trumpismo
Luiz Werneck Vianna: As velas pandas de Ulisses Guimarães
A posse de Joe Biden na presidência dos EUA, a rigor uma solenidade cívico-religiosa concebida para reanimar as crenças nos temas e ideais fundadores da sua sociedade, ao menos por ora afasta em todos os quadrantes os riscos para a segurança comum representados pelo que foi o governo Trump em sua versão degradada do nacional-populismo. De fato, há o que comemorar, embora não se possa desconsiderar que Trump, mesmo que amplamente derrotado nas urnas, obteve mais de 70 milhões de votos e uma legião de fanáticos seguidores, uma parte deles organizados em milícias, vistas a olho nu na tentativa insurrecional de 6 de janeiro de barrar a certificação eleitoral da vitória de Biden. E, para eles, deixou suas últimas palavras de que por algum modo, voltaria.
O augúrio fúnebre tem como ser evitado, as forças democráticas foram testadas em sua vitoriosa campanha eleitoral em que deram provas de sabedoria política, agora confirmada pela decisão de apresentar o impeachment ao senado, e sobretudo pelas medidas de impacto já efetivadas nas frentes sanitária e econômica com que se espera diluir a influência do trumpismo. O processo do impeachment, como se sabe, pode culminar com a interdição definitiva de Trump da vida política. Caso bem-sucedidas, tais intervenções benfazejas põem por terra o projeto de arregimentar em novo partido com os salvados do trumpismo, o Patriota, de óbvia má índole fascista.
Nada disso é estranho à nossa sorte. Uma das marcas do trumpismo esteve na sua tentativa de criar uma internacional reacionária, missão confiada ao ex-estrategista do governo Trump, Steve Bannon, perdoado do crime de fraude num dos seus últimos atos, que conta entre seus aderentes personagens do governo Bolsonaro e da sua família. Tal como a Hidra de Lerna, o trumpismo tem várias cabeças e somente pode ser exterminada com a amputação delas cauterizadas as suas feridas, sem o que renascem como na mitologia. O governo Bolsonaro é um sobrevivente da debacle do trumpismo nesta nossa América Latina que reinicia seu encontro com sua história de luta por liberdades. Barrar seu caminho importa, além de outros motivos relevantes impedir que nosso país se torne um reduto da central reacionária do trumpismo nesse sub-continente.
Na hora da partida para essa navegação difícil que temos que começar mesmo que ainda incertos os resultados pela miséria da nossa política, ouvem-se as lamúrias do Velho do Restelo para que recolhamos as velas e nos conformemos ao que aí está, por que tudo pode piorar. Mas como as velas já se enfumam, como as queria Ulisses Guimarães, e de toda parte se ouvem os brados de basta, fora já? Bem mais arriscado do que o da hora presente foi o cenário do movimento das anti-candidaturas de Ulisses e Nelson Carneiro, apenas uma manifestação de força moral, com que se abriu, mais tarde, a via para o movimento em favor das diretas já que desaguou na derrota do regime militar em 1985.
Desde Maquiavel, que estudou as grandes batalhas da Antiguidade em Arte da Guerra, ecoam as lições de que os resultados das batalhas não se podem prever de antemão, eles se decidem no fragor da luta. No nosso caso, o teatro de operações que se tem pela frente, bem distante de desfavorável, apresenta-se como propício, quer pela conjuntura internacional, quer pela catástrofe sanitária a que estamos expostos pelo governo Bolsonaro. A rota do impeachment recém-descoberta como recurso de legitima defesa da sociedade ganha o caminho das ruas com as carreatas que proliferam e o adensamento da opinião pública em seu favor. Diante da miséria política do país, entretanto, nada garante a ela um final feliz.
As longas marchas começam com um pequeno passo. Logo ali, na próxima esquina, nos espera a próxima sucessão presidencial. A envergadura da frente política que ora se ensaia, com o movimento em favor do impeachment consiste no primeiro e decisivo teste que ela enfrentará naquele momento de importância capital. Quanto mais ela se ampliar politicamente, e mais se enraizar capilarmente na vida social em ações de protesto e de recusa a um governo maligno nas lutas imediatas atuais, maiores serão suas possibilidades de dar um fim – se não conseguir antes por outros meios – ao pesadelo atual. É verdade que nos faltam Ulisses Guimarães e Tancredo Neves, mas contamos com suas histórias exemplares que bem poderiam emular o que nos sobrou.
