TSE

Pablo Ortellado: O bolsonarismo interpreta 2013

Protestos contra Dilma, a crise do governo Temer e a eleição de Bolsonaro seriam a expressão da outra metade das reivindicações

Pablo Ortellado / O Globo

Estreou em São Paulo o filme “Nem tudo se desfaz”, de Josias Teófilo. É uma leitura equivocada, porém muito interessante e reveladora, da história brasileira recente, ligando os protestos de junho de 2013, o impeachment de Dilma Rousseff, a crise do governo Temer e a eleição de Jair Bolsonaro.

Em 1985, Luc Ferry e Alain Renaut publicaram “O pensamento 1968”, que apresentava os protestos de maio de 1968 na França como um avanço do individualismo e as obras de Foucault, Derrida, Bourdieu e Lacan como expressão desse movimento. O filósofo Cornelius Castoriadis, que participou dos protestos, se indignou com a “ligação falaciosa” entre as manifestações e as obras de autores que “lhes eram completamente estrangeiras” e se surpreendeu como, passados poucos anos, com os protagonistas ainda vivos, um evento político de grande magnitude podia ser apresentado como seu oposto.

Algo assim aconteceu também com junho de 2013. Não deveria haver controvérsia sobre o que pediam os protestos. Diferentes pesquisas de opinião investigaram os manifestantes e encontraram sempre dois conjuntos de reivindicações simultâneas: de um lado, reivindicações sociais — transporte, educação e saúde; de outro, o combate à corrupção.

No filme, pouco se diz sobre as demandas sociais. Quando aparecem, são tratadas como uma ilusão, uma expectativa ingênua de que se cumprissem promessas vazias dos constituintes de 1988 — como se o SUS e a universalização da educação básica não tivessem sido implementados após 1988 e como se a cidadania não pudesse aspirar a direitos sociais ainda mais amplos.

Os protestos contra Dilma, a crise do governo Temer e a eleição de Bolsonaro seriam a expressão da outra metade das reivindicações, que o filme apresenta como as reivindicações que tiveram consequências reais, se esquecendo da redução das tarifas de transporte, das greves de 2013-2014 e das ocupações de escolas de 2015-2016.

Na verdade, ao olhar apenas para metade do conteúdo reivindicativo de junho de 2013, o filme reproduz a dinâmica da polarização que consistiu em os estratos de esquerda e de direita da classe política subordinarem o levante selvagem da sociedade civil, dividindo as demandas, jogando uma contra a outra, como se, para ser anticorrupção, fosse necessário ser contra as pautas sociais na figura de um Estado grande e, para defender a ampliação de direitos sociais, fosse necessário ser contra o combate à corrupção. A potente mobilização de uma sociedade civil contra a classe política se transforma assim no conflito fratricida entre lulistas e bolsonaristas.

Apesar de fazer uma leitura bolsonarista, que liga sem mediações adequadas junho de 2013 às eleições de 2018, o filme joga muita luz sobre a ascensão de Bolsonaro.

Seus momentos mais reveladores são quando apresenta as guerras culturais como uma luta populista contra o elitismo dos progressistas, quando mostra o caráter contracultural do politicamente incorreto e quando apresenta a centralidade da comunicação digital para a ascensão da nova direita. Por esses motivos, é um filme que merece ser visto.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/o-bolsonarismo-interpreta-2013.html


Ascânio Seleme: Casa dos horrores

No Brasil, Prevent Senior parece apenas mais um caso dos muitos que já foram banalizados pelo dia a dia de uma terra sem lei

Ascanio Seleme / O Globo

Coma exceção do Afeganistão e talvez da Síria, que têm problemas mais urgentes e tenebrosos, todos os países do mundo tratariam como escândalo espantoso um episódio como o da Prevent Senior. Não apenas porque a prestadora de serviços de saúde ministrou remédios sem eficácia a seus pacientes, mas porque usou parte da sua clientela, velha e indefesa, para fazer testes e experiências que resultaram na morte de pessoas. No Brasil, parece apenas mais um caso dos muitos que já foram banalizados pelo dia a dia de uma terra sem lei.

Os dados até aqui revelados pelos repórteres Ana Clara Costa e Guilherme Balza não deixam margem para dúvida, a Prevent Senior agiu deliberadamente de maneira criminosa e odienta. Desrespeitou o direito dos pacientes e seus familiares, não cumpriu com o seu dever profissional, moral e ético, omitiu ou fraudou informações e mentiu. O pacote de absurdos praticados por orientação expressa dos dirigentes da empresa, que alguns médicos se recusaram a obedecer, precisa ser ainda esmiuçado e em seguida seus responsáveis punidos com toda a extensão e com o absoluto rigor da lei.

Além de matar pacientes, as orientações dadas aos funcionários da Prevent Senior serviriam também para esculachar os doentes com experimentos sem qualquer apoio científico e sem autorização formal de pacientes, famílias ou entidades que regulam o setor, como a Anvisa. A empresa diz que a orientação era dos médicos, não do seu corpo administrativo. Mentira. As reportagens mostram o contrário. Há casos, já fartamente documentados, de clientes da Prevent Senior que ligavam para a empresa para relatar casos de Covid e recebiam em casa horas depois, sem pedir, kits de cloroquina, ivermectina e outras drogas comprovadamente ineficientes no combate à doença.

O Hospital Sancta Maggiore, da Prevent Senior, em São Paulo, virou uma casa de horrores. Pacientes, todos idosos, porque a empresa como o nome diz trata exclusivamente de seniores, foram tratados até a eclosão do escândalo como cobaias de experiências macabras. Se fosse um filme, você diria que o roteirista exagerou. Exagerou tanto que colocou dentro do hospital três personagens que se somaram ao esforço do gabinete paralelo do presidente Jair Bolsonaro para enfrentar a Covid por meios ineficazes. Estavam lá os médicos Nise Yamagushi e Anthony Wong e o empresário travestido de periquito Luciano Hang.

Nise, que se sentiu ofendida ao ser contestada na CPI da Covid, andou pelo Sancta Maggiore fazendo a interface do gabinete paralelo com a Prevent Senior. Wong, que como Nise pregava o tratamento precoce, morreu naquele hospital bombardeado pelo pacote completo de remédios ineficientes. Até ozônio pela via retal foi administrada em Wong enquanto ele estava desacordado num leito de UTI pouco antes de morrer. Hang levou para a casa de horrores a sua mãe, que obviamente morreu com tratamento inadequado.

O milionário, que poderia ter levado a genitora para se tratar no Einstein ou no Sírio Libanês, preferiu usar os serviços da Prevent Senior, possivelmente orientando por Nise ou outro membro do gabinete paralelo. Quando o caso se tornou público, Hang emitiu uma nota reclamando da “maldade humana” pelo que chamou de desrespeito com a sua mãe. Nenhuma palavra sobre a omissão da Covid no atestado de óbito da senhora que, como no de Wong, constavam diversas causas e nenhuma menção ao que a levou a ser internada.

Hang também nada disse sobre a continuada exploração do cadáver da mãe por ele próprio, que fez um vídeo para tratar disso e afirmou que ela poderia ter sobrevivido se tivesse tido “tratamento precoce”, levantando um cartaz com esses dizeres. Pior é que a pobre senhora foi submetida a toda a bateria de remédios do kit Covid da Prevent Senior. Até ozônio foi ministrado a ela. O empresário lamenta que não foi preventivo e não conseguiu salvar a vida da mãe. Mas, como disse o presidente que ele tanto mitifica numa entrevista a ativistas alemães de extrema-direita, a maior parte dos óbitos foi de pessoas com comorbidade que “apenas tiveram suas vidas encurtadas em alguns dias ou semanas”.

De volta em 2026

O maior equívoco da vida pública nacional pode dizer adeus temporariamente à política no ano que vem? Muita gente que circunda Jair Bolsonaro tem dito que ele pode não se candidatar à reeleição em 2022. O quadro ainda está sendo desenhado, mas a hipótese é bem concreta caso se confirme a inviabilidade da sua candidatura, já detectada por pesquisas. Neste caso, ele poderia dizer estar apenas cumprindo promessa de campanha. O Centrão até já se posicionou, sugerindo que poderia blindar a ele e seus filhos no Congresso para não serem punidos pelos crimes que cometeram. Como pacote adicional, Bolsonaro encaminharia ao Congresso uma PEC acabando com o instituto da reeleição. Neste caso, poderia voltar em 2026 sem ter de enfrentar um presidente no cargo.

Basta?

A saída do cenário de Bolsonaro bastaria? Não, não bastaria. Ele precisa ser julgado e condenado pelos inúmeros crimes que já cometeu e pelos que ainda vai cometer até deixar o Palácio do Planalto. Nem o impeachment sozinho seria suficiente para que o Brasil mostre ao mundo, depois da passagem grosseira do presidente Sujismundo e de sua comitiva por Nova York, que o seu maior dano histórico foi reparado.

