de um terço das estações de energia do país, e o governo ucraniano vem pedindo que a população economize eletricidade ao máximo.
A ofensiva militar lançada a 24 de fevereiro pela Rússia na Ucrânia já obrigou mais de 13 milhões de ucranianos a deixarem suas casas. Destes, mais de 7,7 milhões buscaram segurança em países europeus, segundo os mais recentes dados da ONU, que classifica esta crise de refugiados como a pior na Europa desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A guerra já matou mais de 6.400 civis e feriu 9,800.
cn/av (Reuters, Lusa, EFE, AFP)
*Texto publicado originalmente no site Made for Minds
Inflação na zona do euro atinge novo recorde
Made for Minds*
A inflação na zona do euro atingiu nível recorde, impulsionada pela alta dos preços de eletricidade e gás natural, em consequência da guerra na Rússia.
A inflação anual chegou a 10,7% em outubro, informou nesta segunda-feira (31/10) a agência europeia de estatísticas Eurostat, sendo este o maior índice já registrado desde do início das análises, em 1997. Em setembro, o percentual era de 9,9%.
Ainda assim, os números do terceiro trimestre foram marginalmente melhores do que o esperado, após a economia da Alemanha registrar crescimento de 0,3%. França e Espanha cresceram 0,2% e a Itália anunciou nesta segunda-feira um crescimento de 0,5%.
O crescimento econômico nos 19 países que utilizam a moeda europeia desacelerou em antecipação a uma possível recessão, como vem sendo previsto por muitos economistas, resultante da queda no consumo em razão da alta dos preços.
A inflação anual chegou a 10,7% em outubro, informou nesta segunda-feira (31/10) a agência europeia de estatísticas Eurostat, sendo este o maior índice já registrado desde do início das análises, em 1997. Em setembro, o índice estava em 9,9%.
A economia da zona do euro, que vinha se recuperando dos efeitos da pandemia de covid-19, teve um leve crescimento de 0,2% entre julho e setembro, desacelerando do percentual de 0,8% registrado no segundo trimestre em razão dos preços altos.
Ainda assim, os números do terceiro trimestre foram melhores do que o esperado, após a economia da Alemanha registrar crescimento de 0,3%. França e Espanha cresceram 0,2%, e a Itália anunciou nesta segunda-feira um crescimento de 0,5%.
Em comparação com o terceiro trimestre do ano passado, o crescimento econômico da zona do euro foi de 2,1%, informou a Eurostat.
Crise energética
A crise na Ucrânia fez com que o preço do gás natural disparasse, enquanto a Rússia reduzia o envio do combustível para o continente.
A Europa teve de recorrer a custoso envio de gás natural liquefeito (LNG) através de navios vindos dos Estados Unidos e do Catar para suprir os estoques e garantir o aquecimento das residências durante o inverno.
Apesar do êxito em abastecer os estoques de gás, a alta dos preços tornou mais cara ou deficitária a produção de bens como aço ou fertilizantes. O poder de compra dos consumidores vem se exaurindo, enquanto aumentam os gastos com combustíveis e com as despesas mensais.
O preço do gás natural para a compra em curto prazo teve um certo alívio recentemente, mas ainda se manterá em alta nos mercados pelos próximos meses, o que deve fazer com que a energia ainda se mantenha como um peso para a economia no futuro próximo.
Retração nos próximos meses
A alta da inflação é atualmente um fenômeno internacional, com aumentos de preços nos níveis mais altos em 40 anos também nos Estados Unidos.
Os dados da Eurostat mostram que os preços dos alimentos, tabaco e álcool também estão entre os maiores fatores para alta da inflação, aumentando 13,1%, enquanto a energia subiu 41,9% em um ano.
Economistas preveem que a economia irá se retrair pelos próximos meses e na primeira metade de 2023.
A alta da inflação levou o Banco Central Europeu (BCE) a aumentar a taxa de juros no ritmo mais acelerado de sua história, em 8 de setembro e 27 de outubro, o que gerou temores em relação às consequências da guerra anti-inflacionária.
Texto publicado originalmente em Made for minds.
Após cúpula de emergência, G7 diz que apoiará Ucrânia 'até quando for preciso'
g1*
Em reunião de emergência convocada após o pior ataque da Rússia na Ucrânia, os líderes do G7 - o clube dos países mais ricos do mundo - declararam nesta terça-feira (11) que darão apoio financeiro, militar, humanitário, diplomático e legal ao governo ucraniano até quando for preciso.
A reunião teve a participação de Joe Biden (Estados Unidos), Liz Truss (Reino Unido), Fumio Kishida (Japão), Mario Draghi (Itália), Justin Trudeau (Canadá), Emmanuel Macron (França) e Olaf Scholz (Alemanha).
"Nós garantimos ao presidente (da Ucrânia) Volodymyr Zelensky que estamos inabaláveis e firmes em nosso compromisso para providenciar o apoio que a Ucrânia precisa para defender sua soberania e integridade territorial (...) Nós continuaremos a fornecer apoio financeiro, militar, humanitário, diplomático e legal ao governo ucraniano até quando for preciso", declararam os líderes, em um comunicado final conjunto.
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, participou por videoconferência do encontro e pediu aos líderes que garantam às suas forças armadas capacidade de defesa aérea suficiente para deter a Rússia.
No depoimento, Zelensky voltou a descartar um diálogo com Vladimir Putin e também pediu ao G7 que apoie uma missão internacional na fronteira Ucrânia-Bielorrússia.
Também nesta terça-feira, um dia após um dos piores ataques russos a Kiev, a Ucrânia anunciou novos bombardeios a cidades estratégicas do país. Mísseis foram lançados contra Lviv - que fica próxima à fronteira com a Polônia - e Zaporizhzhia, onde fica a maior usina nuclear da Europa.