Mas, entre tantas faltas a lastimar, não se pode deixar de contar com as novas presenças que nos vêm da vida do associativismo popular, dos profissionais e intelectuais das atividades da saúde, da nova safra de artistas populares e dos que se dedicam com brilho ao colunismo na imprensa e aos comentaristas políticos na TV e no rádio. Nesse rol igualmente devem ser mencionados os parlamentares e os partidos políticos que com sua resistência ao autoritarismo honram seus mandatos, sobretudo os ministros do STF que preservam a integridade da nossa Constituição. São eles que abastecem de oxigênio uma sociedade exangue por falta de ar.
Aos poucos se desvanecem as ameaças que nos prometiam a destruição da obra da nossa civilização, ainda incompleta e precária como se sabe, mas que aos trancos e barrancos teimávamos edificar. A resistência a este novo autoritarismo em nosso país, em meio a uma cruel pandemia, mostrou, mais uma vez, ser eficaz. Tudo somado nesses tempos sombrios, pode-se constatar que, dos salvados do incêndio com que pretendiam nos destruir, salvou-se a nossa alma da sanha de Bolsonaro, Paulo Guedes, Ernesto Araújo et caterva. Não é pouco para quem vivia como nós sob a ameaça de extinção dos nossos valores e das nossas melhores tradições.
*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio
Celso Lafer: Consequências do trumpismo
Dante inseriria Trump nos círculos do inferno em que penam os falsários e os traidores
A tomada da Bastilha prefigurou a Revolução Francesa; a invasão do Palácio de Inverno, a implantação do comunismo na Rússia; a marcha sobre Roma, a afirmação do fascismo na Itália; a Noite dos Cristais, na Alemanha, o Holocausto. O que configura a ocupação violenta do Congresso em Washington por uma horda de adeptos do trumpismo, inconformados com a vitória eleitoral de Joe Biden? Ela foi uma surpreendente e inédita ruptura dos tradicionais limites que sempre cercaram e protegeram a autoridade das instituições políticas dos Estados Unidos.
A República americana continuadamente teve como uma das características da sua identidade o respeito às instituições e a afirmação de um “governo das leis” sob a égide e a aura da Constituição. É o que foi configurando, no correr de uma longa experiência histórica, a autoridade da democracia ensejando um patamar de estabilidade aos seus processos de mudança política, com destaque para a dinâmica das sucessões presidenciais provenientes de eleições periódicas.
O que mina e corrói a autoridade é o desprezo pelos limites que ela naturalmente impõe. Daí, nos Estados Unidos, a figura jurídica do contempt of Court, que penaliza, num processo, quem deliberadamente cria obstáculos à administração da justiça, descartando a dignidade e a autoridade da Corte. Contempt of Congress aplica-se aos que obstam ou buscam impedir o due course dos seus procedimentos.
Desprezo pelos limites, foi isso que configurou o que se passou em Washington. O estrépito do “vale-tudo” da violência pôs em questão a autoridade das instituições. Buscou comprometer o alcance do abrangente poder conjunto da cidadania de lidar com os problemas e desafios do país pela via do processo eleitoral.
A ocupação violenta do Congresso teve como objetivo obstruir os procedimentos de formalização conclusiva da inequívoca vitória eleitoral de Biden, confirmada pela dinâmica das instituições e pelas diversas instâncias do Poder Judiciário, que rejeitou, por absoluta falta de provas, as incontáveis alegações de fraude com as quais Trump alimentou a sua própria inconformidade e a da horda de seus mais raivosos militantes com o desfecho do processo eleitoral.
O desprezo pelos limites do politicamente aceitável confirmou que a eleição foi uma luta pela “alma” do país e pelo espírito que historicamente a vivificou. Uma luta que Joe Biden travará na sua presidência.
Trump dedicou-se à corrupção da alma da República e da confiabilidade das suas instituições. Foi o que preparou a ruptura dos limites. São notas de sua atuação a mentira como princípio de governança voltada para manipular o Congresso e o Partido Republicano, com o personalismo do seu “bullying”, direcionado para um contínuo esforço de operar um regime ao arrepio da lógica do “governo das leis”. Por isso o empenho do trumpismo em pôr de lado as práticas e os preceitos constitucionais e jurídicos atravancadores do ímpeto da vontade presidencial num Estado de Direito. Daí o deslavado inserir do ilícito nos processos políticos do país, o uso abusivo do “privilégio do Executivo” e do perdão presidencial para proteger os colaboradores que mobilizou na sua sanha destrutiva.
Trump cobriu com um tecido de mentiras o espaço público dos Estados Unidos com a sua solerte operação das redes sociais. Criou “bolhas” intransitivas alimentadas por polarizações, cevadas pelo discurso de ódio, voltadas para desqualificar os que a ele se contrapunham. Aviltou o bem público da inclusividade, que é um dos valores da democracia. Confrontou com suas arengas despropositadas uma das máximas do mérito da democracia: é melhor contar cabeças do que cortar cabeças, nas palavras de Bobbio.