Senado progressista

O Senado sempre foi a casa conservadora do Congresso Nacional, cabendo à Câmara um perfil um pouco mais (não muito) progressista. Esses papéis se inverteram desde a posse de Arthur Lira e a implantação da sua pauta para lá de heterodoxa. A Câmara virou um feudo do que há de mais retrógrado na política e o Senado passou a exercer a função de reparador de estragos produzidos pelos deputados. Foi o que aconteceu com a PEC da reforma política, com a revogação da permissão dada pela Câmara para as coligações em eleições legislativas. Por isso, aliás, Rodrigo Pacheco é pré-candidato a presidente. Já Lira...

Uma vez fantasma...

Como revelou o repórter Felipe Bachtold, a mulher do presidente da Câmara, Arthur Lira, denunciada como funcionária fantasma quando era empregada da Assembleia Legislativa de Alagoas, foi nomeada em julho secretária-adjunta da representação estadual do governo de Roraima em Brasília. No escritório, ninguém sabe dizer se aex-fantasma Angela Lira tem aparecido para trabalhar. Nem porque uma alagoana que mal conhece Roraima virou representante do estado na capital federal.

O que é pior?

O que parece mais patético: o deputado zerinho dizer que o prefeito de Nova York é marxista e os EUA podem se tornar uma grande Venezuela ou o apresentador Tucker Carlson, da Fox News, fazer ar sério e assustado como se estivesse ouvindo uma revelação?

Melhor calar

Não havia hora melhor para ficar calado, mas o vice Hamilton Mourão é daqueles que não pode ver uma geladeira aberta, acha que é flash de TV e começa a falar. Ao defender o machismo de Wagner do Rosário, dizendo ser normal as pessoas eventualmente darem uma aloprada, Mourão mostrou o que mesmo velhos oficiais aprendem na caserna.

Medalhas

Depois que a Assembleia Legislativa de São Paulo resolveu criar a medalha Erasmo Dias de Segurança Pública, vale avaliar se não cabem também a medalha Brilhante Ustra de Interrogatório Policial e a medalha Newton Cruz de Pacificação das Vias Públicas. Da mesma forma, pode-se pensar na medalha Jair Bolsonaro de Respeito aos Valores Democráticos.

Fenaj X Google

A presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, a Zequinha, quer criar uma taxa progressiva a ser cobrada de plataformas digitais como Google, Facebook e Amazon para formar um fundo que promoveria o “jornalismo de qualidade” no Brasil.

Ir à igreja

Pesquisa da Bateiah Estratégia e Reputação revela que as pessoas estão ansiosas para a pandemia passar para poder, veja só, ir à igreja. A sondagem, que ouviu 1.455 pessoas em todo o país, mostra que 26,2% pretendem prioritariamente voltar aos seus templos quando a pandemia cessar. Outros 17,8% querem fazer turismo, enquanto 14,5% estão loucos para voltar a bater perna nos centros populares de comércio; 11,1% querem ir a restaurantes; 9,5% sonham em voltar para as academias de ginástica; e 8,7% querem retomar sua agenda cultural indo a teatros e a shows.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/casa-dos-horrores-25212355


Oscar Vilhena Vieira: Legalizando a devastação ambiental

Presidente e seus auxiliares não poupam esforços para bloquear administrativamente a ação dos órgãos de monitoramento e proteção ambiental

Oscar Vilhena Vieira / Folha de S. Paulo

Como era esperado, o pronunciamento de Jair Bolsonaro na abertura da 76ª Assembleia Geral da ONU, na última terça-feira (21), foi constrangedor. Maquiou dados sobre desmatamento e queimadas, mentiu sobre a corrupção, gabou-se de um inexistente sucesso econômico, além de se auto incriminar pelo apoio ao “tratamento precoce”.

Causaram surpresa, entretanto, os elogios à legislação ambiental brasileira, que “deveria servir de exemplo para outros países”, posto que o presidente e seus auxiliares não têm poupado esforços para bloquear administrativamente a ação dos órgãos de monitoramento e proteção ambiental. Com a chegada de Arthur Lira à presidência da Câmara dos Deputados, o presidente finalmente parece ter encontrado um braço forte disposto a legalizar o que a “exemplar” legislação brasileira hoje considera ilegal.

Entre os projetos de lei com maior potencial de erosão dos direitos socioambientais destacam-se o PL 2633, que trata da regularização fundiária, e o PL 490, voltado a alterar o processo de demarcação de terras indígenas e a imposição de um marco temporal. Ambos atendem predominantemente a interesses da grilagem, do desmatamento e da mineração ilegais.


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O PL 3729, por sua vez, flexibiliza o licenciamento ambiental, que é uma ferramenta indispensável a um processo sustentável de desenvolvimento, prevenindo desastres ambientais e a transferência às gerações futuras de atividades econômicas presentes. O objetivo original da proposta apresentada em 2004 era unificar a legislação, garantindo maior segurança jurídica, eficiência e agilidade ao licenciamento ambiental.

O texto aprovado pela Câmara e preste a ser analisado pelo Senado Federal vai, no entanto, na direção oposta daquilo que o Brasil precisa. Dispensou o licenciamento ambiental para diversas atividades potencialmente causadoras de degradação ambiental. Para a maioria das atividades licenciáveis, o projeto criou a Licença por Adesão e Compromisso, mecanismo meramente declaratório que, na prática, esvazia a noção de avaliação ambiental, transformando o auto licenciamento em regra e não mais exceção.

Órgãos públicos ligados à preservação ambiental e patrimonial, como o ICMBio, Funai e Iphan perdem espaço no licenciamento ambiental. Na pior tradição brasileira o projeto premia quem descumpriu a lei, isentando de responsabilidade empreendimentos que já operam sem licença ambiental válida, que deverão apenas solicitar um Licenciamento Ambiental Corretivo. Também isenta de responsabilidade instituições de financiamento, como bancos, pelos eventuais danos socioambientais causados pelos empreendimentos que apoiaram.

A OCDE, em relatório lançado em julho, apontou que a política ambiental brasileira já deixa a desejar: dos 48 requisitos legais analisados pela organização, o Brasil foi considerado como total ou parcialmente desalinhado em 29, ou seja, em 60% do total. Caso o PL 3729 seja aprovado, tal como está, o Brasil perderá ainda mais espaço na luta por investimentos e credibilidade internacional. Também testemunharemos mais desastres ambientais, desmatamento na Amazônia e violações aos direitos humanos.


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Cabe ao Senado Federal evitar que mais esse ataque ao nosso sistema de proteção ambiental se consume, se não por respeito ao bem-estar das futuras gerações, ao menos pelo interesse estratégico do Brasil de se reinserir numa posição de liderança num contexto internacional cada vez mais exigente em termos ambientais e climáticos.​

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/oscarvilhenavieira/2021/09/legalizando-a-devastacao-ambiental-no-brasil.shtml


Murillo de Aragão: Ninguém manda no Brasil

Somos uma sociedade plural onde atuam diversos polos de poder

Murillo de Aragão / Revista Veja

As turbulências institucionais recentes provocaram temores no país quanto a potenciais rupturas e episódios de violência. No desenrolar dos acontecimentos, o presidente do STF, Luiz Fux, apresentou um cartão amarelo com tons de laranja que precipitou uma série de embaixadas entre atores políticos relevantes. O dito ficou pelo não entendido ou pelo mal-entendido.

Uma reflexão acerca dos episódios de 7 de setembro nos leva a uma questão essencial para entender o Brasil: quem, de fato, manda no país? A resposta não é fácil nem pacífica. Isso porque aqui há setores que mandam, mas não parecem mandar; e outros que pensam mandar, mas não mandam. Além do mais, o próprio conceito de “mando” é frágil.

Começando de trás para a frente e respondendo à indagação, digo que ninguém manda no Brasil. O país, como um organismo vivo, reage e atua com base em dezenas de inputs que levam a decisões que, por sua vez, são influenciadas pelos eventos. Sendo organismo vivo, temos inúmeros atores no jogo político.

E, como sempre, os fatos geram repercussões que se refletem no processo político, numa espécie de moto contínuo. Por exemplo, o acirramento das invasões de fazendas estimulou a organização da União Democrática Ruralista, entidade de proprietários que, por sua vez, foi essencial para a criação da poderosa bancada ruralista. Não há tema relevante aprovado no Congresso Nacional sem as digitais do agro.

“Nossas instituições funcionam com pesos e contrapesos para conter exageros, arroubos e bravatas”

O entrechoque de forças sociais move a política, bem como as idiossincrasias, as crenças, as expectativas e as narrativas que circulam, historicamente, país afora. Para entender por que ninguém manda no Brasil e por que o processo político é resultante do embate com múltiplos atores, devemos seguir um breve roteiro de esclarecimentos.

Somos uma sociedade plural com diversos polos de poder, seja no universo público, seja no privado. Os campos de disputa política não afloram só em período de eleições. Prosseguem cotidianamente no Congresso, na mídia, no Judiciário, no mercado e suas expressões (bolsa, câmbio e juros futuros), no empresariado, nos trabalhadores, nas organizações não governamentais, nas redes sociais e, eventualmente, nas ruas. Apesar do intenso bombardeio ideológico do século XX, a maioria dos polos de disputa política se expandiu em torno de agendas de interesses específicos em uma luta por privilégios e poder.