Mais tarde, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, disse nesta terça-feira (11) que a Rússia não recusaria uma reunião entre o presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em uma próxima reunião do G20 e que consideraria a proposta se a receber.
Falando na televisão estatal, Lavrov disse que a Rússia estaria disposta a "ouvir quaisquer sugestões sobre conversações de paz", mas que ele não poderia dizer antecipadamente qual seria o desfecho do diálogo em termos práticos.
Apesar da fala do chanceler russo, o Kremlin tem adotado uma postura agressiva e de contra-ofensiva. Há duas semanas, Vladimir Putin, fez um pronunciamento à nação pela TV anunciando a convocação de cerca de 300 mil reservistas no país inteiro, o que gerou uma grande onda de fuga de jovens russos.
Dias depois, quatro regiões da Ucrânia – Kherson, Zaporizhzhia, Luhansk e Donetsk – foram submetidas a um referendo organizado e realizado por Moscou sobre se os cidadãos locais queriam se separar da Ucrânia e se anexar à Rússia.
Putin anunciou vitória na consulta pública e, há duas semanas, assinou a anexação dos quatro territórios em uma cerimônia transmitida por telões em Moscou. A ONU e a comunidade internacional não reconhecem a anexação.
Texto publicado originalmente no g1.
Nas entrelinhas: PEC sob medida para bagunçar a economia
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
A Câmara dos Deputados concluiu, ontem, a votação em primeiro turno da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que cria uma série de benefícios às vésperas das eleições, que vigorarão até 31 de dezembro. Patrocinada pelo Centrão e agasalhada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, a proposta representa rombo adicional de R$ 41,2 bilhões no Orçamento deste ano, com propósito de conceder benefícios à população de baixa renda. A PEC passou por mais um turno de votação na noite de ontem.
A menos de três meses das eleições, a PEC aumenta o valor do Auxílio Brasil, amplia o Vale-Gás e cria um “voucher” para os caminhoneiros. Como a legislação eleitoral proíbe esse tipo de medida às vésperas das eleições, inventa um “estado de emergência” que livra o presidente Jair Bolsonaro (PL) das punições previstas em lei para esse tipo de crime eleitoral. Os benefícios aprovados começarão a ser pagos em agosto, mas vigorarão somente até dezembro. A medida é um estelionato eleitoral escancarado, mas foi aprovada com os votos da oposição, com exceção do Novo.
A aprovação da PEC foi marcada por suspeitas de fraude na votação de terça-feira e uma mudança regimental de ultima hora, ontem, para permitir a aprovação com quórum virtual. O presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), alterou as regras de votação a fim de permitir que parlamentares registrassem presença remotamente. Sessões extraordinárias foram realizadas para encurtar o prazo entre a primeira e a segunda votação, sendo que uma delas durou um minuto.
A PEC começou a tramitar no Senado, onde obteve apoio quase unânime — somente o senador José Serra (PSDB-SP) votou contra. Um acordo entre o Palácio do Planalto, que dobrou as resistências da equipe econômica, o Centrão e a oposição foi o ovo da serpente da quebra de institucionalidade da economia e das regras do jogo eleitoral. Velha raposa política, o senador Fernando Bezerra (MDB-PE), ex-líder do governo, na hora da votação, inclui no projeto o “estado de emergência” para burlar a legislação eleitoral. A justificativa é marota: a guerra da Ucrânia.
A institucionalidade das políticas econômicas é uma chave para que o país possa atingir bons resultados. O vale-tudo institucional, tanto quanto no mercado, compromete a interação entre o Estado, as instituições, as empresas e a sociedade, joga o crescimento para baixo e os preços para cima. Medidas como a de ontem contrariam as expectativas dos investidores. Seu resultado são a falta de investimentos, a redução da atividade econômica, o aumento da inflação, as altas taxas de desemprego.
Consequências
O Orçamento da União foi capturado pelo Centrão, por meio do chamado “orçamento secreto”. A aprovação da PEC foi a contrapartida para que Bolsonaro liberasse a execução das emendas parlamentares às vésperas da eleição. O resultado é a bagunça fiscal e a execução caótica do Orçamento, que passa ao largo de projetos estruturantes, porque as emendas apresentadas, em sua maioria, têm objetivos clientelistas. O pacote está em contradição e impacta a política monetária, que foge à alçada do Congresso e foi completamente blindada pela autonomia do Banco Central (BC).
O combate à inflação pelo autoridade monetária, por meio da elevação da taxa de juros, e a garantia de alta rentabilidade dos capitais aplicados em ativos financeiros, principalmente os títulos públicos, provocam a retração da atividade econômica e a concentração de renda, na contramão dos objetivos imediatos das medidas aprovadas pela PEC. Os investimentos estrangeiros feitos no país, atraídos pela alta rentabilidade dos títulos públicos, têm caráter especulativo. O Estado também não é capaz de financiar a modernização da infraestrutura, nem é esse o objetivo do “orçamento secreto”, consumido por distribuição de tratores, caminhões, estradas vicinais etc. O país perde complexidade econômica e competitividade no mercado mundial.
Como a economia está ancorada no regime de metas da inflação, que já foi para o espaço, e no câmbio flutuante, que se tornou um grande estorvo para o governo por causa da alta do petróleo, o grande ponto de interrogação é o resultado da equação benefícios concedidos pela PEC versus processo inflacionário. Às vésperas da eleição, ninguém sabe se as medidas serão capazes de reverter a desvantagem eleitoral do presidente Jair Bolsonaro (PL) em relação ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Trocando em miúdos: a oposição entrou numa casa de caboclo sem saber como vai sair. Quem não tem nada a perder é Bolsonaro. E o Centrão? Também, pois seus políticos têm como característica principal é a capacidade de adaptação.