A virtude é um dos ingredientes de uma República que deve zelar pelo bem comum. Quando ela fraqueja, como na presidência Trump, abre-se o espaço para o domínio das baixas paixões, dos ressentimentos, das invejas e da vaidade. Trump traiu a alma das instituições republicanas dos EUA. Dante o inseriria nos círculos do inferno onde penam os falsários e os traidores.
A força das instituições americanas está contendo a sua fúria destrutiva. Mas ela é configuradora de consequências não só para os Estados Unidos, mas para o mundo, com destaque para a vigência do valor da democracia.
O trumpismo mina o softpower gravitacional da democracia americana no mundo. Justificá-lo é uma ameaça generalizada à democracia. Daí a inconformidade democrática, no Brasil, quanto às recentes manifestações do presidente e do seu chanceler. Elas são mais do que a expressão de afinidade com uma concepção da prática política. Revelam uma declarada simpatia pelas posições de Trump e dos seus mais raivosos adeptos. Foram uma oportunidade para nelas identificar uma antecipada prefiguração de uma despropositada fraude eleitoral nas eleições presidenciais de 2022. É um semear de ventos para tempestades políticas futuras.
*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Sérgio Amaral: O que restará do trumpismo?
Ainda é cedo para avaliar o futuro da onda nacional-populista de que Trump é o principal expoente
Em 3 de novembro, Donald Trump perdeu a eleição para a Presidência dos Estados Unidos e os republicanos foram vencidos na Câmara dos Representantes. Na Geórgia, mais recentemente, os democratas conquistaram a maioria no Senado. As vitórias eleitorais dos democratas propiciam a Joe Biden uma base sólida para a execução de um ambicioso programa de governo, tanto no plano interno quanto no internacional.
No dia 6 de janeiro, Trump sofreu uma segunda derrota, desta vez em seu próprio partido, pela decisão de algumas de suas principais lideranças, como o vice, Mike Pence, e o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, em aprovar a certificação dos delegados eleitos para o Colégio Eleitoral, como é legal e de praxe, ao contrário do que pretendia o presidente.
A ocupação do Capitólio, ostensivamente incentivada por Trump e membros de sua família, provocou o repúdio da opinião pública, por representar um atentado ao maior símbolo da democracia americana. E, como se não bastasse, mídias sociais decidiram suspender o acesso do presidente a suas plataformas, sob a alegação de incentivo à violência. Ainda que os motivos possam ser louváveis, não deixa de ser insólito que uma empresa privada possa censurar o presidente de um Estado.
Trump deixa a Casa Branca abatido e desmoralizado. As próximas pesquisas de opinião poderão estimar quantos na sociedade, e especialmente em seu próprio partido, deixaram de apoiá-lo. Diante desse cenário incerto e turbulento, resta saber o que ocorrerá com Partido Republicano e com o trumpismo no novo capítulo político que se inicia com a posse de Biden.
Lideranças republicanas já vinham manifestando seu incômodo com o casamento de conveniência entre o seu partido e o presidente. Martin Wolf, respeitado colunista do “Financial Times”, já havia condenado, de modo incisivo, o que chamou de pacto faustiano entre a plutocracia de Wall Street e Trump, pelo qual o Partido Republicano cede sua estrutura política ao presidente em troca das isenções na reforma tributária.
A temporada da luta interna no Partido Republicano está aberta. Alguns dos principais apoiadores de Trump já se transformaram em seus algozes. O que restará do trumpismo, até há pouco percebido como a principal força conservadora para a eleição de 2024? Ao longo de todo o mandato, a aprovação de Trump oscilou entre 37% e 42% do eleitorado.
Como manter esse capital político sem a caneta de presidente e sem os comícios que organizava quase todos os meses, em diferentes regiões do país? Alguns parlamentares republicanos que até há pouco se vangloriavam da proximidade com o presidente e buscavam tirar proveito eleitoral de sua transformação em “representantes da classe operária” agora se dissociam de Trump em público.
Qual o impacto das derrotas de Trump sobre os seus os seguidores pelo mundo? É bom ter presente que o trumpismo não se limita às maquinações de um líder carismático, por vezes desequilibrado, para ganhar as eleições, como fez em 2016. Na verdade, desde o início de seu ingresso na política, o presidente republicano se apresentou como o porta-voz de um movimento mundial, o populismo nacionalista, contra a globalização e o “globalismo”, em defesa da hegemonia americana (“America First”), que amealhou adeptos em várias partes do mundo, especialmente na Europa e inclusive no Brasil.