A quantidade de polos de poder político e de campos de disputa multiplica os lugares de fala e dificulta a construção de narrativas hegemônicas. A própria construção de consensos é dolorosa, tanto para aperfeiçoamentos quanto para retrocessos. Nossas instituições, como nos acontecimentos de 7 de setembro, funcionam com pesos e contrapesos para conter exageros, arroubos e bravatas.

Em 2023, seja lá quem for o presidente eleito, o quadro institucional prosseguirá o mesmo. E ninguém, de forma isolada, mandará no Brasil nem romperá o equilíbrio “desequilibrado” entre as suas instituições. Prosseguiremos como um regime semiparlamentarista com forte influência do Judiciário, descobrindo-se como federação e com múltiplos atores brigando por espaço e influência no processo político.

Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757

Fonte: Veja
https://veja.abril.com.br/blog/murillo-de-aragao/ninguem-manda-no-brasil/


Marco Aurélio Nogueira: Crises, transformações, pesadelos

Democratas têm de saber usar a inteligência política para desenhar um caminho unitário

Marco Aurélio Nogueira / O Estado de S. Paulo

Há muito mais coisas no ar além dos tiranos de plantão. Eles perturbam porque são um subproduto delas. Sobrevivem porque manipulam os medos.

A nossa é uma época de transformações rápidas e profundas, que tumultuam o modo como vivemos. As mudanças fazem com que tudo pareça solto no ar, como se faltasse um centro de gravidade. As crises se sucedem, varrendo o que está instituído. É outro capitalismo, outro modo de trabalhar, outros padrões de família, outra escola, e assim por diante.

Os cidadãos, compreensivelmente, ficam atônitos. Carecem de referências e portos seguros onde ancorar. Frustrados por não conseguirem conquistar o que lhes é prometido, afastam-se de governos, partidos e políticos, responsabilizando-os pelo que não recebem, seja como direitos, seja como bens e serviços.

O estado de espírito coletivo passa a desconfiar da democracia, muitas vezes atacando-a como desnecessária ou prejudicial. O povo fica contra a democracia, escreveu Yascha Mounk. As pessoas têm raiva e pressa, o sistema democrático é lento e não inclui as grandes massas. As redes sociais canalizam essa miríade de vozes ressentidas. A democracia representativa entra em estado de sofrimento.

Ao mesmo tempo, crescem as lutas por identidade e reconhecimento, que projetam novos patamares de direitos, mas também criam mais fragmentação e complicam as unificações necessárias. Os partidos políticos não sabem como tratar os impulsos identitários, os novos grupos, temas e expectativas. Abre-se uma rachadura na política, por onde escapam sentimentos e emoções, que ficam disponíveis. Evapora-se a agenda reformadora. Os democratas se desorientam, os autoritários ganham terreno.

Todo este processo transcorre molecularmente, deixando pegadas no chão da vida. Quando menos se espera, produzem-se estrondos que lançam as pessoas às ruas, como a anunciar rupturas iminentes. Foi assim em 2013, no Brasil, quando o estrondo polifônico deixou evidente que nada mais poderia ser pensado como antes. O sistema político, porém, não ouviu as palavras, não decodificou a mensagem.

Aumentaram, então, as atitudes “antissistêmicas” radicalizadas, que dizem o que não aceitam sem saber o que pretendem ou como realizar os desejos. A frustração permanece pulsando e muitos saem em busca de salvadores, que se agigantam quanto mais se apresentam como portadores de uma purificação geral. Entram em cena tiranos e autocratas de um novo tipo, que ora surgem como extremistas, ora como populistas, ora como xamãs prontos para produzir milagres com suas feitiçarias e beberagens.

Há de tudo entre eles. Tecnocratas, militares, empresários, cantores, parlamentares inexpressivos. Apresentam-se como conservadores honestos, tementes a Deus, defensores da família; prometem recriar a democracia de modo “iliberal”, para que o povo tenha mais voz. Muitos são caricatos. No início, são tratados com arrogância e subestimados pelos democratas, que não levam a sério as “narrativas” tecidas para manipular os descontentes.

Numa articulação global, o extremismo de direita sai das catacumbas em que se enfurnava para anunciar uma “nova política”, livre de comunistas, liberais, imigrantes, pobres, refugiados, gente tratada como detrito.

Os “salvadores” se distinguem pelo destempero, pelo negacionismo, pela busca de polarizações artificiais com que procuram manter as sociedades em estado de guerra permanente. Inventam problemas, criam realidades paralelas nas quais a desordem imperaria, o povo estaria acuado, clamando por armas e resgate. São líderes sem estofo, péssimos governantes. Sobrevivem à custa de expedientes bélicos, falseamentos e mentiras, que despejam incessantemente sobre a opinião pública. Vão, assim, ocultando sua incompetência e pescando incautos nas águas sujas que derramam na vida.

No Brasil, em particular, este tipo de líder tem sua hierarquia. Há muitos chefes, chefetes e militantes, mas somente um Mito. O movimento se espalha, incorpora elites sem orgulho próprio, vazias de ambições cívicas. Como um Duce fascista falsificado, o Mito recusa-se a governar: sua essência é o combate, seu desejo é a ditadura, sua intenção é criar confusão. Sustenta-se no espanto social, no amorfismo ideológico da população, na desorientação impulsionada pela desunião dos democratas, no ativismo boçalizado da extrema-direita. Estigmatiza adversários para assustar eleitores e ascender.

A pobreza, as desigualdades, o desemprego, a pandemia, a inflação que retorna complicam sua situação, mas não ajudam a oposição. A imagem do Mito esfarela.

Há resistência nas instituições (STF, TSE), na grande mídia, nos partidos democráticos, em crescentes setores da sociedade civil. A Câmara dos Deputados, sob pressão, atua com excessivo fisiologismo. Os pesadelos se repetem, noite após noite, à espera do raiar de um novo dia, que virá na medida em que os democratas souberem usar a inteligência política para desenharem o caminho unitário que os projetará como construtores do futuro.

*Professor de Teoria Política da Unesp

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,crises-transformacoes-pesadelos,70003849686


Marcus Pestana: Nem golpe, nem impeachment

Governar não é fácil. É fazer escolhas. Na democracia, muitas vezes a política resvala na demagogia

Marcus Pestana / O Tempo

Desde que me entendo por gente, assisti a inúmeros debates e palestras. Sempre me incomodou a figura retórica de certos oradores que começavam com a frase: “O Brasil vive a pior crise da sua história”. Era claramente um artifício para valorizar a fala. O Brasil viveu diversas crises graves. O suicídio de Vargas, a renúncia de Jânio Quadros, o golpe de 64, as moratórias externas, a hiperinflação, recessões profundas, dois impeachments, entre outras. Fato é, que estamos mergulhados numa crise complexa e multifacetada.

Governar não é fácil. É fazer escolhas. Na democracia, muitas vezes a política resvala na demagogia. Mas, ou se enfrenta os problemas ou a demagogia vai cobrar um alto preço em algum momento futuro. Como disse Montesquieu: “O político deve sempre buscar a aprovação, porém jamais o aplauso”. A legitimação do poder só é duradoura se os resultados aparecem e a realidade avança. A democracia gera o famoso sistema de freios e contrapesos como antídoto aos abusos de poder. Como afirmou o líder conservador irlandês, Edmond Burke: “Quanto maior é o poder, tanto mais perigoso é o abuso”.

Muita discussão houve sobre a máxima de Bismarck: “A política é a arte do possível”. Será? Ou será a arte de fazer possível o necessário? Ou até mesmo um dos lemas do maio de 68 na França: “Sejamos realistas, peçamos o impossível”? Independente disso, a política é o único instrumento capaz de mudar o mundo e a vida. Para avançar é preciso construir apoios majoritários. Assistimos, no Brasil, a dificuldade imensa de aprovação de reformas tributária e administrativa que mereçam o nome. Também, com 24 partidos representados no Congresso e uma dispersão disfuncional, onde o maior partido tem apenas pouco mais de 50 deputados. Hoje não há maioria e minoria organizadas no Congresso e a política, que avança na relação dialética entre cooperação e conflito, se caracteriza pela predominância quase absoluta do conflito, ditado pelo estilo de governar de Bolsonaro.

No último 7 de setembro pairou um clima de golpe. Especulações, temores, ameaças dominaram a cena. O golpe não veio. O apoio popular à uma virada de mesa alcançaria no máximo 10% da população. Não houve sustentação das Forças Armadas ou das forças policiais. O recuo foi rápido através de nota do Presidente, aconselhado por Michel Temer. A poeira baixou, uma tranquilidade provisória se instalou, e é possível afirmar que não haverá golpe.

Por outro lado, forças oposicionistas apontam o caminho do impedimento do Presidente da República. Embora crimes de responsabilidade tenham sido cometidos, duas outras pré-condições para um afastamento não estão dadas: mobilização social e maioria parlamentar. Lula e o PT não têm interesse no impeachment. Muito menos o chamado “Centrão”, que constituí a base parlamentar do governo e se instalou no coração do poder. Um terceiro impeachment seria traumático. Portanto, é possível vislumbrar que não haverá impeachment.