Nas entrelinhas: PEC da eleição é um retrocesso civilizatório
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
Para o historiador Niall Ferguson, autor de Civilização, Ocidente versus Oriente (Editora Crítica), a chave do sucesso do modelo anglo-americano de sociedade está sintetizada num discurso de Winston Churchill, de 1938, no qual ele disse que a diferença entre Ocidente e Oriente estava baseada na opinião dos civis. “Significa que a violência, o governo de guerreiros e líderes despóticos, as situações de campo de concentração e guerra, de baderna e tirania, dão lugar a parlamentos, onde são criadas as leis, e a cortes de Justiça independente, onde essas leis são mantidas por longos períodos.”
“Isso é Civilização — e em seu solo crescem continuamente a liberdade, o conforto e a cultura”, complementou, para arrematar: “Quando a civilização reina em um país, uma vida mais ampla e menos penosa é concedida às massas. As tradições do passado são valorizadas e a herança deixada a nós por homens sábios e valentes se torna um estado rico a ser desfrutado e usado por todos. O princípio central da Civilização é a subordinação da classe dominante aos costumes do povo e à sua vontade, tal como expresso na Constituição (…)”.
São considerações de ordem conservadora e inspiradas no esplendor do Império Britânico, de parte de um político aristocrático que já assistira ao colapso do colonialismo, a partir da I Guerra Mundial, e estava diante do ameaçador domínio continental da Alemanha nazista. Ferguson cita o primeiro-ministro britânico que confrontou Hitler no capítulo de seu livro que trata da questão da propriedade. O historiador busca uma explicação para o fato de que a visão de Churchill não criou as mesmas raízes ao sul do Rio Grande, ou seja, na América Ibérica, uma história que começa com dois navios: um em 1532, com 200 guerreiros que desembarcaram ao norte do Equador para conquistar o Império Inca; e outro, 138 anos depois, numa ilha da Carolina do Sul, desembarcando servos por contratos em busca de um mundo melhor a partir do próprio trabalho.
Hoje, a civilização anglo-americana, hegemônica no Ocidente, está sendo reafirmada na Guerra da Ucrânia, na qual os Estados Unidos e a Inglaterra, aliados ao primeiro ministro Volodymir Zelensky, por meio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), mesmo estando fora da União Europeia, dão as cartas no Velho Continente. Desbancam a Alemanha e a França, encurralam a Rússia contra os Urais e constroem novos obstáculos à Nova Rota da Seda da China. No seu livro, otimista, para Ferguson, o Brasil seria o país da América Latina que mais estaria reduzindo sua distância em relação aos padrões anglo-americanos. Será?
Enquanto o Chile acaba de concluir uma nova Constituição, que vai substituir aquela que o país herdou do ditador Augusto Pinochet, mas ainda precisa ser referenciada por um plebiscito, o Congresso brasileiro escala uma bagunça institucional. Uma emenda à Constituição já aprovada pelo Senado, o nosso templo da conciliação, com um único voto contrário, do senador José Serra (PSDB-SP), agora engorda os seus jabutis na Câmara, que serão embarcados na legislação tributária, no pacto federativo, na política de preços da Petrobras, e implodirão o equilíbrio fiscal, a estabilidade da moeda e a paridade de armas da legislação eleitoral.
PEC da eleição
O relator na Câmara da Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que concede uma série de benefícios sociais em ano eleitoral, deputado Danilo Fortes (União-CE), manterá o texto aprovado no Senado, com o propósito de agilizar sua aprovação. A três meses das eleições, a PEC tem por objetivo garantir a recondução do presidente Jair Bolsonaro, com medidas de caráter populista, que não poderiam ser aprovadas a menos de 100 dias das eleições. Para isso, porém, deve recorrer à legislação do estado de emergência, a pretextos da guerra da Ucrânia, a nova desculpa para os fracassos governamentais.
Sim, talvez a eleição presidencial esteja sendo decidida nesta semana, com as seguintes medidas: ampliação do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 mensais, com inclusão de mais 1,6 milhão de novas famílias no programa (R$ 26 bilhões); a criação de um voucher de R$ 1 mil para caminhoneiros (R$ 5,4 bilhões); ampliação do vale-gás de R$ 53 para R$ 112,60 (R$ 1,05 bilhão); compensação aos estados para transporte público de idosos (R$ 2,5 bilhões); benefícios para taxistas (R$ 2 bilhões); repasse de R$ 500 milhões ao programa Alimenta Brasil, para compra de alimentos produzidos por agricultores familiares e distribuição a famílias em insegurança alimentar; e repasse de até R$ 3,8 bilhões, por meio de créditos tributários, para a manutenção da competitividade dos produtores do etanol sobre a gasolina.
Há um estranho e perverso pacto entre Bolsonaro, o Centrão e a oposição. O Congresso contrapõe aos arroubos autoritários do presidente da República um regime de partidocracia, institucionalmente macabro, que obstrui a renovação política. No curto prazo, será grande estelionato eleitoral: as medidas vigorarão até 31 de dezembro. Depois, quem for o eleito, decidirá como pôr a economia de volta aos trilhos da responsabilidade fiscal e do crescimento sustentável.
Para o Palácio do Planalto e seus aliados governistas, a reeleição de Bolsonaro depende do sucesso dessas medidas. Favorito nas pesquisas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva aposta no seu fracasso, mas as apoia. Teme repetir o erro do Plano Real, contra o qual se opôs no governo Itamar Franco, em 1994, enquanto Fernando Henrique Cardoso pavimentava seu acesso ao Palácio do Planalto com a nova moeda. No longo prazo, o retrocesso da nossa ordem econômica será uma tragédia anunciada. A estabilidade institucional das economias é uma das chaves do desenvolvimento e do processo civilizatório no mundo globalizado.