Hoje parece anedótico, mas foi real o projeto patrocinado por Steve Bannon, o guru de Trump, ao deixar a Casa Branca, para fundar uma escola de quadros, num convento medieval na pequena Trisulti, no centro da Itália, com o objetivo de formar os cruzados do século XXI. Professores chegaram a ser selecionados, entre os quais alguns brasileiros.
Ainda é cedo para avaliar o futuro da onda nacional-populista de que Trump é o principal expoente. Se é verdade que o Brexit venceu, também é certo que as hesitações britânicas em relação à União Europeia são históricas. O Reagrupamento Nacional na França e a Alternativa para a Alemanha avançaram, mas hoje parecem estacionados ou mesmo em refluxo. Na Áustria, Holanda e Itália, diferentes modalidades de populismo também recuam, diante da percepção de que movimentos sociais podem eleger ou ajudar a eleger candidatos, mas enfrentam sérios desafios para governar diante da ausência de uma estrutura partidária. Hungria e Polônia parecem ser a exceção que confirma a regra.
E o Brasil? Bolsonaro e Trump apresentam semelhanças notáveis. O carisma, a capacidade de comunicação, a competente utilização das mídias sociais, a aversão aos partidos e à imprensa. Certas condições em ambos os países também registram coincidências, como a persistência do racismo estrutural e da desigualdade. Nos dois casos, o compromisso com a democracia mostrou-se enraizado nas forças da sociedade, nas instituições e no estamento militar.
Um dos equívocos da recente campanha de Trump foi o de buscar repetir os temas e as táticas eleitorais de 2016, sem levar em conta uma das máximas da política: a história não se repete, o que na primeira vez é drama, um enredo sério, na segunda vez é uma farsa, como foi efetivamente a campanha republicana em 2020.
Em nossos dias, as mídias sociais estão sob suspeição, a mentira cansou e a radicalização é percebida como destruição, sem nada construir. No Brasil, as eleições do ano passado, ainda que municipais, emitiram alguns sinais para 2022, ao priorizar a reeleição de administradores experimentados, trazer de volta a centralidade dos partidos políticos, em detrimento das mídias sociais, a moderação nos debates e a objetividade das propostas.
*Sergio Amaral, ex-professor de ciência política na Universidade de Brasília, foi embaixador em Washington
Moisés Naim: Trumpismo sobreviverá
Trump será o primeiro presidente dos EUA a ter um movimento político de massas com seu nome, como Mao Tsé-tung e Chávez
Os seguidores mais entusiasmados de Mao Tsé-tung, Juan Domingo Perón, Charles De Gaulle, Fidel Castro e Hugo Chávez deram lugar a movimentos políticos mais duradouros do que os líderes que os inspiraram.
Donald Trump será o primeiro presidente dos EUA a ter um movimento político de massas com seu nome. O trumpismo – caracterizado por sua retórica combativa contra elites e imigrantes, seu nacionalismo nostálgico, sua tendência autocrática e sua manipulação narcisista da mídia – tem muito em comum com movimentos políticos que adotaram o nome de seu líder. O trumpismo terá, portanto, uma vida longa e transcenderá Trump.
Alguns desses movimentos tiveram influência internacional, como o maoismo, enquanto outros eram predominantemente regionais, como o castrismo cubano, e alguns eram puramente nacionais, como o gaullismo francês e o peronismo argentino.
Esses movimentos têm muitas semelhanças: a transgressão rotineira das normas políticas estabelecidas, o oportunismo descontrolado, a propensão ao autoritarismo, o anti-intelectualismo e a hostilidade a regras e instituições que limitam a concentração de poder no Executivo são apenas algumas. O mesmo ocorre com a feroz inimizade contra rivais que não são vistos como compatriotas de ideias diferentes, mas como inimigos mortais.
As ideologias desses movimentos se revelaram de uma maleabilidade peculiar: o maoismo foi usado para legitimar o totalitarismo comunista de suas origens e, décadas mais tarde, para apoiar a abertura econômica que criou o atual modelo capitalista chinês. Na França, o gaullismo serviu para justificar o nacionalismo espinhoso do general De Gaulle e, posteriormente, o centrismo democrático de Jacques Chirac.
O peronismo argentino tornou-se famoso por sua plasticidade: originalmente justificou o fascismo “light” de Juan Domingo Perón e, décadas depois, as reformas neoliberais de Carlos Menem para, mais tarde, servir de base ao populismo de esquerda de Néstor e Cristina Kirchner. Na Venezuela, o chavismo transformou o país mais rico da América Latina em um dos mais pobres, mas pesquisas de opinião revelam que metade da população apoia Hugo Chávez, morto em 2013.