Daqui a dez meses, a sucessão presidencial estará nas ruas, com os candidatos escolhidos pelas convenções partidárias. Tudo indica que teremos escaramuças, novas tensões, instabilidade permanente e a crise permanecerá irresolvida. A solução virá do pronunciamento soberano do cidadão brasileiro nas urnas, eletrônicas. Felizmente, a democracia será o caminho de superação da presente crise.     

*Presidente do Conselho Curador ITV – Instituto Teotônio Vilela (PSDB)

Fonte: O Tempo
https://www.otempo.com.br/opiniao/marcus-pestana/nem-golpe-nem-impeachment-1.2546633


Eliane Brum: Como funciona o golpe de Bolsonaro

Não é necessário fechar nada, basta esvaziar as instituições e tornar a democracia irrelevante

Eliane Brum / El País

No golpe de Jair Bolsonaro, as instituições seguem funcionando sem funcionar contra ele. Uma Suprema Corte que, em vez de cumprir a Constituição quando o presidente a afronta em praça pública, faz mais um discurso. Uma Câmara de Deputados cujo presidente, Arthur Lira, está sentado sobre 130 pedidos de impeachment porque Bolsonaro garante a ele e a sua turma dinheiro público à vontade. Uma Procuradoria-Geral da República cujo procurador-geral, Augusto Aras, é um colaboracionista que espera ser premiado por Bolsonaro com uma cadeira no Supremo. Para que ter o trabalho de promover cenas de golpe clássico, que chamam a atenção do mundo, se é mais efetivo contar com a covardia de uns e a corrupção de outros?

O golpe usado por Bolsonaro desde que assumiu o poder, em 2019, é o da corrosão por dentro. Bem semelhante ao que sua base na Amazônia fazia ao desmatar a floresta quando ainda havia fiscalização. Em vez de fazer o que se chama de corte raso, aquele em que tudo é derrubado e vira terra arrasada —um similar aos tanques nas ruas ou aos caminhões arrebentando as portas do Supremo Tribunal Federal—, a opção é derrubar apenas as árvores nobres e manter a cobertura florestal intacta na aparência. Quem olha por cima, de um helicóptero, por exemplo, ou de uma aeronave pequena, só enxerga verde, mas por baixo a floresta está totalmente degradada. Ou, usando um exemplo urbano, mais familiar à maioria, Bolsonaro está fazendo da democracia o mesmo que acontece com alguns prédios antigos, em que a fachada neoclássica é mantida, mas o miolo foi colocado abaixo.

Bolsonaro já tinha aplicado estratégia semelhante com o Ministério do Meio Ambiente. Antes de assumir o poder, em 2018, lançou a notícia de que seu Governo não teria Ministério do Meio Ambiente. Era uma espécie de boi de piranha. Protestos surgiram de todos os lados. Ele então manteve o ministério, simulando acatar o clamor global, e colocou como ministro Ricardo Salles, um condenado por crime ambiental que promoveu a maior devassa da história da pasta, responsável pelo aumento do desmatamento e dos fogos na Amazônia. O mesmo acontece agora. Bolsonaro incita seus seguidores a se insurgir contra as instituições e especialmente contra o Supremo, mas descobre que vale mais a pena deixar funcionando o que não funciona contra ele.

Se em plena avenida Paulista, em manifestação convocada por ele no feriado de 7 de Setembro, Bolsonaro afirmou que não cumpriria decisões do Supremo Tribunal Federal e saiu impune, as instituições já dobraram os joelhos. Discurso “duro”, como fez Luiz Fux, o presidente do Supremo que depois andou por aí confraternizando com empresários golpistas, qualquer um faz. Eu mesma faço facilmente. Do Supremo se espera que faça valer a Constituição. Se não faz, já era. Bolsonaro testou e venceu. Rasgou a Constituição na Paulista e nada aconteceu. Mais uma vez, Bolsonaro pôde contar com a impunidade que o tornou presidente apesar de sua longa sequência de crimes contra o país.


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Tem muita gente empenhada em dar uma aparência decente ao que aconteceu no pós-7 de Setembro. Mas o que aconteceu foi um golpe na democracia e uma vergonha do tipo vexame máximo. De uma Câmara de Deputados liderada por Arthur Lira, que vai chantagear Bolsonaro com o impeachment até não sobrar um real nos cofres públicos, nada se esperava. De Augusto Aras, o envergonhador-geral da República, também já nada se espera. Pelo menos não enquanto ele achar que tem chance de ser recompensado com uma cadeira no STF por sua traição aos princípios que criaram o Ministério Público Federal.

A tragédia que conta a destruição de uma democracia que nunca chegou aos mais pobres ganhou tons de comédia com a carta assinada por Bolsonaro dias depois, mas escrita pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), aquele que, por sua vez, deu o golpe em Dilma Rousseff (PT). Na carta, Bolsonaro-Temer, a nova criatura missivista, dizia mais ou menos o seguinte: “Desculpa aí, pessoal. Me empolguei”.

Ávidos por seguir lucrando com Bolsonaro, políticos e empresários concluíram ao ler a carta que o presidente tinha subitamente se convertido em estadista. A maior parte dessa gente que chamam de “PIB do Brasil” são uns cretinos tão sem caráter que não consegui encontrar nenhuma palavra disponível no dicionário capaz de abarcar a grandiosidade de sua decadência. E, assim, no último domingo, uma manifestação de oposição botou apenas 6.000 pessoas na mesma avenida em que Bolsonaro tinha colocado 125.000 dias antes. Organizada pela direita e por aqueles que decidiram que agora são centro, grandes responsáveis pela ascensão de Bolsonaro ao poder, o protesto foi boicotado pelo PT, partido de Lula, e pela maior parte da esquerda. Resultado: não vingou, e os bolsonaristas rolaram de rir, no que não lhes tiro a razão. O presidente rasga a Constituição e toda a oposição que o Brasil consegue colocar nas ruas na primeira manifestação de oposição que se segue, e isso na maior cidade do país, são 6.000 gatos pingados.

É duro para a esquerda apoiar movimentos de direita que lideraram as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff . No caso da milícia digital chamada Movimento Brasil Livre, que no momento tenta fazer um greenwashing, é ainda mais difícil, já que o MBL destruiu reputações usando fake news, fechou exposições de arte e colocou artistas em risco de vida ao usá-los para açular seus seguidores. É duro, mas é o que temos para o momento. Sem o impeachment de Bolsonaro, não há nem como discutir divergências de fundo —ou mesmo de raso. Todo o noticiário, as ações e os debates públicos e privados foram sequestrados pelo bolsonarismo. Nada de importante se faz ou se discute no país desde que ele assumiu e, principalmente, neste último ano. Mas a destruição da legislação ambiental e dos direitos humanos e trabalhistas, ao contrário, avança velozmente.

É claro que não é apenas por exigência de companhias de mais qualidade e por bons princípios que grande parte da esquerda se recusa a se misturar com a direita nas ruas. Parte do PT e aqueles que apoiam a candidatura de Lula já calcularam que as chances de o ex-presidente ganhar em 2022 são maiores se a disputa for com Bolsonaro. Tem gente que chama isso de estratégia política, eu acho só triste, dado o fato de que o bolsonarismo mata gente. Também me parece um tremendo equívoco. Bolsonaro só pode agradecer por essa estratégia: tem mais um ano para exterminar toda a credibilidade do processo eleitoral e das urnas eletrônicas, executando com mais êxito o manual de seu ídolo Donald Trump.

Quero lembrar que, na Amazônia, e em vários outros biomas, a base de Bolsonaro está incendiando casas de camponeses e indígenas como rotina e várias lideranças estão escondidas para não morrer. Essa é a tática para manter os opositores apavorados, mas na prática, já quase não é mais necessária. O Congresso está legalizando toda a ilegalidade, e logo será possível apenas chamar a polícia contra aqueles que protegem a floresta, porque grileiros e outros destruidores serão os cidadãos dentro da lei. Este também é o golpe. E ele avança aceleradamente enquanto Bolsonaro faz pirotecnias públicas e autoridades dão vexame com suas palavras “duras”.


Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
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Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
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Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
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Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
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Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Protesto contra Bolsonaro em Maceió (AL). Foto: Gustavo Marinho/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
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Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto: Maí Yandara/Fotos Públicas
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Grito dos Excluídos em Porto Alegre (RS). Foto:Caco Argemi/CPERS/Fotos Públicas
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Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Grito dos excluídos/Protesto em São Paulo (SP). Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
Protesto em São Paulo (SP). Foto: Elineudo Meira/@fotografia.75
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O século 21 trouxe a expansão da internet e suas redes sociais e várias outras mudanças na forma como tudo e também o autoritarismo operam. Não é necessário fechar o Supremo com caminhões —ou “com um cabo e um soldado”. Basta que não funcione contra o presidente. Não é necessário fechar o Congresso, basta ter um parlamentar da estirpe de Arthur Lira como presidente da Câmara de Deputados, com poderes para barrar o impeachment. Enquanto Bolsonaro tiver dinheiro público para abastecer Lira e o Centrão, nada acontece. O mesmo vale para a imprensa. Parte da imprensa liberal tem feito um trabalho razoável para documentar o que hoje acontece no Brasil, mas quem se importa? A credibilidade da imprensa está destruída no bolsonarismo. Os seguidores de Bolsonaro não acreditam em nada do que está escrito nos jornais. Assim, não é necessário censura, como nas clássicas ditaduras do século 20.