Putin reescreve a história. Apontamentos de São Petersburgo
Nicolò Sorio, Formiche*
A expectativa era alta, alimentada também pelo porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, que apresentara o discurso do presidente russo como “extremamente importante”. Apesar do atraso de cerca de uma hora, devido a um ataque hacker, Vladimir Putin não traiu as expectativas: “A época do mundo unipolar terminou, isto é iniludível, apesar das tentativas de conservá-la. Trata-se de uma mudança natural da História que irá de encontro aos estereótipos impostos por um só centro decisório, com uma só potência que controla os Estados a ela vizinhos e faz tudo no seu interesse exclusivo. Depois de vencer a Guerra Fria, os Estados Unidos sentem-se os mensageiros de Deus. Seus governantes são pessoas que não têm nenhuma responsabilidade, mas só cultivam os próprios interesses, criando uma rota que torna o mundo instável”.
O discurso, e em particular este trecho, sufraga o que foi a mudança de percurso operada pela Federação Russa no último decênio e permite fazer uma reflexão de mais amplo fôlego sobre a posição de Moscou em relação ao ambiente internacional. Os últimos anos podem ser lidos através da passagem fundamental da Federação Russa de potência insatisfeita a potência revisionista. Todas as matrizes de insatisfação que a Rússia amadurecera no pós-Guerra Fria (e não só) são postas a serviço de um projeto explicitamente voltado para subverter a ordem internacional liberal, a ordem internacional sob a direção estadunidense (ou pelo menos para orientá-la no sentido de uma estrutura mais compatível com os interesses e as expectativas da Rússia).
O conflito ucraniano enquadra-se perfeitamente neste sentido e pode ser lido, através da lente interpretativa de Moscou, como possível solução para os dois problemas/objetivos fundamentais do revisionismo russo. O primeiro é um objetivo distributivo: a Rússia reivindica uma zona, o espaço pós-soviético, de influência privilegiada, quando não exclusiva, considerada tradicionalmente em termos de “civilização”. O segundo é um problema reputacional: o reconhecimento do status de grande potência. A Rússia, neste sentido, ambiciona voltar ao centro do sistema de segurança europeu, e não só.
Durante seu discurso, Putin se disse pronto para enfrentar qualquer desafio: “Somos pessoas fortes e podemos enfrentar qualquer desafio. Como nossos antepassados, resolveremos qualquer problema, é o que fala toda a história milenar do nosso País”, reconectando-se a outra diretriz fundamental que constitui a política exterior russa: a autopercepção russa. O último decênio foi caracterizado pela construção de uma precisa narrativa inerente à civilização russa ("rossiiskaya"), uma concepção paraétnica da comunidade russa e russófona, baseada nas suas especificidades e no seu papel na era internacional. Os elementos-chave desta narrativa dizem respeito à convicção de que a Rússia desfruta de um direito natural, corroborado pela própria geografia, à imposição das regras do jogo político internacional e à formação de um patriotismo organicista, antitético àquele etnicista de molde ocidental.
O Fórum de São Petersburgo é, antes de tudo, um fórum econômico, e amplo espaço no discurso de sexta-feira foi dedicado ao tema das sanções ocidentais. Sobre este tema Putin reiterou a inutilidade do mecanismo europeu de sanções e o inevitável efeito bumerangue que terá sobre a economia ocidental: “Queriam quebrar nossas cadeias produtivas. Não conseguiram. Tudo o que se diz sobre o estado da nossa economia é só propaganda. Eles estão se autopunindo, porque sua crise econômica, que certamente não foi causada pela nossa Operação Militar Especial, fará nascer dentro dos seus países elementos radicais e de degradação que, em futuro próximo, levarão a uma substituição de elites. A União Europeia está arruinando sua própria população, ignorando os próprios interesses. Nossas ações no Donbass nada têm a ver com isso, a inflação e a escassez de matérias-primas são o resultado dos seus erros de sistema. Mas eles usam o Donbass como uma desculpa que lhes permite atribuir a nós todos os erros feitos nestes anos”.
No curso da intervenção relevantes foram as considerações sobre as relações entre Moscou e a Europa: “A União Europeia perdeu completamente sua soberania política”. A acusação é a de ter-se prostrado sob a égide estadunidense, negligenciando os próprios interesses nacionais. Este trecho deve ser interpretado levando em consideração a particular percepção que a Federação Russa tem do Velho Continente. A representação coletiva russa da Europa é bifronte. Por uma parte, é percebida como um modelo a ser observado em termos de progresso: à Europa se reconhece um papel histórico na construção da identidade russa (Moscou como terceira Roma) e no desenvolvimento econômico industrial. Por outra, é vista como um covil de vícios, emblema da decadência ocidental, à qual se deve necessariamente contrapor a ortodoxia russa.
Ao fim desta intervenção, que durou cerca de uma hora, foi reservado um espaço para algumas perguntas da plateia. Em particular, surpreende a pergunta relativa ao suposto estado de saúde do presidente da Federação Russa, à qual o próprio Putin responde, parafraseando a conhecida frase de Mark Twain: “Os boatos sobre minha morte são muito exagerados”.
* Analista geopolítico, em Geopolítica.info. Texto originalmente em Formiche
Moscou está isolada, mas da África à Índia muitos não seguem o Ocidente
Silvio Pons, Gramsci e o Brasil*
A guerra e a narrativa de Putin. As ideias dos socialistas europeus e o risco de um novo, devastador conflito no Oriente. Il Riformista discute a questão com um dos mais respeitados estudiosos do “planeta” russo, Silvio Pons, docente de História Contemporânea na Escola Normal Superior de Pisa, presidente da Fondazione Gramsci. Entrevista a Umberto De Giovannangeli.
Em Bruxelas o senhor participou de um encontro da FEPS (Foundation for European Progressive Studies), que reúne as Fundações e os centros de investigação dos partidos socialistas, social-democratas e progressistas da Europa. Os socialistas e a guerra. Professor Pons, há um ponto de vista comum?