O trumpismo está prestes a entrar nesta lista, independentemente dos problemas jurídicos e políticos que afetarão Trump nos próximos anos. Com ou sem Trump, o trumpismo continuará. O movimento terá mais ou menos sucesso político, mas suas estratégias, táticas e truques para ganhar e manter o poder perdurarão.
Com suas ações e indiscutíveis sucessos políticos, o 45.º presidente dos EUA revelou ao mundo que é possível chegar ao poder fazendo e dizendo coisas que nenhum político ousou antes. Rotular imigrantes mexicanos como estupradores ou colocar crianças imigrantes em jaulas, insultar seus rivais ou outros chefes de Estado, mentir rotineira e abertamente e fazer o que é necessário para ampliar as divisões sociais existentes ou criar novas fontes de polarização e agitação social são coisas que não tiveram custo político para Trump. Ao contrário: permitiram que ele chegasse à Casa Branca e fosse o candidato mais votado da história dos EUA – depois de Joe Biden.
Inúmeros imitadores de Trump aparecerão nos próximos anos. Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, a quem seus seguidores chamam de “Trump dos trópicos”, é um de seus primeiros e mais bem-sucedidos imitadores. E, nos EUA, haverá uma multidão de candidatos que se declararão trumpistas, mas terão o cuidado de evitar as políticas catastróficas.
No curto prazo, o mais importante é o papel que Trump terá como líder da oposição ao governo Biden. Uma vez fora da Casa Branca, o ex-presidente deve se defender da avalanche de ações judiciais. Terá de passar muito tempo com seus advogados, juízes e promotores.
Simultaneamente, estará captando recursos, consolidando a máquina do trumpismo e uma plataforma de mídia semelhante à Fox News. Ao mesmo tempo, estará lutando pelo controle do Partido Republicano.
A incerteza política continuará a reinar nos EUA. O certo é que Trump tem agora um movimento político de massas que servirá de base para que ele siga lutando para reconquistar o poder. Que seja. / Tradução de Augusto Calil
*É escritor venezuelano e membro do Carnegie Endowment
Alex Ribeiro: Derrota de Trump não afeta bolsonarismo
Mercado se anima com falso declínio do populismo de direita
As eleições americanas animaram o mercado financeiro na semana passada, com alta da Bolsa e queda dos juros e do dólar. Boa parte dos ganhos se deve à esperança de um comando dividido nos Estados Unidos, com Biden na presidência e o Senado sob controle republicano, que limita extravagâncias da esquerda democrata. Mas analistas citam uma força adicional: a derrota de Trump seria um revés para a onda global populista de direita, incluindo o bolsonarismo.
Embora tenha apoiado a eleição de Bolsonaro em 2018, o mercado financeiro, em geral, não gosta de populismo. A retórica ideológica do governo em áreas como meio ambiente, relações exteriores e saúde causa preocupação dentro da própria equipe econômica. Também gera inquietação a aproximação do presidente com o populismo fiscal. Por isso, o enfraquecimento do populismo de direita seria positivo para a economia e para os mercados financeiros.
O cientista político Christopher Garman, managing director para as Américas da Eurasia Group, discorda da tese de que a derrota de Trump representa um enfraquecimento do populismo de direita. Ele pondera que Trump superou as expectativas. As forças que, em primeira instância, levaram à ascensão do populismo de direita seguem presentes. E são independentes nos Estados Unidos e Brasil, por isso Bolsonaro não será afetado.
“O Trump se saiu bem, superou as pesquisas, demonstrou ser mais resiliente do que as pessoas estavam antecipando”, diz Garman, que cita a melhora de sua performance no votos dos latinos e dos afroamericanos nas cidades. A eleição foi decidida por alguns pontos percentuais em favor de Joe Biden em estados competitivos, em que se alternam vitórias democratas e republicanas. “Se não fosse pela forma desastrosa que lidou com a Covid 19, Trump teria sido reeleito.”
Uma pesquisa feita pelo Ipsos Public Affairs, uma empresa de opinião publica, mostra que às vésperas do pleito 28% dos eleitores consideravam o combate à pandemia como o principal tarefa do próximo presidente. Biden estava 14 pontos percentuais à frente de Trump quando se pergunta quem está mais preparado para lidar com a pandemia
O fato de Trump ter sido um candidato competitivo a despeito da sua incapacidade no tema prioritário para o eleitorado mostra como é forte a sua base de apoio. Garman diz que as forças que levaram à ascensão do populismo nos EUA seguem presentes.
“É o desencanto profundo de boa parte da população com o chamado sistema, com a mídia, com o judiciário, com a política tradicional”, afirma. “Os fatores que levaram a isso são o aumento de desigualdade de renda, cada vez maior, o distanciamento entre o desempenho econômico dos centros metropolitanos com a velha economia industrial e os centros mais dinâmicos, com a nova economia.”