O bolsonarismo e seus assemelhados pelo mundo destruíram a própria linguagem, tanto que fizeram o 7 de Setembro em nome da “liberdade” e da “defesa da Constituição”. É assim que se enlouquece —e se perverte— todo um povo. Seguir compreendendo o século 21 com os instrumentos de interpretação que serviam para o século 20 não vai funcionar.

As instituições mostraram, por sua falta de reação à manifestação golpista de 7 de Setembro, que estão dominadas —seja por lucro ou seja por covardia. Só vão reagir se os opositores de Bolsonaro, venham de onde venham, se juntarem nas ruas. É impeachment ou impeachment.

Bolsonaro segue a cartilha de Donald Trump, num país institucionalmente muito mais fraco que os Estados Unidos e já tendo aprendido com os erros de seu ídolo. Se Bolsonaro não for barrado, até a disputa eleitoral de 2022 tudo o que constitui a democracia, inclusive as próprias eleições, correm o risco de se tornar irrelevantes. Tanto quanto a Amazônia, a democracia poderá já ter chegado ao ponto de não retorno.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de oito livros, entre eles ‘Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum

Fonte: El País
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-09-15/como-funciona-o-golpe-de-bolsonaro.html


Elio Gaspari: Uma viagem ao Brasil do atraso

Nunca na história da República se viu coisa igual: o governo de Pindorama está com os dois pés fincados no atraso

Elio Gaspari / O Globo

Com cerca de 590 mil mortos e perto de 10% da população tendo sido infectada pelo coronavírus, o Brasil tem um presidente que não se vacinou, combateu o distanciamento e defendeu a cloroquina. Seu primeiro chanceler se orgulhou por ter colocado o país na condição de pária, os agrotrogloditas continuam derrubando as florestas, e o pelotão palaciano que relutou em reconhecer o resultado da eleição americana tornou-se uma sucursal do trumpismo eletrônico.

Nunca na história da República se viu coisa igual: o governo de Pindorama está com os dois pés fincados no atraso. Isso nunca aconteceu na República, mas no Império aconteceu, custando caro à terra das palmeiras onde canta o sabiá. Há ocasiões em que países decidem andar para trás. Quando isso acontece, uma névoa embaça a percepção. Só com o tempo é que as coisas ficam claras. É temerário pretender fixar num dia o triunfo da insensatez. Aqui vai uma tentativa para ilustrar o salto dado em direção ao atraso na manhã de 23 de fevereiro de 1843, quando começou a sessão do Senado do Império. Ele funcionava no prédio do campo de Sant’Anna, onde hoje está a Faculdade de Direito da UFRJ.

A sessão começou às 10h30m, e na ordem do dia estava o projeto do médico Thomas Cochrane para que o governo desse isenções tributárias e subscrevesse ações de uma companhia interessada em construir uma estrada de ferro que sairia do Rio de Janeiro em direção a São Paulo. A matéria havia sido aprovada na Câmara dos Deputados, mas fora rejeitada pela comissão da Fazenda do Senado.

(A primeira ferrovia dos Estados Unidos havia sido inaugurada em 1830, e desde 1840 lá existiam cerca de 4.500 quilômetros de trilhos.)

A proposta tomou chumbo. O senador Luiz José de Oliveira Mendes, futuro Barão de Monte Santo condenou-a:

“A ideia de estradas de ferro entre nós é uma daquelas apresentadas por especuladores que nenhuma intenção nem esperança têm de realizá-las. Ainda não temos estradas, nem de barro, como queremos pois fazer uma de ferro, e logo tão grande extensão!! Para passar por ela o quê? Quatro bestas carregadas de carvão, em um ou outro dia!!”

Especulador, talvez Cochrane fosse. Condenando o projeto, entraram dois gigantes da época, o senador Carneiro Leão, futuro Marquês do Paraná e Bernardo Pereira de Vasconcelos, grande jurista. Doente, comparecia às sessões em cadeira de rodas. Ambos defendiam as finanças da Coroa e condenavam a precariedade do projeto.

Bernardo apresentou argumentos técnicos e políticos.

Quanto à técnica: “Quero avaliar cada légua em mil contos de réis, porque são necessárias duas estradas, uma de vinda, e outra de volta.”

Coube ao pernambucano Holanda Cavalcanti corrigir a conta de Bernardo:

“O nobre senador baseia o seu cálculo em dois trilhos de ferro, na extensão de trinta léguas, e diz que são precisos 30 mil contos de réis; ora, e se eu lhe disser que podemos fazer a estrada em um só trilho?”

O líder conservador, pai do período que se denominou Regresso, achava que uma ferrovia precisava de dois pares de trilhos. Um para a ida, outro para a volta.

Quanto à política, Bernardo abriu a porteira de outro debate, pelo qual pretendia continuar a passar sua boiada:

“Eu, Sr. presidente, entendo que devemos cuidar de outros objetos e pôr de parte estes planos gigantescos; onde havemos ir procurar meios para estas despesas? Esperamos nós que o país vá em progresso hoje? (...) Não temos um grande obstáculo a isso na absoluta cessação do tráfico dos africanos? Há mais de um ano que não entra no Brasil um só africano...”

No plenário riu-se. Um senador lembraria depois que naquele ano entraram 17 mil negros escravizados. Outro corrigiria: “Muito mais, entraram pelo menos 50 mil.”

À época discutiam-se o valor de um tratado assinado com a Inglaterra pelo qual o Império havia se comprometido a acabar com o tráfico de negros escravizados e trazidos da África. Uma lei de 1831 dizia que seriam livres os africanos que desembarcassem no Brasil. Diversos senadores tratavam o tráfico pelo nome: “contrabando”.

O regresso prevaleceu. O projeto da ferrovia de Cochrane acabaria rejeitado, e a primeira locomotiva só circularia no Brasil em 1854, quando os Estados Unidos tinham cerca de 15 mil quilômetros de trilhos.

Bernardo leva sua boiada

Semanas depois da sessão de 23 de fevereiro, Bernardo Pereira de Vasconcelos refinou sua argumentação negreira. No dia 25 de abril, afirmou: “A África tem civilizado a América”.

A frase chocou e nos dias seguintes ele a elaborou, valendo-se do exemplo dos Estados Unidos: “Os africanos têm contribuído para o aumento, ou têm feito a riqueza da América; a riqueza é sinônimo de civilização no século em que vivemos; logo a África tem civilizado a América, que ingrata não reconhece esse benefício.”

O fim do contrabando de africanos escravizados só aconteceu em 1850, quando a frota inglesa começou a bloquear os portos brasileiros.

A escravidão só acabou em 1888. Os Estados Unidos tinham mais de 320 mil quilômetros de ferrovias.

E que rumo tomou Bernardo Pereira de Vasconcelos? Quebrou a perna em dezembro de 1843, continuou defendendo o contrabando de escravizados e vivia bem.

Em abril de 1850, o Rio teve o que poderia ter-lhe parecido uma “febrezinha” e continuou indo ao Senado, onde discursou:

“Eu também estou persuadido de que se tem apoderado da população do Rio de Janeiro um terror demasiado, que a epidemia não é tão danosa como se têm persuadido muitos; não é a febre amarela a que reina.”

A 1º de maio, morreu, de febre amarela.

O ministro inglês no Rio anotou:

“Sua morte removerá um dos principais obstáculos para a supressão do comércio de escravos neste país.”

No dia 13 de agosto, o Senado aprovou o projeto que proibia o contrabando de escravizados.

Serviço: Bernardo vive

Os Anais do Senado do Império estão na rede.

Quem quiser pode ler todos os debates.

Vale a pena, até mesmo para se ver o tempo que os doutores perdiam discutindo pensões e prebendas para a turma do andar de cima.

Boa parte do tempo da sessão de 23 de fevereiro de 1843, quando Bernardo atirava contra a ferrovia de Cochrane foi consumido na discussão de pensões.

Às duas da tarde os senadores foram almoçar.

Saída de emergência

Mesmo que não tenha sido essa sua intenção, o ministro Paulo Guedes criou uma saída de emergência para Jair Bolsonaro ao dizer, com toda razão, que a instituição do mecanismo da reeleição foi “o maior erro político que já aconteceu no país”.

Durante a campanha de 2018, Bolsonaro condenou esse instituto e prometeu que não disputaria a reeleição. Agora, com 53% de desaprovação no Datafolha, se quiser, pode sair do páreo. Poderá apresentar um projeto de emenda constitucional acabando com a reeleição a partir de 2026.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/elio-gaspari-uma-viagem-ao-brasil-do-atraso-25203483


Luiz Sérgio Henriques: Do Terceiro Reich até nós

Não estamos em 1930 e os embriões de Hitler e Mussolini não passam disto: embriões

Luiz Sérgio Henriques / O Estado de S.Paulo

Há versos ou poemas inteiros que grudam na memória e, mudos, passam a nos desafiar para sempre, retornando em particular nos momentos agudos de crise. Entre tais lembranças, difícil deixar de incluir Inquisitorial, de um jovem e talentoso José Carlos Capinan de meados dos anos 1960, ainda no rescaldo da guerra e do vasto sentimento antifascista que ela havia desencadeado.