Sobre algumas questões seguramente existe. Defender a Ucrânia como país democrático e independente é um objetivo que unifica todos os socialistas europeus. E o mesmo se pode dizer sobre a afirmação de uma perspectiva de trégua e, depois, de paz, embora seja ainda muito difícil dizer como e quando se verificará. De resto, na tradição do socialismo europeu há uma particular sensibilidade ao tema da agressão de uma grande potência imperialista e à resposta que é necessário dar a esta agressão na perspectiva de uma política da União Europeia, que está num sistema de alianças ocidentais mas deve também definir os próprios interesses como Europa.
Entramos no quarto mês de guerra. Como se modificou, se é que se modificou, a narrativa de Putin?
Há quase um mês a guerra se encontra numa situação de impasse. Tornou-se uma guerra estranha, muito intensa, porque continua a haver muitíssimas vítimas, tanto militares quanto civis, mas ao mesmo tempo não ocorrem significativos deslocamentos de frentes militares no terreno. O mais significativo se verificou quando a Rússia abandonou o objetivo de chegar a Kiev e concentrou suas forças no leste da Ucrânia. Neste cenário Putin mostrou uma certa reorientação. Seu discurso de 9 de maio foi muito mais cauteloso do que esperávamos. Putin deixou de lado os tons mais ameaçadores, naturalmente sem abandonar os objetivos declarados pela Rússia. E também fez referência à exigência de evitar uma escalada da guerra em sentido nuclear, coisa que não fizera no seu discurso de 24 de fevereiro. Neste sentido, diria que o tom de Putin, mais do que a narrativa, é que mudou. A narrativa, ao contrário, me parece ter continuado a mesma.
O que significa...
Putin continua sem reconhecer a Ucrânia como Estado-nação autônomo e soberano. Isto representa o maior obstáculo para uma negociação de paz. Sua narrativa meta-histórica dos laços está voltada para negar toda legitimidade de existência à Ucrânia. O presidente se entregou a uma polêmica antileninista para renegar o princípio de autodeterminação nacional, que, ao contrário, indica como o início do fim da URSS. Putin, no entanto, mais do que à URSS, continua a aludir a um passado imperial, ao “espaço espiritual da nação russa” – palavras do presidente – que parece ser um axioma em conflito com o princípio universalista da democracia. Esta narrativa, é bom repetir, não nasce em 24 de fevereiro de 2022, mas muito antes...
Quando, professor Pons?
Remonta a 2005, quando Putin, num célebre discurso, definindo o colapso da URSS como a pior catástrofe geopolítica do século XX, aludia à perspectiva de recuperar um papel influente da Rússia na Eurásia. A Ucrânia representava o centro de gravidade de tal visão pós-imperial, em evidente rota de colisão com as perspectivas de ampliação da UE. Uma visão que Putin não abandonou. O presidente russo rompe com Bruxelas para construir um espaço eurasiático maior, com Moscou no centro. Considera que a Federação Russa deva construir um polo autônomo no poder mundial e só possa fazê-lo com o uso da força, dados os limites da sua economia. Putin ainda aposta nas linhas de fratura no Ocidente e no mundo que possam abrir espaço para a influência russa, como bem vimos no Oriente Médio. Aqui termina a parte racional. Agredindo a Ucrânia, pela primeira vez Putin enveredou pelo caminho de uma aventura perigosa, exatamente na medida em que seus objetivos não são claros. Não o eram no início da guerra e não o são hoje.
Macron afirmou que não se obtém a paz com a humilhação da Rússia. Outros ressaltam a necessidade de indicar uma “honrosa” exit strategy para Putin.
Penso que os europeus deveriam ter e praticar o objetivo de encontrar uma exit strategy para todos, não só para Putin. Devemos pensar em sair da guerra de um modo que seja aceitável, antes de tudo, para os ucranianos e, também, compatível com uma negociação com a Rússia. O problema é que até agora os Estados Unidos, apoiados pela Grã-Bretanha, e a Otan expressaram predominantemente o objetivo de um enfraquecimento estratégico, estrutural, da Rússia. A pergunta é se este tipo de estratégia pode funcionar e se conciliar com a busca de uma paz sustentável, mas também com os interesses da UE e dos países que dela fazem parte. Uma coisa é afirmar que se deve enfrentar no terreno a Rússia para forçá-la a negociar. Outra é sustentar que se deve chegar a um enfraquecimento estrutural da Rússia ou mesmo à sua derrota. Este segundo argumento me parece que leva mais a uma provável escalada do que à paz. A pergunta é onde e como se posicionam os europeus em relação a tudo isso.
Pergunta ainda mais decisiva à luz do risco de que o conflito russo-ucraniano seja utilizado para acertar outras contas no Oriente. Refiro-me às declarações do presidente dos EUA, Joe Biden, sobre Taiwan e a China.
Esta é uma ótima pergunta. Até agora falamos sobretudo da Europa, do retorno da guerra ao nosso continente, do problema das relações não resolvidas entre a Rússia e a Europa, bem como das perspectivas. Isto naturalmente permanece o ponto central, do qual, de resto, trata também o plano de paz da Itália, que me parece um movimento importante porque assinala talvez a primeira iniciativa mais sólida por parte de um país europeu e põe o problema da paz a partir, também, do impasse da situação militar. Um caminho que a Itália não deve abandonar, apesar da rejeição da parte russa. Além disso, há outro aspecto relativo à guerra que está surgindo com força...
Qual?