A perspectiva não é muito animadora. A pandemia da Covid-19 deverá exacerbar essas desigualdades. A recuperação econômica se desenha no formato em “K”, com a volta mais forte da nova economia e o desempenho mais fraco do setor de serviços.
As enquetes de opinião pública mostram que os americanos estão muito divididos. Uma pesquisa da Ipsos revela que cerca de um quarto dos americanos (26%) apoiaria a continuidade de Trump no cargo no caso de ele perder a eleição e declarar que o resultado não é legítimo.
“Vejo mais polarização, não moderação. O partido Democrata está migrando para uma base mais liberal, progressista e, no partido Republicano, temos o recrudescimento da base trumpista e um presidente que permanece como uma sobra.”
Não deixa de ser paradoxal o fato de que Biden é a moderação em pessoa - um presidente multilateralista, inclinado ao diálogo e à convergência. Mas seria um erro tomar sua vitória como um sinal de crescimento dos moderados, assim como muitos acharam que Emmanuel Macron, na França, seria um sinal nessa direção. Macron foi um candidado de fora do sistema político convencional.
O Brasil é uma história completamente independente do que acontece nos Estados Unidos. A eleição de Bolsonaro está ligado a fatores locais que levaram a uma profunda descrença nas instituições e na política tradicional. A tese de Garman é que esse terreno fértil ao populismo surgiu com a ascensão da nova classe média, que ficou frustrada com a péssima qualidade de serviços públicos, como saúde, educação e segurança.
“É claro que o presidente Bolsonaro pode imitar, tomar lições do trumpismo, e teve muito disso”, afirma Garman. “Mas o fenômeno bolsonarista foi um desencanto profundo por razões domésticas, e não será o Trump fora do poder que vai mudar isso.” Ele propõe um contrafactual: se Hillary Clinton tivesse derrotado Trump em 2016, o presidente Bolsonaro não teria sido eleito?
Não se deve esperar uma moderação, no Brasil, do discurso ideológico do presidente. Bolsonaro migrou para o centro recentemente, mas foi apenas um recuo tático, diz Garman. “Ele não vai demitir o ministro Ernesto Araújo (Relações Exteriores) nem o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) só porque o Biden foi eleito. Acho muito improvável que vá se acovardar para uma liderança mais de esquerda nos Estados Unidos e desagradar a base ideológica.”
O futuro eleitoral de Bolsonaro, diz Garman, dependerá do custo político que terá que pagar com o fim ou redução do auxílio emergencial e de como vai manejar o abismo fiscal no ano que vem, quando os estímulos fiscais que mantém a economia viva terão que ser retirados para retomar o ajuste das contas públicas. “O presidente Bolsonaro deve encontrar um quadro eleitoral bastante competitivo”, afirma. “Qual é a perspectiva de melhora dos serviços públicos em dois anos, com uma crise fiscal em Estados e municípios? O presidente Bolsonaro vai ter que lidar com a falta de melhora desses serviços público e a economia recuperando. O futuro político dele depende disso, não do que aconteceu com Trump.”
Luiz Sérgio Henriques: Derrotar Trump, desconstruir o trumpismo
Não há possibilidade de escrever nem mesmo uma linha sobre política que não carregue consigo a alta tensão elétrica que nos rodeia e angustia. A atmosfera pesada em que temos vivido não se dissipará com o provável resultado favorável a Joe Biden nas eleições norte-americanas, e não só por causa do arsenal de chicanas que são o elemento vital de personagens como Donald Trump. Mais do que isso, a direita subversiva no poder – não podemos esquecer nunca que há outras modalidades de direita, que aderem aos valores constitucionais e, por isso, são participantes com todos os títulos do jogo democrático – sempre deixa como herança um terreno deliberadamente minado; e, como se sabe, minas explodem muito tempo depois de terem sido enterradas, estropiando e matando aleatoriamente. Continuaremos, por isso, a conviver com o perigo por tempo indeterminado.
O caso norte-americano é, na prática, um exemplo de manual, pronto para ser aplicado, ou reiterado ainda mais fanaticamente, em várias partes do mundo. Por mais que Trump e o Partido Republicano, remodelado ao seu feitio, tenham obtido resultados não previstos pela generalidade das pesquisas, o fato é que essencialmente lidamos com um líder e um agrupamento de vocação “minoritária”. Maiorias eleitorais, se e quando acontecerem, serão conquistadas a golpes publicitários, manipulação nas redes sociais, difusão organizada de fake news, tudo voltado para a exploração de medos e paranoias coletivas. Não se faz nenhum segredo quanto a isso.