“O poeta não mente, dificulta” – dizia Capinan –, e a dificuldade que propunha retirava-nos qualquer conforto possível: uma coisa é zombar, levados pelo gênio de Chaplin, do ridículo do Terceiro Reich, mas, de fato, o que faríamos se vivêssemos naquele tempo e tivéssemos de encarar em primeira pessoa o que só depois se revelaria absurdo?

Lição de arte e de vida, sem dúvida. A lição, porém, não implica comparações imediatas, como seria o caso se aplicássemos automaticamente o rótulo infame – fascismo ou nazismo – aos modernos ou pós-modernos movimentos de corrosão da democracia liberal ou, mais apropriadamente, da democracia tout court. Mais adequado é observar o modo como tais movimentos contemporâneos, repropondo em novas bases a figura do homem providencial, buscam arregimentar o povo, ou a “sua” parte do povo, indispondo-a contra as instituições republicanas que garantem as liberdades individuais e os direitos humanos.

Por óbvio, aqui nos valemos da engenhosa fórmula, criada por Yascha Mounk, para descrever a ação dos novos homens fortes. Da Rússia de Putin à Venezuela de Chávez e Maduro, países e estruturas políticas variam e personalidades podem não ser decalques umas das outras, ainda que haja entre elas imitadores baratos. Contudo, há algo de inquietantemente regular nos procedimentos que, hoje, buscam dissociar democracia e liberalismo e instaurar o cerco populista aos mais variados “Capitólios”, inclusive o nosso.

Deixando de lado os fatores “estruturais” da grande transformação, que põem de ponta-cabeça as relações entre economia e sociedade, nação e mundo, as respostas regressivas apoiam-se sempre em pesados elementos ideológicos, no sentido mais negativo do termo.

Há quem tenha detectado, como os autores de um relatório da controvertida Rand Corporation (Paul & Matthews, The Russian ‘Firehouse of Falsehood’ Propaganda Model, de 2016), a matriz putiniana do emprego maciço e coordenado de meias-verdades e mentiras consumadas, criando uma realidade paralela a partir da qual milhões de pessoas interpretam a realidade, fazem escolhas e se orientam, ou desorientam, na vida real. Não há ideologia inocente e não deixa de ser curioso que, aceita a hipótese da origem putiniana, haverá algum resquício de tipo “soviético” nas técnicas manipulatórias que se disseminaram, com o Brexit e a eleição de Trump, nos países ocidentais mais emblemáticos.

O “jato de mentiras” que jorra da boca dos autocratas não é um simples meio de “desviar a atenção” de questões incômodas para o governante ou fazer com que a sociedade se distraia de outros assuntos mais cruciais. Tal efeito não está de modo algum excluído, muito ao contrário, mas nos interessa sublinhar que este tipo de violação da linguagem é que permite a imposição de estratégias para a extração do consenso ao menos passivo de expressivos contingentes da sociedade.

Um consenso ativo pressuporia, por parte das camadas dirigentes, recursos hegemônicos capazes de dinamizar a vida cívica, enriquecer as formas da política e incorporar forças e ideias divergentes e até antagônicas num contexto de liberdade e pluralismo. Mais democracia, portanto, e não menos. À falta de tais recursos, a direita populista e iliberal dos nossos dias, ao contrário do que queria o poeta, mente e dificulta, corrói as instituições e faz adoecer as palavras. Congênita a ela é a busca obsessiva e paranoica do inimigo geopolítico e dos seus agentes internos a serem aniquilados, numa imóvel guerra fria que se limita a substituir espantalhos: antes, a Rússia de 1917, agora a China de 1949.

A liberdade que a direita autocrática apregoa é internamente contraditória. Ela é, acima de tudo, a liberdade do indivíduo autarquicamente concebido, desembaraçado de vínculos e obrigações, e armado até os dentes para defender o que discricionariamente entende ser seus “direitos”. A contradição interna fica patente quando se observa que, para fazer valer a liberdade sem laços e os direitos sem contrapartida, torna-se necessária a implantação de um Estado baseado, primariamente, na força e, secundariamente, na fabricação artificial do consenso. Em resumo, na mentira, na distorção e na enfermidade de palavras e sentidos.

Elites políticas, de direita, centro ou esquerda, dirigentes econômicos e cidadãos comuns, como qualquer um de nós, quase podemos “tocar” na história que se desenrola à nossa frente, com seus fatos e personagens precários e bizarros. É verdade, não estamos em 1930 e os embriões de Hitler e Mussolini não passam disto: embriões. O Inquisitorial, no entanto, continua a incomodar e a tirar o fôlego: “Tu, ante o presente, / Como te defines ao que será passado?”.

*TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,do-terceiro-reich-ate-nos,70003842196


Paulo Fábio Dantas Neto: Agruras da razão diante da política como ela é

Declaração do presidente do Senado transmite sensação de segurança institucional, pelo cargo que ocupa

Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia e Novo Reformismo

“[..} Os mineiros, como políticos, têm o seu perfil.  É o perfil de moderação, ponderação, busca de consensos, conciliação, mas que não confundam esse perfil de mineiro de se fazer política com inércia ou tolerância em relação àquilo que não transigimos. Porque quem objetivar mitigar o estado de direito ou estabelecer retrocessos à democracia terá o pulso firme e forte da política de Minas Gerais para resistir” (declarações de Rodrigo Pacheco, em evento promovido pela UFMG, publicadas em matéria da jornalista Luciana Amaral, UOL em 17.09.21)

A declaração do presidente do Senado transmite sensação de segurança institucional, pelo cargo que ocupa. Além disso, ao recorrer ao simbolismo da “mineiridade” política, reforça de modo importante, como faz desde que chegou ao cargo, o coro de vozes que pregam a pacificação do país. Trata de pacificação como algo bem distinto da mera conciliação com Bolsonaro, pois a disposição conciliadora compartilhada pelo senador mineiro, em seu conservadorismo republicano genuíno, significa, por definição, uma não-conciliação com o golpismo do presidente. Ambas as dimensões do posicionamento (a institucional e a política) agradam a este comentarista, mas não é disso que trata a coluna de hoje.

O intuito é analisar a declaração sob o ângulo de seu aparente sentido de posicionar o presidente do Senado na discussão pré-eleitoral que transcorre, contra o relógio, dentro do campo político que integra. As assim chamadas direita e centro-direita precisarão, nos próximos meses, definir-se por um caminho eleitoral próprio ou por contribuir a uma agregação mais ampla, que englobe o centro do espectro ideológico, podendo chegar à soleira da porta da assim chamada centro-esquerda. A premissa de que parto para considerar apenas essas duas possibilidades é o desvanecimento prático da opção de renovar, pela aposta na reeleição de Bolsonaro, o pacto regressista vencedor em 2018.

Sob esse enquadramento, a declaração parece mais um toque de reunir do que um chega para lá. Acena à reconfiguração republicana do governismo, mais do que ao nascimento de uma oposição conservadora ao governo. Do seu posto de observação privilegiado, Pacheco constata todos os dias que o fantasma da orfandade ronda a nuvem política que se agarrou no mito em 2018 e percebe seu esfarelamento a um ano das próximas eleições. Mas que mensagem será capaz de reunir proativamente essas forças hoje perdidas no varejo e dispersas no atacado? A da firme resistência institucional é, sem dúvida, um bom e nobre começo, capaz de reparar, na prática, o malfeito anterior.

O pulso forte do republicanismo mineiro-nacional, no entanto, além de espantar o perigo que ronda a nação e sua democracia, construirá o que? Sua agenda positiva será a das chamadas "ilhas de racionalidade" do atual governismo, quase invisíveis a olho nu enquanto Bolsonaro estiver sentado na sela em que transformou a cadeira presidencial? Que acenos concretos uma centro-direita racional, como a que Pacheco ensaia encarnar, pode fazer aos quase náufragos da aventura populista, para tomarem o barco governista das mãos nada limpas e ainda por cima ineptas do capitão e dos tripulantes mais chegados, ou para o abandonarem à deriva e tomarem assento em outra embarcação?

A racionalidade dos cálculos eleitorais nem sempre está ao alcance de uma razão esclarecida. O pulso forte que essa razão comanda, se não achar um discurso econômico que o conecte ao mundo social, pode se ver neutralizado pela eficácia prática de uma mão boba trafegando em sentido oposto, mão calçada com luvas de uma confortável dianteira em pesquisas eleitorais. Vistosas luvas, que tentam náufragos ávidos por sombra e afagos.