Suas repercussões globais. Penso sobretudo na crise energética mas também na alimentar, que agora atinge vários países africanos. A urgência de encontrar uma solução diplomática de paz deve nascer também daí. E a Europa terá tanto mais credibilidade quanto mais estabelecer conexão entre uma paz aceitável para os ucranianos, que previna o mais possível uma Rússia revanchista mas também leve em conta as repercussões globais. Se não for assim, muitos atores globais não nos seguirão. Dizemos muitas vezes que a Rússia está isolada. Isto é verdade do ponto de vista das alianças claramente políticas, e a atitude até aqui mantida pela China, que se demonstrou um aliado “morno” de Moscou, o demonstra. Mas também é verdade que muitos países no mundo não seguem em absoluto as posições do Ocidente. Penso na Índia, na África do Sul, no Brasil, no Marrocos, no Senegal. E devemos ter a capacidade de enfrentar a questão da guerra inclusive à luz das consequências que tem para outros países fora da Europa.
*Texto publicado originalmente em Gramsci e o Brasil
Nas entrelinhas: Dragão da inflação contra mito guerreiro
Luiz Carlos Azedo/ Nas entrelinhas / Correio Braziliense
Com perdão para o trocadilho — Glauber Rocha que nos perdoe —, o presidente Jair Bolsonaro está convencido de que seu maior adversário nas eleições é a inflação. Os números corroboram esse temor, pois a alta dos preços, principalmente dos combustíveis e dos alimentos, pode levar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à vitória no primeiro turno. O que se discute no governo é a adoção de medidas de contingenciamento dos preços, seja pelo congelamento puro e simples, seja pela via de incentivos fiscais. A nova mudança na direção da Petrobras tem esse objetivo.
O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), que é considerado uma prévia da inflação oficial do país, está em 0,59% em maio, após ter registrado taxa de 1,73% em abril, somando 12,20% em 12 meses, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Diante disso, Bolsonaro resolveu demonizar a Petrobras, que seria o grande dragão da inflação. Vestiu a armadura de mito guerreiro e defenestrou mais um presidente da empresa, o terceiro. José Mauro Ferreira Coelho durou 40 dias do cargo, sendo demitido por telefone pelo novo ministro de Minas e Energia, Adolfo Saschida. Para o seu lugar, Bolsonaro indicou Caio Mario Paes de Andrade, atual secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia.
Empreendedor em tecnologia da informação, mercado imobiliário e agronegócio, Caio Mario Paes de Andrade tem formação em comunicação social pela Universidade Paulista, pós-graduação em administração e gestão pela Harvard University e é mestre em administração de empresas pela Duke University. Foi presidente do Serpro até agosto de 2020, quando passou a fazer parte do Ministério da Economia. Mas é um neófito na área de energia e petróleo.
A indicação ainda precisa ser aprovada pelo Conselho de Administração da Petrobras. Dois presidentes anteriores da empresa, Roberto Castello Branco e Joaquim Silva e Luna, também foram demitidos do cargo. Ambos por causa dos aumentos dos preços dos combustíveis.
A missão de Caio de Andrade é uma cobra de duas cabeças: de um lado, segurar os aumentos dos combustíveis até as eleições (fala-se, inclusive, em congelamento do preço do gás de cozinha e do diesel); de outro, avançar com o projeto de privatização da empresa. Em ambos os casos, será preciso mudar a composição do conselho de administração da estatal e a legislação vigente. A narrativa do governo para fazer essa alteração está começando a ser construída. Como a pandemia foi controlada, graças à vacinação em massa, o pretexto para a mudança seria o impacto da Guerra da Ucrânia nos preços dos combustíveis, fertilizantes e alimentos.
A Guerra da Ucrânia será uma desculpa para outras medidas populistas, que visam manipular preços artificialmente, reduzir impostos e mitigar o impacto da inflação no orçamento doméstico, principalmente da população de baixa renda, que deriva para a oposição. O que parecia improvável, está acontecendo: uma aliança do ministro da Economia, Paulo Guedes, com os políticos do Centrão para segurar a alta de preços e conceder benefícios a empresas e famílias de baixa renda. A entrega da Petrobras, que era controlada pelos militares, à área econômica, com a perspectiva de sua privatização, um sonho de consumo das grandes petroleiras.
Teto de gastos
Como o mercado não é bobo e sabe que qualquer projeto econômico de médio e longo prazos depende das eleições, a primeira reação foi negativa: as ações da Petrobras fecharam em queda de mais de 3% no Ibovespa, principal índice de ações da Bolsa de Valores de São Paulo. Em Nova York, devido à nova troca, as ações amanheceram, ontem, em queda de mais de 11% no pré-mercado. A recuperação e a valorização da Petrobras, que voltou a ser uma empresa muito lucrativa, estão atreladas à política de paridade internacional adotada em 2016, durante o governo Michel Temer.
O ex-presidente Lula endossa as críticas à política de preços da Petrobras, mas manifesta-se contra a privatização da empresa. Ontem, comentando a mudança no comando da empresa, sugeriu que Bolsonaro desvincule os custos dos combustíveis da cotação do dólar: “Ele pode fazer uma reunião com o Conselho Nacional de Política Energética, trazer a Petrobras para a mesa, trazer o conselho da Petrobras e decidir que o preço não será dolarizado, que nós não vamos pagar o preço internacional, nós vamos pagar o preço do custo da gasolina aqui no Brasil”, afirmou.
Lula também atacou a política de teto de gastos, resgatando a velha retórica contra os banqueiros e as elites do país: “Por que aprovaram teto de gastos? Porque os banqueiros são gananciosos. Eles exigiram que o governo garantisse o que eles têm direito de receber e tentaram criar problemas para investimento na Saúde, na Educação, na Ciência e Tecnologia”. Segundo o petista, “o teto de gastos foi uma forma de a elite econômica brasileira e que a elite política fez para evitar que o pobre tivesse aumento dos benefícios, das políticas sociais, da educação e da saúde para garantir que os banqueiros não deixem de receber as coisas que o governo deve para eles”.