Nunca é muito difícil achar bodes expiatórios contra os quais mobilizar artificialmente eventuais maiorias: a partir do judeu, o “outro” do Ocidente por excelência, podem-se inventar variados inimigos da raça superior ou da pátria excepcional. Houve um tempo, por exemplo, em que judeus e bolcheviques se misturavam e viravam alvo deste tipo doentio de imaginação; mesmo hoje, por trás dos tais “comunoglobalistas”, pode-se entrever a cauda repugnante do velho antissemitismo. E, como estamos no terreno resvaladiço do engodo, também não é complicado canalizar o ódio e o desprezo para outros portadores de estigma – para o imigrante, por exemplo, inclusive o de origem islâmica. Não se peça coerência e racionalidade ao moderno populismo de extrema direita: a linguagem do ódio é o seu meio, o objeto dela pode variar amplamente ao sabor do acaso.
Empregada como método, esta linguagem tem como resultado a regressão intelectual de amplas camadas da população e a consequente degradação da esfera pública. O que se busca é romper o nexo virtuoso entre participação e conhecimento, democracia e ciência, política e cultura. Seitas como QAnon, especializadas em caçar supostos pedófilos entre opositores políticos e até líderes religiosos, aparecem ruidosamente em cena, reivindicando voz e representação parlamentar. Para não falar, ainda no caso norte-americano, de milícias tão fortemente armadas que tornaram há quase duas décadas o “terrorismo doméstico” uma ameaça muito mais real e presente do que o extremismo jihadista ou qualquer outro extremismo.
Não é possível nos determos aqui nas vertiginosas mudanças “estruturais” que abalam as sociedades modernas e que, “em última análise”, como talvez ainda se possa dizer, condicionam fenômenos como os brevemente apontados. É inteiramente certo, porém, que estes últimos obedecem a uma dinâmica própria e gozam de ampla autonomia. É no contexto deles que vastas parcelas da população se mobilizam, muitas conjunturas eleitorais se definem, dificuldades econômicas e medos existenciais encontram uma explicação qualquer, por mais torta ou equívoca que seja.
O conservadorismo revolucionário – valha-nos o oxímoro – explora e aprofunda tais dificuldades; por definição, não pretende governar democraticamente os conflitos ou buscar alguma forma de recomposição social, mas sim afirmar um poder autocrático por sobre sociedades profundamente divididas ou mesmo dilaceradas em razão de situações agudamente críticas. Sequer uma circunstância pandêmica, como a que vivemos, “comove” este tipo de poder. A máquina econômica tem de seguir adiante inapelavelmente, como se não houvesse nada ao redor, e isso é tudo.
Se há algum consolo no drama que nos afeta, é que, pelo menos num plano mais imediato, não há maiores dúvidas para o diagnóstico: a crise do nosso tempo está toda contida na oposição entre democracia política e subversão de direita (bem entendido, a “direita revolucionária”). Neste sentido, os democratas americanos, até o momento, agiram magnificamente em meio às dificuldades sabidas. Bem verdade que, dado o bipartidarismo vigente naquele país, a montagem da amplíssima frente necessária para barrar a reeleição de Trump constituiu um assunto interno dos próprios democratas, o que em tese terá facilitado suas ações ao longo da campanha pré-eleitoral.
O resultado alcançado diz muito: Joe Biden e Kamala Harris não são um mero biombo atrás do qual se escondem perigosos socialistas e comunistas, mas, antes, a expressão de um centro forte e pragmático, capaz de atrair os republicanos tradicionais que não se submeteram a Trump. E desta vez, ao contrário de 2016, a própria esquerda partidária, representada entre outros por Bernie Sanders, parece ter entendido a dimensão da aposta em jogo: sem ocupar o centro político, só pode haver proposições virulentas e minoritárias, cujo método de ação é o caos, a demagogia, a manipulação. Em suma, só pode haver, e nos seja perdoada nova expressão paradoxal, leninismos de esquerda e de direita, todos os dois muito aquém dos requisitos da política contemporânea e portadores de soluções autoritárias.
Vencer eleitoralmente é, pois, a tarefa imediata rumo à recuperação de um mínimo de equilíbrio e sanidade. Desarmar as minas retardatárias do trumpismo e seus avatares mundo afora é outra história, muito mais complexa, que nos ocupará por muito tempo nos Estados Unidos e nos outros países do Ocidente político, o que inclui obviamente o Brasil.
*Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, foi um dos responsáveis pela mais recente edição das “Obras” de A. Gramsci (Civilização Brasileira), em 10 volumes. Preparou, em particular, as Cartas do cárcere. Em colaboração com Giuseppe Vacca, coordenou o livro Gramsci no seu tempo (Fundação Astrojildo Pereira, 2019, em segunda edição). Dirige, nesta Fundação, a coleção Brasil & Itália, com duas dezenas de livros publicados. Sua atividade de tradutor tem como eixo difundir a cultura democrática e socialista italiana. Há 10 anos é colaborador regular de O Estado de S. Paulo, uma colaboração de que resultou o volume Reformismo de esquerda e democracia política (Verbena & FAP, 2018).
Ascânio Seleme: Frustração, vergonha e medo
Uma parcela gigantesca da população acreditou e segue acreditando em Trump
Mesmo que Joe Biden ganhe a eleição, o fato que se sobrepõe é que os poderosos Estados Unidos são uma nação aterrorizada pelo medo. Há diversas explicações para os milhões de votos dados a Donald Trump, o mais antidemocrático presidente americano de todos os tempos, mas o fantasma do radicalismo de esquerda é de longe o fator mais importante. Uma parcela gigantesca da população acreditou e segue acreditando na acusação de Trump de que Biden e os democratas são perigosos socialistas. Uma bobagem sem tamanho. Nas questões econômicas, os democratas estão mesmo à direita dos republicanos.
Ainda assim, o discurso de que políticas socialistas dos democratas mudariam a cara dos EUA se Biden ganhasse conquistou número astronômico de eleitores. O avanço de Trump sobre os votos hispânicos, tradicionalmente democratas, ajuda a explicar esse medo. Trump disse ao longo da campanha, e mesmo antes dela, que os democratas abririam as fronteiras. Mentira. Mas, se fosse verdade, poderia se supor que seria uma boa novidade, porque enfim os imigrantes se reuniriam com familiares que ficaram para trás. Nada disso. Mais de 75% dos hispano-americanos nasceram nos EUA, seus círculos familiares e pessoais estão lá assentados, e uma abertura ampla para imigração ameaçaria diretamente seu posto de trabalho.
Deve-se considerar também que os hispânicos são religiosos e conservadores. Na Flórida, onde Biden perdeu, os cubano-americanos lideram a comunidade e extravasam seu ódio ao comunismo desde 1960, quando Fidel Castro tomou o poder em Cuba. Nos últimos 20 anos, um grande contingente de venezuelanos imigrou para o estado americano, fugindo da política de Chávez e Maduro, e trouxe na bagagem o mesmo espírito. Além disso, ao redor dos Estados Unidos, o medo do desarranjo econômico que os “esquerdistas radicais” poderiam produzir também impulsionou a campanha de Trump.
Apesar de a economia americana ter sofrido um impacto enorme com o coronavírus, como de resto o mundo inteiro, americanos médios que acreditam na retórica de Trump tremem de pavor só em pensar que a situação pode se degradar ainda mais sob o comando dos “radicais” democratas. A aposta de que a economia poderia definir uma eleição e o slogan “America First” (América em primeiro lugar) mais uma vez acalentaram corações assustados.
A verdade, até este ponto da apuração, é que os votos no presidente que busca a reeleição surpreenderam os republicanos e frustraram os democratas. Todos, uns efusivos e outros calados, esperavam uma vitória clara e incontestável de Joe Biden. O que se vê, mesmo que as projeções estejam certas e ocorra uma vitória democrata, é que as pesquisas mais uma vez erraram. A eleição que se esperava dar com uma vantagem categórica pode acabar nos tribunais.
A diferença entre a expectativa e o resultado que emergiu das urnas, que também se explica pelo medo, tem um outro componente, visto reiteradamente em eleições ao redor do mundo. As pessoas mentem aos pesquisadores por vergonha, sobretudo numa eleição como esta, inflamada pelo descaso do presidente com o coronavírus e pela campanha “Vidas negras importam”. Muitos dos que queriam manter Trump na Casa Branca por razões genuinamente políticas podem ter se sentido constrangidos em apontar corretamente seu voto. Poderiam parecer negacionistas ou, pior, aliados dos supremacistas brancos.
Claro que os Estados Unidos saem desta eleição mais divididos do que nunca. Isso já foi dito pelos analistas, desnecessário acrescentar qualquer coisa. Mas é importante ressaltar que a chance de se reconstruirem pontes é muito mais provável se Biden for o eleito. O democrata é um conciliador pragmático que saberá desobstruir canais e aproximar opostos em torno de objetivos comuns. Esse é seu perfil. O contrário, a reeleição de Trump, seria mais do que a manutenção do estado de beligerância interna, seria seu aprofundamento. Nesse caso, nada mais atual que o velho provérbio americano: “A única coisa que se aprende em uma nova eleição é que não aprendemos nada com a última”.