Mas não apenas no arraial governista a razão esclarecida cambaleia. Se nele ela tenta se aprumar a partir de um discurso de resistência conservadora das instituições, no arraial oposto, da oposição de esquerda, sua missão não é menos complexa que a de Pacheco. Dinos, Freixos, Tábatas, no PSB e fora dele, tentam fazer segunda voz num coro em torno de um mito que, ao contrário do da direita, parece ir muito bem, obrigado. Sequer podem insinuar, no momento, uma concertação crítica. Precisam divisar, no maciço ideológico e pragmático que ata PT e esquerda ao lulismo, ilhas de racionalidade com as quais possam, ao menos, dialogar para moderar o apetite populista da caravana que segue o virtual campeão de votos, ignorando o ladrar de teimosos perseguidores de uma terceira via.

Uma entrevista de um personagem bem menos visível, o economista Guilherme Melo, do Instituto de Economia da Unicamp e da Fundação Perseu Abramo (“O PT quer o fim do teto de gastos. E uma nova regra fiscal no lugar”) concedida aos jornalistas Daniel Rittner e Fabio Graner e publicada pelo jornal Valor Econômico, em 13.09.21, permite uma interessante comparação, dentro do mesmo ângulo de análise do debate pré-eleitoral.

Apesar de minhas evidentes e confessas limitações cognitivas na área da economia, percebi, no discurso de Melo, uma atitude moderadora. Temas especialmente controversos, como expansão do gasto público, reforma tributária, metas de inflação e independência do BC são enfrentados na entrevista sob enquadramento político que lembra, talvez, a disposição, ou sentido de missão pragmática, da “Carta aos brasileiros” de 2002. Sem uso de dogmas ideológicos da primeira infância do partido, do maniqueísmo dos tempos da sua oposição intransigente aos governos de FHC, de certezas arrogantes no exercício do poder, ou de chavões populistas costumeiros do petismo da década passada.

Naturalmente há muitas afirmações vagas, opções ainda não bem delineadas num discurso substantivo, mas é perceptível uma retórica "nem, nem" (nem liberalismo econômico, nem nova matriz Rousseff/Mercadante), com a ressalva, de Melo, de que ele não fala por Lula. Com tudo isso, a entrevista mostra que uma certa terceira via é pensada em ilhas de racionalidade acadêmica petistas, onde se procura fazer economia e política conversarem sob a batuta de uma razão soberana que considera, aqui e ali, a experiência de uma década de interdição dessa conversa no Brasil.  A sinalização é de uma inflexão racional ao centro.

Na arena plebiscitária, no entanto, que alimenta e se alimenta de pesquisas de imagem, de potencial e de intenção de voto, a substância e o tom de Lula até aqui não dão espaço a nem, nem algum, seja os de uma virtual terceira via, seja os que sussurram na sua cozinha.  É populismo explícito em política e quase nacional-desenvolvimentismo em economia. A evocação simbólica à persona de Luiza Trajano (nem estimulada, nem rejeitada pela própria) tem indisfarçável sabor de revival, tanto na intenção de dissipar receios empresariais (compartilhada, também, com a da Carta aos brasileiros), quanto na afinidade que a "apresentação" apologética da empresária, feita pelo político pop, líder das pesquisas, guarda com aquela retórica dos campeões nacionais do tempo da nova matriz.

Por enquanto, são pequenas as chances de proposições como a do economista Melo darem o tom da campanha petista, pois, ao que tudo indica, o candidato, agora, não será um Haddad. Isso não significa recusa do centro por Lula, mas precisamente sua busca, através de outra racionalidade, que a razão soberana desconhece. Algo que de modo sintético pode ser representado pela ideia estratégica de usar uma polarização sem nuances para se eleger e depois a conciliação para governar. Seria passar da oposição aguerrida a governo moderado, sem a mediação de uma campanha cujo conceito seja Lulinha paz e amor.

A comparação das agruras da razão esclarecida nos dois arraiais deixa evidente um contraste entre o terreno politicamente resolvido da esquerda e a cacofonia que ainda impera na direita. A primeira está em campo, a segunda no divã. Explica-se, portanto, que na esquerda já se esboce, inclusive, um discurso econômico para conversar com a política, ainda que limitado pelo poder de veto discricionário de Lula. Já nas áreas politicamente próximas ao atual desastre governamental o discurso econômico ainda repete slogans doutrinários como biombos de pragmatismos espúrios. Paulo Guedes é um pântano do qual potentados privados indigentes em ética pública não conseguem se desprender.  Sintoma de que a direita stricto sensu não tem até aqui o que dizer numa conversa entre economia e política. Há realistas, mas na falta de um rei, não entabulam um plano real.

A indeterminação reinante nas cercanias do palácio e a insuficiência de uma razão conservadora endógena para superar essa indeterminação fazem-me pedir licença aos inúmeros fatalistas de plantão, que anunciam diariamente o aborto de uma terceira via, para dizer que o centro democrático poderá ter um papel decisivo nessa eleição. Só ele pode produzir o programa que a direita e a centro-direita juntas não têm. Falta-lhe até aqui um nome próprio que trafegue de modo fluente no território onde há razões que a própria razão desconhece. Essa não é lacuna pouca e desconhecê-la é bobagem. Ainda resta um tempo para seguir tentando que esse nome emerja de lugares sociais onde impera a lógica plebiscitária da necessidade. É tempo cada vez mais pouco e o sucesso dessa hipótese é improvável, para dizer o mínimo.  Porém, a não ocupação do vácuo é limitação da virtù política, artigo raro hoje em dia. Ela não desmente a existência do vácuo, que expressa a ausência de tradução política da presença sociológica do centro político. Pesquisa após pesquisa, esse centro persiste na foto e desafia os ululadores do óbvio.

Se os partidos do centro democrático não tiverem, de fato, razões suas para produzirem, institucionalmente, no parco tempo que lhes resta, a agregação política que não surgiu de um movimento bem-sucedido de alguém junto ao eleitorado, será porque eles também, a exemplo das arenas plebiscitárias onde o eleitorado se entoca, são lugares de onde emanam razões que a própria razão desconhece.  Nesse caso, a ideia de terceira via será espólio disputado pela esquerda lulista, plena no discurso, que buscará subsumi-la em seu abraço hegemônico e por uma direita que precisa dela para encontrar algum discurso.

Com o tempo veremos o que o pulso forte a que alude Rodrigo Pacheco tem a ver com isso. Duas prospecções são possíveis com os inerentes riscos de engano. Primeiro que a razão esclarecida é condição necessária, mas não suficiente para que o aludido pulso firme e forte produza efeitos não apenas defensivos. O desencarceramento de ideias depende em muito de um saber prático. Segundo que o entendimento da centro-direita com o centro parece questão de tempo, mas aí há duas incertezas relevantes, uma sobre as bases desse entendimento (quem entraria com que no consórcio) outra sobre a sua tempestividade. O desejo das partes diretamente envolvidas é contarem com um tempo elástico. O da esquerda é encurtá-lo ao máximo. O de Bolsonaro, ser intempestivo para cessar qualquer entendimento e poder se desentender até consigo. A mineiros cabe vigiar o capitão, sem deixar de tocar o barco.

*Cientista político e professor da UFBa

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/09/paulo-fabio-dantas-neto-as-agruras-da.html


Luiz Werneck Vianna: Desventuras e promessas do liberalismo brasileiro

Envergadura do golpe que se tramava não pode ser subestimada, que não deve ser tratado como um pesadelo fortuito de uma noite mal dormida

Luiz Werneck Vianna / Democracia e Novo Reformismo

Não foi a primeira vez e nem será a última em que se tentou nos infaustos acontecimentos deste 7 de setembro fazer a roda da história retroagir a fim de repor o país nos trilhos do malsinado regime do AI-5, obsessão manifesta do governo que aí está. A intentona, preparada como um plano de estado-maior a que não faltaram recursos oficiais e de setores reacionários das elites econômicas, em particular do agronegócio, tinha em mira jogar por terra a Carta de 88 cujas instituições obstam os arreganhos absolutistas no exercício do poder presidencial. O sistema de controle do poder contemplado no texto constitucional, orientado para a defesa dos direitos políticos e sociais consagrados por ele, demonizado pela clique no poder como entraves às suas ações liberticidas, deveria ser derrogado. Ferindo de morte o constitucionalismo democrático, ao Judiciário caberia apenas agir nos litígios privados na contramão dos processos civilizatórios emergentes desde a derrota do nazi-fascismo na segunda guerra mundial.

Foi por pouco. E ainda são obscuras as razões por que apenas em um dia a formidável arma de propaganda golpista que se abateu sobre o país fosse recolhida aos coldres, com o país estupefato tomando ciência de uma declaração presidencial reverente às instituições. Para tal resultado, os   pronunciamentos fortes e tempestivos de presidentes das altas cortes do Poder Judiciário, a que se seguiram manifestações dos dirigentes do Senado e da Câmara dos Deputados em defesa das instituições democráticas, decerto importaram, mas pode ter havido nos céus mais do que o movimento dos aviões de carreira embora ainda não registrados no radar. Enfim, por fas ou nefas, as trevosas nuvens que pairavam sobre a sociedade se dissiparam como num passe de mágica, ficando o dito pelo não dito enquanto se sussurra na sociedade até quando?