Nas entrelinhas: A Ucrânia se tornou um novo Vietnã
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
A guerra da Ucrânia está sendo para a Rússia de Vladimir Putin o que o Vietnã representou para os Estados Unidos. É uma guerra por procuração, na qual o que existe de mais moderno em termos de guerra híbrida está sendo empregado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, contra as tropas russas invasoras. Se havia alguma dúvida quanto a isso, dois vazamentos de informações foram esclarecedores:
No primeiro, o Times revelou que “os EUA forneceram informações de inteligência a respeito de unidades russas que permitiram aos ucranianos localizar e matar muitos dos generais russos que morreram em ação na guerra da Ucrânia, de acordo com graduadas autoridades americanas”. No segundo, após uma reportagem da NBC News, o Times noticiou que os EUA “forneceram informações de inteligência que ajudaram as forças ucranianas a localizar e atacar” o Moskva, o principal navio de guerra da esquadra russa no Mar Negro, que, depois, naufragou.
Na época da guerra fria, o equilíbrio estratégico militar entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética permitia que direita e esquerda disputassem o poder nos seus respectivos países, sobretudo na Europa, por uma via democrática, exceto nas áreas de influência das duas potências. Na zona do agrião, como diria o comentarista de futebol João Saldanha, as duas potências entravam de sola: foi assim na Hungria e antiga Checoslováquia, invadidas pelas tropas do Pacto de Varsóvia; e na América Latina, onde as intervenções diretas e os golpes militares apoiados pelos Estados Unidos barraram a ascensão da esquerda durante quase toda a guerra fria. A “crise dos mísseis” em Cuba, a exceção, em 1962, quase levou o mundo à guerra nuclear.
A derrota americana no Vietnã foi o primeiro de uma série de eventos nos quais os Estados Unidos fracassaram, como na Revolução Iraniana e no Afeganistão. A derrota soviética nesse país pode ser considerada o sinal de que a desintegração da União Soviética estava mais próxima do que se imaginava, antes mesmo que a queda do Muro de Berlim. O colapso do chamado “socialismo real” deu aos Estados Unidos a hegemonia nesse novo mundo unipolar, no qual a globalização avançou protagonizada por políticas neoliberais e a Otan demonstrou seu poder de intervenção na Sérvia, no Iraque, na Líbia e no Afeganistão. A emergência da China como potência econômica, nas últimas duas décadas, porém, colocou essa hegemonia em xeque no plano econômico.
Derrota anunciada
A Rússia já está derrotada, moralmente e financeiramente. Ao afrontar a Organização do Tratado do Atlântico Norte, Putin pavimentou o caminho para sua expansão, inclusive para países tradicionalmente neutros, como a vizinha Finlândia e a Suécia. Os dois países participaram da reunião da Otan realizada ontem, na qual a Turquia retirou suas objeções à expansão do organismo. Com isso, a Rússia fica extremamente isolada no Mar Báltico. O problema é que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, está ficando sem opções que não sejam humilhantes. A guerra pode lhe custar o poder, a grande aposta de Biden e dos líderes europeus.
Biden mantém uma posição firme, mas também não sabe como sair da confrontação com a Rússia. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, trabalha para tornar a Ucrânia membro da Otan ou obter um pacto militar bilateral com os Estados Unidos. Ambos acreditam que a Ucrânia pode pôr os russos para correr. Putin fracassou no seu objetivo original: tomar Kiev e mudar o regime ucraniano; agora, corre o risco de fracassar na tentativa de controlar o antigo centro industrial da Ucrânia, a região do Donbass, cuja população tem origem russa em sua maioria, numa guerra mais longa e muito desgastante.
A distância entre Washington e Hanói é de 13.336 km; entre Kiev e Moscou, são apenas 775 km. A doutrina militar russa se baseia na profundidade do território e na guerra aeroespacial. Uma derrota na Ucrânia nem se compara à dos Estados Unidos no Vietnã. Putin tem duas possibilidades: jogar a toalha e bater em retirada, diante da resistência crescente do Exército ucraniano, armado e assessorado pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos, ou escalar a guerra convencional e destruir a Ucrânia, com consequências imprevisíveis, porque isso pode resultar numa intervenção direta da Otan, como aconteceu com a Sérvia. A diferença é que a Rússia tem um arsenal nuclear.
Em termos globais, há outros aspectos a serem considerados: (1) As sanções econômicas adotadas contra a Rússia utilizam com êxito toda a institucionalidade da economia mundial; (2) o Reino Unido pós-Brexit, fora da União Europeia, em aliança com os Estados Unidos, reafirmou sua hegemonia político-militar na Europa; (3) a Alemanha e a França perderam o protagonismo;(4) a guerra da Ucrânia também serve de advertência à China, em relação a Taiwan; (5) o pacto militar entre Estados Unidos, Reino Unido e Austrália e os acordos bilaterais da Austrália com o Japão e a Índia representam a expansão da Otan para o Indo-Pacífico, principal eixo do comercio mundial hegemonizado pela China.
Revista online | Veja lista de autores da edição 42 (Abril/2022)
*Marco Antonio Villa é o entrevistado especial da edição 42 da Revista Política Democrática online. é historiador, escritor e comentarista político brasileiro. Villa é bacharel e licenciado em história, mestre em sociologia e doutor em história social pela Universidade de São Paulo. É professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos.
*Luiz Sérgio Henrique é autor do artigo A frente democrática, aqui e agora. É tradutor e ensaísta.
*Vinicius Müller é autor do artigo Lições da Itália ao Brasil de 2022. É Doutor em História Econômica e membro do Conselho Curador da FAP.
*Lilia Lustosa é autora do artigo Oscar e a tentação das majors. É crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
*Ivan Alves Filho é autor do artigo Com Claude Lévi-Strauss: a arte plumária dos índios. É historiador e documentarista.
*Luiz Ricardo Cavalcante é autor do artigo Políticas de desenvolvimento regional no Brasil: entre a fragmentação e a resiliência das desigualdades. É consultor legislativo do Senado Federal e professor do Mestrado em Administração Pública do IDP.