A envergadura do golpe que se tramava não pode ser subestimada, que não deve ser tratado como um pesadelo fortuito de uma noite mal dormida. Foi real a parada militar em Brasília – os militares sabiam o que se seguiria? –, como reais as concentrações de massas da avenida Paulista e na praia de Copacabana e noutras capitais, como também reais as vociferações do presidente Bolsonaro em todas elas, cruzando o país a bordo de aviões oficiais, dardejando ofensas a autoridades judiciárias com o ímpeto de Donald Trump no frustrado golpe ao Capitólio de 6 de janeiro do ano passado. Real igualmente o suporte financeiro com que setores das elites econômicas deram à mobilização de milhares de pessoas que acorreram às ruas em apoio a Bolsonaro naquela jornada equívoca de 7 de setembro.

Só não vê quem não quer, o governo que aí está não caiu sobre nós como um raio num dia de céu azul, suas raízes têm causas remotas a começar da nossa formação como sociedade e estado-nação. Padecemos dos males da herança maldita do latifúndio e da escravidão, livramo-nos tardiamente da primeira e ainda coexistimos com a primeira, a essa altura reciclada em agronegócio com seus personagens elevados a posições destacadas na economia e na política. O desenlace do nosso processo de independência política se operou na forma clássica de uma revolução passiva – seu condutor era o príncipe herdeiro da dinastia reinante na metrópole – abortando a revolução nacional-libertadora que tomava forma em movimentos como a Inconfidência Mineira, no de 1817 em Pernambuco e se disseminava pelo Nordeste, especialmente na Bahia, sob a inspiração de ideais liberais influentes na revolução americana.

Os efeitos dessa solução política “por cima” comprometeram no Império a sorte dos liberais com a recusa do imperador do texto da constituição elaborada pela assembleia constituinte, de caráter liberal em política, vindo a promulgar de modo autocrático a Carta de 1824, que outorgava a ele um poder moderador com o qual limitava o papel da representação e se punha à margem da soberania popular.

Wanderley Guilherme dos Santos, em um ensaio de 1974 “A práxis liberal no Brasil: propostas para reflexão e pesquisa”, procede a um inventário crítico do destino desse conceito entre nós. Descontado o que há de datado nesse estudo, ele captou com precisão as razões do malogro do nosso liberalismo político a partir de dois momentos de importância capital na formação do Brasil moderno, o da Abolição e o da República.

Ambos movimentos são analisados a partir dos manifestos com que elites políticas da época desencadearam suas campanhas, o Radical Liberal, de 1869, e o Republicano do ano seguinte. Persuasivamente, Wanderley sugere que os rumos futuros da sociedade teriam sido demarcados pelo tipo de orientação neles predominante, enquanto os liberais radicais, defensores de uma monarquia constitucional postulavam em favor de reformas de clara adesão ao liberalismo político, inclusive com a abolição do trabalho escravo, os republicanos, que desejavam o apoio das classes proprietárias a fim de atingir seus objetivos, se fixaram no tema da mudança de regime. Tais divergências entre as elites modernizadoras de então teriam comprometido em boa parte o destino dos ideais liberais debilitando o impulso original que o animava.

A revolução de 1930 abre um novo ciclo na política brasileira dominado pela paixão da modernização econômica e de um Estado dotado de meios eficientes na sua aceleração. É o tempo da fórmula corporativa e do predomínio da ação estatal como reguladora de todas as instâncias da vida social, culminando com a criação do Estado Novo e da Constituição outorgada de 1937. O capitalismo brasileiro deveria seguir um curso iliberal em clara ruptura com suas tradições em que o liberalismo mal ou bem ocupava um papel de fermento nas lutas democráticas. O empreendimento bem-sucedido tanto em economia como no controle social do mundo do trabalho e da sociedade em geral concedeu permanência, afora os ajustes que se fizeram necessários ao longo do tempo, às instituições e ao estilo de mando autocrático do Estado Novo, exemplar no caso do regime militar de 1964 a 1985, especialmente sob o AI-5, redigido pelo mesmo Francisco Campos, autor do texto da Carta de 1937.

O Brasil que aí está é fruto desse processo de modernização autoritária, contra o qual, na esteira de massivas manifestações populares em articulação com amplas alianças políticas, soube triunfar com a promulgação da Carta democrática de 1988. Tal como se constata, esse triunfo não foi pleno, na medida em que uma má política criou condições para uma inesperada vitória eleitoral dos refratários às mudanças democráticas que nosso texto constitucional ampara e viabiliza.

 A modelagem do governo Bolsonaro é com todas as letras a do capitalismo iliberal. Nesse sentido, há um fio vermelho entre ele e a história do nosso autoritarismo político, remota ou contemporânea, como o Estado Novo e o AI-5, que se opuseram à passagem do liberalismo político. Derrotá-lo, mais do que abrir caminho para as forças vivas da sociedade atual, significa passar a limpo as trevas do nosso passado.

*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio  

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/09/luiz-werneck-vianna-desventuras-e.html


Míriam Leitão: O risco real é o de banalizar o crime

Se o impeachment não for o propósito neste momento estarão sendo revogados o artigo 85 da Constituição, a Lei 1079

Míriam Leitão / O Globo

Discordo radicalmente da afirmação de que iniciar um processo para o afastamento do Presidente Bolsonaro seria banalização do impeachment. O verdadeiro risco que o país corre é o de banalizar o crime. A começar pelo crime de responsabilidade. O presidente os comete em série. Se o impeachment não for o propósito neste momento estarão sendo revogados o artigo 85 da Constituição, a Lei 1079, artigos do código penal e todo o arcabouço institucional e civilizatório em torno do qual o Brasil refez o seu pacto social após a ditadura militar.

O presidente Bolsonaro tem provocado retrocessos em todas as áreas, ameaçado direitos e avanços. Não houve uma semana de paz em todo este governo. Um tempo em que ele não tivesse infringido alguma lei, algum inciso, algum dos nossos mais caros valores. Está claro, a esta altura, que um dos defeitos a corrigir nas leis brasileiras é o direito absolutista dado ao presidente da Câmara. Os crimes se acumulam, e os pedidos de impeachment são ignorados. A mesa do presidente da Câmara receberá em breve um novo pedido apoiado em relatório da devastadora Comissão Parlamentar de Inquérito. E o deputado Arthur Lira (PP-AL) poderá continuar ignorando, porque nada há no ordenamento legal brasileiro que modere esse poder. Está claro também que o país subestimou o risco que pode representar um procurador-geral da República alinhado com o governo e em busca da ambição de uma cadeira no STF. Apesar de tudo o que ele não fez, foi amplamente aprovado para mais um mandato.

A professora Maria Hermínia Tavares de Almeida, da USP, explicou numa palestra no Brazil Lab, de Princeton, que o Brasil vive um paradoxo: o sistema é democrático, mas o presidente é autoritário. Ele não controla as instituições, mas a estratégia é de sistemática confrontação. A definição do momento é perfeita, o país tem resistido aos ataques autoritários, mas há um dilema diante de nós. Nessa confrontação ele tem cometido crimes. Se esse paradoxo não for enfrentado da maneira correta, punindo-se o infrator, a democracia vai sair debilitada deste período infeliz.

Não tem lógica o argumento de que não pode ser usado esse remédio constitucional porque ele já foi utilizado recentemente. Por mais traumático que seja o impeachment, não tentá-lo neste momento seria o mesmo que abdicar do dever de proteger a democracia brasileira com os instrumentos legais existentes. Os partidos que defendem a democracia, estejam de que lado estiverem na dispersão ideológica natural de um sistema plural, precisam defender incansavelmente o impeachment do presidente Bolsonaro. Porque nunca antes dele um presidente cometeu tantos crimes de responsabilidade. Bolsonaro cometeu crimes contra a vida humana na calamitosa gestão da pandemia.

Houve quem dissesse que a CPI não deveria ser instalada porque o país vive uma pandemia, era preciso unir o país no combate à crise sanitária, para depois verificar quem cometeu erros. Os trabalhos da Comissão mostram como estava equivocada a turma do deixa-disso. A CPI não apenas tem revelado fatos desconhecidos do país, como estancou transações criminosas armadas dentro do Ministério da Saúde. O país é informado do que não sabia, mesmo quando os depoentes repetem que se reservam o direito ao silêncio. A CPI trabalha tão bem que as intervenções dos senadores revelam mais do que os depoimentos. Eles mostram documentos e provas em cada pergunta que fazem. E sem dúvida a CPI fez o governo acelerar o processo de aquisição de vacinas que nos permite ter a esperança de sair deste pesadelo.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, acha que iniciar um processo de impedimento agora só conseguiria transformar o Brasil num país governado por um pato manco. O ex-presidente Rodrigo Maia temia iniciar um processo que poderia ter o efeito contrário do esperado, ele ser absolvido e se fortalecer. Há muitos grupos políticos fazendo cálculos do que poderá ganhar ou perder num eventual afastamento do presidente. Não conseguem ver que há algo mais valioso em perigo. Se um presidente como Bolsonaro sair impune, mesmo diante de tudo o que ele fez, faz e continuará fazendo, o país estará correndo o risco de se fixar esse patamar de degradação da função da Presidência da República.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/o-risco-real-e-o-de-banalizar-o-crime.html