*Arlindo Fernandes de Oliveira é autor do artigo Balanço do mês da janela partidária. É consultor do Senado e especialista em Direito Eleitoral.
*Henrique Brandão é autor do artigo 50 anos de alguns discos maravilhosos. É jornalista e escritor.
*Julia de Medeiros Braga é autora do artigo Política fiscal para a expansão energética. É economista e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).
*André Amado é autor do artigo Sherlock Holmes redivivo. É escritor, pesquisador, embaixador aposentado. É autor de diversos livros, entre eles, A História de Detetives e a Ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.
*Cleomar Almeida é autor da reportagem especial Guerra na Ucrânia coloca refugiados na via-crúcis pela vida. É graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.
A globalização continua
Luiz Sérgio Henriques* / O Estado de S. Paulo
Vozes econômicas influentes informam que a globalização, tal como a conhecemos desde o fim do bloco soviético, tem os dias contados. O colapso financeiro de 2008, a pandemia e, por último, a invasão da Ucrânia teriam fraturado a articulação dos mercados e causado a crise da segunda grande onda globalizante, assim como a Guerra de 1914 teria encerrado a primeira. A discussão econômica está em aberto, naturalmente, ainda que, do ponto de vista estritamente político, seja bem menos perceptível a diminuição da interdependência entre povos e nações.
Na política, tudo continua a se relacionar tanto quanto antes – ou talvez mais. O fracasso eleitoral da oposição unificada na Hungria, caso paradigmático de “democracia iliberal”, reverbera como advertência para nós, tão distantes daquele singularíssimo país. As eleições francesas colocam novamente em confronto, repetindo o cenário de 2017, o centro liberal-democrático de Macron e a extrema-direita de Le Pen. E nem é bom imaginar o efeito de eventual mudança de rumos na política francesa, que corroeria a unificação europeia e sinalizaria o revigoramento da “Internacional de nacionalismos”, um dos muitos oxímoros que nos atormentam nestes tempos confusos.
Os nacionalismos em questão articulam-se em rede, trocam experiências, auxiliam-se mutuamente sem constrangimento. Não se limitam a proclamar, fechados em si mesmos, que cada uma das respectivas nações de referência deve vir “em primeiro lugar” ou “acima de tudo” – e acompanhada por alguma versão pré-moderna de um Deus “acima de todos”.
A inter-relação tem se imposto desde os triunfos inaugurais do moderno nacional-populismo com o Brexit e a eleição de Donald Trump. O fluxo planejado de desinformação, possivelmente gestado ainda na era soviética, esteve presente nestes dois acontecimentos e em muitos outros, acirrando ressentimentos e explorando situações inéditas, como a fragmentação das velhas classes sociais e a emergência de uma “sociedade dos indivíduos”, na expressão de Pierre Rosanvallon. Nada faz supor que tal fluxo se detenha em eleições futuras, inclusive na brasileira, e só este fato deveria servir como segunda e poderosa advertência.
Nunca é muito claro o exato momento em que uma “democracia iliberal” se despe de ornamentos e assume as feições de uma autocracia ou, para usar linguagem mais direta, de uma ditadura. E nem sempre lhe será possível, adequado ou conveniente apresentar-se como tal. O fato é que os nativistas aprenderam, ao menos em parte, a lição da hegemonia, empregando recursos que permitem dar uma orientação a amplos setores desnorteados com a velocidade das transformações em curso.
O nacionalismo autoritário sempre provê uma comunidade ilusória, permanentemente mobilizada contra os mais fracos e os “diferentes”. Às vésperas do fascismo clássico, há pouco mais de cem anos, espalhava-se a fantasia da “nação proletária” injustamente explorada pelas demais. Enquanto lutava pela sua parte no butim colonial, tal nação devia unir-se compactamente, calando as discrepâncias internas mediante a fruição do trabalho dos “povos inferiores”. Hoje, o populismo recorre demagogicamente a uma suposta defesa dos “perdedores da globalização”, investindo contra os imigrantes e tentando herdar os eleitores da esquerda clássica. O que não muda, em circunstâncias tão distintas, são o culto do homem providencial (Marine Le Pen é, aqui, uma exceção) e a consequente compressão da vida democrática.
Esta compressão apresenta-se com toda a nitidez no exemplo-limite da Rússia de Vladimir Putin, na qual o Estado aparece quase inteiramente como pura força. O plurissecular passado despótico – seja o dos czares, seja o do comunismo stalinista – constitui o repertório no qual se buscam as razões últimas do poder autocrático. A bem da verdade, o bolchevismo original é alvo da ideologia eslavófila de Putin, pois nele ainda pulsa uma ligação com o Iluminismo e a cultura ocidental, não obstante o radicalismo jacobino que o levaria à perdição. Internamente, por isso, o Estado de Putin se apoia no controle repressivo da sociedade civil; externamente, na guerra, em particular nas suas modalidades mais destrutivas, o que vemos a cada dia, com horror, na agressão à Ucrânia.
Recorrendo à lição hegemônica ou valendo-se da força, ou, ainda, empregando uma mistura de ambas, o nacionalismo populista é a grande ameaça atual à comunidade das nações democráticas. A estas últimas, também abaladas em seu interior por forças e personalidades autoritárias, não convém ostentar nenhum tipo de húbris ou vocação missionária. Elas podem regredir pavorosamente, bastando lembrar o assalto ao Capitólio e o mau exemplo semeado. Como indivíduos, para seguir viagem em meio às ondas tempestuosas da unificação do gênero humano, temos à disposição o cultivo do “instinto de nacionalidade”, na forma de lealdade à Constituição, e o aprofundamento da condição de cidadãos do mundo, envolvidos inexoravelmente em cada avanço e em cada recuo das nossas sociedades.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
(Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, em 17 de abril de 2022)